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yh PLATAO DIALOGOS VOL. Vill PARMENIDES - FILEBO Tradugao de CARLOS ALBERTO NUNES \o © UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARA 4 4 1974 PARMENIDES com o Filebo, no grupo dos ultimos escritos de Platao, ultrapassa o valor eristico do notavel debate que as suas paginas encerram acerca da existéncia do Uno. O leitor encontrara aqui Platéo repensando a sua teoria das Idéias, e revendo, em confronto com a respeitavel tradi- ‘gao oriunda de Parménides, principal representante da escola eleadtica que da nome ao didlogo,() as bases de sua doutrina, jé elaborada nas obras de maturidade, principalmente nos tras escritos, O Banquete, Fedao e A Republica, dos mais conheci- dos e famosos que contém o arcabougo metafisico em que se condensou a imagem do platonismo enquanto vertente histd- rica do pensamento ocidental, A qualidade e a situagéo das personagens escolhidas para interpretarem, sob certas circunstancias de tempo e de lugar, através de disputa aparentemente sofistica, a respeito de uma questao anterior ao ensino da Academia, o debate de Platéo com a sua prépria doutrina, indicam-nos as ‘cautelas do filé- sofo) para, gragas a estrutura de um didlogo misto, semidra- matico,-incutir na exposicaéo uma atitude de-distanciamento ~critico, relativamente a teoria das Idéias, maitriz originaria de seu pensamento, O sinal desse distanciamento, que deman- dava, com a revisdo tedrica em perspectiva, diferente avalia- ¢ao do passado, é a mudanga na figura e no desempenho de Sécrates. 3 Ao mestre de Platéo, que aparece em plena juventude, cabe 0 privilégio de iniciar 0 debate, mas nao sera ele, como nos didlogos anteriores, o unico a dirigi-lo, Cedendo o lugar A IMPORTANCIA do Parménides, incluido, juntamente 7 de protagonista, ainda no comego, quando interroga a Zendo, ao filésofo Parménides, Sécrates eclipsa-se depois, quando Parménides escolhe Aristételes,(?) por ser este 0 mais jovem de todos os circunstantes, para seu interlocutor. Remogado sob a mascara desse Socrates juvenil e impetuoso, Platéo po- deria imaginar, deslocando a cronologia, num espago de tem- po impreciso, onde situa as conversag6es da ilustre companhia, a cena do encontro e do confronto de sua doutrina com a es- cola de Eléia, que representam os mais velhos do grupo de de- batedores, Parménides e Zendo, entre os quais se observa a relacdo de mestre a discipulo que a Histéria da Filosofia con- servou. De idade avangada, beirando os sessenta, cabeleira in- teiramente branca, Parménides entra em cena, ao lado de Aris- toteles e de Pitodoro — na casa de quem as conversagées se passam — jd quase no fim da leitura, por Zenao, de seus pro- prios escritos, que defendiam a tese parmenidica da absoluta realidade do Uno. Tais artificios quanto & qualidade e & situagao das perso- nagens, que reforgam o distanciamento critico de que Platéo necessitava, e tornam verossimil a visita dos pensadores de Eléia a Atenas, por ocasiao de uma das grandes Panateneias, completam-se pela estrutura do didlogo, apoiado num sé re- lato que se desdobra nas duas narragdes de Céfalo de Claz6- menas, um desconhecido. Céfalo inicia contando como, gragas a mediagdo de Adi- manto e de Glauco, ele e os companheiros, seus “conterraneos e fildsofos de alto merecimento”, foram levados 4 presenga de Antifonte, de quem constava ser amigo de Pitodoro, e saber de cor a narrativa que este Ihe fizera do encontro entre Sdcrates, Zendo e Parménides, aos quais servira de hospedeiro. Em se- guida reproduz o relato que Antifonte consentira em fazer-lhe da narrativa ouvida do préprio anfitrido, o Unico, portanto, a testemunhar o didlogo, agora exposto em terceira versao, de acordo com o testemunho de Pitodoro a Antifonte, por Céfalo de Clazémenas. Terminado a espécie de prélogo, onde essas duas narrativas se imbricam, desenvolve-se, a partir do capi- tulo Il, com as interrogagdes de Sécrates e Zenao, logo apés 0 término da leitura antes mencionada, a matéria do dialogo pro- priamente dito, Atenua-se dai por diante a presenga do narra- dor interposto, até que, nos ultimos capitulos da obra, o dis- curso indireto é substituido pela dialogagao corrente entre os dois dnicos interlocutores, Parménides e Aristdteles, que per- manecem em cena. Excluindo-se todo esse preambulo, convém dividir o dia- logo em trés fases distintas. Na primeira, do capitulo II ao VI, 8 a intervengaéo de Sécrates, pedindo a Zendo para esclarecer as intengdes do escrito que acabara de ser lido, liga o assun- to nele versado ao motivo do debate que entdo se inicia. Bas- tante habil, Plat&éo da-nos a conhecer o assunto, que era fami- liar ao circulo da