Você está na página 1de 11

AS CORRENTES ABSTRATAS NA AMÉRICA LATINA:

UM DUPLO MOVIMENTO

A presença de uma ampla e variada gama de produções plásticas, ligadas às


tendências estilísticas da abstração, na América Latina, de 45 a 60, é um fenômeno que
merece atenção. Um levantamento rápido evidencia terem surgido, ao longo desse
período, os mais importantes artistas plásticos latino-americanos, além de terem sido
realizadas experiências nessa direção, pela maioria dos artistas plásticos então atuantes.
Todas as quarenta e seis obras abstratas presentes no catálogo Artistas latinoamericanos
Del siglo XX,da grande exposição realizada em Sevilha, em 1992, organizada pelo Museu
de Arte Moderna de Nova York, foram produzidas em 46 e 66. Surgiram, também nesse
período, importantes grupos de artistas ligados à produção e difusão da arte abstrata,
como os grupos “Frente” e “Ruptura”, no Brasil, “Concreto-Invención” e “Madi”, na
Argentina. Realizaram-se, ainda, Grandes mostras relativas a estas tendências, na
América Latina, destacando-se em 1949, “Do Figurativismo à Abstração”, mostra
inaugural do Museu de Arte de São Paulo.
A abordagem da problemática da difusão das tendências abstratas, na América
Latina, no entanto, deve ser pensada em contexto mais amplo, que é a consolidação
dessas correntes, em nível internacional, também neste período. O que, de certa forma,
exige considerar as artes plásticas na América Latina dentro de uma conjuntura complexa
– sua inserção dentro do sistema internacional de condição de dependência.
Na Europa, as origens da abstração remontam à primeira metade do século XX, com
os grupos “De Stijl”, a “Bauhaus” e as destacadas atuações de Kandinsky, Klee e os
construtivistas russos. No entanto, cerceados em suas atividades pelas duas grandes
guerras, muitos artistas abstratos emigraram para os EUA, em busca de melhores
condições para o desenvolvimento de suas pesquisas. Assim, nos EUA, essa tendência
passou a florescer, apoiada pela sociedade industrial e pela cultura de massa. A abstração
evidenciou-se como expressão afirmativa de uma sociedade racional e produtiva.Segundo
Argan
A tensão ideológica e polêmica, que
opunha a arte moderna ao conservadorismo
europeu, já não tem ou parece não ter razão
de ser no quadro d modernismo e do
progressismo americano; a vanguarda, que
na Europa andava contra a corrente, no
Estados Unidos segue pari passu com o
tecnológico, mas perde o gume polêmico
da vanguarda. As tendências não
figurativas, sendo as mais imunes a
conteúdos e características nacionais, são
naturalmente as mais seguidas. 1

