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CRONICA, UM GENERO BRASILEIRO José Castelo [Nas fronteiras longinquas da literatura, ali onde os géneros se esfumam, as certezas vacilam e os canones se estarelam, resiste a crénica. Nem todos 08 escrtores se arriscam a experimenté-la, e 0s que o fazem se exp3em, muitas vezes, auma dfusa desconfianga, Para os puristas, a cronica é um “género menor”. Para outros, ainda mals desconflados, n20 @ literatura, jornalismo — ‘© gue significa dizer, simples registro docurrental. Alguns acreditam que ela seja um género de circunsténcia, catado ~ opertunsta, Nao & fécl pratcar a crénica, ontetigo, entre Posipéo instavel, enemum pouco comoda, em que 2 seguranca cterecda Peles goneros Heros 4 ndo funciona. Luser para quem peter ce arrar am vos de repet Aerénica contunde poraue eeté onde - ais, nas revistas # «6 na lelevisdo ~e nem sempre nas los, Literatura ou jomalsmo? laveng&o, ou uma, (tmaertasscesuae ree ‘Supée-se, em geral, que 0s cronistas digam a verdade - soja o que se entends por verdade. Nao sé porque erénicas sto publeadas na imprensa, lugar dos fatos, das noticias e da matéria bruta, mas também porcue elas costumam ser narradas "a primeira pessoa, © © Eu sempre evoca a idéia de confissSo, E =inda porque vim adomadas, com frequéncia, pela fotocratia (verdadera!) de seu autor Entio, se_0 cronista diz que foi & padaria, ou que esteve em uma festa, aquilo deve, de fato, ter acontecido, oletor se apressa a conch. ‘ smpos do Descobrimento, quando os cronistas foram aqueles que primeiro” ‘do Novo Mundo. Cronistas eram, ent&o, missivistas empenhados em dizer e verdade, retratstas. Contudo, ¢ esse € seu grande problema, mas também sua grande riqueza,,a crénice é um géneroliterario. Nao ¢ fe¢ao, n8o 6 poesia, é crftica, e nem ensaio, ou teoria ~ ¢ crénica, As crénicas histéricas do passado, relatos de Viajantes e de avertureiros, tendiam ser apenas um "relato de viagen". Aproximavam-se, assim, do inventéri, do registro histérico e do retato pessoel, ¢ ‘ainda da correspondéncia. Essas narrativas estavam mais ligadas a historia que a literatura. Tinham, entes de fico, um cardter Lsiitéri, pragmatco: serviam para transmitir aquilo que se vi. No‘s6600X1K, com 2 sofiticagso dos estids histércos, e também com a expensso de imprensa, ¢crénica se aiastou do 160 fetal se apoxmou daieratura eda nvrco. Nossa prinetoe grande crates Alene, Moo Blas Joao do 0 = ram, antes de tudo, grandes escrtores. Eles descoBrram na crOnica ofescor do impreciso 80 Valor do transfor. Ea pratearam com regularidade @ empenno. Género brasileiro (Mas goon do stele 1 que a crows nay site NGG ees posires«feipsrelments propre. Eno adeulo XX ue ela se tora — nas méos de cronistes geris's como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Carios Cveire, Seigio Porto, Rachel de Queiroz, Femando Sabino, Henrique Pongett - um género brasileiro. Ou, dizendo mehor. que ela se adapia e se expande no cenério daiiteratura brasileira Isso ndo fala, contudo, nem de uma identidase, nem de um modelo. Ae contrério: 9 que marca'a erénica brasileis ¢ que,emnossa _ Harti: store um espero de toerdace ‘Qual escritor brasileiro, no século XX, teve o espirto mais livre que Rubem Braga? 