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https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/06/no-brasil-covid-19-nao-mata-por-
idade-mas-por-endereco-sugere-estudo.htm
população mais pauperizada e periférica. Nisso, cabe a nós questionarmos o óbvio
(necessário): quando não foi assim? Ressaltamos também a reprodução do conceito de
classes como sinônimo de estratos socioeconômicos, mais especificamente, de renda, e
não vinculada ao antagonismo de classes imanente ao modo de produção capitalista.
Tal movimento reforça a tese da pobretologia de Virgínia Fontes (2010). Além disso,
impera a compreensão fragmentada da realidade, que parcializa suas múltiplas
mediações e determinações, tomadas como variáveis, fatores de risco per se (por
exemplo, classe, idade, território), ao invés de uma compreensão totalizante e sua
concreção nas particularidades e singularidades dos indivíduos, também corroborando
as críticas feitas anteriormente sobre a ideologia dos determinantes sociais.
Do mesmo modo que a COVID-19 escancara nossas mazelas - novamente,
expressões da questão social e de nossos antagonismos estruturais -, com suas
implicações constituídas por elas, tende a aguçá-las ainda mais. Cabe salientar que
antes mesmo da pandemia, a desigualdade social no país vinha crescendo. Tal aumento,
que vem ininterruptamente desde o quarto trimestre de 2014 ocasionou, até o segundo
trimestre de 2019, um decréscimo de 17% da renda dos 50% mais pobres e um
crescimento de 10% na do 1% mais rico (Neri, 2019). No caso da COVID-19, para além
das maiores taxas de mortalidade associadas às condições socioeconômicas, temos que
os maiores impactos deletérios na renda e no emprego se dão na classe trabalhadora e,
nela, nas camadas mais subalternizadas (Barbosa, Prates & Meireles, 2020). Alia-se a
isso a agudização nas disparidades educacionais, as medidas econômicas estatais que
privilegiam as classes dominantes e o capital - sobretudo o financeiro -, bem como as
implicações subjetivas, e temos um quadro de recrudescimento das disparidades sociais
e precarização objetivo-subjetiva da vida.
Conforme também discorremos, a materialização da questão social nas
singularidades dos indivíduos é mediada pelas particularidades que cimentam a vida
social, como os antagonismos de classe, raça, etnia e gênero. Ainda mais quando
analisamos a gênese constitutiva do Brasil, pelo projeto colonial-escravocrata e de base
patriarcal, forjando em nossa formação social estruturas racistas e patriarcais
amalgamadas ao antagonismo de classes. Logo, determinados grupos sociais passam
a ser mais vulneráveis à COVID-19 não em decorrência de atributos individuais - por
mais que estes também deem sua cota de contribuição, especialmente no caso de
idosos(as) e/ou pessoas com doenças prévias que complexificam o processo de
adoecimento e dificultam a reabilitação e cura -, mas por suas condições sociais
enquanto seres sociais; isto é, seres singulares que se desenvolvem de determinadas
formas em um certa concretude histórica imanentemente desigual.
Segundo Boletim Epidemiológico 16 do Ministério da Saúde publicado em 18 de
maio2, negros(as) e pardos(as) já somavam 54,8% das mortes por COVID-19 no país.
No caso dos(as) pardos(as), apesar de serem 38,7% dos hospitalizados, eram 47,3%
das vítimas fatais. Pessoas brancas eram a maioria dos internados (51,4%), mas quando
agrupados os números de mortes, caíram para 43,1%. Dados da prefeitura de São
Paulo3 divulgados em 30 de abril constataram um risco 62% maior de morte para
pretos(as) e de 23% para pardos(as) em comparação a brancos(as). Considerando as
especificidades, tal panorama de maiores taxas de mortalidade de negros(as) e
pardos(as) é visto em outros estados e regiões do país. É importante frisar que tal
panorama tende a se aguçar, pois, como demonstramos, o contágio do coronavírus e o
adoecimento da COVID-19, inicialmente nas camadas mais abastadas da população,
têm se espraiado e fatalizado as mais pauperizadas, periféricas e vulneráveis da
população. Soma-se a isso a notória subnotificação e o fato de que nos dados do
Ministério da Saúde, em 14.698 casos (mais de 10%), a raça foi ignorada.
Conforme nota técnica Análise socioeconômica da taxa de letalidade da COVID-
19 no Brasil, a partir do banco de dados do Ministério da Saúde acumulado até 18 de
maio, pretos e pardos sem escolaridade apresentaram risco de morte decorrente da
COVID-19 quatro vezes maior do que brancos com nível superior (80,35% contra
19,65%). Ainda segundo a nota, 62,7% dos brancos se recuperaram, enquanto apenas
45,2% dos negros se curaram (Batista et al., 2020).
