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À BEIRA-MAR PLANTADOS, RIBEIRINHOS E MARGINAIS

Tive a sorte de nascer no “rectângulo”, designação aconchegante para Portugal


— um pequeno país ibérico debruçado sobre o Atlântico — que, apesar de periférico e
pouco desenvolvido, continua a procurar o seu caminho.
A Península Ibérica foi sempre um território muito apetecível, pelas suas
riquezas naturais, pela amenidade do seu clima e pela sua localização geográfica.
Foram, portanto, vários os povos que, ao longo dos tempos aqui se têm estabelecido.
Para não recuarmos muito, remontemos a 218 a. C., ano em que os exércitos
romanos desembarcam em Ampúrias e iniciaram a conquista da Hispânia,
submetendo inicialmente o litoral mediterrânico e as zonas do Nordeste do rio Ebro e
da Bética, num processo longo e difícil só concluído por Augusto (19 a. C.), com a
dominação dos Galaicos, Ástures e Cântabros.
O espaço onde viria a constituir-se a génese de Portugal começou a
desenhar-se, no Ocidente hispânico, logo desde a época romana, sustentado por uma
base étnica indígena, cuja forte individualização implicou a manutenção mais
prolongada de elementos culturais autóctones. De acordo com Harri Meier, a distância
cronológica que separou a romanização da Gallecia da do resto da Hispânia, o
carácter periférico deste território em relação a Roma e, em menor grau, a
especificidade dos substratos linguísticos pré-romanos nele existentes foram factores
determinantes para a sua individualização cultural e linguística.
Já fragilizada por sucessivas investidas germânicas, a unidade imperial não
resistiu à morte de Teodósio e o Império Romano foi repartido pelos seus dois filhos. A
Arcádio coube o governo do Oriente e a Honório, o do Ocidente. Ainda muito jovem,
Honório foi vítima de vários golpes e contra-golpes político-militares e, em 411, acabou
por estabelecer um pacto com os bárbaros, entretanto instalados, atribuindo a
Gallaecia aos suevos e aos vândalos asdingos, a Lusitânia e o Ocidente da
Cartaginense aos alanos, e a Bética aos vândalos silingos. Mas a paz foi efémera:
novos conflitos levaram à aniquilação de silingos e alanos e à passagem para África
dos vândalos asdingos. Por seu lado, os suevos conseguiram um entendimento fácil
com os chefes hispano-romanos, impuseram o seu poderio e, entre 430 e 456,
consolidaram o seu reino no Noroeste peninsular, demarcando-se esta região, mais
uma vez, do resto da Península Ibérica. Atraídos pelas riquezas do Sul, os suevos
procuraram também o domínio da Lusitânia, da Bética e até da Cartaginense, o que
levou os hispano-romanos a pedirem ajuda a Teodorico (454). Esta intervenção
visigoda levou ao enfraquecimento do poder suevo, reduzindo-se o seu reino à
Gallaecia e aos dois bispados lusitanos de Viseu e Conímbriga, até que, em 573,
Leovigildo conseguiu a unificação política peninsular — um reino cristão, com a corte
em Toledo, regido pelo Liber judicum, o código visigótico regulador da vida
administrativa.
Os visigodos, culturalmente inferiores, não alteraram, na essência, a fisionomia
linguística e cultural da Península Ibérica e acabaram, em parte, por se romanizar —
fundiram-se com a população românica, adoptaram o cristianismo e assimilaram o
latim — mas contribuíram grandemente para o isolamento ibérico do resto do antigo
Império, o que acentuou ainda mais o seu conservadorismo e individualidade.
Na medida em que se tornou uma zona periférica em relação aos pólos do
poder civil e eclesiástico, o Ocidente peninsular foi perdendo importância política e
económica: apesar de manter as suas características de região fortemente
romanizada, alguma da vitalidade cultural e económica da Lusitânia foi-se esbatendo e
a província passou a desempenhar um papel mais passivo na política do reino; na
Gallaecia, predominantemente campesina e pouco romanizada, assistiu-se à
recuperação do vigor dos seus primitivos habitantes, através da sacralização do poder
clerical, da militarização da autoridade política e da ruralização da sociedade —
aspectos em que se manifestam fortes semelhanças com as sociedades noroestinas
de épocas mais recuadas, não inteiramente aculturadas com a romanização.