Academia, limitando-se, em beneficio da eco- nomia de sua exposicéo, a separar da obra do discipulo de Parménides, pega essencialmente argumentativa — contendo, pelo menos nove proposigées(*) — a “primeira hipdtese do primeiro argumento” (127,d). Admitindo a multiplicidade do Ser) e demonstrando as contradigdes a que levaria semelhante suposicao, essa hipétese, motivo do debate, também enfeixa a questdo do Uno, que a malicia de Sdcrates consegue, medi- ante alguns rodeios, transferir de sua matriz eledtica origind- ria ao plano da teoria das Idéias. Nao é dificil reconhecermos semelhante matriz, Estabele- cida no poema de Parménides, Sobre a Natureza (peri physeos);, engloba as teses conjuntas da imutabilidade e da indivisibili- dade do Ser. “Nao resta sendo uma Unica via, a da existéncia do Ser. Nela se encontram indicios muito numerosos, mosiran- do que o Ser 6 incriado tanto quanto imperecivel porque ele 6 também completo, imdvel e sem fim.”() Idéntico a si mesmo, pleno no tempo e continuo no espago, o Ser assim concebido, que se resume na afirmagao da unidade absoluta, como tnico objeto do verdadeiro conhecimento, de todo oposto & multipli- cidade e a mutabilidade das coisas sensiveis, em que se fixa a via da opiniao excluida pelo poema de Parménides, é a ori- gem das conhecidas aporias do movimento, em que consis- tiam os argumentos ou hipéteses lidos por Zeno, Desta for- ma, esses argumentos, que redundavam numa demonstragdo da impossibilidade de se conceber o multiplo ou o desconti- nuo, sao corolarios da unidade absoluta, feita principio (arqué) das coisas e raz&o (logos) do conhecimento. Dai 0 reparo irénico de Sdcrates: o seu interlocutor disse: ra, numa outra linguagem, 0 mesmo que Parménides ja havia dito (128, a-c), Sem aceitar a insoléncia, Zenao declara que tendo elaborado aqueles argumentos ainda quando moco, “com a intengaéo manifesta de mostrar como decorrem conse: qéncias muito mais absurdas da hipdtese do Multiplo por ele defendida, do que da do Uno para quantos a examinarem a preceito” (128, d), nao pretendera outra coisa senao defender a doutrina de seu mestre. E depois desse passo que o jovem filésofo centraliza o foco da discussao na Idéia (eidos), que Platéo considera como Forma pura, exemplar e auto-subsistente) de que as coisas par- tilham segundo o seu género e a sua espécie, e na qual tém 9 a sua esséncia (ousia). Nao é de estranhar e nada ha de sur- preendente, observa Sdécrates, em que alguém demonstre, a respeito das coisas sensiveis, que é contraditério 0 nosso mo- do de concebé-las. A respeito de cada qual podemos desco- brir a unidade e a multiplicidade. Mas isso nao implica “que o Uno seja Multiplo e o inverso: o Multiplo, Uno” (128, d). Se porém ascendemos do plano sensivel ao inteligivel, onde as Idéias em si mesmas se apresentam 4 intuigdo noética, seria realizar verdadeira proeza introduzir ai o regime da contradi- cao, que transformaria a unidade em multiplicidade e a multi- plicidade em unidade. E ent&o que se inicia, com a segunda fase do didlogo (cap. IV ao IX), na qual intervém Parménides, até esse momento ouvinte atento de Sdcrates, o confronto do eleatismo e do platonismo, que fara do velho fildsofo, como in- térprete-de Platao, o executor de uma‘corregao critica da teo- ria das Idéias, indissociavelmente ligada, nesse dialogo,.& re- Movagaéo da dialética, que se define na passagem da segun- da para a terceira fase, O confronto do platonismo com o eleatismo, que pora em questao a natureza ontolégica das idéias-e o-seu valor cog- noscitivo, produzir-se-A4 em torno do .nexo de_participagcao (méthexis), que traduziria o tipo de relacionamento das Idéias como esséncias imutaéveis e as coisas mutaveis. Discutir-esse nexo, visado diretamente_por Parménides, é discutir a base da concepgdo hierarquizada-do. Ser, que funda, com_o platonis- mo, a concepgao metafisica do mundo, Na segunda fase da discussdo ora descrita, a argucia de Parménides chega a desconcertar Sécrates, colocado diante da dificuldade ldgico-ontolégica da separagao (khorismds), co- mo 0 reverso da participagao (méthexis), e perplexo quando o seu interlocutor pergunta se, admitindo a existéncia da seme- Ihanga, do uno e do miultiplo, & parte das coisas que sdo se- melhantes, unas e miltiplas, nao admite também, na mesma condigao, de um lado, “a idéia do homem em si mesmo, do fo- go e da agua...”, e de outro a idéia de objetos “que talvez paregam ridiculos, como cabelos, lama, sujidade...” (130 b). De que maneira definir pois a relagéo de dependéncia, que o nexo de participagao exige, entre as Idéias ou Formas e os objetos dos quais elas sao formas? Acompanhe o leitor os aspectos mais relevantes da