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DA ARTE DE CONVERSAR – Montaigne


Posted By Michel de Montaigne On 13/abril/2008 @ 3:41 pm In Biblioteca, Filosofia Moderna e Renascimento,
Montaigne | 1 Comment

Michel de Montaigne
DA ARTE DE CONVERSAR
(Liv. III, cap. VIII)

Trad. de J. M. de Toledo Malta


Fonte: Livraria José Olympio Editora.

É um costume da nossa justiça condenar alguns para


escarmento dos outros. Condená-los porque
delinqüiram, seria asneira, como diz Platão, pois o que
está feito não pôde ser desfeito; condenam-se, porém, a
fim de não delinqüirem mais do mesmo jeito, ou de que
se evite o exemplo da sua culpa. Não se corrige aquele
que é enforcado, corrigem-se os outros, por meio dele.
O mesmo faço eu. Os meus erros já são quase naturais e
incorrigíveis; mas, quanto os homens exemplares são
úteis ao público fazendo-se imitar, eu o serei talvez
fazendo-me refugar:

Nonne vides Albi ut inale vivat filius? utque Barrus inops? Magnum documentum, ne patríam rem Perdere quis
velit 1164

Publicando eu e acusando as minhas imperfeições, alguém há de aprender a temê-las. As partes que eu mais
estimo em mim, tiram mais honra de me acusar que de me recomendar; eis porque aí é que eu recaio e me
detenho com mais freqüência. Mas, no final das contas, nunca se fala de si sem dano: as condenações em boca
própria são sempre acreditadas; os louvores, desacreditados.

1164 – Horácio. Sat., I, 4, 109. (Não vês como vive mal o filho de Albius, e como Barrus caiu na miséria?!
Magnífico exemplo, para que ninguém deseje dissipar seu patrimônio.)

Alguns pode haver, por temperamento, tais como eu, que melhor me instruo por contraste que por exemplo, e
melhor fugindo que seguindo. Ensinança deste gênero tinha em vista o velho Catão, onde diz que os sábios têm
mais que aprender dos loucos do que os loucos dos sábios; e também aquele antigo tocador de lira, como conta
Pausânias, que tinha por costume obrigar seus discípulos a Irem ouvir um mau tangedor, que morava em frente
dele, e assim aprendessem a odiar suas dissonâncias e seus com passos errados. O horror da crueldade me
repele para o lado da clemência mais que nenhum modelo de clemência me poderia atrair. Um bom cavaleiro
não endireita a minha posição tanto como o faz um procurador ou um veneziano a cavalo; e uma ruim forma de
linguagem melhora mais a minha do que o faria a boa. Todos os dias o aspecto atoleimado de algum outro me
adverte e previne. As coisas que irritam despertam e tocam melhor que as coisas que agradam. Este tempo não
é próprio para nos emendar a não ser ao revés, por desconveniência mais que por concordância, por diferença
mais que por semelhança. Já que raramente aprendo pelos bons exemplos, aproveito-me dos maus, cuja lição é
ordinária: tenho-me esforçado por me tornar agradável quanto mais maçadores encontro, tão firme como os
vejo frouxos, tão doce como os vejo azedos, e tão bom como os vejo maus.

O mais proveitoso e natural exercício do nosso espírito é, a meu ver, a conversação. Acho mais doce o seu uso
que o de nenhuma outra ação da nossa vida; e esta é a razão pela qual, se eu aurora fosse forçado a escolher,
antes eu consentiria, acredito-o, em perder a vista que o ouvido ou a fala. Os atenienses, e ainda os romanos
mantinham esta exercício em grande honra em suas academias. Os italianos em o nosso tempo conservam disso
alguns vestígios, com grande proveito próprio, conforme se nota pela comparação dos entendimentos nossos
com os deles. O estudo dos livros é um movimento vagaroso e frouxo, que hão aquece: enquanto que s
conversação ensina e exercita a um tempo. Se eu converso com um espírito forte e um rijo campeador, ele me
aperta as ilhargas, me lanceia a destra e à sinestra, suas imaginações desfraldam as minhas. A rivalidade, a
glória, 1165 a contenda, impelem-me e realçam-me acima de mim, mesmo; e o uníssono é qualidade
inteiramente enfadonha na conversação.

1165 – A ambição da glória (N. do T.)

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Assim como o nosso espírito se fortifica pela comunicação com espíritos vigorosos e disciplinados, não se pode
imaginar quanto perde pelo contínuo comércio e trato que temos com os espíritos inferiores e malsãos: não há
contágio que se propague como esse. Desse trato eu sei, por bastante experiência, quanto vale o côvado. Gosto
de debater e discutir, mas isso com poucos homens e para mim; pois servir de espetáculo aos grandes e fazer
gala de seu espírito e de sua parolice, acho que é um mister mui desairoso para um homem de honra.

A tolice é uma qualidade ruim; mas, não poder suportá-la, e enfadar-se e moer-se por sua causa, como a mim
acontece, é uma outra espécie de enfermidade que pouco fica a dever à tolice em importunidade: e é isso que
ao presente eu quero acusar da minha parte. Entro em conversação e em disputa com grande liberdade e
facilidade, porquanto a opinião acha em mim terreno impróprio para penetrar e deitar fundas raízes. Nenhuma
proposição me espanta, nenhuma crença me irrita, por mais contrária que seja à minha: não há fantasia, por
mais extravagante, que não me pareça condizente com a produção do espírito humano. Nós outros, que
privamos o nosso juízo do direito de lavrar arestos, consideramos complacentemente as opiniões diversas; e, se
não lhes aplicamos a inteligência, facilmente lhes aplicamos os ouvidos. Quando está vazio de todo um dos
pratos da balança, deixo vacilar o outro, embora ao peso dos desvarios de uma velha: e parece-me ser
desculpável se eu antes escolho o número ímpar; a .quinta-feira antes que a sexta; Se prefiro ser o duodécimo
ou o décimo quarto à mesa a ser o décimo terceiro; se vejo com,mais gosto uma lebre costeando que
atravessando o meu caminho quando viajo, e se dou primeiro o pé esquerdo e não O direito a calçar. Todas
essas quimeras, que são acreditadas ao redor de nós, merecem ao menos ser ouvidas: elas para mim, não
operam senão a vacuidade,1166 em todo caso a superam. Ainda assim, pelo que pesam, as opiniões vulgares e
fortuitas são na natureza coisa diferente do nada; e quem até lá não se deixa levar, cai talvez no vício da
teimosia para evitar o da superstição. Assim pois as contradições de juízos não me ofendem nem me alteram:
apenas me despertam e me exercitam. Nós refugamos as correções: para isso nos deveríamos apresentar e
oferecer, particularmente quando nos chegam por via de conversação, não de magistério. A cada objeção, não
procuramos ver se ela é justa, mas de que modo, a torto ou a direito, a refutaremos: em vez de lhe
estendermos os braços, lhe estendemos as garras. Eu suportaria ser rudemente rebatido por meus amigos: "És
um tolo, estás sonhando." Agrada-me, entre bons cavalheiro,1166:, que todos se exprimam corajosamente, que
vão as palavras aonde vai o pensamento. Cumpre nos munir e endurecer os ouvidos contra essa ternura do tom
cerimonioso das palavras. Gosto de uma sociedade e familiaridade forte o viril, de uma amizade que se compraz
na aspereza e no vigor do seu comércio, como o amor nas mordeduras e arranhaduras sangrentas. Não será
vigorosa e generoso bastante se não for querelante, se for civilizada e artista, se temer os choques e se tiver
tolhidos os seus passos!

Neque enim disputari sine reprehensione potest. 1167

1166 – Segundo a imagem da concha vazia da balança, (N. do T.)