As invasões árabes contribuíram para acentuar ainda mais a individualidade
peninsular. Na Península Ibérica reinava D. Rodrigo, o último dos reis godos, quando,
em Abril ou Maio de 711, Tarique atravessou o estreito de Gibraltar, desembarcou no
promontório do Calpe e conquistou a orla litoral de Algeciras, marchando
seguidamente rumo a Sevilha. A derrota dos cristãos na batalha de Guadalete abriu
portas à ocupação da Península, contribuindo para a expansão do império árabe, que
se estendia desde as margens do Indo às costas do Atlântico, com a conquista do
desejado Al-Andalus — denominação que os árabes atribuíam à Península. O nome
aparece escrito pela primeira vez num dinar cunhado em 716 e relaciona-se, segundo
a tradição escolar, com os vândalos, pressupondo que a Bética teria sido chamada
«Vandalicia». No entanto, hoje coloca-se a hipótese de Al-Andalus ser uma
designação originalmente relacionada com o mito da Atlântida, criado ou veiculado por
Platão e que impregnou o imaginário mediterrânico: a expressão Jazirat-al-Andaluz, „a
ilha de al Andaluz‟ (adoptada nos textos clássicos árabes) será, assim, a tradução
adaptada de «ilha do Atlântico» ou «Atlântida».
Em finais de 714 a Hispânia estava quase completamente sob a alçada
muçulmana. A debilidade, a falta de coesão das forças autóctones e a quase
indiferença dos povos habitantes das várias regiões conquistadas podem, em parte,
explicar a rapidez com que os invasores muçulmanos dominaram a Península.
Pensa-se até que os árabes terão sido encorajados a entrar na Península por figuras
proeminentes da sociedade visigoda, uma vez que se vivia um clima de guerra civil
decorrente de uma situação política e social instável. Não teria, portanto, havido
propriamente uma “conquista” árabe, mas sim uma ocupação pacífica, conseguida
com base na entrega espontânea das terras e no acordo. Por outro lado, a fácil
arabização peninsular pode também explicar-se por uma política de tolerância em
relação às populações submetidas, a quem era permitido manter alguma autonomia
política e religiosa a troco de contrapartidas financeiras. Além disso, o esplendor da
cultura árabe foi responsável pelo êxito da ocupação: “os hispano-godos foram
submetidos mais pela pujança da novel civilização muçulmana do que pelas armas. Só
assim se compreende que a ocupação árabe da totalidade do enorme território da
Hispânia tivesse podido concretizar-se em apenas cerca de três anos.”.1
De facto, o Al-Andalus proporcionou um encontro de saberes e de culturas, não
só porque na época os árabes se encontravam num apogeu civilizacional que os
tornou pioneiros em áreas tão diversas como a medicina, a matemática ou a
agricultura, mas também porque souberam carrear os conhecimentos dos muitos
povos com que se cruzaram em regiões tão distantes como a China, a Pérsia ou a
Índia. Serviram igualmente de veículo à cultura grega, então já parcialmente esquecida
na Hispânia: se não fossem os seus tradutores, é provável que os tratados de
Aristóteles, por exemplo, tivessem chegado até nós muito mais tarde.
A Idade Média europeia teve pouco de brilhante e grande parte das nações
cristãs viviam mergulhadas num lúgubre obscurantismo, com populações ignorantes e
miseráveis e com muitos príncipes que se compraziam em manifestar o seu enorme
desprezo pela cultura, em profundo contraste com intelectuais e investigadores
muçulmanos que acreditavam no constante evoluir da ciência. Graças às inúmeras
traduções de Ptolomeu, Euclides, Aristóteles, Platão, Empédocles, Hipócrates, Galeno
e Dioscórides, a ciência árabe assimilou e desenvolveu os ensinamentos colhidos na
Antiguidade e, a partir deles, elaborou a sua própria literatura científica, que recobria
áreas como a Matemática, a Astronomia, a Geografia, a Botânica e a Medicina, entre
outras.