ar- gumentacdo que nos limitamos a mencionar. Dado que a parti- cipagdo dos objetos nado se pode efetivar nem por meio das partes nem do todo da Idéia a eles semelhante, talvez esta seja mais do que um simples paradigma. Se nao for, podemos atribuir-Ihe o carater de conceito existente no espirito. Mas a 10 a primeira hipdtese 6 prejudicada pelo desdobramento do pai digma. No caso, por exemplo, do individuo humano, a partici- Ppagao na humanidade, sua esséncia genérica, por via da se- melhanga entre cdpia e original, necessita de um novo mode- lo, este de outro, numa recorréncia ao infinito de paradigma apés paradigma. Menos verdadeira ainda se torna aysegunda hipdtese quando se tem em vista o caratercsupra-: -sensiveldo eidos, acima do nosso conhecimento, e desse modo, porque apenas. proporcionado a sabedoria divina, existindo fora do es- pirito. Derivaria disso tudo a principal conseqiiéncia, mais tar- | de assinalada por Aristételes em sua Metafisica: as Idéias e as coisas permaneceriam completamente separadas, nao atuando aquelas sobre estas nem estas sobre aquelas(*), E se apenas a divindade conhece as Idéias, e assim possui, ao contrario de nés, o conhecimento perfeito, a sabedoria divina, de que a in- teligéncia humana ndo partilha, é indiferente ao nosso mundo. “Tudo isso, Sécrates, volta a falar Parménides, e muito mais ainda, esté implicito nas idéias, no caso de terem estas exis- téncia propria e concebé-las alguém como algo independen- te” (135, a). I Poderia o didlogo, que seguiu esse rumo, terminar pela neutralizacéo critica da teoria das Idéias, na qual se deteve a argumentagao de Parménides. Nao 6 porém a perplexidade do velho eleata menor do que o embaraco do jovem Sécrates — perplexidade e embarago do préprio Platao — porquanto se ambos estGo de acordo para concluir que quem admite as Idéias sera levado, pelo raciocinio, a contesté-las ou “a de- “Clarat que por forga teraéo de ser desconhecidas da natureza humana” (135, a), ambos também aceitam que, a nfo poder ser rompido o dilema a que chegaram, e se for definitiva a ex- cluséo das /Idéjas, 0 nosso pensamento ficaré desnorteado, sem saber para onde voltar-se. E como sé pensamos apoian- do-nos na identidade da Forma, o n&o-reconhecimento de Idéias para cada coisa “destruiria por completo a prépria dia- Iética. ..” (135, c). Aleancamos justamente aquele ponto de transigéo a que nos referimos, em que, definida a dialética, entre a segunda e a terceira fase do didlogo, a ela se emprestara 0 alcance reno- vador posto depois a prova, com o apoio de Aristételes, no exercicio a que se entregara Parménides até o final da obra. E conveniente que nos detenhamos um pouco para esclare- cer em que circunst€ncias, nessa transigao, opera-se o volteio i que, contornando o dilema antes exposto, permite continuar a discussao antes paralisada. A neutralizacao critica da teoria das Idéias nao somente arrefecera 0 debate, mas colocara os interlocutores num beco sem saida. Pois sem aquela teoria nao ha dialética, e sem dia- lética nao ha filosofia. E a filosofia que aquela neutralizagao, interrompendo o didlogo, ameaga, como nos mostra a pergun- ta dramatica de Parménides: “E que faras da filosofia? Para onde te voitarés na ignorancia de todas estas coisas? Por enquanto, nao vejo saida, responde o jovem Sécrates.” O volteio do mestre de Eléia consistira em deslocar a con- cep¢ao das Idéias do nivel em que Platao a situara até ali, e onde essa concep¢do revelou-se vulneradvel aos ataques da critica. Em vez de considerar as Formas uma a uma, partindo das coisas de que seriam (os paradigmas, Parménides procura pensé-las relacionando-as, enquanto Idéias, de acor- do com o seu grau de inteligibilidade prépria, umas com as outras, a fim de surpreender o que todas tém de comum. Atinge, destarte, um nivel mais abrangente, em que se depa- ra ao pensamento a possibilidade de estabelecer predicamen- tos, isto 6, de fixar as categorias que as determinam. Nos pri- meiros didlogos de Platao, Sécrates, embalado pelo seu ardor juvenil, limitara-se a definir a Beleza, a Justiga ou a Verdade; nos didlogos da maturidade, pressupusera, desde logo, sem. havé-lo discutido, a existéncia separada, objetiva e substan- cial dos conceitos correspondentes. Ora, se cada um dos u! versais subsiste a parte, se ha mUltiplas Formas, que consti- tuem, separadamente, os distintos géneros, nao padece duvi- da de que o problema a elucidar 6 o da correlagéo de tais es- séncias, enquanto que todas sendo Idéias ou Formas, a todas podemos atribuir uma preliminar unidade. Para a unidade e a multiplicidade, anteriores, como matéria pensavel, as essén- cias individualmente consideradas, é que