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» 9m ISAIAS PESSOTTI O SECULO _ DOS MANICOMIOS editorall—l34 EDITORA 34 Distribuigao pela Cédice Comércio Distribuigio e Casa Editorial Ltda. R. Simées Pinto, 120 Tel. (011) 240-8033 Sao Paulo - SP 04356-100 Copyright © 34 Literatura S/C Ltda., 1996 O século dos manicémios © Isaias Pessotti, 1996 A FOTOCOPIA DE QUALQUER FOLHA DESTE LIVRO E ILEGAL, E CONFIGURA UMA APROPRIAGAO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR. Imagem da capa: Hieronymus Bosch, A tentagao de Santo Anta, c. 1505, Museu de Arte Antiga de Lisboa (detalhe) Capa, projeto grafico e editoracao eletrénica: Bracher & Malta Produgao Grafica Revisao: Carla C.C.S. de Mello Moreira 1* Edigdo - 1996 34 Literatura S/C Ltda. Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 Sao Paulo - SP Tel/Fax (011) 816-6777 Catalogacao na Fonte do Departamento Nacional do Livro (Fundagao Biblioteca Nacional, RJ, Brasil) Pessotti, Isaias, 1933- P4755 O século dos manicémios/Isaias Pessott — Sio Paulo: Ed. 34, 1996 304 p. Inclui bibliografia ISBN 85-7326-039-4 1. Psiquiatria - Historia - Séc, XIX. 2, Assisténcia «em hospitais psiquidtricos - Hist6ria - Séc. XIX. I. Titulo. CDD - 616-89 A TRADICAO DA TERAPIA FISICA Antes que surgisse o “tratamento moral”, depois de sua ins- tituigdo e, principalmente, aps o seu progressivo desvirtuamen- to, o tratamento da loucura foi prevalentemente voltado para as fungées organicas, implicando farmacos, dietas e praticas desti- nadas a afetar diferentes fungdes corporais. Tais fungées, afeta- das na diregao presumida pelo clinico, deveriam repercutir sobre a intensidade ou a marcha da doenca mental ou, na melhor das hipéteses, sobre a propria causa da loucura: a lesdo funcional ou anatémica do encéfalo. Presumia-se algum nexo fisiolégico entre, por exemplo, uma sangria abundante ¢ 0 estado de irrigagao san- guinea do encéfalo, de modo tal que a fungio ou a propria estru- tura cerebral lesada seriam alteradas no sentido da normalidade. Era o que se chamou, até o final do século XIX, 0 tratamento fi- sico ou, mais raramente, o tratamento médico. Desde Hipécrates, pelo menos, o tratamento da loucura era essencialmente fisico. As freqiientes alusdes 4 conveniéncia de empregar musica, recreac&o ou conselhos como recursos clinicos nao eram uma prefiguracao da psicoterapia, na maior parte dos casos. Eram o resultado de uma constata¢ao: os 6rgaos respon- diam a tais situagdes, de modo a facilitar a normalizagao da eco» nomia humoral. Sono, relaxamento, atividades artisticas, repre- sentacao teatral, passeios, musica eram aconselhados por sua efi- cdcia no processo de purgacdo ou transformagao ou deslocamento de humores desnaturados, excessivos, ou extraviados de suas se- des normais. Até a reforma pineliana, muito mais do que essas praticas, que Pinel e 0s alienistas do século XIX chamariam “morais” (e O Século dos Manicémios 215 que hoje se diriam psicoterapicas), a terapia da loucura empre- gava recursos destinados a agir mais diretamente sobre as funcdes organicas afetadas. E 0 emprego desses meios de aco “fisica” cresceu paralelamente ao desenvolvimento da teoria organicista da etiologia da loucura, Paradoxalmente, a medicina da loucura ou “medicina do espirito”, como era chamada no século XVIII, empregou, como jd se disse, instrumentos claramente mégicos. Até depois da me- .tade do século XVIII, 0 tratamento dos loucos incluia exorcismos € encantamentos executados por religiosos para expulsar os es- piritos malignos, pois seriam estes que levavam suas vitimas a pensamentos delirantes e a atos inconvenientes. Uma das primeiras vozes a pregar que os loucos nao eram presa de deménios, mas apenas doentes do sistema nervoso, foi a de um médico ilustre, P. Zacchias, em 1674. £ dele uma das mais importantes e duradouras classificages da loucura e a autoria do conceito de alienacéo mental, (alienatio mentis). Mas Ugolotti (1949) lembra que Zacchias, embora médico, recomendava, como um dos tratamentos para a loucura, os filtros dos feiticeiros. No século XVII era freqitente o emprego de valeriana, jus- quiamo, digital, canfora. Na Lombardia usou-se com freqiiéncia a graciola oficinal. Como remédio mais natural empregou-se com alguma fre- qiiéncia sangue retirado do pescoco ou das orelhas de jumentos. Outros tratamentos médicos em uso desde o século XVII e que se empregaram com a abundancia durante quase todo o século XVIII e também no século seguinte foram os purgantes, vomitérios e sangrias, administrados sistematicamente. Também se valeram, de modo generalizado, do recurso a banhos e duchas frias. Eis o que escreveu Ugolotti, em 1949: Mas 0 tratamento que merece ser recordado como especffico para as doengas mentais é 0 tratamento vio- lento, sob as mais diversas formas; tratamento violen- to que era, na verdade, prescrito pelos mestres da me- 216 Isaias Pessotti dicina de entéo como meios curativos, mas que certa- mente eram empregados de modo punitivo e com fins de castigo, por pessoas nao educadas e movidas por uma brutalidade bestial. Recordaremos, entre todos os métodos de terapia violenta, a privacdo de alimentos, as queimaduras na nuca — muito usadas na Senavra de Milio — os comuns abcessos, 0 seton [fio ou cor- dao de seda ou 1a, introduzido com uma agulha sob a pele, ficando as pontas fora do corpo, para provocar supuracées e drenagem de humores] as fricgdes de tr- taro estibiado sobre 0 couro cabeludo raspado, todos tratamentos feitos com o intento de distrair a mente dos obsessionados e dos delirantes. Para fim hipostenizante usavam-se, de bom grado, a intimidagao e as ameagas, que’segundo alguns médicos deveriam empregar-se com a maior prudéncia. A preferéncia dada por grandes mestres da medicina aos meios violentos de tratamento, tal como aponta a citacao acima, era bem clara nas primeiras décadas do século XIX. Em 1805, Reil indicava a utilidade‘dos choques sensoriais intensos, como gran- des sustos ou inesperados estrondos, por exemplo, de disparos de canhao. E chamou ao conjunto de tais praticas “the psychical method of cure”. Na