Se pensarmos nos povos originários e tradicionais, como as populações indígena
e quilombola, as implicações da pandemia seguem na esteira do genocídio a elas
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https://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2020/May/21/2020-05-19---BEE16---Boletim-do-COE-
13h.pdf
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https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/PMSP_SMS_COVID19_Boletim%20Qu
inzenal_20200430.pdf
perpetrado. Trata-se de uma reatualização histórica de um processo que se inaugura
com a invasão, rapinagem e assentamento do projeto colonial, cuja estratégia mortífera,
aliás, teve como uma de suas principais ferramentas as doenças e epidemias do homem
branco europeu. Por inúmeros fatores, mas que se vinculam às suas condições
marginalizadas, pauperizadas, violentadas e negadas de existência, tais povos mostram-
se mais vulneráveis ao vírus e à doença, ao mesmo tempo que o proposital descaso
estatal é continuidade do projeto genocida, se aproveitando agora de (mais) um vírus
para isso. Segundo a Quilombo sem Covid-194 e a COVID-19 e os Povos Indígenas5,
em 30 de maio, tínhamos 51 óbitos de indígenas em áreas rurais (em 1312 casos
confirmados da COVID-19) e 51 mortes de quilombolas (dos 203 casos confirmados),
com taxas de mortalidade de 4% e 25% (a taxa geral na população brasileira no mesmo
período era de 5%). Novamente, é necessária frisar que tal panorama tende a se
intensificar com o processo de interiorização da doença, aliado às condições precárias
de vida, e que tais dados são subnotificados (nos fazendo crer que o são ainda mais
para tais populações)
No que se refere às mulheres, os impactos da pandemia também tendem a ser
mais severos, e não por criarem uma nova situação, mas aprofundarem o que já existe:
a condição exploratório-opressiva vivenciada pelas mulheres no capitalismo. Segundo A
United Nations (Organização das Nações Unidas), tal panorama se deve aos seguintes
fatores: 70% dos trabalhadores de saúde no mundo, que estão mais expostos à
contaminação do coronavírus, são mulheres; no caso de idosos, população que também
se mostra mais vulnerável à doença, as mulheres vivem mais sozinhas e possuem menor
renda que os homens; mulheres são maioria em trabalhos informais; as tarefas
domésticas e de cuidado agregadas, isto é, o trabalho de reprodução social (em grande
parte não pago), fazendo com que as mulheres desempenhem três vezes mais trabalhos
não remunerados do que os homens, o que durante a epidemia pode triplicar (United
Nations, 2020). É importante contextualizar o próprio trabalho não pago, historicamente
delegado às mulheres numa divisão social e sexual, como necessário ao capitalismo,
permitindo sua reprodutibilidade.
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https://quilombosemcovid19.org/
5
https://covid19.socioambiental.org/
É muito esclarecedor que uma das primeiras mortes decorrentes da COVID-19 no
país - a primeira no estado do Rio de Janeiro - tenha sido de uma mulher, negra e
periférica, que trabalhava como empregada doméstica para uma família moradora do
Leblon (bairro do Rio de Janeiro com o metro quadrado mais valorizado do país). Ela foi
contaminada pela patroa, recém-chegada de uma viagem da Itália e que mesmo após
diagnóstico da COVID-19, não liberou a trabalhadora. A patroa foi tratada e sobreviveu.
No Pará, por exemplo, o Decreto nº 729, de 05 de maio de 2020, que estipulou o
lockdown no estado, considerou o trabalho doméstico como essencial, não obrigando os
patrões e patroas a liberarem suas empregadas - uma amostra clara, das tantas, de
nossas reatualizações cotidianas escravocratas e da consubstancialidade de classe,
raça, etnia e gênero.
Além disso, com a situação de isolamento social, é reforçado que o lar e família
nunca foram seguros às mulheres. Segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos
Humanos, o número de denúncias feitas pelo Ligue 180 (canal institucional para
denúncias de violência contra a mulher) aumentou 15% em março e 36% em abril de
2020, quando comparados aos mesmos meses do ano anterior 6. Segundo divulgação de
23 de março do plantão judiciário do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, os registros
de casos de violência doméstica aumentaram em 50% durante o período de
confinamento, com a maioria das vítimas sendo mulheres 7.
Poderíamos também discorrer sobre como a maior taxa de letalidade na
população idosa, justamente, a parcela “mais onerosa”, é bem quista pelo capital, sendo
que sua diminuição implicaria em menos “gastos” previdenciários; isto é, uma reforma
da previdência natural. Outros grupos também carecem de atenção específica, a partir
de suas especificidades e singularidades. Também mencionamos como a questão social
se materializa regional e territorialmente, num plasmar de inúmeras de suas
manifestações, com a própria dissipação do coronavírus explicitando isso. Entretanto,
consideramos que o exercício feito já seja suficiente.