Sécrates devera vol- tar-se, recorrendo entao, a fim de contornar o dilema que en- controu, ao exercicio, semelhante ao método de Zendo, pro- posto por Parménides, e que deverd levar a investigagdo a “concentrar-se no que é apreendido apenas pelo pensamento @ pode ser considerado como idéia” (135, c). O exercicio proposto é categorial e de cunho hipotético: categorial porque se move no ambito das determinagdes mais gerais — de que a unidade e a multiplicidade, categorias com que havia ligado Zendo, fornecem o exemplo mais imediato e oportuno; e hipotético porque consiste em inferir as conse- qiiéncias que resultam, separada e sucessivamente, das supo- sigdes da existéncia e da ndo-existéncia do Uno e do Multiplo, 12 tomados quer em relag&o a si mesmos quer em suas relagdes reciprocas. Esse exercicio hipotético-dedutivo nao se limita ao exemplo escolhido por Parménides. Muito embora a ques- 140 do Uno e do Multiplo seja aqui o exemplo privilegiado, o mesmo método valera para outras nogées de carater muito ge- ral: para o semelhante e o dissemelhante, para o movimento e 0 repouso, para o nascimento e a destruic¢do, o ser e o nado ser em si mesmos. Além disso, esse método de alcance categorial de- duz, tal como o de Zendo, as conseqiiéncias de uma suposi- gao, mas afasta-se, tanto no objeto quanto no seu processo, daquele propugnado e praticado pelo eleata. Situando, con forme ja vimos, o dominio das Formas num nivel diferente da- quele que possibilitou a eficdcia da critica anterior, por outro lado, o Parménides de Platéo imprime outra diregao ao enca- minhamento do raciocinio zenoniano, que se destinava, em ra- zo de sua finalidade apologética, a alcangar, pela afirmagao das diferentes hipéteses, resultados sempre negativos. ' Nove hipdteses, que nos limitamos a indicar, sero formu- ladas e sucessivamente discutidas na terceira fase do didlogo: 1.° — (se) 0 Uno é absoluto (e dele nada se pode predicar); 2,° — (se) 0 Uno é um ente (sera ent&o predicavel e portanto diferente de si mesmo); 3.9 — (se) o Uno é mutavel (conse- qiiéncia da segunda hipétese); 4.0 — (se) o Uno 6, as outras coisas(®) so partes de um todo (conseqiiéncia da segunda e da terceira hipdteses); 5.° — (se) o Uno é absoluto, as outras coi- sas n&o sao partes dele (conseqiiéncia da primeira hipdtese); 6.° — (se) o Uno no 6 um ente, sendo porém objeto de. pen- samento (de acordo com a terceira hipdétese); 7.0 — (se) o Uno nao 6 absolutamente, nao sendo porém sujeito de nenhuma de- terminagao nem objeto de pensamento; 8.9 — (se) 0 Uno nao 6, caso em que os outros serao algo; 9.0 — (se) 0 Uno nao é (caso em que os outros nada serao). Essas hipéteses nao se colocam isoladamente, sem co- nexdes entre si, e podem ser distribuidas em dois grupos, No primeiro, incluem-se as trés iniciais, que consideram o Uno pensado em si mesmo e relativamente a idéia de Ser, Postu- lado o Uno, sem outro pensamento sendéo o da unidade,(7) postulamos uma realidade absoluta, incompativel com a mul- tiplicidade, a diferenga, a diviséo, 0 espago, o tempo e com:a propria idéia de Ser. Se afirmo que ele é ou existe (segunda hipotese), a simples postulagdo da idéia de Ser introduz a di- ferenga do Uno em relagaéo a si mesmo; entao, a possibilida- de de predica-lo restabelece a multiplicidade, o que, contra- dizendo a tese da unidade absoluta, leva-nos a conceber o Uno, dadas as oposigdes que nele confluem, j4 no ambito da 13 terceira hipdtese, como um Todo mutavel. E de vez que a su- cessao de estados, em que o vir a ser implica, efetuar-se-ia no “ponto de mudanga em diregGes opostas” (156, b), que consti- tui o instante, estariamos, de novo, diante de uma contradigao. As seis hipéteses seguintes, que constituem o segundo grupo, inferem o que resulta das suposigées de existéncia e n&o existéncia absoluta ou relativa do Uno, ja colocadas ante- riormente, para as outras coisas, Pode-se dizer, dessa forma, pelo menos das trés primeiras, que cada hipdtese é antinomi- ca, e desdobra-se na sua contréria quando demonstrada. Mas. pela passagem que de uma a outra se efetua, de acordo com as suas oposigées e equivaléncias, todas integram um sé pro- cesso de adestramento da inteligéncia, a que nao falta alcan- ce légico e ontolégico, E nisso que afinal consiste a dialética definida no Parménides: “Numa palavrafem tudo o que supu- seres como existente ou nao existente ou como determinado de qualquer modo, sera preciso examinar as conseqiléncias resultantes, primeiro, para 0 préprio objeto, e depois, relati- vamente aos outros: comegaraés por um, @ tua escolha; depois varios, e por Ultimo todos. A mesma coisa farés com esses ou- tros, tanto em suas relagées reciprocas como com o