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Resumo
Em continuação a estudo fenomenológico e observacional publicado em 15/05/2020 no jornal
eletrônico FOCUS [1] este estudo faz uma análise mais aguçada sobre as possíveis evidências
benéficas que tenham resultado do lockdown cearense. As medidas restritivas severas que
foram decretadas pelo governador do Estado do Ceará a partir de 8 de maio de 2020, tiveram
como objetivo a contenção de uma suposta “explosão” de mortes por Covid-19.
Nós consideraremos os dados sobre o número diário e acumulado de mortes e de casos
confirmados e cinco parâmetros são analisados: Razão de Crescimento Diário de Mortes, Taxa
Absoluta de Mortes, Taxa Diária de Mortalidade, Taxa Diária de Letalidade e Tempo de
Duplicação de Mortes e de Casos Confirmados. Esses parâmetros para o Brasil, Ceará e seis
estados – Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Bahia e Rio Grande do Sul – são
comparados entre si. Os resultados obtidos indicam que a estratégia do lockdown pode não ter
salvo nenhuma vida a mais nos estados que o adotaram, comparativamente aos estados que
apenas adotaram a estratégia de distanciamento social e uso de máscaras. Em todos os estados
os resultados mostram evoluções temporais da epidemia semelhantes entre si, independente-
mente de terem adotado ou não a contenção domiciliar imposta e fechamento da economia,
ou lockdown. A conclusão final é que o lockdown no Ceará foi inútil no enfrentamento da
Covid-19, mas marcará indelevelmente o estado por sua perversidade e crueldade.
Introdução
O conhecimento a respeito da epidemia da COVID-19 cresceu enormemente, entretanto esta
doença continua a desafiar a capacidade de resposta dos governos que, visando o bem da
sociedade, devem analisar com muito cuidado as estratégias de enfrentamento da epidemia. As
estratégias não podem ser adotadas simplesmente porque foram adotadas anteriormente em
outros países ou estados.
Desde a adoção da estratégia de lockdown em uma região bem específica da China e,
posteriormente, na Europa Ocidental muitos questionamentos têm surgido quanto aos
benefícios no estado físico e mental da população: Por que privilegiar a doença Covid-19 em
detrimentos das milhões de mortes que continuam a ocorrer e que poderão se ampliar pela
diminuição ou falta de assistência médico-hospitalar? O lockdown não estaria aumentando o
estresse e piorando as condições mentais por causa do isolamento, com risco iminente de mais
suicídios, que sozinho já mata mais que a Covid-19? Quão sérias serão as consequências
humanas, sociais e econômicas com a inexorável recessão que já se iniciou? Estes
questionamentos são apenas alguns pontos que os governos não têm discutido francamente
com a população.
Em particular, o governo do Ceará decretou sucessivas medidas de contenção social sem que a
população seja informada claramente das razões pelas quais essas medidas são decretadas e
implantadas, até com o uso da força policial. Em verdade as razões são colocadas, mas de
forma lacônica e baseadas em uma ciência que não se mostra e que não é mostrada, aqui ou ali
ou acolá. A ciência que não se mostra não pode ser entendida e nem, eventualmente, ser
criticada. O que o governo mais tem ressaltado para a população é a sua “credibilidade de
autoridade” que, baseada na “ciência, profere números que assustam e emudecem a
população: iremos à China comprar “zilhões” disso e daquilo porque a situação é de guerra
total contra o desconhecido; esta doença deixará marcas indeléveis no Ceará porque serão 250
mortes a cada dia; na próxima semana, no melhor dos cenários, poderão morrer 4000
cearenses e se não adotarmos o lockdown serão 5000 mil mortes; ... , contratamos 3000
sepulturas em caráter de urgência e licitamos a compra de 3000 caixões e uma
retroescavadeira para cavar os sete palmos de terra que lhes são reservados.
Diante de tais afirmativas resolvemos realizar este estudo, que utilizará uma abordagem
fenomenológica e observacional para compararmos as evoluções da epidemia antes e depois
do lockdown com o intuito de verificar de forma incontestável se ocorreram os benefícios
prometidos.