verdade visava a explorar os correlatos cor- porais, principalmente circulatorios, das emogées intensas, como uma genuina terapia fisica. Depois que Mead afirmou que a doenga mental era incom- pativel com outras doengas, Joseph Mason,Cox, membro de uma importante familia de médicos ingleses, “especialista em insani- dade”, escreveu um livro, em 1804. A obra, reeditada em 1813 com alteragées, foi considerada por D. H. Tuke “o melhor trata- do médico atual sobre a insanidade”. Cox pregava a importan- cia de combater a doenca mental com 0 emprego de “considera- veis comogées na economia animal, seja interrompendo associa- Ges doentias, seja ocasionando doengas temporarias”. J O Século dos Manicémios 217 Comogio violenta e distirbios organicos tempordrios eram exatamente 0 que se podia conseguir com a técnica do balango (swing) que Darwin havia inventado, e que fesultaria na famosa maquina rotatéria. (Em 1828, escreveu Burrows: “essa maquina pode ser encontrada na maior parte dos asilos publicos britani- cos”, embora “em alguns tenha caido em desuso”.) O swing ou balanco, inventado por Erasmus Darwin para tratar vé- rios tipos de loucura, Publicado, mais tarde, por Morison em 1828. Adapta- do por Cox e por Halaran para fazer girar o paciente em outras posigées, foi muito difundido no século XIX nos manicémios da Inglaterra e da Franca. No texto de Cox, o procedimento aparece notavelmente aper- feigoado e ganha um embasamento teérico mais consistente. Ao que parece, a “maquina” de Erasmus Darwin s6 permitia rotacao com o paciente amarrado a um leito, no plano horizontal. aparelho usado por Cox era diverso. Em algumas cordas presas ao teto era fixada uma trave de madeira, horizontal, dis- 218 Isaias Pessotti tante do solo a meia-altura. Nessa trave se prendia uma maca ou uma poltrona de madeira. Com a maca, o paciente ficava em po- sicdo horizontal durante o giro. Coma cadeira, obtinha-se a “ro- tagdo perpendicular”. Outra aplicaco era a simples oscilacio pendular da maca ou da poltrona. Normalmente, 0 movimento } rotat6rio era acelerado e se prolongava até que provocasse verti- gens, vémitos e colapso circulatorio, ao ponto de produzir incons- ciéncia, com ou sem convulsées. Era 0 que o autor chamou “re- médio herctileo”, e que produzia os dois efeitos terapéuticos mais importantes: “doenga temporaria” e “intensa comogao”. Joseph Mason Cox estudou seriamente seu método e con- cluiu: 0s efeitos visados se conseguem mais cedo com.o movimento de rotagao do que com o de oscilagao pendular. Ademais, os efeitos so mais répidos na posigao horizontal que na perpendicular. Em alguns casos de mania, o “balanco”, repeti- do, tem a singular propriedade de tornar 0 sistema sen- sivel 4 ago de agentes a cujos poderes antes resistia. Uma de suas propriedades mais valiosas é sua agio como um anédino mecanico. Apés umas poucas cir- cunvolugées, testemunhei seus efeitos calmantes, tran- qiiilizando a mente e tornando quieto 0 corpo; freqiien- temente, segue-se um certo grau de vertigem que tem sido sucedido pelos mais repousantes cochilos; alias 0 mais desejado objetivo em todos os casos de loucura. (Cox, 1804, in Hunter e Macalpine, 1963, p. 594) Mas as virtudes do “remédio herciileo” nao se limitam aos efeitos corporais: “seus poderes se estendem a mente”. Para isso é preciso associd-lo a alguma forma de emogao forte, como o medo, por exemplo. Cox tem idéias claras sobre o que fazer para obter maior rendimento terapéutico do seu “remédio”: Conjugado com a paixao do medo, a amplitude de sua aco jamais foi verificada com preciso. Mas nao O Século dos Manicémios 219 tenho diivida de que ele traré alfvio em alguns casos muito desesperados, se empregado no escuro, quando sua eficdcia pode ser notavelmente acrescida por rui- dos on cheiros estranhos, ou outros agentes potentes que atuem intensamente sobre os sentidos... Em todos os casos, ocorreu que uma freada abrupta da maqui- na, quando estivesse em plena rotacao, ocasionava um violento choque tanto 4 mente como ao corpo. (Cox, 1804, in Hunter e Macalpine, 1963) Cox adverte que o uso do aparelho deve ser supervisionado pelo médico, pois o “remédio” pode enfraquecer demais 0 pacien- te. Parece, alids, que os pacientes nao embarcavam de bom gra- do no “remédio herctileo” de Cox: Eu vi, até, um paciente tao enfraquecido em suas forcas de locomogao por causa da agao prolongada desse remnédio que, se era necesséria a forca combinada de va- rios atendentes experientes para colocd-lo no balancgo [swing], ele podia ser dali retirado facilmente por uma tinica pessoa; seguiu-se um profundo sono, que foi su- cedido por convalescenga e perfeita recuperagao, sem ajuda de qualquer outro méio. (Cox, 1804, in Hunter e Macalpine, 1963) Trata-se de uma rova clinica da eficdcia terapéutica do mé- todo. Mas, como bom organicista, 0 autor tem uma explicagao fisiolégica para o sucesso obtido: Um dos efeitos mais constantes do balango é um maior ou menor grau de vertigem, acompanhada de pa- lidez, nausea, vémito e freqiientemente pela evacuagao da bexiga [...]¢ [...] uma 6bvia mudanga na circulagao [...] essas alteracGes necessariamente resultam da agao exercida sobre os 6rgaos da sensibilidade, 0 cérebro e 220 Isaias Pessotti © sistema nervoso, € provam que o remédio age sobre a sede da doenca; mesmo que a causa proxima nao se possa determinar. Como 0 yémito tem sido considerado, de longa data, entre os mais eficazes remédios para a Joucura, se 0 balango produzisse apenas esse efeito, suas propriedades ja seriam valiosas. (Cox, 1804, in Hunter e Macalpine, 1963) Uma vantagem desse tratamento “herctileo” é sua versatili- dade: ele pode ser operado para [...] produzir os mais suaves ou ténues efeitos, mas sua acdo pode ser regulada para excitar as mais violentas convulsées do estomago, com agitacao e concussao de todas as partes do sistema animal; e desse modo, tor- nando o sistema vascular mais fluente, ou, noutras pa- lavras, removendo obstrucGes, e alterando a propria na- tureza e qualidade das secregdes. (Cox, 1804, in Hun- ter e Macalpine, 1963) ‘A despeito de