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UMA REPARAÇÃO SUBLIME,

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JosÉ BERNARDINO DE MOURA.

NICTHERoy.

TYPogRAPHIA CoMMERCIAL
DE

Fortunato Antonio de Almeida,


rua da Conceição n.º 83.

1846,
UNIA REPARAGÃ!) 3TT3RIMIR.

QUANDO A ALMA VACILLA PREZAGIA.

A algumas milhas a leste da capella de S. Francisco


Xavier na comarca de Nictheroy existe ainda hoje uma
pequena choupana, onde em 1830 vivia uma familia,
composta de Jorge, Izabel e Pedro; Jorge era um ho
mem de 40 annos, baixo e robusto, tinha simpathica e
alegre fizionomia; suas faces estavam enegrecidas pela
acção solar sobre ellas exercida durante o tempo de seu
diurno trabalho, que não era dos melhores; com efeito
fazer cahir a golpes de machado grossas arvores de mat
tas virgens não é serviço leve. Izabel com seus 36 an
nos mostrava uma elegante figura, vendo-a o leitor sen
tiria para ella irresistivel atracção; o seu trabalho d'a
gulha era o meio, que ella podia empregar para promo
ver a educação de seu querido filho. Pedro que contava
18 annos era um destes jovens, que não possuindo es
ses encantos da formosura, de ordinario prenda exclusi
va dos heroes de romances, tinha os da alma; conside
ravel talento o distinguia dos de sua classe, sublimes
idéas o elevavam a essas regiões imaginarias dos completos
gozos da terra, o amor filial era nelle em maximo gráo,
tinha fé e caridade evangelicas, e ambição desmedida;
não essa ambição irreligiosa, esse desejo de por qualquer
forma obter o que ha afectado um ou mais de nossos
sentidos; mas a ambição, que constitue virtude, e que
aproxima o homem do supremo Creador. Pedro havia
completado o tempo de estudo das materias, que for
mam a educação primaria de um moço destinado pela
natureza á apreciação das letras, e por falta desse metal
ductil, que se chama ouro, fazia por si só progressos,
que seriam mais consideraveis se mestres habeis o aju
dassem. Na tarde do dia 14 de outubro tinha o sol toca
do a linha, que limita a abobeda celeste á nossa vista,
entrava Jorge para a sua habitação, sua mulher termi
nava uma quadra, que marcava em um lenço, e seu filho
applicava toda a sua attenção ás linhas da Sagrada Es
criptura; quando entrou o capitão de um brigue ne
greiro, (he este o appellido dos navios, que se occupão
no trafico descravatura) que estava em vesperas de par
tir para a Costa d'Africa: '. •

——Sr. Jorge, estou em franquia e parto depois d'ama


nhã se o vento soprar do norte, amanhã pelas 5 horas
da tarde embarco; e pois bem vedes que a acompanhar
me vosso filho amanhã ás 5 horas deve embarcar-se.
— Consentis, quereis sim meu pai? . .
—— Se quizer tua mãe consinto, e voltando-se para
Izabel: •

--- Quereis que consinta Izabel? Vê que parte para


bem seu •

. --- Amanhã, amanhã decidirei, disse Izabel


ÉEMBRA AMOR o QUE A RAZÃO ESCA PA.

O viajante que houver subido o monte ---Cavallão---


pela banda do occaso descendo para a do oriente, vê-se
na extensa praia do Saco de S. Francisco, e d’ahi avista
o riaxo que corre ao nordeste da praia para terra; pois
bem á margem d'oeste duas milhas distante da praia e
duas da habitação de Jorge morava, uma mulher de
avançada idade, já curvada com o peso dos annos; porella
era educada a joven Luiza, que era uma menina de 15
annos, morena, e de uma formosissima organisação; seus
grandes olhos por baixo de negras sobrancelhas ora
vivos, ora amortecidos, seus cabellos da côr do ebano na
turalmente annelados cahindo-lhe pelas costas até a del
gada cintura davam-lhe a forma de um anjo. Luiza era
o typo da belleza americana! Fallemos do dia immediato
á aquelle em que vimos Izabel exitar sobre a partida
de seu filho. E manhã, a velha está sentada sobre uma
dessas antigas cadeiras de encosto de couro á porta da
casa, e Luiza passeia pelo terreiro da frente sombreado
por copadas arvores; um joven em trajos de campo se
aproxima della, e a sauda. • #

— Bom dia, senhora Luiza, vos de Deos, elfe vos fe


licite; e logo chegando-se para a velha.
— Como passaes senhora Thereza?
--- Como velha meu filho, como velha e doente; vosso
pae e sua amavel Izabel como passão?
--- Bem, Sra. Thereza, muito bem, pois somos felizes,
== U =

diz Pedro, que he elle o joven que se havia aproximado


de Luiza. *

Luiza tendo-se instruido em casa de Jorge com a mu


lher deste, que muito bem sabia ler e escrever, estima
va a Pedro com aquelle fim com que duas sós crianças
educadas juntas mutamente se querem, mas tendo Pedro
se ausentado por espaço de 6 annos para o município neu
tro onde se educou e instruio, voltava na idade em que o
homem experimenta o efeito das paixões, e as promove nos
entes do feminino sexo; Luiza vê-o sob influencias bem di
versas, ella mesma não se pode explicar as idéas, que
tem occupado sua viva imaginação: tristeza e alegria,
sensações crueis e tranquilidade alternadamente se suc
cedem em seu coração ardente, ambicioso d'amor, que
ella já possue, e desconhece. Se nos voltamos para Pe
dro, se observamos a melancolia desenhada em seu
semblante ao entrar na habitação de Luiza para della
despedir-se, e se attendermos ao longo tempo de profundo
Silencio, que guardou depois de entrar para a casa de
Thereza; porque não diremos que não poderá resistirá
força do amor que elle já tem a Luiza? Amavam-se Pe
dro e Luiza! Amavam-se e muito! Disto nos vamos certi
ficar. Thereza octagenaria dorme recostada em sua ca
deira d'encosto, tem pendente da mão direita um roza
rio de grandes contas, ao qual está preso o signal da sal
vação humana, a santa cruz; indicios de sofrimento
moral se divisa em suas feições, e arrancos d'alma para
deixar o corpo se percebem na pobre e enferma velha.
Pedro está junto de Luiza com os braços cruzados sobre
o peito, sentado á direita della com a cabeça baixa e os
olhos fixos na terra dura em que descanção seus pés;
Luiza está pallida, mas seus olhos estám sobre Pedro,
ella o observa com temor, reina silencio de morte!
Passam-se assim alguns minutos sem que o mais leve
ruido perturbe quem escuta o respirar de Luiza e Pedro,
e então este levanta-se.
— Luiza, diz elle; seis annos passei longe de vós
e nesse tempo nada sofri, eu o confesso, nada sofri por
vos não ver a meu lado como quando os brincos da in
fancia nos entretinhão; mas vendo-vos aos 18 annos,
vendo-vos agora, que mais seis annos conto do que então,
agora que já 15 annos d'existencia vossa sam passados
deixar-vos, ir fender as elevadas vagas do occeano
immenso! entregar-me ao seu furor quando indomito o
elemento da vida corre e agita a agoa!? Ah! não posso,
não posso porque —eu te amo-!!
— Oh Pedro eu tambem te amo! mas explica-me o
que disseste, tira-me a duvida que dilacera este coração
que ha muito te pertence. </

— Sim. Eu te digo: Hontem o capitão do brigue


—Veloz— foi dizer a meu pai que hoje embarcava, e
que amanhã deixava o porto do Rio de Janeiro a deman
dar a Costa d'Africa; eu disse a meu pai que iria para
Africa. Sim eu o disse porque cria poder vir a ser rico
para vós Luiza!
— Porém, Pedro, he tão horrendo esse homem, quereis
saber uma - cousa? Hontem a estas mesmas horas elle
veio falar a mamãe Thereza, disse que eu era muito
bonita e que me queria fazer feliz; disse mais que me
levaria para sua casa, que lá eu teria muita gente para
me servir, e que quando voltasse d'Africa casaria com
migo. Oh! tive medo delle, e logo comecei a odial-o,
mas mamãe acha elle bom e consentio que elle me viesse
hoje a tarde buscar; assim ele me levará pois mamãe
disse que era para bem meu.
— Não! Não hade ser assim, eu não consentirei. Sra.
Thereza! Sra. Thereza! e como Thereza não responde
Pedro toca-a no hombro, mas Thereza está immovel;
Pedro toma-lhe o pulso, mas não o sente, põe-lhe a
mão sobre o coração, porêm o coração não palpita. Pedro
tornando-se pallido em extremo exclama.
– Morta! Morta!
— 8 —

— Pedro!.... Pedro.... não me deixes.... Ah! que


faremos.... pobre mamãe Thereza! disse Luiza com voz
entre-cortada por soluços; as lagrimas lhe corrião pelas
faces.
— Que faremos? Ah!... porêm eu me lembro sim,
eu me lembro porque eu te amo disse Pedro.
• •
III.

