JUSTINE (1957)
“Só se podem fazer três coisas com uma mulher”, disse um dia Clea. “Podemos amá-la,
sofrer por ela, ou então fazer literatura.” Eu passava pela experiência de um fracasso em
todos estes domínios do sentimento. (27)
(...) A nossa conversa escolhia um caminho repleto de insinuações que tomávamos por
presságios de uma pura e simples amizade. (...) Só um desejo predominava em nós, e era
o de comunicar os pensamentos e experiências que ultrapassam a gama das ideias que,
ordinariamente, são o tema das conversas. (...) Não consigo recordar-me em substância
do que tratávamos nessas conversas. Apoiando-me sobre um cotovelo, bebendo arak,
sorrindo-lhe, eu respirava o perfume, quente como o próprio estio, que se exalava do seu
vestido e do seu corpo (...)
São estes momentos que o escritor possui, e não o amante, e que vivem para sempre.
Podemos recordá-los uma vez por outra, ou servirmo-nos deles para construir esta porção
de vida que é a obra literária. Podemos embriagá-los com palavras, mas o que não
podemos é destruí-los. (29)
Oxford tinha tentado transformá-lo num pedante e apenas conseguira desenvolver as suas
tendências filosóficas a ponto de o incapacitar para o culto da sua arte predileta: a pintura.
Pensava e sofria muito, mas faltava-lhe a força necessária para ousar, que é condição
essencial para realizar seja o que for. (32)
Não dar importância ao ganho, eis o que para os alexandrinos é o expoente máximo da
loucura. (32)
Nunca me senti mais perto deles – quero dizer, mais perto do casal que eles formavam;
pareciam-me, então, esse animal ideal de duas cabeças que o casamento pode produzir.
Vendo a luz quente e benevolente que brilhava nos olhos de Nessim, compreendi,
recordando-me dos escandalosos rumores que corriam acerca de Justine, que tudo quanto
ela pudesse ter feito – mesmo aquilo que aos olhos do mundo pudesse passar por
repreensível ou chocante – tinha, num certo sentido, sido feito por amor dele. (...) os
esforços que ela fazia para se realizar não a tinham afastado dele, muito pelo contrário.
Sei bem que o mundo ignora esta espécie de paradoxo e não está habituado a ele; mas
Nessim conhecia-a e aceitava-a de um modo que é absolutamente incompreensível para
aqueles que não conseguem separar o amor dos ideais corruptos da propriedade privada.
(...) “(...) No final de contas, ela só comprometia a parte mais insignificante da minha
pessoa: a minha reputação.” (35)
“Talvez o surpreenda se lhe disser que sempre pensei que em Justine havia uma espécie
de grandeza. Há certas espécies de grandeza, sabe, que, se não se aliam à arte ou à religião,
fazem destroços na vida ordinária. É pena que tenha aplicado os seus dons somente nos
domínios do amor. Foi má de muitas maneiras, é bem certo, mas isso não tinha
importância. Nem sequer posso, também, afirmar que não fez mal a ninguém. Mas mesmo
aqueles a quem feriu saíram enriquecidos da experiência. Arrancava as pessoas dos seus
velhos invólucros, obrigava-as a sair de si próprias. É natural que isso seja doloroso, e
muitos se equivocaram sobre a natureza da dor que ela lhes infligia. Mas eu, não!” E
sorrindo sobre aquele seu bem conhecido sorriso, onde a doçura se casava com uma
inexprimível amargura, repetiu em voz baixa: “Mas eu, não.” (36)
“Ah!”, disse Justine uma certa vez, “se ao menos houvesse algo de livre, algo de
polinésico nesta devassidão em que vivemos.” (41)
(...) para mim todas as ideias se equivalem; o facto de existirem, apenas prova que alguém
as criou. Que me interessa que sejam objetivamente justas ou falsas? De qualquer modo,
não podem ficar indefinidamente no mesmo estado. (42)
- Não fazemos isto por desejo nem por curiosidade. Temos ambos demasiada experiência
destas coisas: mas temos alguma coisa que aprender um com o outro. Que pensas tu que
seja? (47)
“E vão acreditar”, escreve ela, “que o amor possa advir de uma comunhão de espíritos,
de pensamentos; é a explosão simultânea de dois espíritos empenhados no ato
independente de se expandirem. E a sensação é a de que alguma coisa explodiu dentro
deles, silenciosamente. Em torno deste acontecimento, assombrado e apreensivo, o
apaixonado ou a apaixonada continua a viver examinando a sua própria experiência;
apenas a gratidão cria nela a ilusão de que comunica com o seu amigo, mas é falso,
porquanto ele nada lhe deu. O objeto amado é, simplesmente, aquele que viveu uma
experiência igual no mesmo instante, como um Narciso; e o desejo de estar junto do
objeto amado é devido, em primeiro lugar, não à ideia de possuí-lo, mas, simplesmente,
de permitir a comparação entre as duas experiências, como a mesma imagem vista em
espelhos diferentes. Tudo isto pode preceder o primeiro olhar, o primeiro beijo, o primeiro
contacto; preceder a ambição, o orgulho e a cobiça; preceder as primeiras declarações que
assinalam o ponto de viragem – pois a partir daqui o amor degenera em hábito, em posse
e... em solidão.” Que característica é esta descrição do amor, tão a sério, tão... Justine!