1167 — Cícero, De finibus, I, 8. (Pois não é possível discutir sem contradizer.)

Quando alguém me contesta, desperta a minha atenção, não a minha cólera: dirijo-me para quem me contradiz,
para quem me instrui. A causa da verdade deveria ser a causa comum de nós ambos. Que vai ele responder? A
paixão da ira vã lhe feriu o entendimento; dele se apoderou a turvação antes da razão. Seria útil que se
ajustasse por aposta a decisão das nossas disputas; que houvesse uma prova material das nossas perdas, a fim
de que as levássemos em conta, e que o meu criado me pudesse dizer: "O ano passado, custou a Vossa Mercê
cem escudos por ter sido vinte vezes ignorante e teimoso."

Eu festejo e acaricio a verdade, qualquer que seja a mão onde eu a encontre, e a ela me rendo alegremente e
lhe entrego minhas armas vencidas, assim que de longe a vejo aproximar-se. E, contanto que não me tratem
com uma catadura imperiosa e catedrática, ponho ombros às repreensões que se fazem aos meus escritos; e
muitas vezes os tenho alterado, mais em razão de civilidade que em razão de aperfeiçoamento: pois gosto de
agradecer e alimentar a liberdade de me advertirem pela facilidade com que cedo: ainda que à minha custa.
Todavia é penoso, com toda a certeza, atrair a isso os homens do meu tempo: falta-lhes a coragem de corrigir,
porque lhes falta a de suportar que os corrijam, e elos falam sempre com dissimulação na presença Uns dos
outros. Tão grande é o prazer que eu sinto em ser julgado e conhecido que me 6 quase indiferente qualquer das
duas formas pela qual eu o seja. Tantos vezes a minha imaginação a si própria se contradiz e se condena, que
tanto se me dá que algum outro me faça o mesmo: visto, principalmente, que eu não dou à sua censura senão a
autoridade que bem quero. Mas corto conversa com quem quer que segure as rédeas tão alto, como alguém que
eu conheço, que se doa da sua advertência, se não lhe damos crédito, e se dê por injuriado se nos repugna
segui-la. Por isso que Sócrates acolhia sempre risonho as contradições que se opunham aos seus discursos,
poder-se-ia dizer que causa disso era a sua força, e que, devendo a vantagem cair certamente do seu lado, ele
as aceitava como motivo de nova glória; mas nós, ao contrário, mostramos que nada nos torna tão melindrosos
para senti-las como a opinião da nossa preeminência e o nosso desdém pelo adversário; o daí, segundo a razão,
que cabe antes do fraco aceitar de bom grado as objeções que o retificam e reajustam. Eu, na verdade, procuro
mais a frequentação dos que me escarmentam que a dos que me temem. É um prazer insípido tratar com
pessoas que nos admirem e nos abram alas. Antístenes ordenou a seus filhos que jamais agradecessem nem
retribuíssem a ninguém que os elogiasse. Sinto-me bem mais ufano da vitória que sobre mim mesmo eu ganho,
quando em pleno ardor do combate resolvo curvar-me sob a força das razões do meu adversário, do que me

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sinto satisfeito com a vitória que por sua fraqueza eu ganho contra ele.

Eu, enfim, recebo e confesso todas as espécies de golpes que me atingem às direitas, por fracos que sejam, mas
muito dificilmente suporto os que se dão fora das regras. Pouco me importa a matéria, e para mim as opiniões
se equivalem e a vitória da tese me é quase indiferente. Um dia inteiro eu discutirei pacatamente, se a condução
do debate prosseguir com ordem. O que eu peço não é tanto a força e a sutileza, como a ordem: a ordem que se
vê todos os dias nas altercações dos pastores e dos meninos de oficina, jamais entre nós. Se eles se desmandam
é por incivilidade; como o fazemos também. Mas a atrapalhação e a impaciência deles não os desviam do seu
tema: o debate segue seu curso. Se um toma a vez do outro, se nenhum espera seu turno, ao menos lá se
entendem. Para mim, sempre responde muito bem quem responde a propósito; mas, quando a discussão é
confusa e desregrada, eu abandono a substância e apego-me a forma com enfado e sem comedimento, e
atiro-me a uma maneira de discutir cabeçuda, maliciosa e imperiosa, da qual tenho que corar depois. É
impossível conversar de boa-fé com um tolo: não é só o meu juízo o que se corrompe nas mãos de um dono tão
impetuoso, (1168) mas a minha consciência também.

1168 – O próprio Montaigne que se acusa do defeito de não poder suportar a tolice do interlocutor. (N. do T.)

Essas nossas disputas deveriam ser interditas e punidas como outros crimes verbais. Quanto vício elas não
despertam e amontoam, sempre regidas e comandadas pela cólera! Entramos em inimizade, primeiramente
contra as razões, e depois contra os homens. Não aprendemos a discutir a não ser para contradizer, e, como
cada qual contradiz e é contradito, resulta que o proveito da discussão é perder e aniquilar a verdade. Por isso
Platão, em sua República, proíbe esse exercício aos espíritos ineptos e malnascidos.

De que serve pôr-se a caminho em busca do "que é"1169 com alguém cujo passo e cujo andar nada valem? Não
se faz dano ao assunto quando o abandonamos para ver se há meio de o tratar; não digo meio escolástico e
artificial, digo meio natural, de um são entendimento. Que haverá enfim? — Um vai para o oriente, o outro para
o ocidente; todos perdem o principal, e o esquivam, no acervo dos acessórios. Ao cabo de uma hora de
tempestade, nenhum sabe mais o que procura; um deu baixo, outro alto, outro de lado1170 Este agarra-se a
uma palavra, a uma analogia; aquele não ouve mais o que lhe objetam, tão absorto está na própria corrida; e
pensa em seguir a si mesmo, não a outrem. Este, por se achar fraco de lombos, tudo teme, refuga tudo,
atrapalha-se desde a entrada e confunde o assunto; ou, no afã do debate, amua-se para se meter de todo nas
encolhas: afetando, por uma ignorância despeitada, um orgulhoso desprezo, ou uma renúncia parvamente
modesta à peleja. A este outro, contanto que ele golpeie, não se lhe dá quanto se expõe. Um deles conta e pesa
as suas palavras, à guisa de razões. Aquele não emprega na lide senão a vantagem da própria voz e dos
próprios pulmões. Um lá está, que conclui contra si mesmo; e aqui um, que nos azoina com prefácios e
digressões inúteis. Esse outro arma-se de meras injúrias o procura uma, briga de Alemanha,1171 para se
desfazer da sociedade e conversação de um espírito que vexa o seu. Este último nada enxerga na razão, mas
nos mantém cercados pela estrutura dialética das suas cláusulas e pelas fórmulas da sua arte.1172

1169 Da verdade. (N. do T.)


1170 Imagem de tiro ao alvo. (N. do T.)
1171 Briga sem fundamento. (N. do t.)

Ora, quem não entra a desconfiar das ciências, e não fica em dúvida se delas se pode tirar algum proveito para
os misteres da vida, quando se considera o uso que delas fazemos, nihil sanantibus litteris Quem já se proveu de
entendimento na lógica? onde estão as suas belas promessas? Nec ad melius vivendum, nec ad commodius
disserendum1174 . Nota-se, porventura, maior salgalhada na charla das peixeiras que nas disputas públicas dos
homens dessa profissão? Eu preferiria que um filho meu aprendesse a falar antes nas tavernas que nas escolas
do palavreado. Tome-se um Mestre em Artes,1175 converse-se com ele: por que não nos faz ele sentir essa
excelência artificial,1176 e não arrebata as mulheres e os ignorantes, como nós outros somos, pela admiração da
firmeza das suas razões e da beleza da sua ordem? por que não nos domina e persuade como quer? Um homem
tão avantajado em matéria e em método, por que há de misturar à sua esgrima as injúrias, o descomedimento
e a ira? Dispa-se do seu capelo, da sua beca e do seu latim; deixe-se de nos martelar os ouvidos com Aristóteles
nú e cru, que todos o tomarão por um qualquer de nós, ou pior. Nessa complicação e entrançadura de
linguagem, com que eles nos enleiam, parece-me dar-se o mesmo que no passe-passe dos prestímanos: a
destreza deles combate e força os nossos sentidos, mas de maneira alguma abalam a nossa convicção. Afora
essa truanice, eles nada fazem que não seja ordinário e vil: apesar de serem sábios, nem por isso são menos
ineptos.