Apesar de os contactos entre o mundo cristão e o muçulmano terem começado
quase em simultâneo em Bizâncio, no Sul de Itália, na Sicília e na Península Ibérica,
foi a proximidade hispânica com os reinos cristãos e a permanência prolongada de oito

1
Adalberto ALVES, A herança árabe em Portugal, p. 12.
séculos que fez da Península o decisivo motor de desenvolvimento da ciência
ocidental. Com a Reconquista, Toledo transformou-se num pólo cultural importante,
graças ao centro de tradução de textos árabes que Afonso X, o Sábio (avô de D.
Dinis), aí fundara, em finais do século XI, e onde afluíam eruditos de toda a Europa em
busca dos benefícios da profícua interacção entre as culturas árabe, judaica e cristã. O
mundo ocidental começou a abrir-se paulatinamente para o progresso à medida que
os conhecimentos irradiavam para Norte: sobretudo a partir dos séculos XII e XIII,
começaram a circular, não só na Península Ibérica mas também nas balbuciantes
universidades europeias, as referidas traduções, sucessivamente copiadas por
gerações de monges. Assim, muito antes do Renascimento, o mundo islâmico
constituiu em grande parte a ponte de acesso ao saber antigo: directa ou
indirectamente, somos herdeiros e beneficiários de múltiplos ensinamentos legados
pelos árabes.
Ao contrário da sublime especulação grega, que constituía frequentemente um
fim em si mesma, tudo quanto a ciência árabe descobria tinha uma aplicação prática,
porque para o senso comum muçulmano as ideias só se justificavam se tivessem
alguma utilidade. Souberam, portanto, tirar proveito delas: através de tabelas de pesos
específicos era-lhes possível distinguir o leite de cabra do de vaca, o óleo de sésamo
do azeite e as pérolas do Golfo Pérsico das do Mar Vermelho; fabricaram e refinaram
o açúcar de cana, dando-lhe ou um aspecto cristalizado (tabarzad) ou pilado (candi);
utilizaram o alambique para produzir o álcool, que servia como propulsor volátil dos
perfumes; os sabões, produzidos em grande quantidade e variedade, reinavam nos
banhos públicos (hammams) — ainda no século XVII, a utilização regular do sabão
constituía uma pista usada pela Inquisição espanhola para distinguir e localizar os
muçulmanos convertidos. Assim, no domínio científico e técnico, são muitos os nomes
a quem devemos conhecimentos, técnicas e instrumentos que ainda hoje utilizamos.
No campo da astronomia, o cordovês Al-Zarqali (Arzaquiel, 1029-1087) foi um
dos melhores observadores do seu tempo e autor das conhecidas tabelas planetárias
de Toledo, que os astrónomos da época de Afonso X puderam utilizar, bem como as
Regras para Construir um Astrolábio Universal para as Órbitas dos Sete Planetas e o
Livro do Horizonte Universal, da autoria de naturais do Al-Andalus. Obras também
muito conhecidas são o Tratado do Astrolábio, o Resumo das Tábuas de Albatério e a
Aritmética Mercantil de Abu al-Qâsim Maslama. Enquanto Sanad ben Alu e Ali ben
al-Asturlabi criaram e aperfeiçoaram instrumentos astronómicos — entre os quais o
astrolábio —, Abu Mansur teve já em conta a precessão dos equinócios nas suas
Tábuas Astronómicas Verificadas. Cinco séculos antes de Copérnico, Al-Bitrudji
(Alpetragius) publicou uma enciclopédia de astronomia com um plano do sistema solar
muito próximo do que hoje conhecemos. Abū al-Waffa tornou-se célebre pela sua
análise matemática da mecânica celeste, tendo detectado as irregularidades da órbita
lunar. Abbás Ibn Firnás concebeu o que se pode considerar o primeiro planetário do
mundo, equipado com mecanismos que simulavam nuvens, relâmpagos e trovões e
onde estavam representadas as constelações, os astros e os fenómenos
meteorológicos; inventou também uma clepsidra dotada de automatismos móveis, que
conseguia uma precisão notável na marcação da hora. Além disso, pode-se considerar
Firnás um dos mais remotos pioneiros da aviação: efectuou diversos desenhos
aeronáuticos e projectou um mecanismo revestido de seda e penas com o qual saltou
de uma altura de cem metros, da torre de Rusafa (o palácio-jardim construído por Abd
al-Rahman I, em Córdova), tendo conseguido planar e aterrar sem consequências
graves.