toda essa eficiéncia sobre o organismo, 0 sis- tema terapéutico de Cox nao esquece a eficécia “moral” do ba- lanco. Q.risco de comprometer a recuperacdo do paciente, como resultado de emocées trauméticas ou do sofrimento pessoal dos pacientes, submetidos a tratamentos violentos, parece nao preo- ‘Cupar o autor do texto, £0 que aparece com clareza meridiana no trecho abaixo que, para nds, pode explicar muito mais do que Cox, em seu tempo, podia enxergar: [A impresso causada na mente pela lembranga de | seus efeitos corporais é outra importante propriedade do balanco; e o médico freqitentemente poderd apenas ameacar a sua aplicago para assegurar 0 cumprimento de sua vontade, visto que nenhuma espécie de punicao & mais eficaz. (Cox, 1804, ix Hunter e Macalpine, 1963) O Século dos Manicémios 221 O emprego desses métodos violentos tinha como base a idéia de que a provocacio de convulsées “em todas as partes do cor- po” era um modo de combater 0 delirio, forgando o louco a to- mar consciéncia de seu corpo e da realidade circunstante, ainda que penosa. Este princfpio doutrindrio basico, que explica tanta difusio dos tratamentos fisicos desse tipo, é claramente formulado por Cox, ao referir-se 4 questdio das “doengas contrdrias”: a0 método Talvez seja suficiente dizer que qualquer meio em- pregado para.a remocfo da doenca mental, seja moral. ou médica, quando eficaz, cura porque introduz algu- ma alteragdo importante no sistema geral; ¢ é certo que, em distarbios manfacos, se for possivel provocar qual- quer comogio intensa, qualquer a¢io inusitada ou vio- lenta, por quaisquer meios, o desarranjo mental é fre- qiientemente reduzido, senéo removido permanente- mente; desse modo, a variola tem dissipado a mais obs- tinada melancolia [...] o ardor cutdneo, também, como se sabe, pode trazer os mesmos efeitos benéficos [...] (Cox, 1804, in Hunter e Macalpine, 1963) Foi nessa linha de pensamento que se adotou como terapia a inoculagao de variola e, mais tarde, a inoculagao de malaria, a famosa malarioterapia, inventada por von Jauregg, em 1917. Mas, segundo Ferrio (1949), von Jauregg j4 pesquisava nessa drea des- de antes de 1887, quando escreveu: “Nao seria justificado intro- duzir na terapia das psicoses o meio terapéutico que a natureza possui na provocaciio de doengas febris, [ou seja] transformar em agente terapéutico a provocagao artificial de doencas febris?”. O método da malarioterapia era eficaz, em muitos casos. Ou seja, naqueles em que a internacdo se devera a distirbios mentais causados pela sifilis: as febres altas matavam o treponema e, com isso, os danos da sffilis sobre o cérebro desapareciam ou se reduziam. 222 = Isaias Pessotti, Descartado o tratamento moral, por razées doutrinarias ou praticas, restava ao alienista do século passado o recurso a prati- cas desse tipo, nas quais a tranqitilidade emocional do paciente perde a importancia que tinha nos tempos da reforma pineliana. Tanto que o pavor é causado deliberadamente como recurso de tratamento. Mesmo em Bicétre empregava-se a intimidagao. Leuret, o “herdeiro cientifico” de Esquirol, que ali trabalhou e pesquisou em meados do século XIX, preocupado com os riscos dessa téc- nica, usava uma forma prudente de executé-la: fazia deitar o doen- te numa banheira, sobre a qual estava um reservat6rio de 4gua acoplado a um chuveiro; sentava-se em frente ao paciente e lhe dava todos os conselhos que julgava pertinentes, com a ameaca de violenta ducha de 4gua fria se nao se conduzisse conforme os conselhos do médico. O Século dos Manicémios = AS ALTERNATIVAS TERAPEUTICAS Bordoadas, chicotadas e bofetadas eram utilizadas freqiien- temente na grande maioria dos manicémios, até depois da refor- ma de Pinel. J4 em 1838, cerca de quarenta anos apés a abolicao das algemas em Paris, Esquirol, apés apontar as vantagens da contencao com a camisole sobre outros meios de imobilizagio, escreveu, referindo-se a sua época: 224 Preferem algemas de ferro, ou de couro guarneci- do de ferro. Propuseram um cinturao que envolve o bai- x0 ventre e que é trancado, as costas do paciente, por um cadeado, ou um parafuso. Nos dois lados da cintura, 0s bragos sao imobilizados por bracadeiras que pren- dem os pulsos e sao fixadas, também, como o cinturao. Este aparelho é de couro guarnecido de ferro. Haslam costuma amarrar 0 cinturao com duas correias que pas- sam sobre os ombros, como suspensérios, Costuma-se usar também um tubo de couro espesso, cujas extremi- dades terminam em braceletes que prendem os dois pul- Sos e impedem que as maos se soltem [...] Autores muito espeitaveis tém aconselhado o uso de espancamento para vencera resisténcia dos alienadas e para torna-los déceis; é um meio muito humilhante ¢ muito perigoso Para que seja necessario apontar outros motivos para condend-lo. A maquina rotatéria, que era, originaria- mente, um agente terapéutico, nao é mais que um ins- trumento de repressao [...] (Esquirol, 1838, II, pp. $37- 538) Isaias Pessotti Segundo este trecho, os instrumentos penosos de contengao dos loucos agitados ou suspeitos de periculosidade (entao, uma categoria extremamente ampla), e que eram empregados abundan- temente por médicos e “enfermeiros” desde a Antigitidade, esta- vam em pleno uso em meados do século XIX. As algemas e correntes de ferro, mesmo abolidas ostensiva- mente por Pinel, Chiarugi e outros, nao foram, como se vé, aban- donadas totalmente em muitos manicdmios. Outros meios de con- tengdo mecanica dos loucos agitados, e que os adeptos do trata- mento moral haviam condenado ou praticamente banido, volta- rama ser de uso freqitente, apés o declinio do modelo manicomial baseado no “tratamento moral”. f Ficaram famosos, ento, os recursos como a “cintura de Has- { lam”, a “méscara de Autenricht”, de couro rigido, destinada a | sufocar os gritos dos agitados, o “saco de Horn”, que levava o nome ‘ do ilustre diretor do Hospital da Caridade de Berlim. Era um saco “de tecido muito grosso, bem encerado para impedir a passagem de luz, e dentro do qual eram amarrados os pacientes mais agitados. Havia também a cruz de cordas. Uma