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O MARXISMO EXPLICA OS MOVIMENTOS SOCIAIS?

Marcelo de Souza Silva

Resumo

O artigo parte de um aparente paradoxo. De um lado, o marxismo é um corpo


teórico que desenvolveu-se e foi trabalhado por movimentos sociais. O trabalho de
Marx e Engels representa a destilação de experiências, debates, teorias e conflitos
enfrentados pelos movimentos populares do século XIX que procurou, por sua vez,
contribuir para o desenvolvimento desses movimentos.
Por outro lado, se as figuras principais do marxismo clássico usaram o termo
'movimento', nenhum parece ter desenvolvido qualquer teorização explícita do termo.
Além disso, enquanto os marxistas produziram estudos inovadores de movimentos
específicos, aparentemente eles não produziram uma teoria explícita dos movimentos
sociais, quer seja, uma teoria que explanasse especificamente a emergência,
características e desenvolvimentos dos movimentos sociais, especialmente os que estão
fora de uma análise no campo do trabalho.
Depois de uma proliferação de teorias contemporâneas sobre movimentos sociais, as
recentes manifestações mundo afora parecem ter colocado em crise tais teorias por não
conseguirem explicar os fatores que desencadeiam a mobilização. Mas isso parece
derivar do fato de terem excluído o capitalismo das origens das discussões. Parece
oportuno afirmar que Marx e a economia política tornam-se peças relevantes nesse
cenário.

Introdução

É fato que, perscrutando a obra de Marx, não encontraremos uma discussão acerca
de uma teoria dos movimentos sociais. Não obstante, não é difícil constatar que muitos
de seus conceitos podem ser devidamente aplicados aos movimentos sociais, não
esquecendo que Marx ocupou sua sociologia no estudo da transformação social,
objetivo dos movimentos sociais. Aqui, verificamos um problema de análise, pois os
movimentos tornaram-se complexos devido às intensas transformações pelas quais as
sociedades estão sujeitas e, em alguns casos, passaram a “aglutinar” diferentes classes
em um mesmo movimento, como em movimentos identitários, que estão na esfera
ideológica e política e não somente na estrutura econômica, nas lutas de classes às quais
Marx se debruçou (MACHADO, 2017). Talvez devido a essas novas complexidades,
características do mundo contemporâneo, parece ter havido um desaparecimento do
capitalismo nos estudos dos movimentos sociais pelos pesquisadores e especialistas no
assunto, fato curioso, aliás, vê-lo ignorado se levarmos em consideração que o
capitalismo se esparramou pelo globo e certamente molda os movimentos, mesmo que
de forma subjacente. É de presunção aparentemente incontestável que os ‘novos
movimentos sociais’, como os movimentos raciais ou LGBT, prescindam do caráter
econômico, já que não estão lutando por condições de trabalho, mas a dinâmica do
capitalismo acaba importando de várias maneiras para esses movimentos.
Se pretendermos fazer uma análise das teorias dos movimentos sociais, temos que
voltar a 1930, quando elas começaram a ser elaboradas de fato, com as primeiras
abordagens sobre a ação coletiva. A partir da década de 1960, porém, houve uma
proliferação de teorias – junto com o surgimento de multidões se manifestando no
mundo ocidental - que seguem até o presente. Nessas teorias, os movimentos sociais são
vistos como reivindicatórios mas sem a pretensão de tomar o Estado - portanto pacíficos
de certa forma - contrastando fortemente com a visão marxista, pois para Marx, só se
atingiria a justiça social com a abolição do Estado e do capital (MARX, 1999). Porém,
autores como Callinicos (1999) afirmam que o próprio movimento racial inclui
categorias do pensamento marxiano para sua abordagem, uma vez que o negro está na
condição de oprimido pelo capital e que em torno do racismo, os privilegiados sempre
são as classes mais abastadas.