SEGUIR o QUE PRIMEIRO LEMBRA. É o MELHoR.


*

Estamos ainda no dia 15 de outubro. Sám cinco ho


ras da tarde, Jorge e Izabel estám desconsolados, e em
companhia delles está o capitão do brigue Veloz, que
ficaremos conhecendo por Mauricio, elle patenteia o de
sespero de que está possuido por não ter achado Pedro
em casa, e prestes a partir.
— Que vos parece, meu Jorge, o tal pequeno? Hon
tem pedia-vos para acompanhar-me, queria embarcar e
hoje não nos dá o gosto de o vermos. Que pensas dis
to? Eu creio que não passa d'alguma paixão por algu
ma bella.
— Não, meu caro Sr. Mauricio, cousa mais grave o
terá occupado; meu filho é incapaz d'uma acção crimi
nosa para com seu pai; não lh'a atribuaes pois sem que
eu o ouça.
— Pois bem, Jorge, esperai-o, e interrogai-o que eu
aproveitarei o tempo em dar ordem à execução d’uma
obra de caridade, que quero fazer a uma pobre menina,
a uma engeitada.
— E essa menina chama-se........
— Luiza, disse Mauricio, e sua mamãe Thereza.
— Hides pois à casa de Thereza, Sr. Mauricio?
— Sim, e neste momento. +

— E eu vos acompanharei, disse Jorge, e sahio com


Mauricio deixando Izabel entregue á dór, que a oppri
mia. Deixemo-los encaminharem-se para a habitação de
Thereza em quanto acompanhamos a Pedro e Luiza no
que deliberou aquelle, quando certificou-se de que The
reza estava morta. Pedro fez Luiza escrever sobre uma
folha de papel almasso o seguinte que deixou sobre o ro
sario de Thereza.—(Separou-se a alma de mamãe There
za de seu corpo no dia 15 de outubro de 1830. Thereza
foi sempre generosa para commigo, nunca obrigou-me
a pratica d'acção, que meu coração não sentisse que de
via praticar; entretanto no dia 15 d'outubro havia-me
imposto o preceito de deixal-a para seguir a um homem,
a quem vi com horror pela primeira vez, ao Sr. Mauricio
contrabandista; quem sabe se para evitar a Thereza um
erro Deos tirou-lhe a vida, e a chamou a si?! Quem
sabe se entregando-mea Mauricio me entregava ao cri
me e á deshonra? Recebe mamãe Thereza as minhas la
grimas! recebe os agradecimentos da tua Luiza, que tão
boa educação de ti recebeo! vosso corpo será sepultado,
o padre José a quem agora me dirijo virá orar por vos
sa alma, junto de vosso corpo. Adeos Thereza! Adeos
até a eternidade.» Depois Pedro sahio com Luiza pelo
braço de casa, e atravessando o riaxo, que mencionamos,
que só tinha agoa que chegava-lhes aos joelhos, entra
nhou-se pelo matto, e caminhou até trezentos passos de
distancia de casa de seu pai sem uma palavra dizer á sua
companheira. Quando estavam a esta distancia de casa:
— Luiza! sentemo-nos, é preciso aguardarmos a es
curidão da noite para entrarmos em casa não sentidos;
é preciso evitar Mauricio.
— Não fariamos melhor.....
— Não, Luiza! deixa que eu siga o meu primeiro
pensamento. Desconfias acaso que te não respeite? Crês
que possa deixar d'obedecer-te quando a obediencia con
corra para a tua felicidade? -

— Não! Não !! porque tú me amas, sim?


— E muito, Luiza. |

Agora sabemos que "edro está com Luiza perto de


— 11 —

sua casa observando o que lá se passa, e que Luiza dis


se quando sahio do pé do corpo de Thereza que se di
rigiria ao padre José é quanto nos basta por agora que
tornaremos a Jorge e Mauricio. Elles chegando juntos
ao cadaver viram o papel que estava sobre o rosario,
Mauricio o leo em voz alta e então os dous soltaram
um grito d'espanto—Morreo!—e depois de longo si
lencio
—Jorge, disse Mauricio, vosso filho acaba de rou
bar-me o que mais amo no mundo. Sim! Pedro ama a
Luiza! Pedro aqui esteve, ele fugio e levou-a, levou-a!
porque Luiza sem duvida lhe disse que eu a queria despo
sar, que a levaria hoje para a côrte e ahi a deixaria até
minha volta d'Africa, levou-a! porque amando Luiza
era necessario roubar-ma. Mas eu me vingarei! E de
que, Jorge? Em que me ofendeo vosso filho? Não me
odeia Luiza? Quereria ella unir-se a mim? Oh! não,
não! Mas Pedro é um ingrato, Pedro devia dizer-me
eu não te acompanho Mauricio porque eu amo a Luiza,
somos rivaes. —E eu lhe teria , dito...... O que? Ah!
eu faria mais que o tigre a quem fosse os filhos lhe rou
bar. E de repente sahe de casa apressadamente dizendo:
—Adeos, Jorge! Adeos!!
Jorge sahio apoz Maurício, mas tendo este em um
momento desapparecido, Jorge encaminhou-se para sua
casa onde chegando já noite, encontrou Izabel, Pedro e
uiza em animada conversação em que tomou parte
com grande prazer. Decidio Jorge d'accordo com Iza
bel seguir o conselho de Pedro, pôr em pratica a pri
meira ideia de seu filho; para o que ofereceo-lhe todo
o dinheiro que nesse mez lhe havia dado o córte da
madeira.
IV.

A REFLEXÃO SÓ GUIA AO REM.

Duas horas depois de Mauricio deixar a cabana ha


bitada pela morte, um homem se via na praia do Sacco
de S. Francisco caminhando ora para uma, ora para
outra extremidade della a largos e ligeiros passos: fóra
da praia a pouca distancia estava fundeado um peque
no escaller, onde dormiam profundo somno cinco ví
gorosos marinheiros da equipagem do brigue Veloz, os
quaes aguardavam a chegada de seu capitão; este esque
cido de que estava prestes a partir, e de que devia deixar
o Rio de Janeiro no seguinte dia, passeava como disse
mos na praia todo entregue a suas reflexões. Em que
reflectia ele? Na perda de Luiza? na morte de Thereza?
Não sabemos. Os acontecimentos que narramos, a ma
neira, porque Luiza tinha desapparecido, e a desappari
ção de Pedro quando devia acompanhar Mauricio, fa
ziam ou deviam fazer grande impressão em sua alma,
que parecia afeiçoada a Luiza; entretanto não ouzare
mos afirmar que assim fosse.
Passados dez minutos Mauricio pára e grita para o
guarda do escaller:
— Atraca! O do escaller, atraca!
— Quem manda?
— Mauricio, capitão.
E os marinheiros ligeiros levantaram-se, e chegaram o
escaller á praia, Maurício embarcou, e o escaller largou.
A noite estava clara, o mar chão, e calma; os marinhei
— 13 —

ros descansando a cada uma remada faziam ouvir-se


com longos intervallos o rumor, que produz a queda do
remo na superficie da agoa; o silencio só interrompido
por este rumor convidava o homem a meditação. Mau
ricio meditava, e sua meditação era triste! Ah! Se todos
os homens precedessem seus actos da meditação, se nelles
pensassem antes de os praticarem, os males da humani
dade não seriam tantos, nem tão limitadas as acções he
roicas! Deixemos o escaller de Mauricio fender as agoas
do occeano, e voltemos para a casa da velha e finada
Thereza. O seu corpo duro e frio ainda está sobre a ca
deira, sobre uma mesa na parede interior da casa está
uma cruz ao lado da qual ardem duas vellas de cera, e
na frente do cadaver está um padre de joelhos, e orando;
é o padre José; sua figura é a de um moço de vinte an
nos, suas faces estam carregadas e palidas, e seu todo
inspira amor e respeito; elle habita o monte —Cavallão
— desde que Thereza com Luíza habitam no Sacco de
S. Francisco. O padre reza por espaço de um quarto de
hora, e levanta-se para dirigir-se a uma caixa de ma
deira, que está a um canto da casa; abre a caixa, e se
parando uma porção de roupa encontra um sacco, que
sendo suspenso faz ouvir um som, que o padre toma
pelo que produz o toque do ouro; abre o sacco. Impre
visto encontro! Maravilhoso achado! José conta mil pe
ças de doze mil e oito centos réis, e lê em um papel o
que se segue:—«Esta somma que o pai de Luiza enviou
á minha filha Maria no dia em que enferma a deixou
tem sido por mim fielmente guardada; tendo delibera
do casar Luiza antes de minha morte reservava esta
quantia para lh'a entregar no dia, a que o homem a quem
amasse a quizesse por esposa; vendo porêm que meus
sofrimentos augmentando-se me aproximam de Maria:
Declaro que Luiza é filha de minha filha Maria, que seu
pai é o capitão de um navio, que sahindo do Rio de Ja
neiro em 1817 nunca mais voltou, dizendo-se que havia
— 14 —

naufragado nos Abrolhos em viagem da Bahia para o


Rio de Janeiro, e que sahindo o pai de Luiza do Rio de
Janeiro quando ela tinha apenas dous annos, sem que
despozasse sua mãe, deixou-lhe estas mil peças decla
rando que constituiam os dotes de seu filho José e de
Luiza; declaro mais que José tambem filho de Maria,
é mais velho cinco annos que sua irmã Luiza, e que
quando satisfazendo a vontade de minha filha em 1824
vim habitar estes lugares solitarios, a deixei moribunda
em companhia de José trazendo commigo a mínha boa
Luiza, e até hoje desgraçada que sou! ignoro o destino
de José e a sepultura de Maria se ella já não existe. Sac
co de S. Francisco Xavier, 4 de outubro de 1830. —
Thereza de Jesus.» •

— Ah! minha mãe......