Noutras áreas científicas — biologia, física e alquimia — também houve
contributos significativos: o mesmo Abbás Ibn Firnás inventou uma nova fórmula para
fabricar o cristal; Al-Nazzm propôs uma teoria de evolução biológica; Ibn Al-Haitham
(965-1039), o maior físico do Islão, teve enorme influência no Ocidente com a sua
Óptica; e Ibn Hayyan descobriu os ácidos sulfúrico e nítrico.
A história dos dez sinais gráficos com os quais se pode expressar qualquer
quantidade, por maior ou menor que seja, foi muito discutida. São conhecidos por
“algarismos árabes” mas seria mais correcto chamar-lhes “algarismos utilizados pelos
árabes”, já que parece provado que a sua origem reside na cultura indiana. De facto,
nas ciências exactas, as actividades islâmicas começaram com a tradução dos
Siddhantas hindus por Al-Farazi e atingiram a maior importância com o matemático
Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi (780-850), considerado o fundador da álgebra (<
al-jabar), com o seu livro, que tratava da “ciência das equações”, Hisab al-jabar
wal-mugabala, literalmente „ciência da redução e da confrontação‟. A obra deste
matemático desempenhou um papel importantíssimo na Europa ocidental, constituindo
a principal fonte do conhecimento dos numerais indianos e da álgebra árabe. Foi ele
quem primeiro utilizou o algarismo zero com valor posicional, e devem-se-lhe também
operações fundamentais como a regra de três e o sistema de cálculo da raiz
quadrada. A sua aritmética explicava o sistema posicional de notação decimal indiano
e, embora o original árabe se tenha perdido, existe uma tradução latina do século XII,
Algorithmi de Numero Indorum. Muhammad al-Khwarizmi (cujo apelido é a base
etimológica de algarismo) elaborou também tabelas trigonométricas e astronómicas
com senos e tangentes, que mais tarde foram igualmente traduzidas para latim. Omar
Khayyan (1050-1130), filósofo e astrónomo, autor do Rubaiyat e de uma Álgebra,2
descobriu o conjunto de números, mais tarde conhecidos por «triângulo de Pascal» e
desenvolveu trabalhos na área da geometria, resolvendo problemas e dificuldades não
superadas por Euclides. As aplicações práticas eram inúmeras: a distribuição
equitativa de uma soma de dinheiro, o cálculo da superfície de um terreno ou do
volume de um silo, a decoração de uma parede, etc.. Sem os estudos da avançada
geometria árabe medieval (que conjugou e desenvolveu anteriores conceitos
trigonométricos do Ocidente e do Oriente) não teriam sido possíveis os estuques da
Alhambra ou os arcos imitando estalactites...
A medicina foi uma das ciências que mais evoluiu sob o domínio árabe. De
facto, se o mundo islâmico não tivesse proporcionado a ponte entre Oriente e
Ocidente e contribuído com a divulgação dos princípios científicos e das práticas
médicas, o seu desenvolvimento não teria tido o mesmo ritmo. Até então, o pouco que
restara da tradição curativa da Grécia e de Roma tinha sido preservado em “estado
fossilizado” por alguns clérigos eruditos que, entretanto, se tinham afastado dos
princípios da medicina científica para passarem a usar mezinhas, rezas e
conhecimentos empíricos. No século XI, tudo o que se sabia sobre medicina desde os
gregos até ao ano 1000 fora compilado pelo clínico cordovês Abu Al-Cacim n‟ O
Método, a principal obra da medicina muçulmana ocidental, com os seus 30 volumes
consecutivamente reeditados durante cinco séculos: foi o primeiro tratado com
ilustrações — de 200 intervenções e instrumentos cirúrgicos — e o primeiro a
descrever a hemofilia. No século XII, Córdova contou com outros dois grandes
médicos (também eles filósofos e advogados): Maimónides, de origem judaica, e Ibn
Rushd (Averroes) — autor de uma importante obra intitulada Medicina Geral e o mais
destacado dos médicos islâmicos ocidentais — para quem a medicina era “a arte que,
partindo de princípios verdadeiros, procura preservar a saúde do corpo humano e
salvaguardá-lo das doenças. A sua finalidade não é a cura absoluta, mas sim fazer o
possível na medida e tempo convenientes. Depois há que aguardar os resultados, tal
como fazem os navegadores ou os militares.”. De Simplicibus, mais uma tradução
latina de um texto de origem árabe, foi bibliografia de consulta obrigatória para
médicos e boticários da Idade Média. Segundo a tradição e a cultura árabes, os
cuidados de saúde deveriam ser acessíveis a todos — ricos e pobres, nobres ou
plebeus — e de aplicação geral, uma vez que eram vistos como uma obrigação social
e religiosa. O Al-Andalus contou com muitos hospitais, médicos e cirurgiões que

2
O título original, muito extenso, significa „tratado sobre a demonstração de problemas de
redução e confrontação‟ (referindo-se a problemas de equações).