objeto admitido de cada vez por ti como existente ou nao existente, caso queiras exercitar-te na perfeigao e, assim, discernir a ver- dade na sua plenitude” (136, b-c). Resta-nos avaliar se a dialética, tal como a define e exer- cita o Parménides, reverteu sobre a doutrina platénica j4 an- teriormente estabelecida, autorizando-nos a afirmar, como fize- mos no in{cio, que, nesse didlogo, comegou Platéo, de manei- ra expressa, a repensé-la, e a rever, numa correcdo critica de que a anélise preliminar da teoria das Idéias teré sido o pre- Ambulo, os fundamentos nos quais essa doutrina se apéia. Mt A suposi¢ao da existéncia absoluta do Uno forneceu a Plo- tino, j4 como supremo degrau da realidade, transcendente as categorias, a primeira hipdstase(®) de seu sistema emanentis- ta, de que as Idéias (nous) e a Alma se originariam, escalona- damente, até o limite da matéria inerte, por uma espécie de di- ferenciagao qualitativa. Liga-se, portanto, a fortuna do Parmé- nides, ainda na Antigiiidade, ao aparecimento do neoplatonis- mo, principal fonte, através do én (uno) de Plotino, do Deus absconditus, tese especifica da teologia negativa acerca da natureza incognoscivel e inefadvel do ente divino, que recebeu 14 Nos tratados de Dionisio Pseudo Areopagita exemplar formu- lag&o. A deidade do misticismo especulativo de Eckardt pro- vém desse mesmo veio, que reapareceu no Uno de Nicolau de Cusa e subsidiou, muito mais tarde, segundo o sistema expos- to no didlogo Bruno(®), a unidade de Schelling. Até Hegel, que a ela se refere expressamente na Ciéncia da Légica@), a pri- meira hipétese do Parménides teve influéncia destacada no desenvolvimento da Metafisica. A fertilidade metatisica dessa primeira hipétese, ao longo da histéria do pensamento ocidental, ofuscou o exercicio hi- potético-dedutivo a que se vincula originariamente, e que pre- cisamos agora considerar, Como sao unanimes em reconhecer os modernos intérpre- tes do Parménides, as suposigées levantadas durante a tercei- ra fase do didlogo formam um conjuntof Seria, pois, incorreto discriminé-las, na tentativa de identificar as que se legitimam do-ponto de vista ldgico, As divergéncias de interpretagdo, a propdsito desse texto, produzem-se, no entanto, quanto ao va- lor global das nove suposigées, uma vez que o exercicio in- teiro de que fazem parte acaba pela conclusdo suspensiva que arremata o didlogo: “Quer o Uno exista quer nao exista, tanto ele como as outras coisas, ou seja em relacéo com ele mes- mo ou em suas relages reciprocas, todos eles de toda manei- Ta s&o tudo e nao sao nada, parecem ser tudo e nado parecem nada” (166, b-c). Segundo a judiciosa observagao de Cornford contra aque- les que tendem a ver nesse epilogo a prova de que aquele exercicio hipotético se esgota num requintado jogo de racio- cinio, que valeria, a titulo de divertissement filosofico, como parédia cheia de humor do eleatismo, a fim de reduzi-lo ao absurdo, a conclusao suspensiva visa a estimular o leitor a des- cobrir por si mesmo, na trilha do método empregado, “‘as am- bigiidades das hipéteses e quaisquer falécias porventura existentes na forma da dedugdo”(11), © processo dialético des- se método é, contudo, diferente daquele que serviu a Platéo para assentar, principalmente no Banquete, no Fedaéo e em A Republica, o carater auto-subsistente das Idéia: Objeto de viséo e de contemplagao espirituais (intuigaéo noética), as Idéias se apresentam a inteligéncia, nesses trés didlogos, ao termo de um movimento da alma que passa, como de uma escala inferior a outra superior, do mundo sensivel e visivel ao mundo inteligivel e invisivel das Formas puras, O de- sejo de imortalidade é 0 mével pratico do descortinio da bele- za, “‘cuja existéncia é eterna, estranha & geracdo e a corrup- Gao, ao acréscimo e a decréscimo”, que Diotima ensinou a Socrates em O Banquete (211, a). No Fedao, é a alma imortal, 15 em sua unidade e espiritualidade, o principio do conhecimento intelectivo que franqueia 0 acesso ao Topos uper ouranios(*), Em ambos os didlogos, as met&foras de elevagdo e de passa- gem através das coisas perceptiveis integram a via filoséfica para o.conhecimento das Idéias. Alegoria exemplar do pensamento metafisico, 0 mito da Caverna que/o Livro VII da Republica relata, sintetiza, num es- quema mais, complexo, acrescentando as metaforas de eleva-" co e decpassagem a imagem de saida gradual das sombras para a Juz, 0 mesmo processo anteriormente descrito, que con- cretiza um modelo de dialética ascencional. Desse ponto de vista, A Republica difere do Fedao e de O Banquete, dividindo, € semelhanga do que sucede para a escala sensivel(*), a es- cala inteligivel em dois planos, Num, a