grossa corda era fi- xada na vertical, do teto ao solo; outra a cruzava, amarrada a esquerda ea direita. O paciente, de pé, era amarrado pela cintu- ra ao cruzamento das duas e seus bracos, abertos e estirados eram ligados a corda horizontal. Os pés eram amarrados a corda ver- tical. Esse tratamento chamava-se “crucifixao”. O arsenal terapéutico dos adeptos do tratamento fisico in- cluia outros recursos igualmente violentos, como refere Ugolotti (1949). Dois desses meios de cura merecem mengao aqui. Eram os banhos e a cAmara escura, O banho frio inesperado era terapia usual. Havia varios sis- temas, alguns muito complicados. Basicamente, tratava-se de um fosso cavado no pavimento de uma sala e cheio de 4gua fria. Era coberto por uma esteira, disposta como um tapete, que 0 escon- dia. Conduzido calmamente A sala, 0 paciente caia na gua gela- da. E ali devia permanecer pelo tempo da recitaco de um miserere (um salmo penitencial em que o pecador invoca o perdao divino O Século dos Manic6mios 225 e se reconhe vil e desprezivel. Recitado sem as pausas rituais en- tre um versiculo e outro, tomava mais de dois minutos. Um tem- po suficiente para que o paciente se sentisse congelado). O mes- mo processo terapéutico podia ser empregado, em instituicées menos equipadas, simplesmente jogando o paciente, distraido, em algum riacho ou canal. Nao é facil perceber a fungao organica exercida por esse inesperado banho frio ou gelado. Mas ele era empregado, tam- bém, para distrair 0 melancélico de sua idéias delirantes. Nos casos de mania, a fungao de tais banhos era aplacar a fiiria do paciente ou, fora dos acessos, reduzir-lhe a violéncia costumeira. Visava- se a vencer a prepoténcia ou arrogdncia do manfaco. Tal como se usava a violéncia para tornar déceis os cavalos selvagens. Diversamente do banho frio de surpresa que se podia apli= car em qualquer tanque com Agua, a camara escura exigia algum equipamento mais especializado. Era um pequeno aposento, ou cabine, pintado de preto no teto, no chao enas paredes. Continha meios para produzir ruidos horrendos, ameacadores, como imi- tacao de urros de feras ou o desabar de um temporal terrificante. Para esse segundo “efeito especial”, usava-se um grande cilindro metélico, girat6rio e dividido em compartimentos nos quais ha- via pedras e objetos metdlicos de diferentes tamanhos. O movi- mento das pedras, ao girar-se 0 cilindro, produzia ruidos for- tissimos ¢ assustadores como os de raios ou trovées, em plena escuridao. A indicagao dessa terapia também era diiplice: servia Para os casos de mania e os de melancolia. A funcao desse instrumental, como lembra Ugolotti (1949), era “depri ‘or, a excessiva energia do manfaco, ou " Sacudir a penosa concentracio do melancélica”. O aspecto po- livalente de tais tratamentos dein claro quanto era inespecifica. a i ni istirbio or- a De um modo geral, a maior parte das técnicas do tratamen- to fisico sao de indicacao bastante ampla. (Lembram os antibié- ticos de “amplo espectro”.) 226 Isaias Pessotti Mais adiante sero expostos outros recursos cujo emprego foi rotineiro ha cem anos. Alguns eram herdados do século XVIII, outros foram inventados por grandes autoridades médicas do sé- culo XIX. Por ora, deve-se notar que a atitude clinica coerente com uma interpretacio verdadeiramente organicista da loucura é substan- cialmente diversa ae que decorria de uma concep¢io passional, mental ou “moy . Nos ambientes pine- lianos, a presenca do médico era parte essencial do método te- rapéutico, como vimos, € os sentimentos e emogGes do paciente eram extremamente importantes no processo de tratamento. Nos} manicémios em que a loucura é entendida como lesao encefalica, a vida emocional do paciente tem escassa ou nenhuma importancia > terapéutica e a presenga pessoal do médico é desnecessaria para | a evolugao clinica do caso. O que nao pode faltar é 0 farmaco, a | ducha, o vomit6rio, o purgante, o balango. A fungio curativa do médico se limita, praticamente, & prescrigao desses instrumentos. Ausente 0 médico, 0 emprego pratico de tais “terapias” fica inteiramente a cargo do pessoal nao-médico: atendentes, “enfer- meiros” e guardas. Considerado 0 medo que o louco inspirava e a crenga, arraigada, na eficacia corretiva do castigo, é facil ima- ginar a rotina “terapéutica” de um tipico tratamento organicista do século XIX. Para entender o confronto entre as “filosofias” terapéuticas de moralistas e organicistas, convém lembrar que, apesar da ade- sio aos principios do tratamento moral que tornava eletivas as praticas de cunho realmente reeducativo (ou psicoterapicas), os homens que tratavam os alienados eram médicos. Portanto, cientes de que mesmo 08 distiirbios mentais de origem passional ocorrem num organismo, com sua fisiologia eventualmente alterada, cientes de que mesmo os distirbios tipicamente mentais acontecem, de algum modo, no sistema nervoso. Por isso, a op¢do pelo tratamento moral nao implicava ignorar a eventual utilidade de intervengdes sobre o organismo dos pacien- tes. Jé desde Pinel e Esquirol, 0 emprego de meios fisicos de trata- O Século dos Manicémios 227 mento nao era descartado in limine. Apenas se atribuia maior efi- cécia a intervencao mais imediata sobre os processos mentais, & modificagao das idéias a partir das experiéncias cognitivas ou sen- soriais; estas, obviamente, produzidas por algum tipo de estimulagdo fisica. As alteragées abruptas do ambiente ou do estado organico, como recursos para despertar a percepgdo da realidade ou para in- terromper o discurso delirante, entravam perfeitamente num pro- grama de tratamento moral, lato sensu, mas somente quando ca- pazes de alterar fungGes mentais, especialmente as cognitivas. Nao admira, portanto, que Esquirol e outros adeptos do tratamento moral empregassem, as vezes, recursos que eram de uso freqiiente entre os alienistas entusiastas das exceléncias do tratamento fisico. Tanto os mentalistas, ou “moralistas”, podiam empregar meios de amedrontar ou assustar o paciente, ordenar dietas, banhos e farmacos, quanto os organicistas podiam utili- zar