1172 — Profissão liberal. (N. do T.)

1173 — Séneca, Epíst., 59. (Dessas letras que nada remedeiam.)

1174 — Cícero, De finibus, I, 19. (Nem para melhor vida, nem para raciocinar melhor.)

1175 — Diplomado em Humanidades e Filosofia. (N. do T.) I

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1176 — Superioridade devida ao título de Mestre em Artes. (N. do T.)

Eu prezo e honro o saber tanto como os que o possuem; e, no seu verdadeiro uso, é a mais nobre e poderosa
aquisição dos homens. Mas nesses tais (e há desse gênero um número infinito) que nisso estabelecem a sua
capacidade e o seu valor fundamentais, que submetem o próprio entendimento à memória, sub aliena umbra
latentes,1177 que nada podem sem livro, eu o odeio, se o ouso dizer, um pouco mais que à estultice. No meu
país e no meu tempo, o saber conserta bastante as bolsas, raramente as almas. Se as encontra rombas,
oprime-as e as sufoca, massa crua e Indigesta; se agudas, prazenteiramente as apura, as clarifica e subtiliza até
o exaurimento. É coisa de qualidade quase indiferente: utilíssimo acessório para uma alma bem-nascida; para
uma outra alma, pernicioso e nocivo; ou antes, coisa de muito precioso emprego que não se deixa possuir por
preço vil: nas mãos de um, é certo; na de outro, é maromba. Mas, continuemos.

Que maior vitória esperas, que a de mostrar ao teu adversário que ele não pode bater-se contigo? Quando
ganhas a vantagem da tua proposição, é a verdade que ganha; quando ganhas a vantagem da ordem e do
método, és tu quem ganha. Sou de opinião que Sócrates disputa, em Platão e em Xenofonte, mais em favor dos
disputantes que em favor da disputa; e para ensinar Eutidemos e Protágoras a conhecerem mais o próprio
despropósito que o despropósito da própria arte. O primeiro assunto, ele o empunha como quem se propõe um
fim mais útil que elucidá-lo, a saber, elucidar os espíritos que toma para manejar e exercitar. O movimento e a
caçada são propriamente o que caçamos: não somos desculpáveis se a praticamos mal e desafinadamente
quanto a falhar a presa, isso é outra questão. Pois fomos criados para procurar a verdade: pertence possuí-la a
um mais alto poder. Ela não está, como dizia Demóstenes, escondida no fundo dos abismos, mas antes
alcandorado em altura infinita no conhecimento divino. O mundo não é mais que uma escola de pesquisa. Não
importa quem as enfiará,1178 mas quem fará as mais belas corridas. Figurar de tolo. tanto pode quem diz o
certo como quem diz o errado: pois tratamos da maneira, não da matéria do que se diz. É da minha índole olhar
tanto para a forma como para a substância, tanto para o advogado como para a causa, conforme Alcibíades
mandava que se fizesse. E todos os dias me entretenho em ler em autores, sem cuidar da sua ciência,
procurando neles a maneira, não o assunto; como outrossim reqüesto a comunicação com algum espírito
famoso, não para que ele me ensine, mas para que eu o conheça.

1177 — Sêneca Epist.., 33. (Que se escondem à sombra de outrem..)

Qualquer pessoa pode falar veridicamente; falar, porém, com ordem, com sabedoria e idoneidade, poucas
pessoas o podem. Assim sendo, a falsidade que provém de ignorância não me irrita, mas sim a inépcia. Tenho
cortado vários tratos que me eram úteis, devido ao despropósito das contestações daqueles com quem eu
tratava. Nem uma vez por ano eu me agasto devido às faltas daquele;: sobre os quais eu tenho poder; mas
sobre o ponto da parvoíce e teimosia das suas alegações, desculpas e defesas, asnáticas e bestiais, estamos
todos os dias a nos engalfinhar. Eles não entendem nem o que se diz, nem porque, e assim mesmo respondem:
ç de desesperar. Eu não sinto chocar-se duramente a minha cabeça a não ser contra uma outra cabeça, e mais
facilmente me avenho com o vício da minha gente que com a sua temeridade, a sua importunidade e a sua
tolice. Vá que façam menos, contanto que sejam capazes de o fazer: vivesse na esperança de lhes animar a
vontade. Mas de um toco, não há nem que esperar nem que fruir nada que preste.

1178 — Imagem tirada do jogo das argolinhas, nas cavalhadas. (N. do T.)

Que dizer, porém, se eu tomo as coisas diferentemente do que elas são? — Pode ser; e por esse motivo eu
acuso a minha intolerância, o, esta, eu julgo primeiramte ser tão viciosa em quem esteja certo como em quem
esteja errado: pois é sempre uma acrimônia tirânica não poder suportar uma

forma diversa da própria; e em seguida eu julgo que não há disparate maior, e mais frequente, que espantar-se
e irritar-se com os disparates do mundo; nem mais heteróclito. Pois tal intolerância nos agasta principalmente
quando é contra nós; e, a esse filósofo1179 do tempo passado, nunca teria faltado razão para chorar enquanto a
si próprio se considerasse. Mison, um dos sete sábios, de temperamento timoniano e democritiano, 1180
interrogado por que se ria sozinho, respondeu: "Justamente porque me rio sozinho." Quantas tolices eu não digo
o respondo todos os dias, segundo o sei eu! E, pois, naturalmente, quão mais frequentes segundo os outros! Se
eu por isso me mordo os beiços, que não devem fazer esses outros? É necessário, em suma, viver entre os
vivos, e deixar que o rio corra por baixo da ponte sem nos inquietarmos, ou, pelo mínimo, sem nos alterarmos.
Vá lá, mas por que encontramos, então, sem nos agastarmos, alguém que tenha um corpo torto e mal
composto, e não podemos suportar o encontro de um espírito mal ordenado sem nos possuirmos de cólera? Essa
viciosa acrimônia prende-se mais ao juiz do que ao delito. Tenhamos sempre na boca este dito de Platão: "O que
mal são me parece, não será por eu mesmo ser malsão? Não estarei eu mesmo cm culpa? Não poderá a minha
advertência voltar-se contra mim?" Sábio e divino refrão que fustiga o mais universal e comum dos erros
humanos! Não somente os reproches que lançamos uns aos outro::, ma;; as nossa.1 ; razões também e os
nossos argumento;; em matérias controversas são ordinariamente reversíveis contra nós, e nos traspassamos
com as nossas armas: do que me deixou a antiguidade assaz graves exemplo. Bem o disse engenhosamente e
muito a propósito quem isto inventou:

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Stercus cuique suum bene olet1181

1179 — Heraclito. — Veja-se o Ensaio J-. do livro I, (N. do T.)

1180 — Propenso à misantropia como Timão de Atenas, e a rir-se como Demócrito da estultice humana.
Veja-se o Ensaio L. do Livro I. (N. do T.)