alma toma as Idéias como hipéteses, e através delas pée-se de novo a caminho para © outro, A busca doser em sis(6ntos on). Acima das préprias Idéias estaria o Bem, principio nao hipotético, ao qual a inte- ligéncia se dirige “com o auxilio das naturezas essenciais, con- sideradas em si mesmas e movendo-se entre elas” (**), Nas formulagées anteriores da diatética ascensional, a in- tuigfo das Idéias, que atualiza as potencialidades da alma imortal, j4 pressupde o nexo de participagao, objeto de critica do Parménides. O método proposto nesse didlogo caracteriza- -se por abstrair, instalando-se no dominio das Idéias, os moveis. praticos — 0 eros, o desejo de imortalidade, a atragéo do Belo e do Bem — que conduziram a esse conhecimento. Como dia- lética descendente, que abrange e complementa a ascendente, procuraria fundamentar, de cima para baixo, de maneira pura- mente tedrica, 4 luz das determinagdes mais gerais da unidade e da multiplicidade, comuns as coisas e as esséncias, 0 nexo de participacao. De origem tardia, essa dialética, muito embora ainda se apresente no Parménides como ensaio ou tentativa('5), ja per- mite todavia, em virtude do carater antinémico das contradi- ges, — pelo que realiza, afinal, aquela proeza de que tanto Socrates se admiraria — distinguir a unidade na multiplici- dade e a multiplicidade na unidade. Mas lido assim o texto que ora se publica, a propria critica das Idéias, que avulta na segunda fase do didlogo, ja constitui uma primeira exempli- ficago do modelo dialético descendente renovador, uma vez que, admitida na terceira fase a interpenetragao dos opostos, Platao superava o imobilismo da argumentagao zenoniana, e conseguia diminuir, transferindo o problema da participagéo para o do relacionamento dos géneros e das categorias, a separacdo (khorismés) entre o sensivel e o inteligivel. 16 Por esse caminho.que nos revela o efeito reversivo da dia- lética sobre a doutrina, e deixa transparecer, através e para além do platonismo, um pensamento vivo em pleno exercicio, © filésofo péde estabelecer posteriormente, no Sofista, a liga- ¢do do ser com 0 néo ser, e conceituar, no Filebo, como mistu- ra dos prazeres com a.Sabedoria, o ideal da vida feliz. Belém, janeiro de 1974 BENEDITO NUNES (1) — Parménides de Eléia, nascido por volta de 615, faleceu em mea- dos do século V. De seu poema, em hexametros, restam fragmentos. (2) — Comford considera simplesmente fantéstica a idéia de que o Aris- tételes desse didlogo ¢ uma mascara para o jovem fildsofo do mesmo nome. “E muito provével que o Parménides tenha sido escrito antes. que Aristoteles tenha entrado para a Academia, em 367 ou 366 AC, com aproximadamente 17 anos de idade". (F. M. Cornford, Plato’ and Parmenides, pag. 109 — Routledge & Kegan Paul’ Ltd. London). (3) — Conforme a idéia que Platéo oferece da leitura que Zendo pro- porcionou aos seus ouvintes, a obra discutida conteria um certo numero de proposigées. Nada restou diretamente das obras de Zeno, da escola eledtica. Das 49 proposigées a ele atribuidas conservam-se apenas 9 argumentos, sendo trés registrados por Simplicio e 6 por Aristoteles (Fisica). O registro de Simplicio é textual, dando-nos os argumentos do pensador de Eléia conheci- dos com a designag&o de aporias do movimento (divisibilidade do espaco e do tempo), contra a idéia de descontinuidade defendi pelos pitagéricos. Ver Jean Zafiropulo, L’Ecole Eleate, Parmenide, Zendo, Melissos. Les Belles Lettres, Paris, 1950. (4) — Diehls, Fragmente der Vorsokratiker, Parmenides, 7. (5) —“Umas das questées de dificil resolugao seria demonstrar para . que servem as idéias aos seres sensiveis, eternos ou aos que nas- cem © perecem. Porque as idéias néo s&o para eles causas de movimento, nem de qualquer mudanga, nem prestam auxilio para © conhecimento dos demais seres, porque n&o so sua esséncia; se oN caaae estariam neles”. (Aristételes, Metafisica, Cap. Vil, livro 1). 17 @— (8) — @— (10) — iy = (12) — (13) — (14) — (15) — 18 Plato emprega, por oposig&o ao Uno, para significar tanto um conjunto de coisas, que também possui a sua unidade, quanto a mera pluralidade sem limite, 0 termo no plural “os Outros”. Essa expresséio usada no singular — 0 Outro — realgou, com o neo- platonismo, que fez do Uno, por emanacio, a origem de todas as coisas, uma outra questdo, a da alteridade, depois retomada, a partir da dialética hegeliana, pelas filosofias da existéncia no sé- culo XX. nous disons que I'un est en prenant le mot un dans un sens trés fort, nous verrons que nous sommes amenés a dire que cet un est si un qu'il ne peut méme pas étre, parce que dire qu'il est, c'est une chose & propos de |'un qui est différente de l'un.” Jean. Wahl, Traité de Métaphysique, pags. 88/89, Payot Paris. 