A apparição de um homem mascarado e envolto em
um capote de panno azul, por baixo do qual estavam oc
cultas duas pístolas e uma espada da qual se via a ponta
quasi junta aos pés, interrompeo José na sua exclamação
dizendo-lhe |

— Meu Padre, quando o remorso produz o arre


pendimento, quando torna um homem martyr delle
sem que o homem desespere da salvação, Deos o
perdoa? • •

– Crès, senhor, que é limitada a bondade de Deos?


— Não, meu padre!
— Se o inal, senhor, que a creatura de Deos faz cá na
terra pôde ser na terra compensado o perdão, a graça
do Senhor é sempre certa; se porêm na terra é impossi
vel reparar o mal então para obter o perdão é necessa
rio que oa homem
resignado se entregue
bem de seus ao martyrio, que sofra
semelhantes. •

– Pois bem, meu padre, tenho refletido no mal que


eu hei causado, ouvi-me: Eu amei uma mulher, sedu
zi-á, e tivemos dous filhos: esta mulher, meu padre, dei
xada por mim fôra do Rio de Janeiro e de seus filhos
não mais a vi: e seus filhos! Os filhos queridos de minha
alma, tambem perdi!
— E que pretendes agora homem desapiedado?
— Achal-os em qualquer parte á custa da minha
• vida.
— E com que meios?
— Dispondo de milhões que possuo, meu padre.
— E a quem vos dirigireis?
— A mim se elle quizer. Disse Pedro que entrava
neste momento. #

— Pedro! exclamou o homem mascarado. Pedro as


sassino! Pedro raptor?!
— Padre, achaste naquella caixa.... +

— escripta
nota Ouro, Pedro, mil peças
pela propria tantas
Thereza quantas declara a
de Jesus. •

— Então já vez, senhor, que não sou ladrão, disse


Pedro. ·


rado. Thereza de Jesus! exclamou novamente o masca •

— Sim! Minha avó, mãe de minha mãe,


— Tu és José filho de Maria, e do contrabandista
Maurício? … |

- — Sim!
— E's padre?
. — Não.
— E tua irmã? uma menina que esse contrabandista
deixou de idade de dous annos? •

— E Luiza!
— Ah! E Luiza!! E José.
PELO CONTACTO DOS CORPOS A NATUREZA DELLES SE

REVELA.

O homem da mascara deixou-se cahir em um acadei


ra como abismado por estas revelações, José se lhe apro
xima, e o comtempla cheio de admiração; em quanto
que Pedro escrevendo algumas palavras sobre um quar
to de papel, deixou este no lugar do sacco, que conti
nha o ouro levando comsigo aquella porção, que já
dissemos, do precioso metal; passaram-se alguns minu
tos, e o homem da mascara ergueo-se.
– Pedro!
— Já aqui não está, disse José.
— E o ouro, José, o ouro que vosso pai deixou-vos
ao partir, esse ouro, que guardou Thereza religiosa
mente? • - - -

— Oh! Pedro o levou deixando por elle este papel,


disse José depois de ter procurado o sacco na caixa que
ahi havia.
— E o que diz esse papel?
— Vejamos.
José leu as seguintes, palavras — Este ouro que a
Luiza pertence vai a Luiza ser entregue, vai fazer
sua ventura. Pedro vai a Luiza entregar, o que a Luiza
pertence. •

— Procuremos Pedro! procuremol-o oh! José!


— Agora é impossivel.
— I ( —

— Porque? impossível é não procural-o, não buscar


{{}OS VOSSO ITII) 3. - -

— Em companhia de Jorge e Izabel está muito


bem.
— Que pretendes então?
— Senhor, vós conheceste minha mãe, vós conheceste
meu pai. Oh! por piedade, senhor, dizei-me o que ha
Deos feito delles, dizei-me!
— José! quando vosso pai deliberou sahir do Rio de
Janeiro no anno de 1817, tres mezes antes de o fazer
deixou de visitar vossa mãe, annunciou-lhe que partia e
enviou-lhe tanto ouro quanto lhe parecia suficiente pa
ra uma descente subsistencia. Em dezembro de 1824
quando de volta da Europa vosso pai chegou ao Rio de
Janeiro, sabendo que Maria estava a espirar foi vel-a, mas
não como devia; vosso pai falou a Maria, falou-vos po
rêm disfarçado no traje, mudando o som de sua voz não
foi por ella nem por vós conhecido. •

— Esse mascarado que então fallou-nos como vós


agora disfaçado era meu pai? Exclamou José admirado
e sorpreso.
— Ouvi-me: Mauricio soube de vós que Thereza ha
via com Luiza deixado a Côrte, exigio que lhe indicasses
para onde hiam habitar; não lh'o disseste. Então vosso
pai vos disse que deixasseis Maria, que partisseis apoz
Thereza e que procurasseis habitar junto della para sa
berdes sempre o seu destino, para delle o informares
quando vos interrogasse; não o quizeste obedecer. Viste
que falou, baixa a voz, a vossa mãe, e que logo vos pedio
ella que cumprisseis quanto vos foi ordenado.
— E verdade! disse José.
— Lembrai-vos de que satisfazendo Yossa mãe, partis
te logo e com ella o deixaste a sós?
— Sim. Eu me lembro como se tudo houvesse hoje
succedido. |

—Pois bem: Quando partiste, vosso pai desmascarou


se, e chamou Maria esposa sua, e por sua honra jurou
lhe desposal-a logo que a futura viagem, que impossivel
era-lhe deixar de efectuar se tivesse efectuado.
— Depois?! |

— Vosso pai convidou Maria a acompanhal-o nessa


viagem.
—– Então minha mãe vive? sabeis aonde existe?
—– Milagre! Maria aceitando o convite de vosso pai
disse que já estava restabelecida a saude sua.
—– E então?
—– Partiram, mas adoecendo Maria na viagem Mauri
cio arribou á Bahia, e ahi a deixou em casa de uma irmã
que Deos já chamou para a eternidade.
—— Conclui, Sr. exclamou José que estava impaciente.
—– Depois voltando Mauricio passou pela Bahia, onde
em inuteis perquisas gastou 4 annos para saber de Ma
ria, cuja existencia ninguem certificava, e menos podiam
dizer onde estaria.
—– Minha mãe! minha pobre mãe!!
—– Deos vol-a restituirá. **

—– E meu pai? |

—– Oh! vosso pai é mais feliz que ella, vosso pai Jo


sé está no Rio de Janeiro, a elle vos levarei.
—– Já?!
—– Sim, agora mesmo, esperai!
O mascarado lança fóra a mascara, atira o capote para
o chão, e avançando para José exclama.
—– Aperta-me em teus braços, José, que a união dos
corpos revela a natureza delles!
—– Meu pai! meu pai!! sinto que o sois porque este
abraço me arranca lagrimas d'alegria. |

O pai e filho derramavam lagrimas de prazer intense.


Apoz alguns minutos Mauricio (que já os leitores o co
nhecem) tomando o braço de José dirigio-se para a ca
bana de Jorge.
@@@
VI.

& UM GRANDE PRAZER SEMPRE UM PESAR-SE SEGUE.