Nossos olhos nada vêem para trás; cem vezes por dia zombamos de nós mesmos a respeito do nosso próximo e
detestamos em outros os defeitos que mais claramente em nós se encontram, e deles nos espantamos com
maravilhosa impudência e inadvertência. Tive ensejo ainda ontem de ver um homem de entendimento, e pessoa
fidalga, a chasquear (ao chistosa como justamente de um outro que martela os miolos de todo o mundo com as
suas alianças e genealogias, em mais da metade falsas (que com mais gosto se atiram a tão parvos assuntos
esses tais cujas prendas são mais duvidosas e menos seguras); e ele, se sobre si se houvesse retraído, ter-se-ia
achado pouco menos intemperante e fastidioso em propalar e alardear as prerrogativas da linhagem de sua
esposa, ó importuna presunção do que a mulher se vê munida pelas mãos do próprio marido! Se eles
entendessem latim, seria preciso dizer-lhes:

Age! Si hoec non Insanít satis sua sponte,instiga1182

Não pretendo que ninguém acuso, menos quem esteja limpo; que então ninguém acusaria; nem sequer limpo da
mesma espécie de culpa. Pretendo, porém, que o nosso julgamento, enquanto pesa sobre um outro do qual
entrementes se trata, não nos exima de uma interna jurisdição. Obra do caridade é que alguém que não pode
suprimir um vício em si procuro apesar disso suprimi-lo em outrem, onde pode ter menos maligna e monos
obstinada semente. Nem me parece resposta oportuna a quem mo adverte de meu erro, dizer que nele também
o mesmo erro está. E daí, que mais? — Sempre a advertência é veraz e útil. Se (tivéssemos bom nariz, a nossa
imundice nos deveria feder ainda mais, justamente por ser nossa; e é de Sócrates esta opinião, que se alguém
se achasse culpado, juntamente com um filho e um estranho, de alguma violência ou iniquidade, deveria, para
se purgarem, começar por si a oferecer-se à condenação da justiça e implorar1183 o auxílio da mão do carrasco,
em segundo lugar para o filho e em último para o estranho. Se este preceito assume um tom um tanto alto
demais, deve ao menos ser o primeiro a apresentar-se para a punição da própria consciência.

1181 — Erasmo, Adágios, III, 4, 2. (O esterco de cada um cheira bem ao .seu dono.) (N. do T.)

1182 — Terêncio, Andrienna, IV, 2, 9.. (Eia! Se ela por si mesma não é bastante louca, excita-lhe a loucura.)

Os sentidos são os nossos próprios e primeiros juízes, que não percebem as coisas a não ser pelos acidentes
externos; e não é maravilha se, em todas as partes do serviço da nossa sociedade, há uma tão perpétua e
universal mistura de cerimônia e aparências superficiais; a tal ponto que a melhor e a mais efetiva parcela das
polícias1184 consiste nisso. É sempre com o homem que temos que tratar, cuja condição é maravilhosamente
corporal; Não se espantem esses 1185 que nos quiseram fabricar, estes anos passados, um exercício religioso
tão contemplativo e imaterial, se houver entre eles quem pense que a religião se lhes teria escapado e derretido
entre os dedos, não fosse ela sustentada entre nós como marca, título e instrumento de discórdia e divisão, mais
que por si mesma. Assim também na conversação: a gravidade, a toga e a fortuna de quem fala dão muitas
vezes valia a ditos vãos e ineptos; não é de presumir-se que um Senhor tão cortejado, tão temido, não tenha
por dentro alguma capacidade diversa da vulgar, e que um homem a quem se dão tantas comissões e tantos
cargos, tão desdenhoso e tão soberbo, não seja mais hábil que esse outro que de tão longe o cumprimenta e ao
qual ninguém dá emprego. Não só as palavras, mas também os esgares de tais pessoas, se consideram e se
levam em conta, empenhando-se cada qual em lhes dar alguma bela e sólida interpretação. Quando se abaixam
até a conversação comum, e se outra coisa lhes oferecemos que não seja aprovação e reverência, eles nos
maçam com a autoridade da própria experiência: que ouviram, que viram, que fizeram; enfartam-nos de
exemplos. Eu gostaria de lhes dizer que o fruto da experiência de um cirurgião não é a história das suas práticas,
nem a lembrança de ter curado quatro empestados e três gotosos, se algo desse exercício ele não souber tirar
com que forme o seu juízo, e não nos souber incutir que se tornou com isso mais sábio no emprego da sua arte:
tal como, em um concerto de instrumentos, não se ouve um alaúde, uma espineta e a flauta; ouve-se uma
harmonia em globo, combinação e fruto de toda essa ceongérie. Se as viagens e os cargos os aperfeiçoaram,
cabe à produção do entendimento deles torná-lo aparente. Não basta contar as experiências: cumpre pesá-las e
combiná-las, e cumpre tê-las digerido e destilado para delas tirar as razões e conclusões que comportam. Não
houve jamais tantos historiadores. Sempre é bom e útil ouvi-los, pois eles nos fornecem carradas de belas e
louváveis instruções do armazém das suas memórias; grande parte, certamente, para auxílio da vida. Mas não é
isso, por ora, o que nós indagamos: indagamos se esses próprios narradores e arrecadadores são louváveis
também.

1183 – Subentenda-se "em primeiro lugar para si." (N. do T.)


1184 – Normas do governo; ou talvez também, regras de urbanidade. (N. do T)

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1185 – Os produtores da Reforma Protestante. (N. do T.)

Odeio toda sorte de tirania, tanto em palavras como em fatos. Gosto de me retesar contra essas vãs
circunstâncias que nos iludem o julgamento pelos sentidos; e, pondo-me à espreita dessas grandezas
extraordinárias, descobri que não passam, quase em tudo, de homem como os outros:

Rarus enim ferme sensus communis in illa Fortuna. 1186

1186 — Juvenal, VIII, 73. (O senso comum é, com efeito, bastante raro em tão alta fortuna.)

Talvez até os avaliemos e percebamos menores do que são, porquanto empreendem mais e se mostram mais:
eles não correspondem ao fardo que tomaram. Ê preciso que haja mais vigor e poder no carregador que na
carga. Quem não completou a sua força deixa-nos adivinhar se ainda tem força para mais, ou se foi provado até
seu último ponto; quem sucumbe à própria carga revela a sua medida e a fraqueza dos seus ombros. Eis porque
tantas almas inaptas se vêem entre os sábios, e mais que outras: deles se teriam feito bons serviçais
domésticos, bons negociantes, bons artesãos; seu vigor natural era talhado para essa proporção. Coisa de
grande peso é a ciência, debaixo do qual eles se afundam: para expor e distribuir essa nobre e poderosa
matéria, para a empregar e ajudar-se dela, não tem o engenho deles nem bastante vigor nem destreza
bastante. Só a pode alojar uma forte natureza. Ora, estas são bem raras; e as fracas, diz Sócrates, corrompem
ao manejá-la a dignidade da filosofia; a qual parece tão inútil como viciosa quando está mal estojada. Eis aí
como eles se estragam e se atoleimam, tais como aquele macaco que um. menino, por gracejo, vestiu de um
precioso pano de seda, deixando-lhe nuas, porém, as nádegas e as costas, e assim o expõe à derrisão dos
convivas. 1187 A esses, igualmente, que nos regem e governam, que sustem o mundo na mão, não basta possuir
um entendimento comum, poder o que nós podemos; muito longe abaixo estarão eles de nós, se muito longe
não estiverem acima: assim como prometem mais, também devem dar mais. E o silêncio, por conseguinte, é
para eles não somente atitude de respeito e gravidade, mas ainda muitas vezes, de proveito e economia: pois,
tendo ido Megabyzus visitar Apeles em sua oficina, ficou muito tempo sem dizer palavra e depois começou a
discorrer sobre as suas obras, pelo que recebeu esta severa reprimenda: "Enquanto guardaste silêncio, parecias
alguma grande coisa por causa dos teus colares e da tua pompa; mas agora que te ouvimos falar, ninguém mais
há, nem os moços do meu serviço, que não te despreze." Aqueles magníficos atavios, aquele grande aparato,
não lhe permitiam ser ignorante de uma ignorância plebeia, nem falar disparatadamente sobre a pintura:
cumpria-lhe manter, mudo, essa externa e presuntiva suficiência. A quantas almas estultas, um semblante frio e
taciturno não tem servido, no meu tempo, de título de sabedoria e de capacidade!