recursos de tipo “moral” como miisica, teatro ou recreagao. S6 que, neste tiltimo caso, bem pouca fé se punha na eventual eficdcia terapéutica de tais recursos. Quase todo o investimento do trabalho clinico nos ambientes organicistas era nos pracessos de alteracio de funcGes e estados organicos. Ali, os recursos “mo- rais” tinham apenas a funco de alterar o estado organico, como coadjuvantes do tratamento fisico. Diante de algumas formas eventualmente penosas ou cruéis de tratamento fisico do século XIX, ou do emprego abusivo ou punitivo de tais métodos, parece estranho que se tenha visto tanta “desumanizagao” no habito de regular minuciosamente 9 uso do tempo e dos espacos na rotina didria dos manicémios, E até pou- co criativo atribuir um sinistro designio desumanizante aquela or- denacao rigida dos horarios, como se ela fosse uma deliberada e cinica violagao da natureza livre do homem, para assegurar a fruicao médica do poder. Ou para demarcar papéis e classes sociais, E necessério entender que essa ordenagao derivava, curio- samente, de uma visio “iluminista” do louco. O homem livre é la forca imediatista dos impulsos, A compreensio das regras de convivéncia seria uma 228 Isaias Pessotti forma de elevar o paciente a racionalidade, 4 autonomia em rela- ao A mera instigacao dos instintos. O cumprimento de hordrios ¢ tarefas era um treino de respeito as normas coletivas ‘A mais perfeita aplicacao da “psiquiatria” pineliana na Ita- lia foi no manicémio de Aversa, em Napoles, j4 mencionado ante- riormente. e que foi um baluarte do “tratamento moral”. Na his- toria da psicopatologia, ficou famoso 0 “sino de Aversa”. Ele mar- cava, com diferentes toques, desde a madrugada até a hora de dor- mir, os horarios de todas as atividades diérias do manicémio. Alias, como em qualquer convento ou colégio bem organizado. Tal como fazia a campanella, chamada também Ia lunga, que Chiarugi ins- talara no “Bonifazio”, em Florenga, e que marcava os horarios de todas as refeigées. Nao é dificil perceber que a medicina tinha bem outros meios de afirmar seu poder, se se pretende enfocar a rela- cdo terapéutica como uma relagdo de poder. Uma das diferengas mais claras entre o tratamento moral e © tratamento fisico é justamente a diversidade do papel do médi- co no proceso terapéutico: guia, interlocutor, conselheiro e pe- dagogo, num caso; mero responsavel pelo diagnéstico e pela pres- crigdo (e eventual supervisdo) de tratamentos, no outro. Quem prescreve horarios rigidos nao € 0 segundo. Este prescreve o em- prego de meios fisicos de intervir no organismo; meios dos quais mencionamos alguns. Para alguns médicos organicistas, as praticas e o ambiente tipico do tratamento moral eram exemplos de inocuidade e até de desorganizacao. Ao contrario dos procedimentos tipicos do tratamento fisico. O manicémio de Aversa s6 regulamentou e estruturou o tratamento em 1826, mas jd antes dessa data, funcio- nava segundo “a imagem e a semelhanga da Salpétriére” (Pantozzi, 1994), segundo os moldes de Pinel. O tratamento era, portanto, prevalentemente moral, embora se praticasse, em 1823, algum tratamento fisico, como os banhos e a camara escura e até mes- mo a macchina rotatoria. Essa maquina, segundo Esquirol, po- deria ser um recurso terapéutico, mas se transformara em mero meio de castigo ou de repressio. O Século dos Manicémios 229 RECURSOS FISICOS E TRATAMENTO MORAL A inteng3o ou a finalidade do emprego dos meios fisicos é que varia, de Esquirol, por exemplo, a Chiarugi ou Griesinger. Resumindo os meios nao-violentos que lhe permitem man- ter sob controle os loucos de Bicétre, Esquirol escreveu: A reclusio momentanea, a camisola aplicada du- rante alguns instantes, a poltrona de forca, a ducha, os banhos prolongados, as afusdes de agua fria, a priva- cao de algumas distragées so mais que sufucientes co- mo meio de represséo, quando um médico habil os sabe empregar, cada um em seu momento e com modera- cao. (Esquirol, 1838, II, p. 538) Entre esses recursos, varios poderiam ser eletivos para um programa de tratamento fisico, ortodoxo. Contudo, so propos- tos por um instituidor do tratamento moral. A diferenga, essen- cial, é que, neste caso, se exige a presenga do médico, a decisio criteriosa e clinica de empregar os instrumentos e 0 respeito ao Paciente como pessoa. Alids o pardgrafo termina sem deixar di- vidas quanto a isso: Nunca, sob nenhum pretexto, os diversos meios de repressao devem ser prescritos, sendo por um mé- dico, nunca devem ser empregados senao na presenca do médico, ou dos supervisores-chefes. (Esquirol, 1838, Il, p. 538) 230 Tsaias Pessotti | a ec Enquanto, com os meios fisicos, os alienistas “pinelianos” visavam a reordenar funges mentais, os “organicistas”, ao em- pregarem recursos “morais”, pretendiam alterar 0 estado do cé- rebro, pela ago sobre fungées organicas diversas: a circulagao, © ténus muscular, ou o apetite, por exemplo. . Essas consideragdes mostram que a divisao do mundo da psi- copatologia entre dois agrupamentos de alienistas, ou duas doutri- nas,uma moral outra organicista, nao se pode fazer segundo 0 arsenal de instrumentos terapéuticos preferidos por cada uma. Pri- meiro, porque grande parte desse repert6rio écomum as duas orien- tages. Em segundo lugar, porque a funcao de um mesmo recur- so, ou tatica, é diversa em cada uma das estratégias terapéuticas. ‘A. adesao ao tratamento moral nao impediu, por exemplo, que Pinel ou Esquirol empregassem numerosos recursos nao propria- mente psicoterapicos. No primeiro volume do Des maladies men- tales, Esquirol retrata com nitidez a apreciagao de um adepto do tratamento moral sobre os métodos tipicos do tratamento fisico, principalmente ao discorrer sobre o tratamento da “lipemania ou melancolia”, em varios trechos que deixam clara sua posi¢ao a respeito dos recursos fisicos. Como a passagem abaixo: O tratamento que se aplica diretamente a sensibi- lidade organica e ao qual se chama tratamento fisico, na medida em que for secundado pela higiene, na medida em que ele no for dirigido por empirismo ¢ por con- cepgGes