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https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-05/ligue-180-registra-aumento-de-36-em-casos-de-
violencia-contra-mulher
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https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/03/23/casos-de-violencia-domestica-no-rj-crescem-
50percent-durante-confinamento.ghtml
De acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL,
2020), os grupos populacionais mais afetados pela COVID-19 são: mulheres, os estratos
mais pauperizados, trabalhadores(as) informais, trabalhadoras domésticas
remuneradas, crianças, adolescentes e a juventude em geral, população rural, povos
indígenas, negros(as), pessoas com deficiência, imigrantes e população em situação de
rua. Contudo, o que todos esses estudos e relatórios e a síntese cepalina não dizem
dizendo (o que não é um acaso), e que procuramos aqui assinalar, é que estes grupos
e populações são, na verdade, o conjunto dos explorados e oprimidos de nossa
sociabilidade; que tais recortes e variáveis são as manifestações da questão social, da
conjunção exploratório-opressiva de nossa sociabilidade; que os impactos da COVID-19
se dão sobremaneira na classe que vive do trabalho, consubstanciada e materializada
nas singularidades dos seres no/pelos antagonismos de raça, etnia e gênero. No mais,
dizem de uma sociedade e país, cuja violência e a morte foram e são historicamente
forças produtivas. Utilizando criticamente um conceito basilar da epidemiologia
tradicional, a classe que vive do trabalho é o grupo de risco.
Temos no exemplo concreto-histórico da COVID-19, a “emergência de novas
expressões da ‘questão social’” (Netto, 2001), mas que não significa uma nova questão
social. Melhor dizendo, considerando a formação social brasileira particular, temos o
engendramento de novas-velhas expressões da questão social. O panorama
apresentado, mesmo nas distintas interpretações que pode gerar, nos diz algo
demasiadamente óbvio, mas que infelizmente carece de ser rememorado
continuamente: nossos profundos antagonismos sociais de classe, raça, etnia e gênero
que se consubstanciam formando um todo coeso que se reifica e, portanto, só pode ser
superado em sua totalidade. A pandemia como consequência da forma como nos
organizamos enquanto sociedade e seus impactos evidenciam nossas estruturas sociais
e o próprio caráter desigual de nossa sociedade, e de maneira particular, do Brasil; e faz
isso ao aguçá-los, considerando as formas como essa vem sendo abordada pelo Estado
que, por sua vez, só pode ser compreendido em sua totalidade, circunscrito à luta de
classes e as condições concretas e históricas que essa se desenvolve, o que nos remete
aos antagonismos estruturais supracitados. Dialeticamente, reforça que a supressão da
questão social se dá pela superação do capitalismo.
A partir do exemplo trágico da COVID-19 - que nada de bom tem a nos agregar -
, é reforçada a necessidade de compreensão da saúde (e sua consequente abordagem)
em sua determinação social; senão como mais uma das manifestações diretas da
questão social, atravessada e constituída por ela, juntamente às outras expressões
desiguais que a ela remetem. É a partir desse movimento de compreensão do real em
movimento, que se deve pensar nas possíveis implicações à psicologia, sob a pena de,
não fazendo isso, incorrermos em idealizações e romantizações acerca da nossa própria
realidade e do papel e capacidade da psicologia em si.
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Aqui utilizamos a terceira pessoa do plural, mas entendendo o(a) psicólogo(a) como ser que vive do
trabalho, da venda de sua força de trabalho, também faz parte do conjunto dos explorados e oprimidos.
Contudo, não é possível negar todo o histórico de contribuição da psicologia à manutenção da ordem,
opondo-se, justamente, às necessidades das maiorias populares.
Considerações Finais
A despeito do que se diz, o coronavírus e a COVID-19 não são democráticos ou
elitistas, assim como vírus ou doença nenhum(a) o são. É o metabolismo social no qual
esses se manifestam que deve ser analisado criticamente, com as consequentes
implicações para o desenvolvimento do vírus e da doença - o que não exclui o estudo
das mutações e evolução viral e patológica. Por mais que a transmissão e o contágio do
coronavírus tendam a ser mais “democráticos” - e mesmo nisso constatamos das
condições de vida como concreção dos antagonismos societários -, quando analisamos
quem morre, como e por que morrem em decorrência da COVID-19, assim como quem
vive, como e por que vive, temos explicitado a profunda desigualdade de nossa
sociedade: uma sociedade virulenta; um metabolismo social adoecido e adoecedor.
Nisso, demonstramos a necessidade de consideração da questão social na
análise sobre a determinação social da COVID-19 e suas múltiplas mediações, assim
como da saúde atravessada e constituída por ela, enquanto movimento da e para a
realidade. Se a supressão da questão social, sinônimo de superação do modo de
produção capitalista, não evita o surgimento de vírus e doenças, ao menos faz com que
suas respectivas abordagens estejam pautadas nas necessidades humanas. Tal
elaboração pode fornecer subsídios à compreensão e atuação da psicologia, refletindo
sobre a sua necessidade histórica presente, em termos das contribuições que essa pode
ofertar no panorama vivenciado, mesmo que parcas frente à totalidade social e às
necessidades daqueles(as) que nela se forjam e a produzem, mas orientadas eticamente
à construção de uma outra sociabilidade.
Referências
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