O estudo da expansão da abstração da América Latina deverá levar em conta ,


portanto, dois condicionantes.Por um lado, a pressão, manifesta em inúmeros
mecanismos e estratégias , que os EUA desenvolveram para difundir este movimento, no
qual foram pela primeira vez hegemônicos. Por outro, o funcionamento dos sistemas das
artes plásticas locais, as lutas de poder dentro deles e a maneira como se abriram a
incorporação dessa nova tendência. Ainda que estruturalmente diferenciados, estes dois
condicionantes atuaram de forma articulada e integrada na consolidação das correntes
abstratas nas artes plásticas latino-americanas.
Os EUA emergiram da Segunda Guerra Mundial como principal força econômica
e novo pólo cultural internacional. Sua hegemonia no panorama artístico se fazia sentir
sobre o antigo continente europeu, que havia perdido muito de seus grandes artistas, e
também sobre a América Latina, tradicionalmente ligada a Europa. O início da Guerra
Fria com a URSS, em 1947, colocou no quadro da luta ideológica, a dominação norte-
americana em relação à América Latina, constituindo-se o campo artístico cultural em
importante espaço de disputas.
O enfraquecimento da produção artística de conteúdo social, que se difundira, com
intensidade, na América Latina, nos anos 30 e 40, esteve no núcleo das investidas
anticomunistas,levadas a cabo pelo serviço de inteligência norte-americano.2
O Expressionismo Abstrato, tendo na figura de Pollock seu máximo expoente, foi a
arte de exportação que os EUA promoveram. É interessante observar que Pollock havia
pertencido a um grupo de artistas politizados, liderados por Siqueiros, nos EUA, entre
1935-36. Porém, em 1943, participou da constituição de uma Federação de Pintores e
Escultore Modernos, criada em oposição àquele grupo de artistas, do qual fizera parte,
tornando-se, depois um líder na defesa dos valores estéticos contra a ação política.
Alguns aurtores procuram relacionar a rápida e fulgurante carreira de Pollock com sua
adesão a posturas despolitizadas nas artes, frisando sua conexão com o Museu de Arte
Moderna de Nova York, dirigido pelo Grupo Rockefeller.
A atuação de Rockefeller foi bastante intensa ao longo da Segunda Guerra, quando,
trabalhando junto a um grupo especial da CIA,realizou dezenove exposições de artes
plásticas norte-americanas para a América Latina. Ao final da guerra, vários membros da
Oficina de Assuntos Internacionais da CIA foram transferidos para o Museu de Arte
Moderna de Nova York (MOMA) centro de operação do grupo Rockefeller, na área das
artes plásticas; destaca-se Jhn Hay Whitney, diretor do Conselho de Curadoria do Museu.
As estreitas relações do MOMA com a CIA expressam-se basicamente na propaganda
que o Museu fez, através de inúmeras mostras na América Latina, acerca dos benefícios
da vida e da arte no mundo capitalista, opondo a liberdade e o vanguardismo do artista
norte-americano ao estreito e tradicional controle da arte nos regimes socialistas.
Sob proteção do MOMA, a arte abstrata, principalmente o Expressionismo
Abstrato, tornou-se a arte oficial dos EUA. Segundo Eva Cockroft

Trombeteado como amadurecimento


artístico da América, o expressionismo
abstrato foi exportado para o exterior quase
desde o seu princípio. O trabalho de
Willem de Kooning foi incluído na
representação dos EUA na Bienal de
Veneza, já em 1948.Por volta de 1950 a ele
se juntaram Arshile e Pollock. A
representação dos EUA nas Bienais de São
Paulo, que começaramem 1952,apresentou
uma média de três expressionistas abstratos
por exposição. Também estiveram
representados em mostras internacionais da
Venezuela, Índia, Japão,etc. Por volta de
1956, uma exposição do MOMA intitulada
Arte Moderna nos EUA,com trabalho de
doze expressionistas abstratos (Baziotes,
Gorky, Guston, Hartigan, Kooning, Klino,
Motherwell, Pollock, Rothko, Stamos, Still
e Tomlin), circulou por oito cidades
européias inclusive Viena e Belgrado. 3