(49)
(...) O seu rir era tão límpido, tão ligeiro e espontâneo que decidi imediatamente não
resistir ao amor que sentia começar a nascer dentro de mim. (...) Os nossos caracteres e
predisposições eram completamente diferentes, e entretanto, na mágica facilidade desta
amizade, sentíamos que algo nos estava prometido. (58)
Uma cidade torna-se um universo quando estamos apaixonados por um dos seus
habitantes. (60)
(...) “O que eu procuro sem cessar é uma vida que valha a pena ser vivida. (...)” (64)
(...) tentando ocultar o seu apetite de saber a sua avidez de conhecer, sob uma máscara de
sentimento. Sinto-me tentado a, tristemente, crer que nunca a emocionei realmente e que
fui como uma espécie de laboratório de que ela se utilizava. (...) É estranho, mas não foi
como amante e sim como escritor que realmente a encontrei. (67)
Começava a vê-la numa perspetiva diferente; como alguém muito capaz de se destruir a
si próprio por teimosia e de perder a felicidade que procurava – era um traço que ela tinha
de comum com todos nós – e para cuja realização empenhava toda a sua vida. Estes
pensamentos tiveram o efeito de arrefecer um pouco o meu amor por Justine. Às vezes,
tudo quanto sentia por ela era repugnância. Mas o que me horrorizou foi descobrir que
não podia passar sem ela. Sem a sua presença, a vida parecia-me mortalmente enfadonha
e desprovida de sentido. Estava apaixonado. Essa ideia enchia-me de inexplicável
desespero, de verdadeiro desgosto. Era como se tivesse compreendido,
inconscientemente, que nela se encontrava o meu génio mau. (68)
Seria o drama liberto das cadeias da forma. O meu livro teria o direito de sonhar
livremente. (70).
“A nossa doença”, dizia elam “é querer explicar tudo dentro dos quadros da psicologia
ou da filosofia. No final de contas, Justine não tem de ser justificada ou desculpada. Ela,
simplesmente e magnificamente, é. Devemos aceitá-la assim mesmo, como aceitamos o
pecado original. Chamá-la de ninfomaníaca ou introduzir o freudismo aqui, meu caro, é
privá-la de toda a substância mítica – a única coisa que ela realmente possui. Como todas
as pessoas imortais, ela tem algo de deusa. (72)
“Tudo quanto as grandes religiões realizaram foi uma relação de atos e pensamentos
interditos. As interdições engendram o desejo daquilo que proíbem. Nós, os membros da
Cabala, dizemos: cede, mas sublima-te. Nós aceitamos todos os homens e todos os
desejos para que a plenitude do homem afronte a plenitude do Universo, aceitamos
mesmo o prazer, a destrutiva fragmentação da mente no prazer.” (91)
- Falo-lhe agora como membro da Cabala e não a título pessoal. Amar apaixonadamente,
ainda que à própria mulher, é cometer adultério. (92)
(...) “Servimo-nos dos outros como se fossem machados para abater aqueles a quem
realmente amamos.” (100)
(...) Não reconheci no odor húmido do quarto o odor do seu iminente suicídio – como
poderia eu adivinhar? Sabia que ele era infeliz; mas, mesmo que não fosse, sentir-se-ia
obrigado a simular infelicidade. Atualmente, não se compreende um artista que não seja
de certo modo infeliz. E na sua qualidade de anglo-saxão, Pursewarden tinha a mórbida
tendência de se apiedar de si próprio (...) (102)
(Devo relatar os factos, não na sua ordem cronológica – isso compete à história – mas na
ordem em que adquirem um significado para mim.) (103)
“Durante anos esforçamo-nos por aceitar a ideia de que as outras pessoas não se importam
absolutamente nada connosco; depois, certo dia, com um pavor crescente, descobrimos