Sám duas horas da noite de 15 de outubro. Em casa,


de Jorge tudo dorme, só vela Luiza, que em suas refle
xões acha tristeza, e que em sua consciencia estranha o
proceder de Pedro. Ella dissera que horrendo achava o
contrabandista Mauricio, e mesmo havia dito que o
odiava; entretanto um sentimento que ella não podia a
si definir a impellia para Mauricio; ella desejava Mauri
cio, queria-o, mas para amal-o como esposo? Não, esta
idéa a horrorisava. A natureza tem mysterios que revel
lam sua grandeza, que revelam a existencia de Deos en
tre os mortaes, que revelam emfim que Deos observato
das as acções de suas creaturas e que sempre nos inspira:
o justo, que quasi sempre abandonamos.
Luiza mais se entrestecia á medida que os minutos se
passavam, porém ignorava a causa de sua tristeza. De
repente ella treme e applica o ouvido para o lado da
porta da cabana, e ouvio segunda vez a grande bulha
que a havia despertado da meditação; chama Jorge, es
te levanta-se, Izabel o imitta; ambos se dirigem para a
porta, Jorge a abre e treme.
. Era Pedro, que com o sacco, que trazia atirou-se ao
ehão e nem uma palavra proferio.
— Velavas, Pedro ? disse Jorge depois de alguns
minutos.
—— Velava, meu pai, respondeo Pedro
— Porque? |
—— Porque era necessario que o fizesse.
—— Não te comprehendo, replicou Jorge.
——Agora me comprehenderás, e levantando-se abrío
Pedro o sacco que trazia e mostrou a seu pai o ouro
que conduzia.
-- Que significa tudo isto? perguntou Jorge.
—— Este ouro pertence a Luiza, foi achado em casa
de Thereza com esta declaração.
—— E que tem isso comnosco.
—— Maurício estava lá....
—— Comprehendo.
—— E nos perseguirá.
—— E então?....
—— Partamos! fujamos d’aqui para bem longe.
—— Fujamos, disserão Jorge e Izabel; Luiza porêm
guardou silencio.
Entretanto que isto acontecia Mauricio e José se di
rigiam, para casa de Jorge, onde chegando não acharam
nem este, nem sua mulher e seu filho; porêm elles que
importava a Mauricio, que importava a José que não
estivessem ahi? Mas Luiza, Luiza oh! terrivel pezar sen
te Mauricio, duas lagrimas cahem de seus olhos, e elle
se deixa cahir em a velha cama, que ahi havia excla
mando: • •

— O coração me devia annunciar tão grande mal,


porque a grande prazer succede sempre grande pezar.
José deixando
seguiam seu pai seguio o trilho, que lhe pareceo
os fugidos. •

|
VII.

A ACCUMULAÇÃO DE MALES DESESPERA o HoMFM.

Maurício despertando desse somno letargico, que del


le se tinha apoderado não viu mais José, que deixando
seu pai hia em busca de Jorge, e daquelles que o acom
panhavam. Mauricio como fóra de seu estado normal
apenas exclamou:
—— Elle virá. \

E sentando-se na cama em que tinha estado até então.


esperou uma hora, duas e tres; e já o dia 16 de outubro
despontava, e Mauricio esperava ainda seu filho. Ain
da seis horas não eram passadas do dia 16, quando um
dos marinheiros do escaler veio despertar seu capitão,
desse estado d'impassibilidade em que estava. |

—— Meu capitão, disse o marinheiro. |

—— Manoel !
——Sim, meu capitão, o vosso fiel servidor.
—— E o que me queres? * ,

—– As vossas ordens.
——Nem uma.
—— Mas senhor...
— Deixai-me.
—— Consenti....
— Em nada consinto.
O marinheiro calou-se um instante e depois:
—— E se eu vos dissesse....
—— O que? pergunta Maurício.
-- Que uma mulher....
—— Que mulher? falla, apressa-te.
.— Uma mulher que o capitão levou em 1824 para a
Bahia, e que eu trouxe para o Rio de Janeiro na viagem,
passada....
—— E essa mulher onde está?
— Desembarcando não me disse para onde hia. Se o
capitão não tivesse ficado em terra nessa viagem se teria
compadecido della.
—— Como se chamava essa mulher?
—— Maria de Jesus Cordeiro.
——Oh!! é ella, Maria, a mãe de José e de Luiza!
Disse Maurício e levantando-se sahio todo entregue:
ás reflexões, que tantos acontecimentos extraordinarios
lhe sugeriam; Manoel deixou-se ficar immovel, admira
do e sem resolução por espaço de duas horas.
Já cinco horas eram passadas depois da fuga de Jorge
e sua familia, Manoel havia já tomado uma resolução, e
vai pol-a em pratica; acompanhemol-o, sigamol-o á ha
bitação da finada Thereza.
As velas ainda não extinctas lá estám, o corpo de
Thereza ainda ahi está insepulto; quando Manoel en
trou tremeo ouvindo rumor como de queda de um cor
po na terra, pára, escuta e certifica-se de que alguem
está fazendo cova para o corpo que tem diante de si; oc
culta-se por traz de uma porta e fica attento ao menor
acontecimento. Um homem entrou a quem Manoel não
conheceo, um homem que trazia o disfarce com que
Mauricio se havia apresentado desconhecido nesta mes
ma cabana; porêm sem o corpo que apresentava Mauri
cio, sem essa apparencia de robustez, que esse tinha; esse
homem de mascara como estava e armado, tomou em
seus braços o corpo de Thereza, e com elle sahio da ca
bana; Manoel acompanhou-o, viu-o atirar o corpo na
cova, que havia feito e calcar-lhe a terra, que lhe lançou
por cima; acabando este trabalho lançou os olhos ao re
dor de si e avistando Manoel:
—— Orai por ella, disse-lhe, por piedade orai!
— Quem sois, disse Manoel, ao ouvir uma voz, que lhe
era desconhecida.
——O homem mais digno de compaixão que habita a terra.
—— Como vos chamais?
——Algum dia sabereis, disse o homem da mascara e partio.
—— Deos vos guie ao bem, disse Manoel.
— E a vós, disse o desconhecido reparando em Manoel.
—— Porque tanto tempo me olhais, senhor?
—— Não sois marinheiro?
—— Sou. •

—— Pertenceis a equipagem do brigue que capitanêa


Maurício?
— Sim.
— Vosso capitão?
—— Deixou-nos.
— Para onde partio?
—— Não sei. …

— Oh! desgraçado nasci, desgraçado morrerei, disse


e partio apressado.
VIII.

oLHANDo o ceo LEMBRou-LuÉ DEos E o DEVER.

Quando José deixou seu pai na cabana de Jorge, se--


guio o trilho, que conduz o viajôr ao chamado —Morro
da Viração—; ahi cedendo ao cansaço e á prostração,
que nelle tinha operado uma cadêa d'acontecimentos
extraordinarios; deixou-se cahir sobre uma grande pe
dra, que posta horisontalmente servio-lhe de cama.
O dia começava a apparecer, a athemosphera rarefei
ta, limpa dessas negras nuvens, que a obscurecem, apre
sentava da parte occidental da abobeda celeste uns como
fios de ouro aos olhos de José; elle olhava o céo, elle
lembrava-se de Deos, e dos deveres a que tinha faltado:
O abandono de seu pai na casa de Jorge, e o corpo de
Thereza, que não havia enterrado.
Alguns minutos meditou José, a meditação foi breve;
a resolução instantanea, e a execução prompta; pois elle
partio para casa de Jorge. Mas a sorte dos mortaes é
padecer, é o sofrimento dos males cá da terra, é a ex
piação do peccado original, a penitencia, e a imitação
de Jesus Christo no sofrer voluntario; assim José re
signado sahe na direcção da casa dezerta da habitação,
que fôra de sua querida Luiza, depois de haver com
lagrimas banhado o lugar em que deixára Mauricio;
chegado junto do corpo de Thereza, disfarçando-se com
os trajes em que tinha-se-lhe apresentado seu pai, vimo
lo fazer lugar na terra para o corpo de sua avó, vimo-lo
falar a Manoel, •
Eram dez horas, os ardentes raios do sol amarelavam
a verde relva, que viçosa amanhecera, a claridade do
dia ofuscava a vista, e produzia um como movimento
nas particulas invisiveis do ar athmospherico; mas Jo
sé como insensivel a tudo vagaroso caminhava para a
banda do occaso aproximando-se do monte Cavallão;
ahi chegado subio e ganhou-lhe o cume, onde á sombra
de copada arvore aguardou a noite. Ella chegou, claro
e brilhante destrellas estava o vacuo immenso que a vis
ta não alcansa e que chamamos céo.
José levantando-se, caminhou seguindo sempre para o
occaso até descer e monte para o lado do campo de S.
Bento, atravessou este, tomou a estrada de Icarahy,
chegou a praia de Nictheroy e embarcou.
A passagem de Nictheroy para a Côrte era então feita
nessas catraias que vagarosas, gastam uma hora para se
guir uma legua, José ainda esperou bom quarto de hora
antes da catraia deixar a praia; assim davam nove horas
quando ella que hia conduzir José para a côrte lar
gava a praia. Um grito dado na praia fez voltar a catraia
que chegada a ella recebeo um passageiro; era este pas
sageiro um homem de cincoenta annos, de barbas bran
cas e grandes, os cabellos eram tambem brancos, olhos
pardos e amortecidos, seu trajar era miseravel; chegado
á catraia tinha tomado assento junto de José.
— Sois padre, senhor? perguntou.
— A pergunta me parece ociosa, senhor.
— Como vos chamais?
— Martinho.
— Martinho! exclamou José.
— Sim! de que vos admiraes? tornou o pobre.
— Cor-dei.... •

— Je-sus, interrompeo o pobre.