Explica-se, com este poder, a rápida consolidação das tendências abstratas em


termos de reconhecimento social e valorização de mercado, bem como sua expansão,
principalmente na América Latina, nos anos 50.
A difusão da arte abstrata,em nível internacional, teve como pilares algumas
publicações. Essas chegaram também aos sistemas locais norte-americanos,
tradicionalmente articulados com a Europa, principalmente com Paris, e, depois de
1945, mais estreitamente com os EUA. Um dos primeiros e mais importantes materiais
de divulgação internacional das correntes abstratas, foi o catálogo inaugural da Galerie
Art of this Century de Peggy Guggenheim, publicado em 1942, com textos como “arte
abstrata” de Mondrian, “Notas sobre a arte abstrata” de Bem Nicholson e “Arte Abstrata
e Arte Concreta” de Jean Arp. Posteriormente, na França, em 1949, Michel Seuphor
editou o livro L´art abstrat, ses origines, ses premiers maitres, sobre a exposição
realizada na Galeria Maeght. Ainda neste ano, também em Paris, André Bloc lançou a
revista Art d´Aujord´hui, totalmente dedicada à arte abstrata. O mesmo Michel Seuphor
publicou, em 1957, o Dictionnaire de la peinture abstraite, em Paris.
Na década de 60, reagindo à crise cubana e consolidando investimentos de
empresários norte-americanos, na América Latina, o grupo Rockefeller fez nova
investida no campo das artes com a criação, em 1963, da Fondation for the Arts
(IAFA).A IAFA organizou quatro grandes simpósios sobre artes plásticas na América
Latina e promoveu a grande mostra ” Magnet: New York” destinada a documentar a
supremacia de Nova York sobre Paris, como Pólo de concentração artistica. È curioso
observar que,dos vinte e oito artistas presentes na mostra, vinte e dois haviam se
estabelecido em Nova York em 1959 e 1964 e seis deles entre 1939 e 1958.
Nessas mesmas condições, criou-se, também na década de 1960, o “Concil of
América” e o “Center for Inter-America Relations” (CIR), em Nova York. Este último,
localizado na Park Avenue, em antiga mansão doada pela família Rockefeller, realizou
exposições de arte latino-americana e conferencias de destacados artistas e intelectuais.
Os círculos eruditos de Nova York, no entanto, reagiram com reservas em relação a esse
espaço, visto como clube de empresários com investimentos na América Latina
desejosos de prestigiar a arte destes países.
Outra importante instituição, sediada nos Estados Unidos, atuante em relação aos
sistemas de artes plsticas dos países latino-americanos, nas décadas de 50 e 60, foi o
Departamento de Artes Visuais da União Panamericana, então sob direção de José
Gomes Sincre. Destaca-se sua atuação na desarticulação do movimento muralista
mexicano,4 para a qual concorre, em 1950, com a organização da I Bienal
Interamericana de Pintura e Gravura, no Mexico; com expressionistas abstratos e,
também, em 1954, com a exposição por ele organizada, em Washington, de José Luis
Cuevas, grande opositor de muralistas mexicanos.
Na América Latina, a penetração das idéias socialistas, ao longo das décadas de 20 e
30,fizera-se com muita força,respondendo às aspirações das economias debilitadas pelo
imperialismo econômico e por intensa exploração das populações locais. Essas fontes de
insatisfação favoreceram o desenvolvimento de ideários revolucionários que contaram
com forte apoio da intelectualidade,dentro dela,com inúmeros artistas plásticos. A arte
compromissada com a transformação social, que florescera na América Latina passou a
ser, depois de 47, um empecilho ao avanço dos interesses norte-americanos.Deve-se
compreender as investidas norte-americanas, no campo das artes plásticas, na América
Latina, também dentro desse quadro de disputas: difundir o american way of life
significava, também, difundir a arte norte-americana, no caso a arte abstrata que lá se
consolidava.
O depoimento de José Gomes Sincre, no Boletim de Artes Visuais, em 1959,
evidencia bem claramente sua posição em relação ao desenvolvimento das artes
plasticas na América Latina

[...]el momento del arte de America no es


de indigenismo, campesismo ou obresismo,
ni de demagogia. Es de afismación de
valores continentales e esencia universal.
Debemos comenzar por saber apreciarlos,
constarlos dentro de nuestras propias
fronteras ... La sección de Artes Visuales
de la Unión Panamericana lo cree así y
lucha por imponer sua creencia en todos
los frentes donde se le permite emitir su
voz. 5