As abordagens

Na década de 1960, o sociólogo estadunidense Mancur Olson lançou seu mais


famoso livro: A lógica da ação coletiva. Nele, Olson argumenta que os movimentos
sociais têm o propósito organizacional de promover os interesses dos seus membros.
Mas, se por um lado esse propósito é direcionado ao coletivo, ele argumenta que “assim
como pode se supor que os indivíduos que pertencem a uma organização ou grupo têm
um interesse comum, eles também têm interesses puramente individuais, diferentes dos
interesses dos outros membros do mesmo grupo ou organização” (OLSON, 1999). Essa
abordagem de Olson e bastante referenciada atualmente, parte do pressuposto de que os
movimentos, especialmente os de caráter econômico, agem por interesses pessoais e se
unem em grupos de forma extremamente racional. Esse autor faz parte da grande
corrente interpretativa contemporânea conhecida como TMR – Teoria da Mobilização
de Recursos. Vemos aí uma grande diferença entre as abordagens pioneiras, conforme
Gohn:
Os
autores clássicos analisavam os movimentos sociais
em termos de ciclos evolutivos em que seu surgimento,
crescimento e propagação ocorriam por intermédio de
um processo de comunicação que abrangia contatos,
rumores reações circulares, difusão das ideias etc. As
insatisfações que geravam as reinvindicações eram
vistas como respostas às rápidas mudanças sociais e a
desorganização social subsequente. A adesão aos
movimentos sociais seriam respostas cegas e
irracionais de indivíduos desorientados pelo processo
de mudança que a sociedade industrial gerava. Nessas
abordagens dava-se, portanto, grande importância à
reação psicológica dos indivíduos diante das
mudanças, reação considerada como pensamento não
racional ou irracional. (GOHN. 2002).

Desta forma, teríamos aí a possibilidade de estudar as origens de movimentos


sociais a partir do individualismo metodológico, dentro do espectro da Teoria da
Escolha Racional.
Uma série de estudos importantes sobre movimentos e revoluções apareceu nos
Estados Unidos no final da década de 1970 e no início da década de 1980, que tiveram o
efeito de reorientar radicalmente o estudo acadêmico de movimentos e conflitos
políticos. O campo se afastou dos tratamentos principalmente psicológicos e sócio-
psicológicos dos protestos políticos - estudos que frequentemente lançam uma luz muito
negativa sobre os protestos - para análises mais simpáticas que enfatizavam a
importância de recursos, poder, solidariedades e oportunidades para movimentos. Os
movimentos não eram mais vistos como explosões irracionais, mas como formas
eminentemente racionais de política por outros meios. Mas tudo isso agora é sabedoria
comum entre os estudiosos do movimento (o que foi esquecido é que esses mesmos
estudos tendiam a enfatizar fortemente os efeitos do capitalismo nos movimentos). Essa
abordagem ficou conhecida como TPP (Teoria do Processo Político), que trabalha na
perspectiva de causar constrangimento político e, ao mesmo tempo, realizar análises
estratégicas concernentes a essas vantagens políticas ou à possibilidade de sofrer
desvantagens políticas.
Outra teoria contemporânea é a TNMS – Teoria dos Novos Movimentos Sociais,
para a qual os antagonismos atuais são diferentes dos que têm centralidade na obra de
Marx, para quem “A luta entre o capitalista e o assalariado remonta à própria origem do
capital” (MARX, 1974). Para essa teoria, a contemporaneidade é formada por
antagonismos entre diferentes atores sociais e não mais a luta de classes: “o conflito não
está mais associado a um setor considerado fundamental da atividade social, à
infraestrutura da sociedade, ao trabalho em particular; ele está em toda a parte”
(TOURAINE,2009). Seria então não a negação histórica do conflito de classes, mas a
afirmação de que houve um deslocamento atual para questões ligadas ao indivíduo, à
identidade coletiva.