— Então? disse José.
— Já vos conheço. • |

— Tomai, disse José, dando-lhe uma 4.carta.


• - -
— Guardai-a.
— Recusais recebel-a?
— Aqui, recuso.
— E no largo do Paço dentro do portão da Oxaria?
— Aceito. \\

— Pois lá vos fallarei, disse José guardando a carta.


A catraia vogava vagarosa, os remos cahiam pesados
na agua e pareciam aos dois passageiros della tirar ver
melhas faiscas. Soaram dez horas no sino grande de S.
Bento, e da catraia chegada á praia de D. Manoel sahi
ram José e Martinho, que tomando logo a direcção do
largo entraram por esse portão em cuja direcção vertical
se postaram as columnas da varanda que apresentou aos
Brasileiros em 1840 o sou monarcha de corôa e sceptro;
ahi chegando entraram José e Martinho.
— Recebei agora o que ha uma hora recusaste rece
ber, disse José.
— E para.....
— Minha mãe.
– Pobre senhora.

-- Tu
Deoslheo falarás, Martinho?
queira, José. •

– Oh!
seria.... se Deos ao menos m’outorgasse vel-a, eu
\, •

—–Tu a verás, filho abençoado de Deos, e de teus pais.


Disse uma voz sahida desse corredor escuro, que en
contra á direita e esquerda quem entra para a Oxaria.
– Não ouviste, Martinho?
— Ouvi.
— A esta hora quem nos poderia ouvir?
— Não sei.
—— Mas....
— Callai-vos,
— Porque ?
—— Callai-vos, vos repito.
E os dois callando-se, ouviram a bulha de passos, e
um vulto todo coberto de preto approximar-se a elles;
encostaram-se á parede e deixaram o vulto, que depois
de estar distante dos dois: \\

—— Dia virá que o martyrio acabe e a gloria tenha


quem já martyr foi, disse com voz pausada e firme.
Reinou silencio por algum tempo, e depois:
—— Separemo-nos, disse Martinho a José.
— Separemo-nos, disse tambem José.
——Até o dia vinte e dois, tornou Martinho.
—separaram-se.
E Até o dia vinte e dois, repetio José.

IX

NUNCA E TARDIo o JUSTO ARREPENDIMENTo.

Em quanto José seguia em direitura ao morro da


Viração em busca de Luiza, ela cheia de tristeza acom
panhava Jorge, a seu amado Pedro, e sua querida Iza
bel; estes que haviam tomado um caminho só de Jorge
conhecido, chegaram a esse monte, que eles subiram
pela parte do Sul, e cuja chapada alcansaram ás cinco
horas da tarde de 16, nessa mesma tarde em que José
aguardava a noite no cume do monte Cavallão; chega
dos Jorge e sua familia á chapada desse monte, cujo
nome particular ignoramos, avistaram a fazenda de
Santa Roza ao Norte d’elles, e que divide com a do sac
co de S. Francisco Xavier e o campo de S. Bento; os
nossos caminhantes desceram o monte, Jorge os guiou
a uma destas chopanas cobertas de sappé, e que cobrem
a muitos homens laboriosos sem empregos, que os tor
nem uteis ao paiz, que os alimenta. •

Nessa pequena chopana situada na fazenda de Santa


Roza entre a estrada, que segue o caminhante para al
cansar a Talaia, e a que formando com elia um angulo
de 67, º segue ao Nor-Nordeste descansaram Jorge e seus
companheiros de jornada; nessa chopana dormiram os
tres; porque Luiza nem um instante cerrou seus olhos.
Ao amanhecer do dia 17 Izabel, que por costume
deixava a cama ás cinco horas da manhã, vendo Luiza
sentada junto della com os olhos vermelhos, pallida e
«…!

immovel; poz-lhe a mão sobre o hombro, e despertou-a


de sua profunda meditação.
—— Luiza! Minha filha, sofres sem que eu saiba? Não
queres pois que Izabel chore comtigo? se teus males não
pode ...
— Eu mesma, senhora, não sei quaessam meus males.
— E porque choras? porque velas?
—— Um sentimento occulto, mysteriozo ha, que eu não
comprehendo, e que me diz que hei perdido tudo quan
to no mundo podera desejar, amar e conseguir!
— Então não sabes o que has perdido neste mundo?
— Sra. Desde o dia em que deixei minha mãe por
um acontecimento, que ignoro, tendes feito para com es
ta pobre orphã, que vos falla as vezes da mãe que ella
perdeo; ensinaste-lhe os preciozos principios da moral
Christã, fizeste crescer em sua alma o amor, que ella já
tinha a sua desgraçada mãe, e o sentimento de pesar que
a falta d'um pai, que abandonou-a nella produzio, des
culpaste mesmo seu pai dizendo-lhe que a doação desse
ouro que recebeo era prova de seu afecto para com ella
e que razões talvez. . . .
— Basta, Luiza! Basta!
— Ah! minha pobre mãe....
Luiza interrompeo-se com tres pancadas que ouvio
á porta do quarto occupado por ella e Izabel, era Jorge
que disse a sua mulher:
== Izabel, vinde para fóra com Luiza, temos necessi
dade de fallar-vos eu e Pedro. •

== Já vou, esperai-me, respondeo Izabel.


Meia hora depois os quatros se achavam sentados
juntos do cajueiro, que estava a alguma distancia da cho
pana onde haviam dormido.
— Meu pai, era precizo não sermos ouvidos para
dar-vos conta dos acontecimentos, que me obrigaram á
resolução, que hontem vos communiquei, disse Pedro.
== Creio não sermos ouvidos, respondeo Jorge.
—— Pois bem, continuou Pedro, quando antes de hon
tem á noite tomei esse ouro, que trouxe á Luiza estava
um homem de mascara e coberto com um capote por
baixo do qual se via a ponta de uma espada; esse homem
dizia a José no momento em que entrei, que tudo daria
por encontrar seus filhos; a vida e milhões que elle pos
suia oferecia a quem lhe dissese onde acharia seus filhos.
—— Quem era esse homem? perguntou Luiza.
— Ouvime: Elle perguntou a José se era padre, e
José disse que não; Elle perguntou a José se era filho
de Maria e do contrabandista Mauricio, e José respondeo.
que sim; elle perguntou a José por sua irmã mais moça
e José disse—É Luiza-— e elle! o mascarado exclamou:
— Ah! E José! E Luiza!
— Ah!... exclamou Luiza e cahio nos braços d'Izabel
não podendo continuar.
— Apoz alguns momentos Luiza tornou a si.
— E o homem da mascara, meu pai! como se cha
mava ?
— Maurício, respondeo Pedro.
—— E elle! disse Luiza com extraordinaria impassibi
lidade.
— Podes executar o que hontem me propozeste, disse
Jorge a seu filho.
E todos se levantaram, e caminharam para a cho
pana onde tinham pousado. A noite de 17 estava já
adiantada, e inda Jorge e Pedro conversavam entre si, em
quanto Izabel e Luiza por sua parte tambem os imita
vam; attendamos ás palavras, que trocam estes ultimos,
que mais nos interessam. \\

— Luiza, é necessaria a resignação para que a crea


tura de Deos o não ofenda, resigna-te pois com os ma
º les—
queEstou
te opprimem.
tranquilla, senhora. •

— Mas desmaiaste ha pouco.


— Foi breve o desmaio, foi efeito do choque,
que uma revelação inexperada costuma produzir em
mim.
— Hontem não havia essa revelação sido feita, e en
tretanto tu velaste.
— E verdade.
—— E que males tinhas que chorar?
— Hontem já vol-o disse.
—– Nada disseste, Luiza, tu me occultas, tu não me
dizes porque choravas; mas eu já sei! |

—- Sabeis? perguntou Luiza com grande indiferença.


——Sim! sei, que já não amas a Pedro, que já não
me amas, e te arrependes de nos haver seguido.
—pai,
meu Oh! quando
Sim! sim eu procurava.
ele me me arrependo, porque deixei •

—— Tens razão, Luiza. •

— Mas vós me levareis a elle, não é assim?