Essa posição, que define como pitoresca e superficial certo tipo de arte latino-
americano, apoiando as vanguardas ligadas aos modelos norte-americanos, José Sincre
difundiu em sua tribuna na revista Art in America.
Ainda sob a coordenação de José Gomes Sincre, em 1965, foi organizado o Salão
Esso-OEA, abrangendo 18 países da América Latina. Destinado a artistas jovens (com
menos de 40 anos) contou com a presença de Sincre em todos os Juris Nacionais e
também na finalíssima em Washington.Esse Salão despertou acalorado debate nos meios
artisticos latino-americanos, principalmente no México. Cuba não participou dele.
Em termos de influências norte-americanas nas artes plásticas latino-americanas
devem ser destacadas as bolsas a artistas plásticos pelos grupos Guggenheim, Canergie e
União Panamericana. Estas bolsas incluíam permanências nos EUA e relações intensas
com o sistema das artes plásticas norte-americanas, constituindo forte meio de
penetração das tendências dominante nas artes plásticas estadunidenses na latino
américa. Primeiramente, pela influência direta sobre artista premiado e, em segunda
instância, pela influência desse seu próprio meio. Essas bolsas foram, ao mesmo tempo,
instrumentos de legitimação dos artistas latino-americanos em seus sistemas locais e da
arte norte-americana nos mesmos sistemas.
No entanto, a expansão da influência norte-americana nos sistemas das artes
plásticas dos países latino americanos não pode ser pensada somente como pressão
externa, ou como orientação que lhes é imposta, conforme fazem crer alguns estudos.
Responde também às aspirações dos emergentes setores sociais urbanos dos diversos
países latino-americanos, desejosos de ostentar emblemas de modernização. A adoção
das tendências abstratas, pelos sistemas das artes de diferentes países latino-americanos,
respondeu igualmente, aos jogos de poder locais, expressando, antes de mais nada, o
desejo das elites desses países em consolidar relações culturais com os EUA, uma vez
que suas economias estavam se articulando. Evidenciava, além disso, aspiração à
modernidade, que em meados de 40 e 50 as correntes abstratas representavam em nível
internacional. Deve-se salientar que, articulados a essa modernização estilística,
estruturaram-se a maioria dos sistemas das artes dos países latino-americanos. Prova
disso são os inúmeros museus de arte moderna e galerias de arte que surgiram na
América Latina nesse período. A maneira como os sistemas das artes locais absorveram
as tendências estilísticas abstratas e como consolidaram-se nesse processo, merece uma
atenção especial, para tanto propõe-se a análise de três países paradigmáticos: México,
Argentina e Brasil.
O país onde o processo de penetração das correntes abstratas encontrou mais forte
oposição foi o México. A importância que o muralismo e a arte do realismo social
tiveram nos anos 20 e 30 exigiu, para a introdução da arte abstrata, um intenso
movimento de desarticulação das tendências anteriormente hegemônicas. Rufino
Tamayo e José Luis Cuevas foram os dois maiores opositores da tradição plástica
imposta pelo muralismo mexicano. A proporção que cresceu o prestígio desses dois
artistas dentro do sistema das artes plásticas mexicanas, enfraqueceram-se os seguidores
do realismo social. O convite que recebeu Tamayo, em 1951, para fazer um mural no
Palácio de Bellas Artes, onde estavam até então as obras de Orozco, Rivera e Siqueiros,
foi uma forma de consagração para aquele artista que vivera durante a década de 40 em
Nova York, onde agregou ao seu trabalho uma dose bem digerida de abstração.
Também Carlos Mérida, pintor guatemalteco, de formação européia de norte-
americana, que desenvolveu um estilo geométrico, em 1952, realizou murais para um
conjunto de edifícios multifamiliares da Cidade do México. No ano seguinte, Matias
Goeritz realizou a escultura de concepção geométrica “Museu Experimental do Eco”.
Essas atividades, esporádicas e isoladas, expressam as resistências a abstração no meio
artístico mexicano, onde a escola realista havia estabelecido em controle quase absoluto.
Contra essa dominação da escola mexicana pós-revolucionária, José Luis Cuevas
lançou, em 1955, o manifesto “Cortina de Nopal”. A verdade é que, no México, ao
longo da década de 50,desenvolveu-se uma acirrada disputa no sistema das artes local,
que foi ao mesmo tempo estética e política.6 Outro importante fator de desestabilização
da arte figurativa mexicana foi que os colecionadores norte-americanos, principais
compradores da arte mexicana nos anos 20 e 30, deixaram de apoiar a arte figurativa
causando uma grande redução de mercado nessa arte.O Estado, que fora, no México,