Alguns governantes argumentam que avaliação em tempo real da eficiência do lockdown é
muito importante para auxiliar a tomada de posição nas decisões de ações públicas visando à
contenção da doença Covid-19. Um estudo com abordagem observacional foi realizado na
tentativa de obter resposta ao lockdown em países europeus. Os países estudados foram a
Itália e a Espanha e os resultados sugerem que houve saldo positivo em retardar a epidemia. [2]
Nossa abordagem tem semelhanças com esse último trabalho. Contudo, mostramos que não há
evidências de o lockdown tenha influenciado na evolução temporal da epidemia da Covid-19 na
Espanha, França, Itália e Reino Unido. [1]
Metodologia
Os surtos epidêmicos são sistemas dinâmicos complexos que apresentam comportamentos
gerais semelhantes. Em todos os lugares, o número de novos casos diários segue uma evolução
temporal semelhante: após um rápido crescimento inicial, os novos casos tendem a atingir uma
região de máximo, para decaírem a seguir, como se a imunidade de grupo tivesse sido atingida.
Algumas ações públicas podem retardar a reprodução vírus, como se observou na influenza
sazonal e em recentes epidemias de coronavírus H1N1, SARS e MERS. [3, 4] Entre essas ações
estão as medidas de higiene, o uso de máscaras, estratégias de distanciamento social e, em
casos extremamente graves, o lockdown.
Desde que, o lockdown é uma medida extrema que apenas se justifica se os resultados
benéficos dela oriundos suplantarem verdadeiramente e de forma inquestionável os prejuízos,
que ele certamente provocará. Uma condição necessária para que se aplique o lockdown é que
os parâmetros observados da epidemia sofram uma ruptura na evolução temporal da doença.
Uma forma de ver a influência do lockdown no número de mortes por Covid-19 é ilustrado na
Figura 1 a seguir. A partir da data de implantação do lockdown deve ser esperado de duas a três
semanas para que os efeitos dele decorrentes se tornem evidentes. Esse intervalo é chamado
de Janela Temporal de Efeito do lockdown.
Na Figura 1, o gráfico mostra claramente uma ruptura no número diário de mortes: as mortes
diminuíram sensivelmente na janela temporal do lockdown.
Neste estudo a evolução no tempo do número diário de mortes é expressa pelo seu logaritmo
decimal do número diário de mortes, LDM, o que nos permite verificar com maior facilidade a
sua evolução temporal. Em nossa análise utilizaremos os seguintes parâmetros, definidos como
segue:
data e período de adoção do lockdown;
a razão diária de crescimento de mortes, RCDM, que é definida como a “derivada”
temporal discreta do LDM, ou a inclinação à curva de evolução no tempo do número diário
de mortes;
a taxa absoluta de mortes, TAM, que é definida como a razão entre as mortes
ocorridas no Dia 14, relativamente aos casos confirmados do Dia 1. Aqui há uma
defasagem de 14 dias, que é o tempo médio para uma pessoa se infectar, apresentar os
sintomas e, eventualmente, ir a óbito – notadamente se não há assistência respiratória
externa;
a taxa diária de mortalidade, TDM, que é definida como a razão entre o número
diário de mortes de dado dia e o número acumulado de mortes até esse dia;
a taxa diária de Letalidade, TL, é definida como a razão entre o número diário de
mortes de dado dia e a soma dos números diários de mortes e casos confirmados;
o tempo de duplicação de mortes e de casos confirmados, TDMC, que é definido
como o tempo necessário para que o número diário de mortes e casos dobre. Esse
parâmetro é muito utilizado no diagnóstico da evolução epidêmica.
Dados
Em relação aos números e informações sobre o vírus SARS-CoV-2 e a doença Covid-19 no Ceará
e Brasil nós utilizamos as três seguintes bases de dados:
1. base de dados do Governo do Estado do Ceará, a base IntegraSUS,
(https://indicadores.integrasus.saude.ce.gov.br/indicadores/indicadores-coronavirus/obitos-
covid);
2. base de dados do Ministério da Saúde do Brasil,
(http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/obt10uf.def);
3. base de dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais, o portal de
Transparência do Registro Civil,
(https://transparencia.registrocivil.org.br/especial-covid).