1uem mais, desprezando as normas e pompas iterdrias, e com forte desapego aos cénones @ aos géneros, apostou tudo na erénica — ‘sta como um génere capaz de jogar de vols a Iteratura no mundo? ‘A grande novidade da crénica que se firmou 20 longo do século XX no Brasil é exatamente esta: sua radical iberdade. Embora ebrgada nes grandes jomais e depois reunica em livros, ela jé ndo tem compromisso com mais nada: nem com a verdade dos falos, ‘que baiiza o jomalismo, nem com império da imaginacgo, que define a Iteratura, A crénica traz de volta a cena itearia o gratuito @ 0 impulsive. © eronista no precisa brihar, n&o precisa ge ultrapesssr, nfo precisa surpreender, ou checar, ele desea, apenas, @ leveze da escrita ‘Gtnero-anfibio@ crdnica concede ao escritor a mais atordoante das liberdades:a de recomecar do zero Quando escreve uma crénica, 0 escrtor pode ser ligeiro, pode ser informal, pode dispensar a orighnalidade, desprezar a busca de uma marca pessoal- pode tudo. Na erénica, ainda mais que na ficgdo, o escritor no tem compromissos com ninguém, Isso parece faci, mas e requentemente assustadar. Pode falar de si, relatar fatos que realmente viveu, fazer exercicios de membria, confessar-se, desabstar. Mas pode (e deve) também menti, falsificar, imaginar, acrescentar, censurar, distorcer. A novidade no esti nem no apego & verdade, nem na escoha da imaginaco: mas no fato de que o cronista manipula as cuas coisas a0 mesmo tempo — @ cem explicar 20 leitor, jemais, em qual das ‘dues posigses se encontra. O cronista é um egente duplo: trabalha, 20 mesiro tempo, para os dois lados e nunca se pode dizer, com seguranca, de que lado ele est Na verdade, ele ndo esta em nenhuma das das posig6es, nem na da verdade, nem ne da imaginarSo - mas esta “entre” eles. Ocupa uma posigSo limitafe ~ © ¢ por isso que o cronista inspira, em geral, muitas suspeitas. Os jomalistas o ver» come laviano, mentiroso,, apressado, iresponsdivel. Os escritores acrectam que ¢ preguicoso, interesseiro, precipitado, imprudente, venal ate, Eo cronista tem que se ver, sempre, com essas duas restrigBcs, Uns o tomem como uma ameaga & limpidez dos fatos e ao apego a verdade que ‘orteiam, por principio, o tabalho jornalistico. Outros, por seus compromissos com os fatos e com as miudezas do cotidiano, como um erige para liberdade eo assombro que definem a literatura E assim fica o cronista, um cigano, um ndmade a transitar, com difculdades, entre dois mundos, sem pertencer. de fato, a nenhum dos dois, Um errante, com um pé aqui, outro a, um sujeito divdido. E 0 letor, se tomar o que ele escreve 20 pé da isra, também pode se tencher de furia, Como esse sujeto diz hoje uma coisa, se ontem disse outra? Como se descreve de um jet, se ontem se descreveu de outro? Onde pensa que esta? Quem pensa que 6? Mas ¢ justamente essa a vantagem do cronista: ele nic se detem para pensar ‘onde estd, ou no que é; ele se limita a sentire 2 escreve. ‘Ocronista conserva, desse modo, os estigmas negativos que ceream @ figura do forasteiro — aquele que sempre desperta ‘desconfianga © em quem no se deve, nunca, acreditarinteraments, Vindo sebe-se la de ends, inspira uma admirago nervosa ~ ‘como admiramos os mascarados e os clowns, sempre com uma ponta de inseguranca, e um sorriso mal resoWvido ne resto, Errante cele nos leva a errar— em nossas avaliagBes, em nossas suposicdes. Uns o véem, por isso, como um trapaceiro, outros, mas esperios, aceitam aquilo que ele tem de mehor a oferecer: a imprecisdo, Censuramos aos cronistas de hoje sua falts de rigor, seu sentimentalismo, seu apego excessivo ao Eu, seu lrismo, ue falta de ropésitos. O que faz um sujeito assim em nossos jomais? - pensam os jomalistas. O que ele faz em nossa literatura? —pensam os, cescrtores. Rubem Braga relatou, certa vez, que seus amigos escritores Ihe cobravam, sempre, um grande romance ~ grande romance ue, enfim, nunca chegou a escrever. Brave tentava hes dizer que o romance no Ihe interessava, mas s6 @ crénica, E os amigos ‘tomavam essa resposta como uma manifestsc8o de falsa modéetia, ou entio de preguiga. Nunca puderam, de fato, entender a grandeza de que Braga falava. ‘Numa converse com Rubem