outro grande cliente do muralismo retrai-se abrindo espaço para empresas privadas. As
escolas, as cooperativas e as centrais operárias, que haviam sido os espaços privilegiados
do muralismo dos anos 20 e 30, perderam sua prioridade para hospitais, hotéis, sedes de
empresas e outras instituições, restringindo-se essa corrente estética a locais fechados e
destinadas a evidenciar uma idéia de progresso e “status”, bem diferente do que fora sua
fase de apogeu. Pouco a pouco, o ideal revolucionário enfraqueceu e o muralismo
tornou-se também decorativo, enfatizando influências com materiais e formas.
As próprias estruturas governamentais, no campo das artes plásticas, caminharam
para posições mais elitistas e individualistas.O Instituto Nacional de Bellas Artes y
Literatura, em 1947, organizou uma grande exposição de auto-retratos, divulgando-a
como um “estímulo ao gênio artístico e reforçando a individualidade da criação
plástica”, rompendo, assim, com a orientação mais coletivista que estivera presente nas
origens do muralismo mexicano. Concorreu também, para o enfraquecimento das
posturas “socializantes”, a consolidação do sistema de galerias comerciais que,
estruturou-se, ao longo das décadas de 40 e 50, chegando a atuar, neste período, 25 salas
de arte na Cidade do México. Dentre elas, destacavam-se a Prisse-Fórum de José Luis
Cuevas e a Prometeu-Espaço de Rufino Tamayo. Assim, a criação do Museu de arte
Moderna, em 1964, de certa forma é expressão, senão da vitória da abstração no México,
pelo menos da derrota do realismo social enquanto movimento hegemônico no sistema
das artes plásticas. O que fica evidente, também, com a grande exposição “Tendências
da Arte Abstrata no México”, em 1967, no Museu de Ciências e Artes da UNAM,uma
espécie de prestação de contas da atuação dos artistas abstratos até aquele momento.
Já as trajetórias de abstração no Brasil e Argentina foram bastante diferenciadas do
caso mexicano,mas semelhantes entre si e integradas, sendo esses dois países latino-
americanos onde a arte abstrata mais se desenvolveu.Damian Bayon afirma “... nadie
entre los que se ocupam de estas cosas em la Argentina ha tenido nunca uma verdadera
´Virgindad cultural´, ni mucho menos”.7 Na verdade, a penetração das correntes
abstratas internacionais, dos anos 40 e 50, encontrou eco em experiências artisticas já
existentes na cosmopolita Buenos Aires.
Uma das mais importantes é a de del Prete, que estudara em Paris, vinculando-se em
1929 à “Agrupation Invention – Création – Art non figurative” do qual participou como
secretário, e que, já em 1933, realizou em Buenos Aires uma exposição de collages
abstratas. Além disso, a prédica teórica de Torres Garcia foi um referencial que
permaneceu sempre presente no meio artístico argentino.Assim, a aparição da revista
Arturo, em 1944, contando com a participação de Arden Quin, Kosic e Tomás
Maldonado somente marcou uma nova etapa da vanguarda abstrata Argentina.
O que se pode constatar é que sementes, já plantadas no solo local, floresceram
dadas as novas condições de expansão ao nível internacional, principalmente
impulsionadas pelos EUA.
O caso do Brasil configura-se um pouco distinto,uma vez que a arte figurativa, que
fora hegemônica no Modernismo dos anos 20 e 30, constituiu um empecilho bastante
forte à penetração das correntes abstratas. Pode-se afirmar que, aqui, a abstração veio
do exterior através de personalidades difusoras e, principalmente, através da instituição
da Bienal Internacional de São Paulo.
Criada em 1951, sob o impulso de setores da burguesia empresarial paulista,
liderados por Cicillo Mattarazo, a Bienal foi um impulso decisivo ao movimento
abstracionista então emergente no País. O júri internacional concedeu o grande premio à
“Unidade Tripartida” de Max Bill e um prêmio à jovem pintura nacional ao
abstracionista Ivan Serpa. É importante observar que esta premiação foi um importante
fator na consolidação das correntes abstratas, no sistema das artes plásticas local, mas,
também a primeira grande vitória internacional da arte concreta. A Bienal Internacional
de São Paulo referendou, ainda, o Expressionismo Abstrato com uma sala especial
dedicada a Pollock, em 1957.
Assim, a América Latina, dentro do movimento internacional da abstração, não foi
somente receptora, mas atuou também como legitimadora e em muitos casos, como
espaço de desenvolvimento de importantes artistas. Tomás Maldonado, por exemplo, um
dos fundadores da revista Arturo, na Argentina, e um dos mais importantes produtores e
difusores da abstração, em 1955, transferiu-se para a Alemanha, onde atuou como