1187
– Claudiano, in Eutrop., I,, 303 806 Montaigne

As dignidades, os cargos, dão-se necessariamente mais por


fortuna que por mérito; e faz-se muitas vezes a injustiça de o
imputar aos reis. Eles, ao contrário, é de maravilhar que
tenham nisso tanta sorte, quando aí têm tão pouco acesso:

Principis est virtus máxima nosse suos; 1188

1188 — Marcial, VIII, 15. (O mais alto mérito de um príncipe é


conhecer os seus homens.)

pois a natureza não os dotou de vista que possa estender-se a


tantos povos, para discernir a preexistência e penetrarnos os
peitos, onde mora o conhecimento da nossa vontade e do
nosso melhor valor. Eles nos escolhem por conjetura e às CalorDoAMor.com Anúncios Google
apalpadelas, pela linhagem, pelas riquezas, pela ciência, pela
voz do povo: fraquíssimos argumentos. Quem pudesse achar meio de o decidir pela justiça, e de escolher os
homens pela razão, estabeleceria só com essa traça uma perfeita forma de governo.

"Sim, mas ele conduziu com êxito essa grande questão." Isso é dizer alguma coisa, mas não á dizer o bastante:
pois é justamente aceita esta sentença, "que os alvitres não se devem julgar pelos sucessos." Os cartagineses
puniam as más decisões dos seus capitães, embora fossem corrigidas por um desfecho feliz, e o povo romano
muitas vezes recusou o triunfo a grandes e utilíssimas vitórias porque o procedimento do chefe não correspondia
à sua ventura. Nota-se ordinariamente nas ações do mundo que a Fortuna, para nos ensinar quanto ela pode em
todas as coisas, e se apraz em humilhar a nossa presunção, já que não pôde transformar em sábios os inábeis,
então os faz venturosos, em desafio à virtude; e gosta de se ingerir a favor dos cometimentos em que a trama é
mais puramente sua. Donde se vê todos os dias que os mais simples dentre nós levam a cabo mui grandes
tarefas, ou públicas ou privadas. E, como respondeu Siramnes da Pérsia aos que se espantavam de sucederem
tão mal os seus negócios, visto que seus propósitos eram tão sábios, "que dos seus propósitos só ele era senhor,
mas do sucesso dos seus negócios o era a fortuna", assim estes podem responder também, mas em sentido
contrário. As coisas, na maior parte, fazem-se por si mesmas:

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Fala viam inveniunt.1189

1189 — Virgílio, Eneida, III, 395. (Os fados abrem seu caminho.)

O êxito autoriza muitas vezes uma ineptíssima conduta. A nossa intromissão quase não é senão rotina, e mais
comumente consideração de uso e de exemplo que de razão. Espantado outrora da grandeza do negócio, eu vim
a saber dos que o tinham levado a cabo os motivos e a destreza deles: não achei no feito senão alvitres
vulgares; e os mais vulgares e usuais são também talvez os mais seguros e mais cómodos para a prática,
quando não para a mostra. Como assim? — Se as mais reles razões são as mais assentes, se as mais baixas e
frouxas, e as mais corriqueiras melhor se ajustam aos negócios! Para conservar a autoridade do conselho dos
reis não se requer que as pessoas profanas dele participem nem tenham vista mais ao pé que da primeira porta:
aquilo tem que ser venerado a crédito e por atacado, se lhe querem sustentar a reputação. A minha examinação
bosqueja um pouco a matéria e a considera ligeiramente por seus primeiros aspectos; o forte e o principal da
tarefa, tenho por costume remetê-lo ao céu:

Permitte divis coetera1190

A ventura e a desventura são, a meu ver, dois soberanos poderes. É imprudência1191 julgar que a humana
prudência possa preencher o papel da fortuna; e vã é a empresa de quem presume abranger causas e
consequências e conduzir pela mão o andamento do seu caso; vã, sobretudo, nas deliberações guerreiras. Não
houve nunca mais circunspecção e prudência militar do que se vê entre nós às vezes: será que eles receiam ir-se
com a breca no caminho, reservando-se para a catástrofe 1192 desse jogo? Digo mais, que a própria sabedoria e
a própria consultação nossas obedecem à conduta do acaso. A minha vontade e a minha reflexão agitam-se ora
de um jeito, ora de um outro, e há diversos desses movimentos que se governam sem mim. A minha razão tem
impulsos e agitações diárias e casuais. As disposições do espírito mudam-se incessantemente: ora uma paixão o
impele, ora o arrasta urna outra, como as nuvens dispersadas pelo vento .1193 Observe-se nas cidades quais são
os mais poderosos, e que melhor exercem seus misteres: achar-se-á ordinariamente que são esses os menos
hábeis. Tem cabido às mulherezinhas, aos meninos e aos insensatos comandar grandes estados, tão bem como
os mais capazes dos príncipes: e nisso, diz Tucídides, mais ordinariamente se saem bem os grosseiros que os
subtis. Nós atribuímos à prudência dêles os efeitos de sua boa fortuna. Um homem somente se eleva quando a
fortuna o favorece, e desde que se elevou todos nós lhe apregoamos a sapiência. 1194 Pelo que bem o digo eu,
em todos os modos, que os sucessos são magros testemunhos do nosso valor e merecimento.

1190 — Horácio, Odes, I, 9, 9. (Entrega o resto aos deuses.)

1191 — Falta de prudência, no sentido latino; isto é, insensatez. (N. do T.)

1192 — Desfecho fatal, como nas tragédias do teatro grego. (N. do T.)

1193 — Virgílio, Georg., I, 420. (N. do T.)

1194 — Planto, Pseudolus, II, 3, 13. (N. do T.)

Ora estava eu neste ponto, que de mais não se precisa que ver um homem alçado em dignidade: ainda quando
três dias antes o tenhamos conhecido insignificante, verte-se insensivelmente em nossas opiniões uma imagem
de grandeza, de capacidade, e persuadimo-nos de que ele, crescendo em aparato e em valimento, cresceu no
mérito. Julgamos dele, não segundo o seu valor, mas à moda dos tentos no ábaco, segundo a prerrogativa da
sua posição. Vire também a sorte, e recaia ele e se reabsorva na turba, e com assombro todo o mundo inquire a
causa que tão alto o tinha guindado. "Será ele mesmo? — diz-se; e não sabia mais que isso, quando lá estava?
contentam-se os príncipes com tão pouco? em boas mãos estivemos, na verdade!" Isso é coisa que eu vi muitas
vezes no meu tempo; e até a máscara das grandezas, que se representa nas comédias, de algum modo nos toca
e nos ilude. O que eu mesmo adoro nos reis é a multidão dos seus adoradores. Toda reverência e submissão
lhes c devida, menos a do entendimento. Minha razão não foi ensinada a dobrar-se e vergar: foram-no os meus
joelhos. Perguntaram a Melântio que tal lhe parecia a tragédia de Dionísio: "Não a vi, disse ele; tão velada está
por eloquência." Assim também os que julgam os discursos dos grandes deveriam dizer: "Não ouvi a sua
conversa, tão velada estava por gravidade, por grandeza e por majestade." Antístenes um dia tentava persuadir
os atenienses a determinarem que os asnos fossem empregados também no lavramento das terras, como o
eram os cavalos; sobre o que lhe foi objetado que esses animais não eram de natureza para tal serviço. "Dá na
mesma, replicou ele; só lhes falta o vosso mandado; pois os homens mais ignorantes e incapazes que empregais
nos comandos das vossas guerras, não deixam de se tornar incontinenti mui dignos deles, desde que nisso os
empregais": ao que se aparenta o costume de tantos povos que canonizam o rei que fizeram dentre eles, e não
se contentam de o honrar se o não adoram. Os do México, depois de terminadas as cerimónias da sua sagração,
não se atrevem mais a encarar-lhe a face; mas ele, como se o tivessem deificado pela realeza, entre os
juramentos que o fazem prestar de manter a religião, as leis e as liberdades, de ser valente e bondoso, jura
também fazer andar o sol com a sua luz costumada, gotejarem as nuvens em tempo oportuno, correrem os rios
seus cursos, e produzir a terra todas as coisas necessárias ao seu povo.