Braga, republicada agora em Entrevistas (coletinea recém-langada pela Rocco), Clance Lispector Ine diz “Voc®, para mim, é um poeta que teve pudor de escrever versos", E diz mais: "A orénica em vac8 & poesia em prose". Semare a ‘suspeita: de que, no fundo, o cronista é um timido, alguém que se desviou do caminho verdadeiro, siguém que ndo fol capaz de ccheger @ ser quem é. Depois de lembrar a Ciarice que ja publicara alguns poemas, Braga, ele também, talvez por delicadeza, ou quem ‘sabe seduzide pelos encantos da escritore, termina per ceder. "E multo mais faci irna cadéncia da prove, © quando acentace ae sia dizer alguma coisa posiica, tanto melhor" Figura exemplar Depois da explosao de géneros promovida pelo modemismo de século XX, 0 cronista se toma — a cua revella, @ contragosto — ume figura exemplar. Transforma-se em um pion-iro que, entre escombros @ ImprecisSes, ¢ sempre pressionade pelo real, se pbc @ esbravar novas conexées entre a iterature = a vida — sem que nem a Fieratura, nem a vida venham a ser traldos. Figura soliaria, 0 cronista se torna, também, uma preseniga emblematica, a promaver simultaneamente dois caminhos: 0 que leva da literatura ao real, ¢ 2 que, em direg0 contréria, conduz do reel 8 literatura. "Hana iteratura contemporénea um sentimento que, se ndo chega a ser de impoténcia, até porque grances livros contnuam aser: ‘escritos, ¢, pelo menos de vazio. O modemismo esgarcou parémetrs, derrubou clichés, trou do caminho um grande entulho de Clchés, de formas gastas, de vicios de estilo. Depois de Kafka, Joyce, Proust, depois de Clarice e de Rosa, como conthuat a ser um esciitor? Como prossegur em um caminho que, depots deles, se define pela tragmentacdo, pela dispersao, pelo vazio ~ exatimente como nosso conturbado mundo de hoje? O escftor ja no pode mais conservar a antiga postura de Grande Senhor da esonta.Ele deixou de ser o Mestre da Palavra, para se converter, mais, em um aprendiz, © escritor foi empurado de vota a um ponte marto ~ ponto de recomego, lugar fonteirigo que se assemeha, muito, ae ocupado pelos ctonista. Fol tancado, de volta, és perguntas bastcas. Por que escrevo? O que & escrever? De que serve allterature? Posirao que, com as devidas ressaivas, podemos chamar de flosofice: poi parte das perguntas fundamentals, aquclos que, desde os gregos, Getnem a flosofa ‘Eis poténcia da crdnica: sustentar-se como 0 lugar, por exceléncia, do absolutamente pessoal. Os lricos, como Vinicius, s¢ misturam ‘203 meditatvos, como Carinhos Oliveira, ou aos floséfcos, como Paulo Mendes Campos. Clarice praticeva a crénica como um cexercicio de assombro; Rachel, como um insirumento para desvendar 9 mundo, Sabino, como um género de sensbilidade. Cada um ‘fez. ¢ faz, dacrinica 9 que bem entende. Nenhum cronista pode ser julgado: cada cronista esté absolutamente sozinha,- erreno da iberdade, a crénica ¢ também o sénero da mestiagem. Havers algo mais indicative do que ¢0 BrasiPals de amplas & fesordenadas fronteiras, grande complexo de races, crengas e cuturas, nds também, brasietos, vaclemos todo o tempo entve o ser e © nfo-ser. Somos um pais que se desmente, que se contradiz e que se utrapassa. Um pale ne qual é coda vez mais fel responder & mais elementar das perguntas. — Quem sou eu? Género fuido, taigoeto, mestigo, a ciénica tima-se, assim, 0 mais brasieros des géneras. Um género com género, para uma ientidade que, a cada pedido de ientiicaca>, fomece ume respasta diferente, Grandeze da dversidode e ca dfevenga que 380, no fim das contas, a matéieprima da literatura Nota do Editor Publicado no suplemento terério Rascunho, em setembro de 2007, Curitiba, 8/10/2007

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