Do anticapitalismo dos anos 1970 ao seu abandono contemporâneo

Nos anos 1970, os autores de várias obras inovadoras sobre os movimentos sociais
acreditavam que o capitalismo era crucial para a sua compreensão devido a uma
variedade de importantes mecanismos causais. Instituições capitalistas (fábricas,
ferrovias, bancos e assim por diante) ou instituições que os capitalistas possam vir a
controlar (como legislaturas, tribunais e polícia), uma vez que o Estado se conforma ao
poder dominante (POULANTZAS, 1977), são frequentemente a fonte ou o alvo de
queixas populares, especialmente (mas não apenas) durante os períodos de crise
econômica. Além disso, essas instituições moldam identidades coletivas e solidárias - e
não apenas solidárias de classe - de maneira particular; eles também distribuem poder e
recursos de maneira desigual para diferentes classes sociais e frações de classes; ambos
facilitam e inibem alianças grupais específicas baseadas em interesses comuns ou
divergentes; além disso, as divisões de classe frequentemente penetram e fraturam
movimentos particulares e ideologias e premissas culturais ligadas ao capitalismo
moldam poderosamente estratégias e demandas de movimentos. Os efeitos do
capitalismo na ação coletiva, para esses autores, são tanto diretos quanto indiretos (isto
é, mediados por outros processos) e são o resultado de processos de curto e longo prazo.
A inovadora série de estudos dos movimentos sociais da década de 1970, podemos
observar, não apenas enfatizou a importância causal do capitalismo para a ação coletiva,
mas também tendeu a ver o capitalismo, em última análise, como uma restrição
importante - e talvez a principal - à liberdade humana. Vários desses estudos têm um
tom inconfundivelmente anticapitalista, uma qualidade normativa que é bastante rara
nas teorias contemporâneas de movimentos, como os citados acima, nos diferentes tipos
de abordagens, e sugere que há uma ‘mistificação’ da qualidade da democracia
capitalista, quer seja, que o poder está enraizado no controle da força coercitiva e no
controle dos meios de produção mas, nas sociedades capitalistas, essa realidade não é
legitimada pela entronização do poderoso, mas através de instituições eleitorais-
representativas que proclamam a participação de todos, não a força e a riqueza, como
base para a acumulação de poder.
Estudos mais recentes sobre movimentos sociais não apenas carecem desse espírito
anticapitalista, mas também ignoram amplamente, com muito poucas exceções, os
efeitos restritivos do capitalismo. Uma das estratégias analíticas centrais de Marx, está
faltando nas teorias contemporâneas dos movimentos sociais - ou seja, seu esforço para
incorporar as relações de poder em uma análise da economia política como um todo. As
teorias recentes tendem a ignorar não apenas os efeitos diretos e próximos das
instituições capitalistas na ação coletiva, mas também as maneiras pelas quais a
dinâmica capitalista influencia indiretamente as possibilidades de protesto, às vezes por
muitos anos ou décadas, como, por exemplo, moldando instituições políticas, alianças
políticas, laços sociais e expressões culturais. Em vez disso, as teorias recentes tendem a
se concentrar em mudanças de curto prazo em "enquadramentos culturais", redes sociais
e, especialmente, "oportunidades políticas", raramente examinando as causas mais
profundas de tais mudanças; de fato, a maioria dos estudiosos do movimento agora trata
esse último conjunto de fatores como variáveis independentes, negligenciando as
maneiras pelas quais eles podem ser moldados poderosamente pelo capitalismo.
O que aconteceu? O que pode explicar esse estranho desaparecimento do
capitalismo dos estudos do movimento social? Aqui, podemos apenas especular, mas
argumentaríamos que essa transformação é o resultado de vários fatores relacionados,
incluindo o declínio do marxismo nas ciências sociais após a década de 1970, a
chamada 'virada cultural' na academia e uma ênfase crescente na análise de nível micro
e meso - incluindo enquadramento e análise de rede, introduzidos pelo individualismo
metodológico aqui citado - nos estudos de movimentos sociais propriamente ditos.
Nosso objetivo, aqui, não é criticar o enquadramento ou análise de redes, mas
simplesmente apontar que elas efetivamente - e desnecessariamente - 'expulsaram' uma
preocupação com a economia política no campo. Como resultado, vários mecanismos
causais promissores, vinculados à dinâmica do capitalismo, não são mais considerados
dignos de atenção pelos estudiosos do movimento, e isso faz acreditar que os conceitos
criados por Marx já não servem mais para a análise desses movimentos na
contemporaneidade.
Mesmo quando analisamos movimentos que a princípio parecem tem muito pouco a
ver com questões de classe, como o movimento indígena, “também é possível abordar a
intersecção entre identidade étnica e de classe” (GALVÃO, 2011). Assim, se
examinarmos um movimento que aparentemente não tem nada ou muito pouco a ver
com questões de classe, trabalho ou economia política, a saber, o movimento LGBT,
nossa leitura da literatura sobre este e outros movimentos sugere que a dinâmica do
capitalismo e dos fatores político-econômicos são importantes para todos os
movimentos de pelo menos quatro maneiras específicas:
1. A dinâmica capitalista inibe ou facilita alternativamente a formação de novas
identidades e solidariedades coletivas, incluindo identidades de classe e não-classe.
Dessa maneira, o capitalismo molda as próprias condições de existência de muitos
movimentos sociais.
2. O equilíbrio das forças de classe em uma sociedade molda poderosamente a maneira
como os movimentos evoluem ao longo do tempo e o que eles podem ganhar para seus
constituintes.
3. As divisões de classe geradas pelo capitalismo podem penetrar de maneira desigual e
fraturar os movimentos. O equilíbrio das forças de classe dentro dos movimentos - às
vezes mais e às vezes menos organizado e autoconsciente - pode moldar as metas e
estratégias do movimento.
4. Finalmente, ideologias e questões culturais intimamente ligados às instituições e
práticas capitalistas também podem influenciar fortemente as estratégias e objetivos do
movimento, reforçando-as ou inibindo-as.
Para começar, o desenvolvimento capitalista foi uma condição necessária para o
surgimento inicial e subsequente elaboração de identidades e solidariedades LGBT.
Embora possa desafiar a sabedoria atual, a ideia de que exista uma relação importante -
de fato fundamental - entre o desenvolvimento capitalista e o surgimento de identidades
LGBT não é original. O capitalismo floresce em meio ao liberalismo, prática que acaba
por permitir o surgimento dessas manifestações, vide que em países socialistas como a
antiga União Soviética ou mesmo em Cuba, os movimentos LGBT são reprimidos de
forma violenta, não tendo a oportunidade de se afirmar como movimento de expressão e
influência como em países capitalistas. Além disso, a urbanização que resultou da
industrialização capitalista facilitou a formação de comunidades baseadas em
sexualidades e ‘estilos de vida’, como muitos sociólogos atuais se referem a subculturas.
As grandes cidades criadas pela industrialização capitalista tornaram possível o
surgimento de subculturas ocultas, 'subterrâneas', de gays e lésbicas, tipicamente
centradas em bares, clubes e outros estabelecimentos comerciais. O constante aumento
das oportunidades de trabalho também diminuíram a importância da família tradicional,
dando certa independência econômica aos sujeitos produtivos que, assim, sentiam-se
mais ‘livres’, criando pelo menos a possibilidade de práticas e identidades sexuais mais
fluídas.