professor e, posteriormente, diretor da escola de Ulm, criada por Max Bill. A
internacionalização dos meios de produção, difusão e consumo, pós-45, possibilitou a
integração dos diversos sistemas das artes locais de uma forma até então não existente.
A consolidação dos sistemas das artes modernas (com museus de arte moderna e
contemporânea, galeria de arte, marchand e críticos e artistas profissionais) ocorreu na
América Latina de maneira integrada com a difusão da arte abstrata. Portanto, a
modernidade, nos anos 40 e 50, era representada não só pela absorção das formas
estilísticas da abstração, mas também por todo um conjunto de instituições e meios
modernos de produção, difusão e consumo de artes plásticas. Brasil, e também
Argentina, exemplificam bem estas transformações, evidenciando um processo que
ocorreu no campo das artes plásticas, mas que estava articulado à modernização que se
implantava na sociedade latino-americana em geral.
Após o término da Segunda Guerra, a expansão dos interesses econômicos norte-
americanos na América Latina levara a grandes investimentos dirigidos à modernização
da produção. Seja diretamente em empresas particulares, ou indiretamente, através de
empréstimos estatais, o fluxo de capital norte-americano para a América Latina
implementou uma nova onda modernizadora que atingiu os mais diversos níveis da
sociedade. Houve,naquele período, o desenvolvimento de um pensamento político-
econômico, elaborado teoricamente pelo grupo de economistas da CEPAL. Eles
representavam alguns setores das elites latino-americanas que acreditavam nos
investimentos estrangeiros como meio deflagrador de processos transformadores da
economia, capazes de levar à superação das condições de subdesenvolvimento em que a
América Latina vivia há séculos. No contexto desse pensamento “desenvolvimentista” é
que localizaram-se as tendências artísticas abstratas. Elas integravam-se de alguma
forma, a esta crença na racionalidade, na máquina, enfim, na modernidade. Portanto, sua
difusão não foi somente resultado de uma imposição externa, mas também fruto de
aspirações bastante concretas de diversos países latino-americanos.
A arte abstrata correspondeu, em nível internacional, ao desenvolvimento dos meios
de produção, às novas técnicas e noções científicas, concretizadas, ao longo da Segunda
Guerra, e dominantes depois de seu término. Na América Latina estas condições de
desenvolvimento também ocorreram, porém, de forma concentrada em alguns núcleos
como Rio de Janeiro, São Paulo, Buenos Aires, Caracas, Cidade do México. Foram
nestes pólos, que as correntes de abstração tiveram expressão e força. A expansão, mais
generalizada da arte abstrata na América Latina evidenciou a artificialidade de uma
produção artística importada e em desacordo com as condições concretas de sua
produção, circulação e consumo. Uma afirmação tão ampla, no entanto, exige um
aprofundamento na forma como esta difusão se realiza, uma vez que a introdução de
uma nova tendência não ocorre sem uma complexa disputa dentro dos sistemas das artes
plásticas locais.
Considerando que a arte abstrata não se gestou na América Latina, mas foi, ainda
que desejada por diversos segmentos, uma importação, é fundamental destacar o papel
daqueles que a introduziram nos diversos sistemas locais. Os introdutores trouxeram
informações do exterior e atuaram em seus diversos países no sentido de abrir espaço
para a nova tendência com a qual se identificavam. No Brasil, dois nomes devem ser
destacados: o de um crítico e o de um artista plástico. O primeiro, Mário Pedrosa,
quando exilado, viveu de 39 a 45, em Nova York, onde entrou em contato com
importantes nomes do movimento abstrato, aderindo incondicionalmente a suas idéias.
O segundo, Waldemar Cordeiro, retornando da Europa, onde fizera sua formação, trouxe
na bagagem as propostas do concretismo que empenhou-se em desenvolver e difundir.
Na Argentina, por outro lado, o já citado Del Prete, que estivera ligado a Vantangerloo e
ao grupo “De Stijl”, foi um nome fundamental. Outro artista de atuação decisiva foi
Lucio Fontana. Filho de italianos, fez sua formação na Europa e, já em 1934, aderia ao
movimento “Abstracion – Creation”. Retornando a Buenos Aires, em 1939, publicou,
em 1946, o “Manifesto Blanco” que obteve grande repercussão nos meios artísticos.
Também, na área da crítica da arte, dois nomes destacaram-se na difusão da abstração na
Argentina, Romero Brest e Aldo Pellegrini.
As dificuldades encontradas para expansão das correntes estilísticas abstratas, na
América Latina, e o esforço levado a cabo por estes empenhados difusores, pode ser
avaliado pelas palavras de Damian Bayon