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Eu sou avesso a essa forma comum, e mais desconfio da capacidade quando a vejo acompanhada de grandeza
de fortuna e de recomendação popular. Cumpre-nos observar quanto vale falar à sua hora, escolher seu
momento, cortar ou mudar a conversa de uma autoridade magistral, defender-se das objeções de outrem por
um aceno da cabeça, um sorriso ou um silêncio, perante uma assistência que treme de reverência e de respeito.
Um homem de monstruosa fortuna, a fim de entremeter sua opinião em certo assunto ligeiro que à sua mesa se
debatia com toda a liberdade, começou justamente assim: "Não pode ser senão um mentiroso ou ignorante
quem outra coisa disser a não ser," etc. Acompanhe-se tal agudeza filosófica, com um punhal na mão.

Eis uma outra advertência da qual eu tiro grande serventia: é que nas disputas e conversações, nem todos os
ditos que nos parecem bons devem ser incontinenti aceitos. A maior parte dos homens são ricos de uma
capacidade alheia. Pode acontecer a algum sair-se com um belo conceito, com uma boa resposta ou sentença, e
passá-la adiante sem lhe conhecer a força: que nem tudo quanto se toma emprestado se possui, talvez por mim
mesmo se poderia provar. Nem sempre então, se deve ceder, seja qual fôr a verdade ou beleza que tenha tal
resposta: é preciso ou atacá-la deveras, ou voltar atrás, a pretexto de não a entender, para tentear por todos os
lados de que jeito está ela hospedada em seu autor. 1195 Pode acontecer que nós mesmos nos espetemos 1196 e
secundemos o golpe 1197 além do seu alcance. Eu em outros tempos, no apuro e aperto do combate, empreguei
revides que abriram brecha além do que eu me1 propunha e esperava: aplicava-os somente pelo número, e
eram recebidos pelo peso. Assim como, quando discuto com um homem vigoroso, tenho prazer em antecipar
suas conclusões, poupo-lhe o trabalho de se interpretar, e tento prever seu pensamento ainda imperfeito e
nascente (pois a ordem e a justeza do seu entendimento de longe me advertem e ameaçam), eu, contra esses
outros eu faço justamente o contrário: nada se deve entender, nem tampouco pressupor, senão por meio deles.
Se eles julgam em termos gerais — "Isto é bom; aquilo não é" — e acontecer que acertem, veja-se se não foi a
fortuna quem acertou por eles. Circunscrevam e restrinjam eles um pouco a própria sentença: porque é, e como
é. Esses juízos universais, que tão ordinariamente encontro, nada dizem. Ê uma gente que cumprimenta um
povo inteiro em multidão e em turba. Os que têm nele algum real conhecimento, cumprimentam-no e o
distinguem pelo nome e em particular; mas isso é uma empresa arriscada: razão pela qual tenho visto, mais
amiúde que todos os dias, acontecer que os espíritos fracamente fundados, querendo fazer de engenhosos em
notar na leitura de alguma obra o ponto da beleza, determinam sua admiração por uma escolha tão ruim que
em lugar de nos mostrar a excelência do autor, mostram-nos sua própria ignorância. Segura é uma exclamação
como esta: — "Isto sim, é belo!" — depois de se ouvir uma página inteira de Virgílio; deste modo se salvam os
finos. Mas abalançar-se a acompanhá-lo por miúdo, e querer, por juízo expresso e distinto, notar em que um
bom autor se excede, em que ele se realça, pesando-lhe as palavras, as frases, as invenções, uma depois da
outra, livremo-nos disso. Deve-se examinar não só o que diz cada um, mas ainda o que cada um pensa, e
também por que motivo o pensa. 1199 Diariamente eu ouço, expressos por tolos, conceitos não tolos. Eles dizem
uma boa coisa: indaguemos até onde eles a conhecem, vejamos por onde eles a pegam. Nós os ajudamos a
empregar esse belo dito e essa bela razão que eles não possuem, que apenas têm sob sua guarda: tê-la-ão
avançado a esmo e às apalpadelas; somos nós que a fazemos acreditadas e prezadas: damos-lhes a mão. Com
que proveito? — Eles de maneira alguma o agradecem, e se tornam com isso mais ineptos. Não os secundemos,
deixemo-los andar: eles tratarão dessa matéria como gente que tem medo de se escaldar: não se atrevem a lhe
mudar a situação e a face, nem a aprofundá-la. Por pouco que se lhe bula, já ela lhes escapa: e no-la
abandonam, tão forte e bela como é. São belas armas, essas, mas são mal empunhadas. Quantas vezes tenho
visto essa experiência? Ora, se porventura os esclarecemos e confirmamos, eles nos agarram e nos furtam essa
vantagem da nossa interpretação: "Era o que eu queria dizer; eis aí justamente a minha concepção; se o não
exprimi assim, foi só por culpa da língua." Tomemos fôlego. É necessário empregar até a malícia para castigar
tão soberba estupidez. A opinião de Hegésias, que não se deve nem odiar nem acusar, porém instruir, tem sua
razão alhures; mas aqui, é injustiça e desumanidade auxiliar e corrigir quem não o quer para nada, e menos
vale depois. Gosto de deixar que eles se atolem e que se entalem ainda mais do que já estão, e tão fundo, se for
possível, que afinal se reconheçam.

1195 — Em quem a deu, em seu portador. (N. do T.)


1196 — Na arma do adversário. (N. do T.)
1197 — O golpe dirigido contra nós. (N. do T.)— Os que sâo "ricos de uma capacidade alheia."
1198 — Cícero, De Officiis, I, 41.