— Não sei, Luiza!
— Obrigada, senhora, obrigada!
\ •

Luiza deitou-se, e logo seus olhos se cerraram; Izabel


contemplou-a em seu somno d'anjo, e depois d'ajoelhar,
e orar por alguns minutos, imitou a Luiza, e profundo
somno se apoderou de Izabel.
Eram sete horas da manhã de 18 de cutubro de
1830, e ainda ninguem havia deixado a cama, o tempo
estava ameaçador, grossas e negras nuvens enchiam o es
paço, e enterceptavam os raios do sol. |

Deram oito horas e Jorge se levantou, ele chama o


filho, chama Izabel e Luiza.
— Luizal exclama Izabel, Luiza sahio.
— Para onde? pergunta Jorge. -
– Não sei,
— Luiza! Luizal grita Jorge.
— Luiza! repete Pedro, e o echo repete tambem
— Luiza!
Ella tinha desapparecido.

-=-=#3###e
HAL CHAMAMos ACCAso o QUE E oBRA DE DEos.

Na Oxaria do Paço Imperial existem umas casinhas,


que tem sido habitadas por desgraçados entes, que pa
recem nascidos para o sofrimento. Em uma destas ca
sinhas viam-se em 18 de outubro de 1830, um pobre
homem de seus cincoenta annos, e uma mulher, que
não podia contar mais de 38; seu talhe era elegante,
suas feições indicavam nella grandes sofrimentos; esta
va palida, e sentada em um banco junto a pequena me
za, tinha o braço sobre esta, e sua testa apoiada na de
licada mão. • •

—— Martinho, dizia ella ao pobre homem, que tinha


junto de si; ha seis annos que eu deixei Luiza; ha seis
annos que lamento a separação cruel, a que mobrigou
esse homem desalmado a quem tanto bem fiz; ha seis
annos que nem Luiza, nem José me tem escripto, me
tem dito o que ha Deos feito delles, e dessa pobre The
reza a quem tanto devo.
— Não vos queixeis, Maria, Deos velará sobre nós!
—— Não me queixo, Martinho, muito confio em Deos,
se assim, não fosse, não teria resistido aos males, que
hei sofrido; teria ha muito succumbido.
—— E Deos recompensa vossa resignação, e entregou
dizendo isto a carta de José a sua mãe. *§

}
— Leiamol-a, Martinho, leiamol-a; e abrindo a carta:

«Sacco de S. Francisco Xavier, 16 de outubro de 1830.


«Minha mãe.
«Meu coração se despedaça ao ter eu de dar-vos infaus
ta nova «Thereza é mortal » .... as lagrimas que verto,
servem de linitivo á minha grande dor; pois mais que
a morte de Thereza sinto a falta de meu pai. Eu já o
encontrei, minha mãe, eu já tive a ventura de em seus
braços dizer-lhe «meu pai!» e roçar o meu pelo seu
rosto! Mas, ah!.... Eu buscava minha querida irmã,
a Luiza querida de minha alma; eu a buscava para pôl-a
nos braços de meu pai; mas ella fugia com um joven
a quem ama, eu a seguia deixando meu pai, entregue
ás emoções porque tinha passado, e quando depois de
baldar meus passos voltei ao lugar, em que o deixára,
não o vi mais. Confio porêm em Deos, confiainelle tão
bem minha mãe, que nós tornaremos a ver Maurício.
De vosso filho, José Antonio Cordeiro.»
— Infeliz filho! exclamou Maria terminando a leitu
ra da carta. |

se —– Confiaí em Deos! José vol-o pede em sua carta, dis


Martinho. |- • •

——Ah!... . . •

—– Senhora, quando viste que este infame Gaspar pre


tendia roubar-vos Luiza para deixal-a chegar longe de
vós á idade, em que a podesse deshonrar, era em 1824,
tinha Luiza nove annos; quem vos inspirou a ideia de
separal-a
Thereza?
de vós, entregando-a aos cuidados da velha
|- |- •

—— Deos!
—— Quando prestes a deixar a vida, enferma, tendo
junto de vós vosso filho José sem recursos; quem vos en
viou a vosso leito de dores o pai de vossos filhos?
—— Deos! |
—– Quando pedias uma esmola para terdes a quantia
necessaria, afim de fazer-vos transportar para aqui;
quem vos deparou um homem, que dirigia o brigue
Veloz, que de vós se compadecendo, deu-vos lugar a seu
bordo para vos transportardes ao Rio de Janeiro?
—– Foi Deos!
— Quando me pediste notícias de vossos filhos, e eu
fui por elles perguntar, fui procura-los; quem me con
duzio á catraia em que estava José embarcado?
—— Foi ainda Deos!
— Sim Deos! Deos que mede os passos de suas crea
turas, que os guia quando os não vê faltos d'energia,
entregues ás seducções dos muitos demonios, que com
figura humana existem sobre a terra! Sim foi Deos! Deos
que quiz premiar o triumpho, que alcansaste sobre as
tentações desses demonios!
— Martinho, sois o homem mais cheio de nobreza,
de mais virtudes que no mundo tenho conhecido.
— Sou desgraçado, Maria! - *

— Porque?
— Ouvi a minha curta historia: Eu nasci pobre, fui
educado por meus pais com muito desvello; chegando á
idade de vinte annos amei a uma mulher, e fui della
amado; essa mulher era filha de nobres e ricos compa
triotas meus, e por essas considerações de nobreza, que
aviltam os mais bellos sentimentos de nossa alma, não |
consentiram que eu, simples e honrado artista, despo
zasse a formosa Adelaide; obrigaram esta nobre creatura
a um hymeneo, que regeitava; e assim cavaram-lhe a:
sepultura. Adelaide morreo em 1818, e eu entregue á
minha intensa e incuravel dôr, não cuidei mais da mi
nha arte; entreguei-me á peregrinação, jurando nella
empregar algum ouro, que havia adquirido para habili
tar: me a pedir. Adelaide em casamento, em beneficio.
d'aquelles, que fossem opprimidos pelos poderosos. Foi
por esta jura que conhecendo-vos em 1820, e sabendo
de vossos infortunios velei como pai sobre vosso destino.
— Obrigada, Martinho, obrigada!
__ — Foi ainda por essa jura que vos indiquei essa velha
Thereza; que chamaste mãe, essa mulher cuja vida dis
soluta, que teve dos 20 aos 36, fez tornar-se ella uma
boa mulher. Sim, porque os males que sofreo, as con
trariedades que não pôde vencer em quanto irreligiosº,
venceo-as adorando e respeitando a Deos.
— E Deos vos pagará tão santas obras.
—Pagar-mo-ha se entrada me der na igreja triunfante.
Callaram-se os dois por algum tempo, Maria sufocan
do os suspiros, que do peito exalavam-se, e Martinho
com os olhos fixos na porta, sem pestanejar, recebia di
rectamente os raios de luz, que d’ahi lhe vinham.
Meia hora passada, eram oito da manhã de 18, Mar
tinho levantou-se de sobre a cadeira em que estava.
— O Sacco de S. Francisco, disse ele a Maria, foi o
theatro em que Mauricio abraçou seu filho, em que de
Thereza a alma abandonou o corpo, e em que os amo
res de Luiza começaram; para lá pois pretendo seguir.
— E eu vos poderei acompanhar?
— E' impossivel!
— E então que heide eu fazer?
— Esperar-me aqui.
— Quando voltarás? : :
— Amanhã.
— E se não voltardes?
— Voltarei.
—Eu vos esperarei pois amanhã.
Martinho sahio, e passado algum tempo atravessava a
bahia de Nictheroy. •

Maria logo que Martinho sahio poz sobre si uma des


sas pessas, que ainda hoje se vêem sobre algumas mu
lheres, pessas das quaes pende uma porção de larga
renda que lhes cobre o rosto; e assim vestida tambem
– o4 =

sahio seguindo pelo largo do Paço até a praia de D. Ma


anoel, ahique
catraia embarcou tambem;
conduzia e seguia a grande distancia
Martinho. •

Maria desde que chegára ao Rio de Janeiro acompa


nhára sempre Martinho, sem que este soubesse.
Quando davam nove horas, desembarcava Martinho
na praia de Nictheroy, e Maria apressava os remeiros.
Caminhava Martinho desabrigado do sol por esse
campo de S. Bento, suas pernas já fraqueavam, e o ca
lor que é rigoroso em outubro já o impossibilitava de
continuar sua jornada. Parou emfim junto a esse rio,
que desagua na praia de Icarahy na extremidade do sul.
Ahi descançou sentado á sombra de um grande espi
nheiro; come o pão que levava com uma porção de
queijo, e depois desta comida simples deitando-se, ahi
adormeceo até ao escurecer da noite. Então foi acorda
do por um grito de —Soccorro meu Deos.
*
XI.

o AMOR obRA PRODIGIos.