tratavam gratuitamente todos os que os procuravam, tendo esta prática contribuído em
grande medida para a divulgação do acesso à ciência médica. Para além da vertente
curativa, os médicos islâmicos praticavam, à semelhança dos gregos, uma medicina
preventiva, aconselhando um estilo de vida saudável, uma alimentação equilibrada, a
prática de exercício físico, cuidados no vestuário, na educação e na higiene — era a
génese da medicina holística. Aliás, no âmbito da higiene também foram profundas as
influências muçulmanas entre nós. Al-Idrisi anunciou a existência, no centro da cidade
de Lisboa, de nascentes de água quente (tanto de Inverno como de Verão) — eram os
banhos públicos de Alfama (< ár. al-hamma „fonte de água quente‟), inscritos nos
preceitos higiénicos e mais tarde condenados pela Igreja que os considerava
perniciosos, por propiciarem práticas devassas e o “amolecimento” dos costumes.
Com a divulgação da técnica árabe do fabrico do papel e com o revolucionário
sistema de impressão de textos, a reprodução dos conhecimentos recebeu um grande
impulso e abriram-se várias escolas médicas por toda a Europa, concebidas segundo
o modelo árabe, isto é, com hospitais adjacentes, para que os alunos de medicina
pudessem estudar e exercer em simultâneo, aliando a teoria à prática e garantindo-se,
assim, a cientificidade dos ensinamentos. Saliente-se a escola de medicina de Salerno
(onde estudavam também mulheres, que geralmente se especializavam em
ginecologia), que constituiu uma verdadeira ponte entre a medicina oriental dos
clássicos e a medicina ocidental em desenvolvimento e que serviu de modelo a outras
se lhe seguiram, nomeadamente Montpellier, Bolonha e Pádua.
Mas a enorme contribuição islâmica para o desenvolvimento ocidental não se
restringiu só às áreas já referidas: além do impulso que globos, astrolábios, bússolas e
tábuas matemáticas imprimiram no desenvolvimento da ciência náutica, foi pelos
árabes que ficámos a saber da existência de terras situadas a ocidente. Na área da
construção naval, a caravela portuguesa, sucessivamente aperfeiçoada ao longo dos
anos, poderá considerar-se uma feliz adaptação do karib árabe — embarcação usada
pelos muçulmanos do Al-Andalus, semelhante ao pagaio utilizado pelos árabes no
Índico. Muitas das nossas embarcações tradicionais de pesca revelam a origem
islâmica pelo tipo de construção e de armação: Faro e Silves foram importantes
centros de construção naval, onde se pescava à rede ou com a almadrava ou almadra,
uma armação especial para o atum, introduzida pelos muçulmanos na Península
Ibérica. Intimamente ligada com a actividade piscatória está a salicultura, impulsionada
pelos árabes e praticada sobretudo nos estuários do Tejo e do Sado.3 No Alentejo,

3
Note-se que Alcácer do Sal ficou a dever parte do seu nome a esta actividade.
continuando anteriores explorações romanas, prosseguiu a extracção do cobre e da
prata e, no Algarve, a do estanho, tendo-se desenvolvido de forma notável a técnica
de trabalhar os metais, cujos segredos os árabes guardavam ciosamente por serem
fundamentais para o fabrico de armas.
Reforçando o carácter mediterrânico do anterior domínio romano, os árabes
deixaram marcas profundas também no domínio da pecuária e da agricultura.