Considerações finais

É fato que houve em determinado momento um abandono das abordagens marxistas


em relação aos movimentos sociais contemporâneos devido ao aumento de sua
complexidade, gerando mesmo uma necessidade da tentativa de criação de uma
tipologia classista desses movimentos, conforme Machado (2017). Mas aparentemente,
esse abandono deveu-se, em grande parte, à crença de que os chamados ‘novos
movimentos sociais’ não eram moldados de nenhuma forma pelo capitalismo, que
seriam descolados dessa forma de abordagem por terem suas reivindicações atadas a
outras emergências que não as de forma econômica, mas, geralmente, de identidades
coletivas.
A análise anterior do movimento LGBT sugere que mesmo 'novos movimentos
sociais' que não são de classe nem se preocupam centralmente com questões
econômicas ou 'materialistas' podem ser poderosamente moldados pelo capitalismo de
várias maneiras distintas. Nossa conclusão mais geral é que o campo acadêmico dos
estudos do movimento social pagou um preço teórico pesado e desnecessário por sua
recente negligência do capitalismo e da economia política marxista. Identificamos
vários processos causais muito importantes - diretos e indiretos, de curto e longo prazo -
que agora são rotineiramente ignorados pelos estudiosos do movimento, que tenderam,
nos últimos anos, a se concentrar exclusivamente nas causas imediatas da ação coletiva,
especialmente mudando oportunidades políticas e enquadramento estratégico por líderes
de movimentos sociais. Uma maior atenção aos mecanismos causais associados à
dinâmica do capitalismo global, sem dúvida, melhorará a qualidade de muitas análises
atuais dos movimentos sociais - incluindo a análise de mudanças de oportunidades
políticas e o enquadramento estratégico. Em suma, é hora de trazer o capitalismo de
volta aos estudos de movimentos sociais. E, sim, o marxismo pode explicar os
movimentos sociais.

Referências

CALLINICOS, Alex. Capitalismo e racismo. Disponível em:


<http://www.iesc.ufrj.br/cursos/saudepopnegra/ALEX%20>. Acesso em 11 dez. 2019.

GALVÃO, Andreia. Marxismo e movimentos sociais in: Crítica Marxista, n.32, p.107-
126:Unicamp, 2011.

GOHN, Maria da Glória. Teorias dos movimentos sociais: Paradigmas Clássicos e


Contemporâneos. São Paulo:
Edições Loyola, 2002.

MACHADO, Eliel. Notas para uma tipologia classista dos “movimentos sociais”. 2017.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Edição eletrônica: Ed.


Ridendo Castigat Mores, 1999.
Disponível em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/manifestocomunista.pdf>.
Acesso em: 10 dez. 2019.

POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Livraria Martins
Fontes Editora, 1977.

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