1953. Plotino, Enéadas, V, 1.8. Comparando a doutrina do Parménides histérico com a do Parménides de Platéo, diz ai Plotino: “O Par- ménides de Plalao 6 mais exato; ele distingue o primeiro Uno, o Uno no sentido prdprio, o segundo Uno que é uma unidade mul tipla, e@ 0 terceiro que 6 unidade @ multiplicidade.” F. W. S. Schelling, Bruno oder tiber das Géttliche und naiiirliche Prinzip der Dinge (1801-1802). Hegel denomina a dialética do Parménides de “dialética da refie- x€0 exterior. Cf. Ciencia de la Légica, Libro |, La docitina del Ser, Nota 3, 12 volume, pag. 130, Traduccion de Augusta y Rodol- fo Mondolfo. Buenos Aires. F. M. Cornford, Plato and Parmenides, pag. 105/106. Routledge, London. Ver Fedéo, 74/77. E a divisdo do sensivel ou visivel pela diferenga entre a coisa e 0 Seu modelo, correspondendo aos planos da opiniao (doxa) e do conhecimento (episteme). Cf. A Republica, Vi, 510, a. A Reptblica, VI, 510, b. Ver sobre a posic&o do Parménides na obra de Plat&o, como dié- logo que introduz a perspectiva da dialética descendente, arenas anunciada na Republica e no Fedro, R. Loriaux SJ., Petre et la Forme selon Platon. (Essai sur la dialectique platonicienne), Des- clée de Brouwer, 1955. PARMENIDES (Ou: Sobre as idéias. Género légico) Personagens: Céfalo — Adimanto — Antifonte — Glauco — Pitodore — Sécrates — Zeno — Parménides — Aristételes 126 a I — De Clazémenas, onde residimos, fomos para Atenas, e ao chegarmos 4 Praca do Mercado, encon- tramos Adimanto e Glaucd) Tomando-me da mao, disse Adimanto: Satide, Céfalo! Se precisares de al- guma coisa que dependa de nés, é s6 falares. Vim justamente. para isso, respondi; para pedir- -vos um favor. Basta dizeres 0 de que se trata, me falou. Entao, prossegui: Como se chama aquele vosso irm&o por parte de mae? Esqueceu-me 0 nome; eu era pequeno, quando vim de Clazémenas a primeira vez, jA faz tempo. Se nao me falha a memoria, o nome do pai é Pirilampo. “Isso mesmo, respondeu; e o dele é Antifonte. Mas, a que vem tal pergunta? Estes aqui, Ihe falei, sio meus conterraneos e fildsofos de alto merecimento. Ouviram dizer que esse Antifonte acompanhava com certo Pitodoro, amigo de Zenéo, e que sabe de cor as conversagées havidas entre Sécrates, Zendo e Parménides, por as ter ouvido dele, Pitodoro, assaz de vezes. Tudo isso € verdade, observou. Pois séo justamente essas conversacées, voltei a falar, que desejamos ouvir. Nao é dificil, respondeu; no tempo de mogo, Antifonte aplicou-se muito em decora-las. Presente- mente, a exemplo do avo e homénimo, emprega seus lazeres com cavalos. Se quiserdes, vamos procuré-lo; saiu agora mesmo daqui e foi para casa; mora perto, em Melita. 21 127 a 22 Dito isso, pusemo-nos a andar e encontramos Antifonte em casa, no ponto em que entregaya ao ferreiro, para consertar, um freio ou peca equivalente. Depois de resolvido isso, os irmaos lhe explicaram 0 fim daquela visita. Reconheceu-me, por ainda lem- brar-se de minha primeira estada entre eles, e cumprimentou-me. A principio, hesitou, quando Ihe pedimos que nos reproduzisse o didlogo; era_grande por demais a responsabilidade, conforme falou; porém acabou consentindo. Entao, Antifonte disse que Pitodoro Ihe contara como, de uma feita, Zenao.e Parménides vieram as grandes Panatenéias. Parménides j4 era de idade avangada, cabeleira inteiramente branca e de pre- sen¢a nobre e veneranda; poderia ter sessenta e cinco anos. Zeno beirava os quarenta; era de bela estatura e exterior agradavel. Passava por ser o favorito de Parménides. Informou que eles assistiam em casa de Pitodoro, no Ceraémico, além dos muros. Para 14 acorrera Sécrates e mais alguns de sua companhia, desejosos de ouvir a leitura dos escritos de Zendo, pois pela primeira vez os tinham levado’a Atenas. Sdcrates nesse tempo era muito jovem. Incumbiu-se da leitura o proprio Zen&o, na auséncia casual de Parménides. Jé se encontravam quase no fim, se- gundo Pitodoro, quando ele proprio entrou, acom- panhado de Parménides e de Aristételes, 0 mesmo que depois foi um dos Trinta. Assim, sé pegaram trecho muito pequeno da leitura. Alias, Pitodoro ja _ a ouvira antes, do préprio Zenao. II — Terminada essa parte, Sécrates Ihe pediu que relesse a primeira hipdtese do primeiro argu- mento, depois do que se manifestou: Que queres dizer com isto, Zeno? Se os seres sAo multiplos, por forca teréo de mostrar, a um sé tempo, semelhancas e dissemelhangas, 0 que nao é possively Nem o seme- Thante pode ser dissemelhante, nem o dissemelhante semelhante. Declaraste isso mesmo, ou fui eu que nao compreendi direito? - Isso mesmo, respondeu Zenao. Ent&o, se o dissemelhante nfo pode ser