La primera comprobación que no deja


de asombrarme – hasta tal punto uno
recuerda mas sus propias reacciones – es el
poco lugar que en 1948 dábamos a lo que
todavía entonces se dudaba en llamar “arte
abstracto”. A esa forma de arte yo
personalmente me convertiré no en mi
primer viaje a los Estados Unidos em 1947,
sino al año siguiente cuando me instalé en
Paris en plena floración de la tendencia.8

Ora, se na cosmopolita Buenos Aires foi complexo e difícil o processo de penetração


e desenvolvimento da abstração, imagine-se nos demais países da América Latina, ainda
mais que, ao longo das décadas de 40 e 50, a arte abstrata exigiu de seus adeptos latino-
americanos contatos diretos e permanentes com as fontes européias e norte-americanas.
Um fator decisivo na consolidação das correntes abstratas na América Latina, foi a
fomrção de grupos. Agregando artistas e teóricos, os grupos atuaram na formação de
idéias e na promoção de eventos. Dessa forma, tornaram ais sólidos os debates e as
próprias produções plásticas, o que era decisivo para um movimento baseado em
princípios de racionalização e conceitualização. Contribuíram, também, na difusão do
movimento através da organização de mostras, publicação de revistas, lançamentos de
manifestos, etc... Na Argentina, os primeiros grupos abstracionistas foram “Agrupación
Arte Concreto-Invención” sob a direção de Arden Quin e “Asociación Arte Concreto-
Invención” criado por tomas Maldonado,ambos surgidos em 1945. Arden Quin e
Kosice, no ano seguinte, organizaram um grupo dissidente, o “Arte Madi”. Houve ainda
os movimentos “Madimensor”, criado em 1947, e o “Perceptualismo”, em 1948.
Posteriormente, em 1952, foi organizado o grupo ”Artistas Modernos da Argentina” e,
em 1952, a Asociación Arte Nuevo”. No Brasil, não houve uma diversidade de grupos
tão grande como na Argentina. Os mais importantes grupos foram “Ruptura”, surgido
em 1952, e o grupo “Frente”, de 1954. Atuaram, também, como grupos concretistas, em
São Paulo, e os neoconcretistas, no Rio de Janeiro.
Além da formação de grupos, a publicação de revistas foi uma estratégia de suma
importância para a aceitação das correntes abstratas no meio artístico latino-americano.
Estas publicações, periódicas e especializadas, difundiam idéias de diferentes posturas
dentro do próprio movimento, estabelecendo um debate fundamental para a
compreensão dos principais teóricos que embasavam os diferentes grupos. Considerando
o restrito círculo de produtores e consumidores de artes visuais na América Latina e a
persistência, no seio dele, da orientação figurativa, pode-se avaliar o papel
desempenhado pelas revistas específicas do movimento abstrato. É tão decisiva sua
presença, que a maioria dos autores é unânime em estabelecer como marco do
surgimento do movimento abstrato, na Argentina, a publicação do primeiro e único
número da revista Arturo em 1944. Esta revista expôs os distintos matizes da arte
geométrica na Argentina, contando com a participação de poetas e artistas plásticos
como Arden Quin, Kosice e Maldonado, este último responsável pela ilustração da capa.
Na Argentina, ainda surgiram depois de Arturo, as revistas Invención – Arte Concreto,
em 1947; e Nueva Vision, em 1951.
No Brasil, em 1952, foi lançado o primeiro número da revista Noigrandes, dos
poetas concretistas Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, os quais, depois, se
integraram ao grupo concretista de São Paulo, juntamente com Waldemar Cordeiro.
Embora, no Brasil, não tenha havido tantas revistas exclusivas dos abstratos como na
Argentina, artistas e teóricos ligados ao movimento usaram espaço em outras revistas e
jornais para difundir suas idéias. Quando da cisão do movimento concreto, em 1957, od
grupos do Rio de Janeiro e São Paulo expressaram suas idéias em dois importantes
textos. Os primeiros, representados por Ferreira Gullar e Oliveira Bastos, publicaram
Poesia concreta: uma experiência intuitiva;os segundos, representados por Haroldo de
Campos, publicaram Da fenomenologia da composição à matemática da
composição.Além disso, em 1956, a revista A. D. Arquitetura e Decoração dedicou um
número quase que exclusivo à I Exposição Nacional de Arte Concreta.
Foram, também, de grande importância os livros publicados por teóricos ligados aos