sistematicas, contribui, certamente, A cura da lipemania. Isto porque, se essa doenca é freqiientemente produzida pelas afecc6es morais, ela é também resultante de distirbios fisicos [...] é fato observado que [...] a me- lancolia oferece mais possibilidade de cura se 0 médi- co consegue perceber algumas desordens nas funcdes da vida de assimilagao [...] Como nao é facil remontar a0 conhecimento de causas suficientemente evidentes, tem- se tratado a lipemania de acordo com as teorias eos sis- temas que tém prevalecido nas diferentes épocas da me- O Século dos Manicémios 231 dicina [...] Alguns modernos quiseram retomar 0 uso do heléboro [...] mas nao lhe atribuem nenhuma virtude especifica. Pinel se atém aos laxantes, aos purgantes fra- cos; as chicoredceas, as plantas saboentas, combinadas com alguns sais neutros, sao suficientes para cessar a constipa¢ao, seja quando ela anuncia um acesso ou paro- xismo, seja quando ela apenas complica a melancolia. No inicio das lipemanias, os vomitérios, os emético-ca- tarticos, s4o muito titeis [...] (Esquirol, 1838, I, p. 478) Afora o emprego do termo catartico, este trecho ¢ interessante porque demonstra que a adesao de Esquirol ao emprego de métodos fisicos era muito cautelosa. E feita com diversas ressalvas: o trata- mento fisico nao é decisivo, mas somente “contribui” para acura. Eisto porque atua sobre a “sensibilidade fisica”: ele produz sensa- des que podem servir para a recuperacao do paciente. E apenas quando for empregado com fins especificos, acompanhado de me- Ihora da higiene. Mais ainda, esses métodos servem porque a lipe- mania, em certos casos, pode ter origem em disfungées organicas. Trata-se de uma postura terapéutica realista: nem toda li- pemania resulta de causas morais, ou é produto exclusivo dessas causas. Esquirol aponta os distirbios na assimilagao e excregao, por exemplo. Sao desordens orgdnicas que podem, portanto, ser enfrentadas com meios fisicos: Desse modo chega-se a manter uma diarréia artifi- cial enquanto as forgas do doente o permitem, imitan- do, com isso, a natureza, num de seus modos de curar. As lavagens mais ou menos irritantes podem ter alguma utilidade [...] Emprega-se tartarite antimoniada de po- tassio, em pequenas doses freqiientes, seja para deslo- car a irritagao, seja para agir sobre a imaginagao dos doentes que, com isto, acreditam estar bem de satide; pois as dores gastricas [...] que eles sentem atraem a atengao deles e os convencem de que estao doentes [...] 232 Isaias Pessotti Para alguns melancélicos [...] guta, escaménia, jalapa, aloés, muriato (cloreto) de merctirio leve ete. (Esquirol, 1838, I, p. 478) Uma boa ilustragao do tratamento fisico e das restri¢des de Esquirol ao seu emprego esta contida no trecho que segue, refe- rente a famosa machine dite rotatoire: A “maquina rotatéria” de Halaran, de 1818, para o tratamento da mania. Permitia fazer girar 0 paciente em duas posigSes: sentado dentro da caixa ou deitado (amarrado a uma maca acoplada a caixa). Eventualmente, a maquina permitia a rotacao de dois pacientes ao mesmo tempo, um senta- do e outro deitado. A velocidade de rotagao era de cem giros por minuto. O Século dos Manicémios 233 Nestes tiltimos tempos, Darwin aplicou 4 medicina uma maquina dita rotatéria, cujo efeito é produzir abun- dantes evacuagGes por cima e por baixo; alguns médi- cos ingleses, como Mason Cox e Haslam, apregoam os auspiciosos efeitos dessa maquina, da qual eu, por pri- meiro na Franca, mandei fazer um modelo. Alguns mé- dicos temem que o uso de tal maquina possa ser mais nocivo do que titil. Ela provoca a epistaxe, pode pro- duzir apoplexia, acarreta uma grande debilidade, traz a sincope e expde a outros acidentes, o que leva a rejeita- la. (Esquirol, 1838, I, p. 479) Quanto a outro meio fisico de uso freqiiente, a sangria, Es- quirol inform: Perseguindo a atrabilis até no sangue, os humo- ristas fizeram da sangria um preceito geral contra a melancolia [...] Cullen diz que a sangria é raramente Util. Pinel a emprega muito pouco. Contudo, pode-se recorrer a evacuagdes sangiiineas locais, seja no epi- gastro, quando 0 estémago é a sede de uma viva irri- tag4o; seja na vulva, quando se pretende restabelecer o fluxo menstrual, ou ao anus, quando se pretende ali- viar as hemorréidas; seja na cabega, quando ha sinais de congestao cerebral. Ja me aconteceu, algumas vezes, aplicar com sucesso sanguessugas em um dos lados da cabega, visto que os lipemaniacos se queixam de uma dor fixa nesse mesmo lado. (Esquirol, 1838, I, p. 479) Nota-se que, a despeito da opcao definitiva pelo tratamen- to moral, Esquirol admite, como cientista, aplicar recursos de tipo fisico, quando reconhece distiirbios fisicos especificos, e sempre atento para a eventual conseqiiéncia “moral” de tais meios. Con- fiando em alguma eficacia deles sobre a sensibilidade. A lipemania pode apresentar-se sob duas formas: uma “es- 234 Isaias Pessotti coltada” por sintomas que indicam predomindncia do sistema abdominal ou sobrecarga do sistema sangiiineo; outra na qual o sistema nervoso parece ser “causa de toda a desordem”. Neste caso, a conduta médica deve ser outra: O médico deve procurar modificar a sensibilida- de e acalmar a excitacao nervosa pelos meios higiéni- cos [. 