Resultados
1. Data da Adoção do Lockdown
Na Figura 2 a seguir estão assinaladas por linhas verticais coloridas a data de início do lockdown
em cada um dos quatro países europeus Espanha, França, Itália e Reino Unido. A cor da linha
vertical é a mesma do correspondente país. Para o Ceará a data do lockdown foi o dia 08/maio,
indicada pela reta vertical na cor preta. Como se observa na figura os países europeus
decidiram pela adoção de medida restritiva durante o aumento do número diário de mortes.
A Figura 4 (b) mostra as retas de ajustes de regressão linear das curvas de RCDM consideradas.
Há uma concordância muito boa entre os ajustes das diversas curvas, independentemente do
estado ter ou não adotado o lockdown – dentre os estados dois o adotaram, Ceará e
Pernambuco, e dois não o adotaram, Rio de Janeiro e São Paulo.
Também calculamos o parâmetro RCDM para os estados que apresentaram um número menor
de mortes – Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
A Figura 5 (a) abaixo mostra que o comportamento do parâmetro RCDM nesses estados é
semelhante aos daqueles estados que apresentaram muitas mortes. Ou seja, em todos os
estados, independente de ter ou não adotado o lockdown, observa-se uma diminuição
sistemática na “velocidade” das mortes.
Para que não restasse dúvida quanto ao comportamento do parâmetro RCDM da curva do
Ceará, relativamente a benefícios do lockdown, nós analisamos os dados antes e depois de sua
decretação.
A Figura 5 (b) mostra as curvas de RCDM antes (curva superior em preto) e depois (curva
inferior em lilás) do lockdown no Ceará. Como esperado não há nenhuma mudança significativa
no seu comportamento o que efetivamente demonstra que a “velocidade” com que as mortes
ocorriam no Ceará não foi afetada pela medida imposta pelo governo do estado que apenas
restringiu a liberdade dos cearenses de ir e vir e de trabalharem.
Somente a guisa de informação para demonstrar a completa inutilidade do lockdown no
comportamento da RCDM, a diferença entre os coeficientes angulares das retas dos ajustes
lineares antes e depois, que estão mostrados na Figura 5 (b) é de 25 em 10.000!
Com o objetivo de analisar os dados do Ceará com maior detalhe nós os comparamos com os
dados de Pernambuco, que também esteve sob lockdown e Bahia que não o adotou e,
adicionalmente, verificamos o comportamento da TAM no Ceará ANTES e DEPOIS da data da
medida extrema de isolamento.
A comparação com Pernambuco nos mostra comportamento semelhante na TAM, assim como
com o comportamento do mesmo parâmetro na Bahia. Em nenhum desses três estados pode
ser observada qualquer modificação significativa na evolução temporal de duas TAMs.
Para olhar ainda mais de perto, plotamos na Figura 6 (b) os ajustes da curva do Ceará, ANTES e
DEPOIS da data do lockdown cearense, e o que se observa é que nada, nadinha mudou
relativamente à adoção das medidas restritivas severas.
A conclusão óbvia é que o “Lockdown no Ceará” não alterou em nada a evolução temporal da
Taxa Absoluta de Mortes.
[1] Artigo do autor, “O Lockdown Não Funcionou na Europa, nem Funcionará no Ceará”,
publicado na revista eletrônica FOCUS, em 15/05/2020.
[2] A. Tobías. Evaluation of the lockdowns for the sars-cov-2 epidemic in italy and spain after
one month follow up. Science of The Total Environment, page 138539, 2020.
[3] J. B. Dowd, L. Andriano, D. M. Brazel, V. Rotondi, P. Block, X. Ding, Y. Liu, and M. C. Mills.
Demographic science aids in understanding the spread and fatality rates of covid-19.
Proceedings of the National Academy of Sciences, 2020.
[4] J. C. Lagier, P. Colson, H. T. Dupont, J. Salomon, B. Doudier, C. Aubry, F. Gouriet, S. Baron, P.
Dudouet, R. Flores, and others. Testing the repatriated for sars-cov2: Should laboratory-based
quarantine replace traditional quarantine? Travel Medicine and Infectious Disease, page
101624, 2020.
[5] Artigo do autor, “Modelo Vislumbrando o Final da Curva e Não Mais o seu Pico”, publicado
na revista eletrônica FOCUS, em 04/05/2020.