movimentos da abstração na América Latina. Eles estabeleceram suportes mais
desenvolvidos das idéias dos diferentes grupos, sendo ponto de referência para debates e
posicionamentos. No Brasil, Mário Pedrosa publicou, em 1949, Arte,necessidade vital.
Um pouco antes desta publicação, ele havia defendido tese na Faculdade Nacional de
Arquitetura do Rio de Janeiro, intitulada Da natureza objetiva da forma na obra de arte,
sobre a gestalt. Na Argentina, Romero Brest publicou, Que es el arte abstracto, em
1953 em Buenos Aires. É importante destacar que os movimentos abstratos, por
construírem-se sobre fortes bases teóricas, envolveram em seus mecanismos de difusão,
de forma intensa, a palavra escrita.
Os elementos analisados auxiliam na compreensão dos inúmeros mecanismos,
através dos quais, nos sistemas locais, foi consolidando-se a arte abstrata na Amésica
Latina. O significado dessa consolidação remete à incorporação do repertório
“moderno”, que os artistas latino-americanos realizaram. Por meio dessa “onde
abstrata”, esses artistas lograram apropriar-se de meios expressivos da
modernidade,pensando o espaço plástico além de sua representatividade. Uma afirmação
de Ronaldo Brito, emitida a respeito da arte brasileira é válida, em muitos casos, para a
América Latina.
“Foi na década de 50 que o meio de arte brasileira começou a lidar com os conceitos
da arte moderna e as implicações deles advindas, seja crítica ou produtividade”.9O
processo de absorção das correntes abstratas na América Latina não representou a
incorporação da modernidade somente ao nível da produção, mas também na
configuração de sistemas das artes plásticas modernas nos diferentes países. Isso
significa a criação de museus de arte moderna e contemporânea, o estabelecimento de
um circuito de galerias e a constituição de um mercado de arte. Dessa forma, os sistemas
acadêmicos, que haviam sido implantados ao longo do século XIX, foram finalmente
suplantados pelos sistemas modernos de mercado, articulados e análogos ao sistema
internacional e, também, desse último dependentes.
Como já foi observado, no estudo das correntes abstratas na América Latina
evidencia-se um duplo movimento: do exterior para o interior, os movimentos são
introduzidos através de uma intensa política de exportação cultural, destacando-se mais
os mecanismos de dominação e dependência. Um outro movimento, no entanto,
processa-se internamente aos sistemas locais, no sentido de construir, com os novos
meios, processos próprios de desenvolvimento e auto-identidade. Pode-se afirmar,
assim, que, na América Latina, internacionalização e identidade não são,
necessariamente,caminhos antagônicos, mas condições de existência. A América
constituiu-se sob o signo da dependência e da internacionalização e, na consciência
dessa contradição, realizam-se grandes obras, que foram importantes contribuições da
arte contemporânea.
Concluindo, pode-se afirmar que a arte abstrata na América Latina esteve ligada ao
desenvolvimento cultural do período em que ocorreu, tendo-se ajustado nos diversos
países onde atuava como agente da consolidação nacional frente à dominação européia e
norte-americana. Mas por outro lado, significou uma nova e inevitável situação de
dependência. Além disso, a analise da penetração da arte abstrata na América Latina
permite outra constatação: pode-se falar de uma arte latino-americana, na medida em
que diversos sistemas locais desenvolvem-se em processos evolutivos paralelos, tendo
uma inserção peculiar na conjuntura da arte contemporânea internacional.

NOTAS

1. ARGAN,Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.
525.
2. Trabalharam sobre este tema: TRABA, Marta e SUAREZ, Orlando e GOLDMAN,
Shifra
3. COCKROFF, Eva. In:AMARAL, Aracy, Arte para quê?. São Paulo: Nobel, 1984,
p. 16.
4. Sobre esse tema específico trabalhou COLDMAN, Shifra.
5. SINCRE, José Gomes. In: SUAREZ, Orlando. La jaula invisible. Habana : Ciencias
Sociales, 1986.
6. PALMA REYS, Francisco. 50 años de Artes Plásticas y Política en México (1934-
1984). Plural. México : vl. XVIII-IX, n. 201, jun. 1988.
7. Aventura Plástica de Hispanoamérica. México : Fondo de Cultura Economica. 1991,
p. 263.
8. Op. cit. p. 103.
9. BRITO, Ronaldo. Neocentrismo. Vértice e Ruptura. Rio de Janeiro : Funarte, 1985, p.
32.

Você também pode gostar