A tolice com desarranjo de juízo não é coisa curável por um gole de advertência. E de tal reparo podemos
apropriadamente dizer o que respondeu Ciro a quem com ele insistia para exortar suas hostes pouco antes de
uma batalha: "que os homens não se tornam mais corajosos e belicosos de repente por uma boa arenga, como
ninguém tampouco se torna incontinenti músico por ouvir uma boa cantiga." São aprendizados que têm de ser
feitos de antemão por longa e constante ensinança. Devemos aos nossos esse cuidado e essa assiduidade de
correção e de instrução; mas ir agora catequizar o primeiro que passa e disciplinar a ignorância ou inépcia do
primeiro que se encontra, isso é um vezo ao qual eu quero grande mal. Raramente o faço, nem ainda nas
conversas que se passam comigo, e antes prefiro largar tudo a cair nessas instruções remotas e professorais. A
minha índole não é própria para falar, não mais que para escrever, aos principiantes. Mas nas coisas que se
dizem em sociedade ou entre os outros, por mais falsas e absurdas que eu as julgue, nunca eu me meto de
permeio, nem por palavra, nem por sinal. Quanto ao mais, nada me aborrece tanto nos tolos como ver a tolice
contente de si mais do que nenhuma razão possa de si razoavelmente contentar-se. É uma desgraça que a
prudência nos proíba tal complacência e confiança em nós mesmos e nos devolva sempre descontentes e
receosos enquanto que a teimosia e a temeridade lhes enchem as hostes de regozijo e de segurança. É próprio
dos Incapazes olhar os outros homens por cima dos ombros, voltando sempre do combate cheios de glória e de

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júbilo. E essa fatuidade de linguagem, com essas, caras alegres, quase sempre lhes dá ganho à face da
assistência, que ordinariamente é fraca e incapaz de bem julgar e discernir as verdadeiras vantagens. A
obstinação ardorosa de opinião é a mais segura prova de estupidez: haverá nada certo, resoluto, desdenhoso,
contemplativo, grave, sério, como o burro?

Não poderemos, porventura, juntar ao tema da. conversação e comunicação esses cavacos picantes e Cortados
1200
que a alegria e a intimidade introduzem entre amigos, quando prazenteira e vivamente gracejam e
zombeteiam uns com os outros? exercício ao qual me torna bastante próprio a minha alegria natural; e se não é
tão puxado e sério como esse outro de que acabo de falar, nem por isso é menos agudo e engenhoso, nem
menos proveitoso, como parecia a Licurgo. Pelo que me respeita, eu levo a tais tertúlias mais liberdade que
espírito, e tenho aí mais sorte que invenção; mas sou perfeito na tolerância; pois suporto a desforra, não só
áspera, mas até indiscreta, sem me alterar. E à investida que me é feita, se não tenho com que retrucar
bruscamente no momento, não começo a me entreter, em seguida a tal alfinetada, com uma contestação
enfadonha e medrosa, tirante à pertinácia: deixo-a passar e, abaixando alegremente as orelhas, remeto dar-lhe
o meu troco para melhor ensejo. Não é negociante quem ganha sempre. A maior parte muda de cara e de voz
quando lhe falta a força; e, por uma intempestiva cólera, em vez de se vingar, revela a própria fraqueza e
juntamente a própria intolerância. 1201 Em tais facécias, beliscamos às vezes cordas secretas das nossas
imperfeições, nas quais, quando serenos, 1202 não podemos tocar sem ofensa; e ultimamente nos
entreadvertimos dos nossos defeitos.

1200 — Sem continuidade, em fragmentos. (N. do T.)

Há outros brinquedos, estes de mãos, imprudentes e rudes, à francesa, que eu mortalmente odeio: tenho a pele
delicada e sensível. Por causa deles, vi eu na minha vida enterrar dois príncipes do nosso sangue real. Coisa feia
é bater-se por folguedo.

Em suma, quando quero julgar alguém, eu lho pergunto quanto ele se contenta de si, até onde ele se compraz
nas suas palavras e no seu trabalho. Quero que se evitem estas belas desculpas: "Eu o fiz brincando;

Ablatum mediis opus est incudibus istud; 1203

não me levou mais que uma hora; nem o revi depois." — Então, respondo-lhe eu, ponhamos de lado essas
peças, e dá-me cá uma que te apresente bem completo, pela qual desejes que se tome a tua medida. E depois:
Qual a mais bela parte que achas na tua obra? Será esta, ou aquela outra? a graça, ou a matéria, ou a invenção,
ou a inteligência, ou a ciência? — Pois eu noto ordinariamente que tanto se erra no julgar o trabalho próprio
como no alheio; não só por causa da afeição que aí se mete de permeio, mas por não se ter capacidade para o
conhecer e distinguir. A obra, por sua força e fortuna próprias, pode secundar o obreiro além da sua invenção e
do seu conhecimento e pode superá-lo. Quanto a mim, nenhum outro trabalho eu julgo mais obscuramente que
o meu: e coloco os Ensaios, ora baixo, ora alto, multo inconstantemente, e duvidosamente. Há vários livros
úteis em razão de seus assuntos, dos quais os seus autores não tiram nenhuma fama, e há bons livros, como
bons trabalhos, que envergonham quem os fêz. Eu escreveria o feitio dos nossos banquetes e dos nossos trajes,
e a contragosto o escreveria; eu publicaria os éditos do meu tempo e as cartas dos príncipes que andam nas
mãos do povo; eu faria um resumo de um bom livro (e todo resumo de um bom livro é um parvo resumo), o
qual livro acabará por se perder, e coisas semelhantes. A posteridade colherá utilidade singular de tais
composições; e eu, que honra, a não ser da minha boa fortuna? Boa parte dos livros famosos são desta
condição.

1201 — Montaigne diz "Impaciência" no sentido latino de Incapacidade de suportar a dor. (N. do T.)

1202 — Fora da animação de tais gracejos. (N. do T.)

1203 — Ovídio, Trist. I, 6, 29. (Esta obra foi retirada de cima da bigorna ainda no meio do trabalho.)

Quando li, há muitos anos, Filipe de Comines, ótimo autor sem dúvida alguma, assinalei como não vulgar este
conceito seu: "Que 6 preciso guardar-se bem de prestar ao seu senhor serviços tamanhos que o impeçam de
lhes achar a justa recompensa." Eu devera meus aplausos à invenção, não a ele: en-contrei-a em Tácito, não faz
muito tempo:

Beneficia eo usque Iceta sunt dum videntur


exsolvi posse; ubi multum antevenere, pro
gratia odium redditur. 1204

1204 — Tácito, Atinai, IV, 18. (São bem-vindos os benefícios enquanto se vê que podem ser pagos; mas, desde
que esse ponto é muito ultrapassado, em vez de gratidão, pagam-se com ódio.)

E Sêneca vigorosamente o exprime:

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Nam quí putat esse turpe non reddere, non vult esse cui reddat. 1205

Como, com torneio mais frouxo, Quintus Cícero:

Qui se non putat satisfacere, amicus esse nullo modo potest. 1206

O assunto, segundo a sua qualidade, pode fazer que um homem se mostre sapiente e rico de memória; mas,
para julgar nele as prendas mais propriamente suas e mais dignas, a força e a beleza da sua alma, precisa-se
saber o que é dele e o que não é, e, naquilo que não é dele, quanto se lhe deve em consideração da escolha, da
disposição, do ornamento e da linguagem que ele lhe forneceu. Que dizer, se ele tomou de empréstimo a
matéria e piorou a forma, como tantas vezes acontece! Nós outros, que pouca prática temos com os livros,
ficamos neste embaraço, que ao vermos alguma bela invenção em um poeta novo, algum forte argumento em
um pregador, não ousamos contudo elogiá-lo por isso, enquanto não tivermos colhido instrução de algum
sabedor, se tal peça lhes é própria, ou se é peça alheia; até lá eu me fico sempre de sobreaviso.

Acabo de correr a eito a História de Tácito (coisa que raramente me acontece: nestes vinte anos não dei a um
livro uma hora seguida); e o fiz a conselho de um gentil-homem que a França muito estima, tanto por seu valor
próprio, como por uma constante forma de competência e de bondade que se nota em vários irmãos, que tais
são. Não sei de autor nenhum que junte a um registro público tantas considerações sobre costumes e inclinações
particulares. E o que a mim me parece é o contrário

1205 — Séneca, Epist, 81. (Pois quem acha vergonhoso não retribuir, não quer que exista pessoa alguma
a quem deva retribuição.)