6pio, pelo uso de agua sob a forma de vapor, de duchas, de banhos, de afusées. fria € itil quando a melancolia é causada por onanismo. As afusdes de gua fria, ao provocarem uma reagao ner-, |, pelas bebidas calmantes, pelos narcéticos, pelo O banho de imersao em agua vosa no exterior, fazem cessar 0 espasmo interior e pro- vocam uma solugio feliz. para a doenca. A ducha age da mesma maneira; além disso, nas maos de um médico experiente ela pode exercer uma influéncia moral sobre o doente, e forgd-lo a renunciar a resolug6es funestas e perigosas [...] Alguns entusiastas empregaram 0 mag- netismo no tratamento da melancolia: que resultado ob- tiveram? Alguns resultados pouco compensadores e até contestados. Eu também fiz experiéncias e nao obtive qualquer cura. (Esquirol, 1838, I, pp. 480-481) Comentando o uso de aparelhos de contengao, Esquirol des- creve uma invengao de Benjamin Rush, docente da Universidade da Pensilvania. Trata-se de uma poltrona de madeira, com espal- dar muito alto ao qual se fixa uma espécie de caixa que imobiliza a cabega. O tronco, as pernas, os pés, as mos e os bragos tam- bém sao imobilizados por correias que os amarram & poltrona. solado de qualquer som, as es- curas e por periodos tao longos que sob o assento se colocava um O paciente ficava nessa cadeira, balde para receber dejectos. Além de grifar o nome inglés do apa- relho, tranquillizer, Esquirol apenas comenta, nao sem alguma ironia: O Século dos Manicémios 235 O famoso tranquilizer, apresentado por Benjamin Rush, em 1811, como instrumento muito eficaz para acalmar maniacos. O paciente era imobiliza- do pelos pés, cintura, peito, bracos e cabega. Uma caixa de madeira vedava qualquer visio ou qualquer movimento da cabeca. O paciente, assim imobili- zado, ficava trancado numa sala escura e sem qualquer som, por muitas horas. Eu nao conseguiria enumerar todos os instrumen- tos inventados para conter os furiosos; os alemies, neste particular, siio de uma fecundidade incrivel. (Esquirol, _ 1838, I, p. 537) Quando se publicou a obra de Cox, citando as exceléncias terapéuticas do seu balango, ou swing, Rush j4 havia construido © seu gyrater, um aparelho parecido com o balanco de Cox, mas mais eficaz. Pois Rush adaptou a ele dispositivos mecdnicos para produzir vertigens e choque. Halaran, em 1818, publicou uma versao mais completa do swing, que permitia duplicar a produgao de curas: o seu instru- 236 Isaias Pessotti mento permitia colocar em rotacao dois pacientes ao mesmo tem- po; um girando no plano horizontal, outro no plano vertical. Na obra de Rush, de 1812, encontra-se uma lista espantosa de punicées e tratamentos violentos, recomendados, com uma cuidadosa seriagdo e com indicagées precisas sobre a aplicagao de cada um. Veja-se, a seguir, o que ensina Rush sobre um tratamento fisico empregado desde a Antigiiidade, mas com extrema freqiién- cia no século XIX: a sangria. Remédios para a mania geral [...] O primeiro re- médio deve ser a sangria. Essa evacuagao é indicada: 1) Por todos os fatos e argumentos [...] que indicam ser essa doenca uma desordem arterial, de grande excita- cdo ou inflamagao doentia do cérebro [...] 2) Pelo fato de que o apetite é interrompido, ou freqiientemente desmedido, o que sobrecarrega de sangue os vasos san- guineos. 3) Pela importancia e pela estrutura delicada do cérebro, que nao Ihe permite suportar alguma aco mérbida violenta por longo tempo, sem sofrer uma desorganizacao e obstrugdo permanente. 4) Porque nao existe uma via de saida do cérebro, em comum com outra viscera, que receba a descarga de soro dos vasos sanguineos [...] 7) A retirada de sangue é indicada pelo extraordindrio sucesso conseguido pelo seu emprego artificial [?] nos Estados Unidos e particularmente no Hospital da Pensilvania [...] devem-se observar as se- guintes regras: deve ser copiosa por ocasiao do primeiro ataque [de mania geral] [...] entre 20 e 40 ongas podem ser retiradas de uma vez [...] [de 600 ml a 1.200 ml]. Os efeitos desta primeira sangria copiosa sao maravi- lhosos para acalmar pessoas loucas [...] [A sangria] deve continuar [...] a quantidade de sangue retirado deve ser maior do que em qualquer outra doenga organica [...] (Rush, 1812, in Hunter e Macalpine, 1963, p. 668) O Século dos Manicémios 237 TRATAMENTO MORAL VISTO POR UM ORGANICISTA Visto 0 que Esquirol pensa dos recursos do tratamento ff- sico, veja-se, em seguida, a apreciagéo de um convicto orga- nicista, Domenico Gualandi, sobre o tratamento moral, que co- nheceu num manicémio representativo como o de Aversa, no sul da Itélia. Em Aversa, como noutras instituig6es fiéis aos principios de Pinel, a terapia se destinava, de modo geral, a “reordenar as fun- ges da mente” através de “exercicios e aplicagdes”: era uma sé- rie interminavel de agdes e movimentos, prescritos pelo médico, para cada paciente. Alguns loucos iam “passear pelos campos vizinhos”, outros “iam trabalhar no campo”, outros ainda “pra- ticavam exercicios militares, nos quais usam espingardas de ma- deira”. Ainda, alguns “amam a miisica e se exercitam em instru- mentos de corda e de sopro”. Além disso, “a todos era permitido ocupar-se com leitura, escrita, desenho, pintura e escultura”. Gualandi era docente da Universidade de Bolonha, seguidor de organicistas como Chiarugi e Brown. Visitou Aversa em 1823, Pportanto, antes da publicagao de Esquirol, comentada acima. Foi a Aversa para “acompanhar um qualificado individuo, desgraca- damente atacado de deméncia”. Nio gostou do que viu, ¢ iniciou uma polémica sobre Aversa, que opés grandes admiradores e grandes opositores, até que uma visita definitiva do grande Carlo Livi consagrasse definitivamen- te os méritos de Aversa, em 1859. As impressGes de um organicista como Gualandi retratam com clareza a oposigao de critérios de avaliagdo, entre os adep- tos do tratamento moral e os seguidores do tratamento fisico. Eis 238 Isaias Pessotti © que ele escreveu, em 1823, no seu Osservazioni sopra il celebre stabilimento di Aversi Freqiientemente, pequenas obstinagdes e desobe- diéncias sio punidas com reclusao forgada [...] Nao se pode afirmar que as pessoas recebidas no estabeleci- mento [...] sejam submetidas por sistema a um regular método de tratamento, tendente a restaurar a satide delas [...] Nao se faz consulta médica regular e peri dica. Os serventes s4o poucos, gente rude, pouco civi- lizada e menos educada [...] O acanhamento, a ma cons- trugao de quase todos os aposentos [...] a sujeira mais ou menos grande, a imperfeita circulagao do ar e da luz, 0 fedor das fezes amontoadas [...] 