seme- Ihante, nem 0 semelhante dissemelhante, no mesmo passo nao sera possivel existir o multiplo, porque, se existisse, ndo poderia eximir-sé)desses atributos im- Possiveis. Mas, o fim precipuo de tua argumentacao 128 a nao visa a combater a crenga geral de que o miltiplo existe? Nao estas convencido de que cada um dos teus argumentos demonstra isso mesmo, e que, no teu modo de pensar, os argumentos por ti apre- sentados sdo outras tantas provas de que o miultiplo nao existe? Foi isso o que disseste, ou néo entendi bem? De forma alguma, teria falado Zen&o; apanhaste admiravelmente bem a intenc&o geral do escrito. Compreendo, Parménides, continuou Sdcrates; nosso Zenao deseja tornar-se-te mais intimo por va- rios meios, mas principalmente com a ajuda de seus escritos. No final de contas, o que ele afirma 6 mais ou menos o que tu proprio escreveste; porém intro- duzindo algumas modificacdes, quer dar-nos a im- pressao de que diz coisa diferente. Declaras em teus Poemas que o Todo é um;)em reforco do que aduzes argumentos belos e convincentes. De seu lado, ele nega a existéncia do multiplo, para o que apresenta provas de todo o ponto fortes e superabundantes. Desse modo, quando um diz que o Uno existe e o outro nega a existéncia do miultiplo, falando cada um como se nada tivesse de comum com 0 outro, quando em verdade ambos afirmam a mesmissima coisa, 0 que enunciais parece voar muito por cima de nossas cabecas. # isso mesmo, Sécrates, obseryou Zen&o; porém néo apanhaste A justa a verdade do meu livro, dado que, 4 maneira dos caes de Esparta, saibas descobrir o rastro e acompanhar o pensamento. Porém uma. particularidade te escapou: € que _este-escrito abso- lutamenté nao se eleva a tais(remfgios, como te apraz, atribuir 4 sua feitura, no sentido de ocultar aos homens suas sublimes pretensdes. O que disseste a esse respeito é simples acessério. O fim precipuo do trabalho é defender, a seu_modo, a tese de Par- ménides contra os que pretendem ridiculariza-lo, como se da admissao do Uno decorressem as mais escarninhas conseqiiéncias, que invalidam de raiz sua doutrina. & um escrito de combate contra os que defendem a existéncia do multiplo, em que os golpes s&o devolvidos com usura e com a intencao- manifesta de mostrar como decorrem conseqiiéncias muito mais. absurdas da hipdtese do miltiplo, por eles defendida, do que da do Uno, para quantos a examinarem a 23 129 a 24 preceito, O trabalho é produto do pendor para as disputas muito proprio dos jovens; porém alguém mo roubou depois de pronto, antes de se me ter facultado o ensejo de considerar a sés comigo, se conviria ou no entrega-lo ao publico. Foi o que nao percebeste, Sécrates, por admitires que ele hou- vesse sido composto sem aquele espirito combativo, mas com a ambicao da idade madura. No mais, con- forme disse, tua apreciacado nao foi de todo ma. I — Bem; aceito a explicacdo, teria falado Socrates, e admito que seja conforme declaraste. Porém dize-me o seguinte: nfo reconheces a exis- téncia em si mesma da idéia de semelhanca, e a de uma outra, oposta a essa, da dissemelhanga em si mesma, e que delas duas eu e tu participamos e todas as coisas a que damos a denominacao de miultiplo? E que as coisas que participam da semelhanca se tornam semelhantes, a esse respeito e na medida em que participam da dissemelhanca, e uma e outra coisa, as que participam das duas a um sé tempo? Se todas as coisas participam dessas idéias contra- vias, e, pelo proprio fato dessa participacdo, ficam, no mesmo passo, semelhantes e dissemelhantes a elas mesmas: que ha de supreendente em tudo isso? Se alguém mostrasse semelhantes no ato de se tor- narem dissemelhantes, ou 0 inverso: dissemelhantes passando a ser semelhantes, isso sim, eu tomaria como verdadeira maravilha! Porém dizer que as coisas que participam de uma e de outra apresentam ambos os caracteres, 6 0 que nao se me afigura, Zeno, contraditério; € como se alguém afirmasse que tudo é um pela particip: ‘idade e que esse mesmo todo é multiplo por sua participacio da plur: Mas se me provassem que é multipla a simples unidade, ou que o miultiplo.éum: eis 0 que me surpreenderia sobremodo. E tudo o mais pelo mesmo estilo. Se me demonstrassem, outrossim, que os géneros e as espécies apresentam em sua esfera propria esses caracteres opostos, haveria de que ma- ravilhar-me. Mas, que ha de extraordinario dizer alguém que eu sou ao mesmo tempo uno e miiltiplo? Seria o caso, para provar minha pluralidade, de mostrar a diferenga entre o lado direito e o esquerdo, a frente e o dorso, a porg&o superior e a inferior, pois de muitas maneiras, quero crer, participo da plura-

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