1206 — Q. Cícero (Irmão do famoso orador). De petione consulatus, XI. (Quem não se julga quite de
obrigações contigo, de modo nenhum pode ser teu amigo.)

do que lhe parece a ele: Já que especialmente lhe cumpria acompanhar as vidas dos imperadores do geu tempo,
tão estranhas e extremadas em toda sorte de formas, e tantas ações notáveis que a crueldade deles
particularmente provocava em seus súditos, tinha ele um assunto mais forte e mais atraente para discutir e
narrar do que se lhe tivesse cabido descrever batalhas e agitações universais; tanto que eu muitas vezes o acho
estéril quando passa por alto essas belas mortes, como se nos receasse enfadar com sua multidão e longura.

Essa forma de história é bastantemente a mais útil. Os movimentos públicos dependem mais da conduta da
fortuna, os privados mais da nossa. Trata-se antes de um julgamento que de relato de história: há ali mais
preceitos que narrativas. Não é um livro para ler, é um livro para estudar e aprender; tão recheado está de
sentenças que as tem de razão e de sem-razão: é uma pepineira de reflexões éticas e políticas, para provisão e
ornamento dos que ocupam cargos no governo do mundo. Ele discute sempre com razões sólidas e vigorosas, de
uma forma aguda e subtil, seguindo o estilo afetado do seu século: eles, então, gostavam tanto de empolar-se
que, se não achavam agudeza ou subtilidade nas coisas, pediam-no emprestado às palavras. Tem no escrever
não pouca semelhança com Séneca: parece-me mais carnudo, Séneca mais agudo. Seu serviço é mais próprio
para um estado abalado e enfermo, como ao presente é o nosso: dir-se-ia muitas vezes que ele nos retrata e
nos belisca. Os que duvidam da sua boa-fé, acusam-se assaz de lhe quererem mal por outra causa. Ele tem sãs
as opiniões e pende para o bom partido nas questões romanas. Eu todavia me queixo um pouco de ter ele
julgado Pompeu mais azedamente do que o comporta o parecer das pessoas de bem que com ele viveram e
trataram, e de o ter considerado em tudo igual a Mário e a Sila, menos, enquanto era mais acobertado. Não se
tem isentado de ambição o seu intento no governo dos negócios, nem de vingança, e recearam os seus próprios
amigos que a vitória o arrastasse além dos termos da razão, nunca porém até uma tão desenfreada medida:
1207
não há nada em sua vida que nos tenha ameaçado de tão expressa crueldade e tirania. Ademais não se
deve equiparar a suspeita à evidência: nisto, pois, não lhe dou crédito. 1208 Que as suas narrações sejam
genuínas e justas, poder-se-ia provar talvez pelo próprio fato de não se ajustarem sempre às conclusões dos
seus juízos, os quais ele segue segundo o pendor que já tinha tomado, muitas vezes além da matéria que nos
expõe, a qual não se permitiu inclinar em uni só aspecto. Ele não precisa de escusa por ter aprovado a religião
do seu tempo, segundo lhe ordenavam as leis, e ignorado a verdadeira: isso é a sua desgraça, não o seu
defeito.

1207 — Como a de Mário e Sila. (N. do T.)

1208 — A Tácito. (N. do T.)

Considerei principalmente os seus juízos, e nem em todos estou bem esclarecido; como naquelas palavras da
carta que Tibério, já velho e doente, dirigiu ao senado. "Que vos hei de eu escrever, Senhores, ou como vos hei
de escrever, ou que não vos hei de escrever nesta hora? Que os deuses e as deusas, mais depressa do que me
sinto perecer todos os dias, me matem, se eu o sei"; não percebo porque, com tanta certeza, ele as atribui a um
pungente remorso que atormenta a consciência de Tibério: eu, pelo menos, quando as lia, não o vi. Pareceu-me
um tanto pusilâmine também nisto, que devendo contar que ele exercera certa honrosa magistratura em Roma,
entre logo a desculpar-se, que não foi por ostentação que ele o disse: esse traço parece-me I de pêlo rente 1209
para uma alma da sua espécie, pois o não se atrever a falar redondamente de si revela alguma falta de

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coragem. Um juízo severo e elevado, e que julga sadia e seguramente, lança mão a todo propósito dos seus
próprios exemplos tanto como dos alheios, e tão franco testemunho dá de si como o daria de um terceiro. É
preciso passar por cima dessas regras vulgares em benefício da verdade e da liberdade. Eu ouso não só falar de
mim, mas falar somente de mim: extravio-me quando escrevo sobre outra coisa e esquivo-me do meu assunto.
Não tenho tão descomedido amor a mim mesmo, nem estou a mim mesmo tão preso e unido que eu não me
possa distinguir e considerar à parte: como um vizinho, como uma árvore. Igualmente se erra por não ver até
quanto se vale, e por o dizer mais que quanto se vê. Nós devemos a Deus mais amor que a nós mesmos, e o
conhecemos menos que a nós; e contudo falamos de Deus a mais não querer.

1209 — Barato, ordinário (como o veludo de pêlo curto). (N. do T.)

Se os seus escritos alguma coisa informam sobre as suas condições, era um grande personagem, justiceiro e
corajoso, não por uma virtude supersticiosa, mas filosófica e generosa. Será possível achá-lo afoito em seus
testemunhos: como no trecho onde ele afiança que as mãos de um soldado, que carregava um feixe de lenha, se
enregelaram de frio a ponto de se colarem à carga, sobre a qual ficaram pegadas e mortas, depois de
desmembradas dos braços. Tenho por costume, em casos tais, curvar-me perante a autoridade de testemunhas
tamanhas. Também o caso do Imperador Vespasiano que, graças ao deus Serápis, curou em Alexandria uma
cega molhando-lhe os olhos com a própria saliva (e não sei qual outro milagre), ele o conta seguindo o exemplo
e o dever de todos os bons historiadores. Eles registram acontecimentos de importância: entre os acidentes
públicos, incluem-se também os boatos e as opiniões populares. É do papel deles relatar, não regular, as crenças
comuns. Esta parte cabe aos teólogos e aos filósofos diretores de consciência. Assim mui sabiamente o diz
aquele seu colega e grande homem como ele: "Muito mais coisas eu registro, na verdade, do que apenas o que
eu creio: pois não me animo nem a afiançar as de que duvido, nem a suprimir as que me foram afiançadas;)"
1210
e o outro: "Não vale a pena afirmar nem refutar estas coisas: tem-se que ficar na voz da fama e
escrevendo em um século no qual começava a diminuir a crença nos prodígios, diz ele que não queria deixar,
entretanto, de inserir nos seus Anais, e de assentar, coisa aceita por tanta gente de bem e com tanta reverência
da antiguidade: muito bem dito. Transmitam-nos eles a história mais segundo o que recebem que segundo o que
calculam. Eu, que sou rei da matéria que trato, da qual não devo contas a ninguém, não creio em mim, contudo,
de modo algum: arrisco muitas vezes bravatas do meu espírito, das quais eu desconfio, e certas finuras verbais
que me fazem abanar as orelhas: mas deixo-as correr ao acaso. Noto haver quem se honre de coisas
semelhantes. Não é só a mim mesmo que cabe julgá-las. Eu me apresento em pé e deitado, de frente e de
costas, pela direita e pela esquerda, com todos os meus refolhos naturais. Os espíritos, sejam embora de igual
força, nem sempre são iguais na aplicação 1212 e no gosto.

1210 — Quinto Curdo, IX, 1.

1211 — Tito Lívio, I, Pref. o VIII, 6.

Aí está o que a respeito a memória me apresenta por grosso, e com bastante incerteza. Todos os juízos por
grosso são indecisos e imperfeitos.

1212 — Na maneira de aplicar (o espírito), isto é, de julgar. (N. do T.)

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