0 pouco cuidado em manter uma temperatura uniforme e louvavel [!], a ne- gligéncia nos vestuérios, a nenhuma seguranca da coa- bitagdo de muitos. (Gualandi, 1823, p. 39) Afora os aspectos higiénicos, deploraveis, como em quase todos os manicémios da época, tanto quanto 0 despreparo do pes- soal de assisténcia, o que Gualandi no aceita éa falta de um “mé- todo regular de tratamento para restaurar a satide”. E que o siste- ma de planejar um tratamento para cada paciente Ihe parece ape- nas omissao clinica, j4 que nao aparecem as praticas ortodoxas, invariaveis, dirigidas mais para fazer frente a um determinado qua- dro clinico abstrato, que a atender peculiaridades individuais. Tam- bém impressionam ao professor de Bolonha a negligéncia nos ves- tudrios e os riscos da coabitacao mais ou menos irrestrita. Gualandi parece nao perceber que o no restraint implica uma circulagao mais livre dos pacientes e certa liberdade no vestir-se. Também a caréncia de consulta médica periédica Ihe parece lamentavel. Acontece que, em Aversa, se concebia 0 tratamento psiquidtrico como uma ree- ducagao, cuja avaliagao, periddica, nao implicava exames do fun- cionamento organico. O que mais intriga é a queixa de Gualandi de que em Aversa ndo se mantém uma temperatura uniforme e O Século dos Manicémios 239 agradavel. Convenhamos, exigir isso em uma instituigio de cons- trugdo precdria, como o proprio visitante sublinha, em 1823, pa- rece uma exigéncia exagerada. Gualandi vai além: deplora os artificios publicitarios do di- retor de Aversa, Linguiti. Diz que existe uma mesa de bilhar no estabelecimento, na qual “os doentes jogam quando aparece al- gum estrangeiro a visitar” 9 manicémio. Quanto 4 misica, exis- te um maestro que ensina algumas cantigas aos doentes e “os mantém prontos para se exibirem a qualquer momento”. Preciosa é a descrigéo do conjunto dos tratamentos morais que haviam celebrizado Aversa, Embora, para Gualandi, tudo nao passe de “um conjunto pouco variado de passatempos [...] Pare- ce que ha uma certa insisténcia em distrai-los com passeios inter- nos e alguns outros divertimentos”. Vinte anos mais tarde, Aversa havia perdido seu Prestigio. Em 1844, Trompeo, diretor do manicémio de Turim, apontou que ali “os curados eram menos de um terco dos internados e que o ntmero de mortos superava, em muito, o ntimero de curados”. O que Trompeo nao esclarece é que dessas numerosas mortes, a maior parte se devia a doengas que nada tinham a ver com a doenca mental e, muito menos, com os métodos morais de trata- mento. Elas eram numerosas também em manicmios geridos con- forme os principios da doutrina organicista, como o de Fiordispini, em Roma, por exemplo. 240 Isaias Pessorti O RELATORIO DE SALERIO Em 1857, Prosdécimo Salerio, grande alienista ¢ filantropo, diretor do famoso manicémio de San Servolo, em Veneza, escreveu, como de costume, o relatério sobre as atividades do seu “Moroco- mio”, no “quarto trimestre solar” do ano anterior, 1856. Desse rela- to, a parte referente aos tratamentos médicos esta resumida a seguir: O tratamento das doengas mentais foi fisico e psi- quico, aplicado a todos acondicao dos érgaos assimiladores, portanto os pur- Procura-se, antes, ordenar gantes suaves ou 0 tartaro estibiado, os amaricantes, ou os marciais, dependendo de o distarbio se manifes- tar como excesso ou falta. Nao se evita a pratica da sangria quando ha ameagas de pletora [. tées sanguineas na cabega [...] Os revulsivos, os agen- tes para provocar bolhas na pele, ou as substancias cdusticas aplicadas na nuca, especialmente nas manias ou conges- fariosas, e que agem também sobre o moral, determi- nando uma salutar impressao; 0 mesmo se diga sobre as duchas, 0 uso dos banhos, que nessa estagao nao se praticou sendo em trés maniacos com furor; a ducha foi usada para os melancélicos, com 6timo efeito. Fez- se uso dos remédios nervinos nas manias intermiten- tes, nas paralisias, na epilepsia etc., o quinino, os opia- tos, 0 arsénico, a valeriana, a assa-fétida, o ferro [...] O tratamento se altera segundo a constituigdo do in- dividuo, se for escrofuloso, se for sifilitico [...] (Salerio, 1857, apud Calzigna e Terzian, 1980, p. 116) O Século dos Manicémios 241 Eum relato tipico de manicémio da metade do século; um misto de recursos farmacolégicos, produgao de dor intensa e ines- perada, sustos e estimulagGes sensoriais fortes. Ao lado de algu- ma pratica “moral”, um tanto improvisada, como transparece no texto abaixo: do com as normas institucionais. Mas Salerio aponta alguma aber- Ou, de um modo ou de outro, procura-se subme- ter os manjacos a um tratamento moral, segundo suas capacidades; 0 meio ideal é a distraco, depois a ocupa- ¢4o no servico do estabelecimento e nas diversas tare- fas, procurando sempre introduzir tarefas novas, pas- seios, jogos de cartas, de bola, a leitura de algum livro ameno, para alguns poucos capazes de se valerem dis- so, consolos com argumentagées, as visitas reguladas, cantos e sons etc., mas tudo dentro da ordem; porque esta, quanto mais se pode manter, é um dos mais po- tentes meios de reconduzir ao.caminho justo um inte- lecto atropelado [...] (Salerio, 1857, apud Calzigna e Terzian, 1980, pp. 115-116) Até aqui, Salerio nos mostra um tipico programa de trata- mento moral dos meados do século, fundamentalmente uma re- educagao de sensagdes e um treino de disciplina pessoal, de acor- tura nesse tratamento moral: 242 Aalguns, sempre acompanhados por enfermeiros ou por algum religioso, permite-se que pratiquem al- gum esporte, mesmo na praia; também os exercicios religiosos séo promovidos, menos para os pacientes afetados por mania religiosa, ou melancélicos, aos que esto em estado de deméncia ou sao, de fato, imbecis [...] (Salerio, 1857, apud Calzigna e Terzian, 1980, Pp. 116) Isaias Pessotti ‘Ao que parece, no manicémio de San Servolo, a terapéutica adotava, ecleticamente, meios fisicos, principalmente farmaco- légicos, ao lado de recursos morais. Até as ultimas décadas do século, quando o tratamento moral declina, deixando lugar a pro- liferacdo dos meios “fisicos”. Mas na época desse relato de Salerio, © tratamento moral ainda era prestigiado, como se vé. Também no manicémio de Aversa, apesar das criticas pou- co serenas de Gualandi, e um ano apés o relato mencionado, em 1859, o tratamento moral ainda resistia, ao lado dos métodos fisicos. O Século dos Manicémios 243

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