Segundo Simon Davis, zoo-arqueólogo britânico que estudou e mediu ossos de
ovelhas escavados em vários locais do país, os muçulmanos teriam procedido ao
apuramento das raças ovinas: “As ovelhas do período islâmico eram maiores. Quer
dizer que talvez os árabes tenham feito melhoramentos em Portugal, seleccionando os
animais maiores, ou talvez tenham trazido ovelhas maiores do Magreb, de Espanha ou
de outros sítios. (...) Talvez os romanos olhassem para a Lusitânia como uma região
meramente periférica, na qual não apostaram muito. Ao invés, os muçulmanos
consideravam a Andaluzia e o al-gharb Al-Andalus — como designavam a zona do
Algarve e do Baixo Alentejo — centros importantes. Talvez por isso tenham melhorado
as ovelhas.”.
Deve-se-lhes igualmente uma série de práticas que contribuíram para a
melhoria do cultivo da terra: o apuro da agricultura de sequeiro; o plantio de grandes
extensões de pomares; e a introdução ou a divulgação de novos produtos — o trigo
mourisco, o açafrão, o arroz, o limão, a laranja, a alfarrobeira, a figueira e a
amendoeira. Habituados às sedes dos desertos, atingiram o virtuosismo na concepção
de sistemas de aproveitamento e de distribuição de água, com a construção de noras,
azenhas e açudes — engenhos fundamentais para a realização de grandes obras de
rega, que permitiram o alargamento das áreas irrigadas e o apuramento dos
processos de extracção de água. Os moinhos, também movidos pela força da água ou
dos animais, permitiram a generalização das práticas moageiras.
A influência árabe na construção habitacional, especialmente das casas rurais,
também foi duradoura. A habitação alentejana e da serra algarvia, com as suas
chaminés características e com telhados de uma água, é em termos morfológicos
composta por vários módulos pluricelulares e multifuncionais, que tendem a
ordenar-se em volta de um espaço rectangular, envolvendo-o por dois ou três lados.
Podendo albergar várias famílias aparentadas, as construções abrem-se para o
interior desse pátio que, por sua vez, se liga directamente à rua através de uma porta.
Quanto à habitação urbana, as formas cúbicas das casas algarvias tradicionais,
com as suas açoteias, continuam antigas tradições do casario do período islâmico,
reproduzindo o mesmo modelo arquitectónico de uma cidade marroquina. As casas de
embasamento em alvenaria, sobre o qual se erguiam paredes de taipa com cerca de
meio metro de espessura, eram construídas num piso térreo de planta centrada,
abertas para um pátio interior quadrangular. Cada casa, com uma área útil entre 80 e
200 m2, podia albergar oito a dez pessoas e era parte de um conjunto solidário
pertencente ao mesmo clã familiar com alguns serviços comuns, como o forno, os
esgotos, as fossas e a cisterna. O Sul seco obrigava a uma rigorosa gestão da água,
recolhida e armazenada em cisternas e açoteias que, no Algarve, substituíram os
telhados romanos de duas águas.
As varandas fechadas por um gradeamento de madeira — a adufa ou
musharabia — destinadas ao arejamento da casa e propícias ao outrora exigido recato
feminino subsistem ainda na arquitectura peninsular. Divulgou-se também o hábito de
perfumar o interior das casas pela fumigação de ervas aromáticas e o de colocar
esteiras no chão, substituídas nas casas ricas por tapetes, a que se juntavam as
tapeçarias decorativas nas paredes.
A orientação da Alhambra revela que na sua construção foram tidos em conta
os ventos dominantes em cada estação, que eram conduzidos através do edifício de
modo a que ele se tornasse fresco no Verão e quente no Inverno. E para que o
ambiente fosse ainda mais agradável no Verão, concebeu-se um sistema de
refrigeração conhecido como “casa de feltro”: tratava-se de conduzir o ar através de
grandes superfícies de feltro constantemente humedecidas pelo constante gotejar de
água perfumada, cuja evaporação refrescava o ambiente...
Em suma: os árabes trouxeram para a Península conhecimentos
técnico-científicos e filosóficos, que contribuíram posteriormente para o
desenvolvimento e para a modernidade da Europa. É natural que Antero de Quental
aponte a sua expulsão da Península Ibérica como um dos factores que determinaram
a decadência dos reinos hispânicos.

Maria Luísa Seabra Azevedo

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