\,

Martinho ouvindo o pedido de socorro apressado er


gueo-se, e correo, em direitura a essa estrada, que dá
passagem do campo de S. Bento para a fazenda de Santa
Roza. Chegando á embocadura da estrada avista tres
homens em luta desigual: dous robustos e vigorosos, con
tra, um jovem de franzino corpo. Martinho com seu
grosso páo alçado corre para elles, e no momento em que,
o joven combatente via o braço erguido de seu contra-º
rio hir descarregar-lhe o golpe mortal obrigou o ofensor
a cahir sobre a arèa banhado em seu proprio sangue.
Aquelle dos ofensores do joven que restava fugio.
— Muito vos agradeço, Sr., o me haverdes salvado,
se amo a vida é por ella, se combati foi por ella, se aqui .
passei foi ainda por ella; e pois tambem por parte della
vos agradeço a honra e a vida. -

— Mas ella quem? não vos percebo, respondeo Mar


tinho ao seu interlocutor. …?
— Eu explico: passava eu e meu pai acompanhado
por minha mãe por aquella estrada que ali vês seguir
em direcção perpendicular e que leva á fazenda de San
ta Roza, passavamos tristes e preoccupados pelo desap
parecimento d’uma donzella a quem eu amava, a quem
houvera desposado se não perdera; já meu pai estava a
subir para tomar o outro lado d’aquella montanha
que sobre as outras se eleva, e que ali vêdes a Oeste do
Cavallão, quando meu coração começou a pulsar com
extraordinaria força; então com consentimento de meu
pai eu o deixo, e seguindo o mesmo caminho por onde
o tinha acompanhado achei-me naquella outra emboca
dura desta estrada, e senti um como apelo ao meu bra
ço; sigo para aqui, e quando estava a cem passos viden
tre estes pequenos arbustos sahir um homem, outro
apoz este, e depois um terceiro; eu os acompanho, e quan
do o primeiro poz seu braço de ferro sobre uma me
nina que triste, com vagarosos passos caminhava para
Icarahy, cravo-lhe pelas costas minha faca, arma de uso
dos que como eu vivem em desertos sitios, o homem ca
he sem proferir um ai, e eu sinto logo um golpe na ca
beça,
da e ouço
joven um grito de —-soccorro meu Deos—, era
caminhante. •

— Eu tambem o ouvi, disse Martinho.


— Volto-me, continuou o joven, e envisto os dous
agressores, elles vam se arredando, eu me aproximando
delles; elles me atacam, eu os ofendo, e me defendo de
seus golpes e assim não sentia correr o sangue, que de
minha cabeça golpeada me molhava o traje; hia a des
falecer, sentia que hia morto lansar-me fora da luta
quando vosso páo marrancou do poder desses malvados
8 SS8S]ITOS. •

—— E onde está a joven que tão milagrosamente sal


vaste ? |

— Ali! vinde, e seguio com Martinho; tinham ape


nas dado cincoenta passos e Martinho parou.
—– Gaspar ! exclamou elle vendo o homem, que tinha
avançado á joven caminhante, e que tinha sido morto ao
segurar a sua preza. |- •

— Conheceis este malvado, senhor?


—Sim! eu o conhecia por perseguidor da joven
Luiza.
— Tambem conheceis Luiza?
— Sim! conheço-a, e a sua desgraçada mãe.
— Meu Deos! meu Deos! como é grande vosso poder,
como sois de infinita mizericordia!
— Como vos chamaes?
— Pedro.
— E a joven que salvaste?
— É Luiza.
—— Caminhemos. • •

Elles seguiram até o lugar em que estava Luiza so


bre a terra e sem sentidos, Martinho chegou-lhe aos la
bios um vidrinho, e derramou sobre elles o liquido que
o vidro continha; Luiza tornou a si, e olhou seus sal
vadores
—– Pedro! exclamou ella.
— Não, Luiza! não deves a mim a vossa honra, si es
te generoso homem não me houvesse soccorrido, a mor
te de vosso perseguidor estaria vingada por seus cum
plices.
— E quem é este pobre homem?
— O amigo de vossa mãe, o seu companheiro na des
graça!
— E minha mãe vive, senhor?
— Vive, e vos procura.
Ao pronunciar
acompanhado estas palavras,
dos jovens amantes. Martinho caminhava

Já hiam chegando junto do espinheiro onde repou


zando Martinho uma hora antes fora despertado pelo
pedido de soccorro. +

—— Senhor, disseste que minha mãe vive: é ella des


graçada? |

—– Muito tem sofrido. }

— E agora? perguntou Luiza como sufocada.


—Já não sofre, disse uma voz perto della, e logo viram
sahir
mente detraz
a Luiza.do espinheiro um vulto, que veio directa

— Quemmãe,
—— Tua sois?Luiza!
pergunta
! ella cheia demoção.

— Minha mãe! minha mãe!!


XII.

A NATUREZA INSPIRA SEMPRE IDEIAS GRANDES.


*

No dia 16 de outubro tinha Mauricio deixado seu


fiel servidor, o marinheiro Manoel, e sem a companhia
de seu filho se tinha dirigido para a praia de S. Fran
cisco, onde embarcou em seu escaller, que o aguardava.
— Larga, disse ele aos marinheiros.
— O patrão Manoel não está, disseram estes.
— Chamai-o. •

Um dos marinheiros sahio, e só depois de duas horas


voltou com Manoel, que encontrou na margem de leste
do pequeno rio, que segue ao nor-deste da praia, en
tregue ao somno reparador de suas fadigas. O escaller
deixou a praia. |- |- •

— Manoel, durante a viagem em que trouxeste essa


pobre mulher
ouviste? perguntou quem me fallaste hontem, nada lho
de Mauricio. •

— Ella me disse que era muito desgraçada, que ti


nha sido deixada na Bahia, por um capitão de navio,
por vós, em companhia de uma boa senhora, mais mo
ça que ella, e que é vossa irmã; disse-me, que essa se
nhora vivia apezard'abastansa em continuada tristeza,
que tinha amado; porêm que fôra obrigada a casar com
um homem, que não era aquelle a quem amava, e a
deixar o Rio de Janeiro ficando ahi tida por morta; dis
se-me, que essa senhora desde a morte de seu marido,
…tencionava voltar ao Rio de Janeiro, que para isto só
aguardava a vossa volta à Bahia; disse-me ainda, que
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essa senhora deixou-a na Bahia, quando a vio livre da
enfermidade, que vos obrigara a deixl-a ahi; disse-me
mais, que essa senhora a quizera trazer comsigo, que ella
não a quizera acompanhar para esperar-vos, onde a
havieis deixado. |

— E porque deixou Maria o lugar onde a deixei, an


tes de minha chegada? ……
— Porque não tinha aceitado dinheiro de vossa ir
mã, porque se tinha visto reduzida à mizeria longe de
seus filhos!
– Não lhe deixou minha irmã um credito?
— Não, porque ella o recusou.
— Porque recusou ella o credito?
— Porque vos esperava em poucos dias.
—— Infeliz!
. – Ella mendigava pois nessa cidade alta da Bahia de
Todos os Santos, e ninguem neste estado de mizeria a
conhecia. | |

—– Desgraçada mulher!
—– Por amor de vós, senhor!
– Uma vida de delicias compensará a de tormentos.
Callaram-se por alguns instantes, e em breve
—– Manoel, disse Mauricio; não te disse Maria para
que casa tinha vindo minha irmã?
—– Para a da rua da Mizericordia. |

—– Lá ireis levar-lhe uma carta.


Chegando á praia de D. Manoel, Mauricio desembar
eou, entrou nesse armazem, que ahi era unico em 1830,
escreveo uma carta a sua irmã, e enviou-a por Manoel;
emquanto que elle foi aguardar á irmã em sua casa da
rua Direita.
Estava Mauricio sobre um rico sofá da sua bem or
nada sala, quando lhe annunciou o toque de uma cam
painha que alguem o procurava.
—– Entre, disse elle. |

E sua irmã entrou.


—– Adelaide!
---- João!
E os dous irmãos se apertaram em seus braços,
Por tres dias os irmãos se conservaram silenciosos so
bre os pensamentos que os dominavam. No quarto dia
depois que eles se reuniram no Rio de Janeiro, quan
do estavam á mesa:
— Minha irmã, disse Maurício a Adelaide, não vos
recordais dessa pobre mulher, para quem na Bahia pe
di vossos cuidados?
—— Recordo-me, |

— Lembrai-vos de que a deixaste na Bahia?


—— Lembro-me. -

—— Lembrai-vos de que nem um recurso lhe deixaste


para evitar a mizeria? |

—– Ella recusou aceitar os que lhe ofereci.


—— Sabeis, Adelaide, que é a mãe de meus desgra
çados filhos?
—– E' verdade. |- ***

——Sabeis que é pobre?


-— Ainda é verdade.
—— Deixaste-a sem recursos em terra estranha!
— Tambem é verdade. |

— Então tendes odio a essa mulher?!