que é próprio Deus que não se interessa por nós: e, o que é pior, descobrimos que lhe é
totalmente indiferente que sejamos uma coisa ou outra: bons ou maus.” (105)
Há no amor alguma coisa (não direi que seja um defeito do amor porque o defeito está
em nós próprios), mas qualquer coisa que não compreendemos na sua natureza. Por
exemplo, o amor que sente por Justine não é um amor diferente por um objeto diferente,
mas o mesmo amor que sente por Melissa tentando realizar-se através de Justine. O amor
é terrivelmente permanente e cada um de nós só tem direito à sua pequena porção. Pode
aparecer sob uma infinidade de formas e prender-se a uma infinidade de pessoas. Mas é
limitado em quantidade, e não pode esgotar-se e desaparecer antes de alcançar o seu
verdadeiro objeto. O seu destino oculta-se algures, nas mais profundas regiões da alma,
onde acabará por se reconhecer como o amor de si, o terreno sobre o qual construímos
uma espécie de saúde da alma. E isto não é nem egoísmo nem narcisismo. (114-115)
Havia algo de esgotante e doentio naquela maneira de amar tão bem, amando tão pouco.
(118)
(...) O provérbio árabe que diz: “a riqueza pode comprar riqueza, mas tudo quanto a
pobreza pode comprar é o beijo de um leproso.” (147)
Justine amava-me porque eu representava, para ela, algo de indestrutível – uma pessoa
adulta que não podia ser quebrada. Sentia-se perseguida pelo pensamento de que mesmo
quando eu estava fazendo amor com ela estava ao mesmo tempo desejando apenas
morrer! E isso era-lhe intolerável.
(...)
Eu interessava-lhe simplesmente nesse particular especial que nem eu lhe podia oferecer
nem ela me podia roubar. É isso a posse: estar constantemente em guerra contra as
qualidades mútuas; lutar pelos tesouros compreendidos na personalidade do outro. Mas
como pode findar tal guerra senão em desespero e destruição? (166)
Em qualquer parte, no núcleo da experiência, há uma ordem e uma coerência que nos
surpreenderiam se fôssemos suficientemente atentos, amantes ou pacientes. Chegará o
tempo? (184)
(...) os acontecimentos nada mais são do que uma espécie de comentários dos nossos
sentimentos – estes podem ser deduzidos daqueles. O tempo leva-nos (imaginando
ousadamente que somos egos discretos modelando os nossos próprios futuros) – o tempo
leva-nos para diante pelo impulso desses sentimentos de que nós, pelo menos, temos
consciência. (198)
“Os amantes nunca se combinam bem, não acha? Um deles lança sempre a sua sombra
sobre o outro e impede-o de crescer, de modo que aquele que se sente sufocado procura
desesperadamente um meio de evadir-se, para poder crescer sem entraves. Não é este o
drama essencial do amor? (...) (199)
Seria possível uma amizade nesta encosta do amor? Uma amizade que pudéssemos
procurar e descobrir? Não falo de amor – a palavra, com todas as convenções odiosas que
invoca, tornou-se-me odiosa. Mas não será possível alcançar uma amizade que seja ainda
mais profunda, infinitamente mais profunda, para além das palavras e das ideias? Será
possível um ser humano a quem guardemos fidelidade, não no corpo (deixo isso aos
padres) mas no espírito culposo? (200)
Decidi não responder à última carta de Clea. Não quero dominar mais ninguém, não quero
fazer mais promessas, não quero pensar na vida em termos de pactos, de resoluções, de
contratos. Cabe a Clea interpretar o meu silêncio consoante os seus próprios interesses e
os seus próprios desejos, de vir juntar-se comigo ou de não vir, conforme sinta, ou não,
que necessite fazê-lo. Não dependem todas as coisas da interpretação que damos ao
silêncio que nos rodeia? (201)