— Não! Tu, João, sabias que eu amava Martinho,
tu sabias que Martinho era pobre, tu sabias que elle
me amava, tu sabias que nosso pai fazendo correr que
eu era morta, queria apagar meu nome da alma de Mar
tinho, tu capitaneavas um navio, podias nelle levar-me e
a Martinho a uma outra parte do mundo, que não e
Brasil; porque o não fizeste?
—— Era....
O toque da campainha interrompeo Maurício.
—— Manoel, disse ele, manda entrar quem se an
nuncia. |

Estamos a 20 de outubro de 1830.


Manoel fez entrar para a sala um moço que tra
java com aceio, ainda que pobremente, este moço era
Pedro; sentou-se e esperou meia hora, porque havia re
cusado entrar para a sala do jantar. Passada a meia ho
ra, appareceo Mauricio á porta do corredor da salla, Pe
dro levantou-se, e Mauricio reconhecendo-o parou um
mOmento.
— Um religioso dever me trouxe a vossa casa, senhor
Mauricio, disse Pedro observando a acção daquelle.
Mauricio aproximou-se, fez sentar a Pedro e sentou-se
em frente a este.
— Poderei saber qual é esse religioso dever? disse a
Pedro.
— Sois o pae de uma joven a quem amo, e que me
ama; Deos a livrou da morte e da deshonra! Deos a
restituio a sua mãe de quem estava separada! E sua
mãe, essa boa e infeliz senhora abensoou o nosso amor!
Eu porêm, senhor, tive a idéa de procurar-vos, de di
zer-vos: Senhor! Maria e sua filha habitam uma peque
na casa na Oxaria do Paço Imperial, fazei o que a cons
ciencia vos dictar! |

—— Quem vos inspirou tão grande ideia?


—— Deos! A natureza!
XIII.

pEPois Do INFoRTUNIo ALCANSA-SE A vENTURA.

Tres dias depois, a vinte e tres d'outubro, na casinha


a que já conduzimos os leitores na Oxaria do Paço Im
perial, estavam Maria, sua filha, Martinho e José que
por Martinho havia sido levado no dia antecedente, 22
d'outubro, á sua mãe querida; José contava-lhe o que
tinha sofrido em sua ausencia, não se contentava com
dizer, repetia muitas vezes a sua mãe, que havia dem
contrar seu pai, que este a amava, que a procurava, que
seu pai era rico; e muitas outras couzas dizia José a
Maria para anima-la.
Maria observava silenciosa os que a acompanhavam
no sofrimento. •

Martinho e Luiza fixavam os olhos no velho soalho,


e pareciam tristes.
Deram quatro horas. |

A tarde estava bella, e parecia annunciar dias me


lhores. |

— Pedro! exclamou Luiza ao dirigir seus olhos pa


ra a porta.
— Permittes que entre, senhora?
—— Entrai, disse Maria a Pedro.
Este entrou, trajava ricamente.
— Já não sois um simples rosseiro? perguntou Luiza,
já trocaste o simples trajar de lavrador pelo do afecta
do cortezão? |

-- E verdade Luiza, as circunstancias.....


— Fazem mudar os sentimentos d'alma, não é isso o
que quereis dizer!?
— Não, Luiza!
— Então......
— O homem que chega a conhecer os preceitos so
ciaes, que entra nesta sociedade immensa onde as aparen
cias valem mais que a realidade, onde a afectação é ex
pressão do bom gosto e do merecimento, sente logo a
necessidade
se de fugir della para sempre, ou de sujeitar
ás suas regras. •

— E quaes sam essas regras?


-- Eu vol-as ensinarei quando o tempo nos não for
tão preciozo como agora. *
— Porque?
— Estou encarregado por João Rodrigues da Silva
Leal d'importante commissão.
— O irmão de D. Adelaide!? perguntou Martinho
cheio de viva emoção.
— Sim! O conhecido capitão Maurício.
— Mauricio!! exclamaram todos.
— Elle! ele mesmo! O pai da minha querida Luiza
e de meu amigo José!
—— E sabes onde está esse homem? disse Martinho.
— Aqui vos fallará com sua irmã.
—— Com sua irmã!?
— Sim! porque Adelaide vive.
— Oh!!...
E Martinho não pôde dizer mais.
Uma franceza, uma destas costureiras da rua do Ouvi
dor, a mais considerada então, apresentou-se a porta
da caza.
— Eis a Sra. que vem por ordem de Mauricio rece
ber as vossas.
A Sra. entrou. •

— Devo apromptar-vos vestidos os mais ricos que for


possível, e venho tomar as dimensões de vossos corpos,
disse a modista. •

— Explicae-me tudo isto, Pedro, disse Maria.


— Tudo isto é para um grande baile.
—– Mas eu não vou a bailes.
— A este haveis de ir.
— E' impossivel.
— Oh! eu vos peço, senhora.
—— E eu tão bem, mamãe. •

— Queres ir a um baile, minha filha?


— Se eu nunca fui a um baile!
— Pois bem ireis a este.
——Eu vos agradeço, disse Pedro, e espero que depois
me agradecerás.
A costureira sahio uma hora depois de ter entrado, e
pouco depois d’ella sahir entrou um alfaiate.
— Venho.....
—— Tomai, tomai as vossas medidas.
— Pois que......
— Deixai
mensões que corpo,
de vosso o mestre
dissealfaiate
Pedrotome
a José.tão bem as di

O alfaiate tomando as dimensões de José dirigio-se


para Martinho.
— Tão bem a mim? perguntou este.
—- Sim, tão bem ireis ao baile.
— Quando? tornou Martinho.
— No dia 1 de novembro; respondeo Pedro.
— No dia da festa de todos os Santos! exclamon Mar
tinho,
O alfaiate sahio. " - «.

— Está tudo disposto, disse Pedro, e pois até o 1.°


de novembro. º . •

— Até o 1.° de novembro, repetiram os outros.


Pedro sahio tão bem. # --
#
XIV.

A VENTURA PARA OS INFELIZES PARECE SONHO.

Ao amanhecer do dia 1.º de novembro de 1830, esta


va Maria vestida pelo gosto da época, e assim Luiza,
José, e Martinho. Pedro lhes havia dito que partiriam
ás nove horas da manhã; mas para onde? Pedro não ti
nha dito. Eram já oito horas e meia da manhã, só fal
ondemeia
tava hora para a aprasada, e Maria não sabia para
dirigir-se. •

Luiza estava bella, tudo nella encantava.


Maria estava pallida, em Martinho radiava o prazer,
e José mostrava grande contentamento.
Ainda faltavam cinco minutos para as 9 horas, e tres
pancadas se ouviram na porta, Luiza correo, a ella e
grito Pedro acompanhado de Jorge e de Izabel dá um
vendod'alegria. •

— Izabel!
Maria correo ao encontro dos hospedes.
— Sám nove horas, partamos! disse Pedro.
E todos sahiram. ~~

Fóra da Oxaria, em frente ao portão estavam tres


carruageens á espera delles. •

Subiram, as carruagens partiram pela rua Direita,


até a caza de Mauricio, onde entraram os que eram
conduzidos.
— Mauricio! exclama Maria dirigindo-se a elle.
— Maria, minha espoza!
— Vossa espoza!? não sonho?
*~ ~~~~

—– Não, Maria! o sacerdote nos espera, hoje diante


de Deos,legitima
minha e em presensa
mulher. dos homens receber-vos-hei por •

— Oh! bem fiz de vos amar sempre. }

— E eu, Maria, eu tão bem vos tenho amado e vos


amo ainda.
—— E a prova......
— O nosso cazamento, e voltando-se para Pedro e
Luiza, e daqui a tres dias o vosso, meus queridos
filhos. \ •

— E nada dizeis a vossa irmãa, João? perguntou


Adelaide. +

—— Que sois livre, Adelaide, e tão rica como vosso ir


IflöO.

— Envelhecido por amor de vós, Adelaide, tenho com


vosco obtido a mocidade e a ventura! disse Martinho.
— Assim pois hoje se ham de celebrar dous casa
mentOS.
— A Igreja, Maria! A Igreja! disse Mauricio.
E todos sahiram. |

Seis carruagens desfilaram pela rua Direita, seguiram


pela rua da Cadêa, e pararam no largo de S. Francisco
de Paula.
Cinco horas depois todas as nossas personagens esta
vam em caza de João Rodrigues da Silva Leal, onde se
assignou o contracto do cazamento de Pedro e Luiza.
Oito dias depois do cazamento de Pedro, entrava
José como noviço para o convento de S. Bento e Ma
noel suspendendo o ferro ao brigue Veloz soltava-lhe as
velas á fresca aragem do Norte. |

-- - , . FIM.

Typ, COMMERCIAL de º de Almeida, rua da Conceição nº

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