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#104 | MARÇO DE 2020 candido.bpp.pr.gov.

br JORNAL DA BIBLIOTECA PÚBLICA DO PARANÁ

TODAS AS
MULHERES
DO MUNDO
O Cândido apresenta
um panorama da
literatura produzida por
escritoras estrangeiras,
com depoimentos das
tradutoras de seus
livros no Brasil

ILUSTRAÇÃO: ALINE DAKA

ENTREVISTA | Jotabê Medeiros • CONTO | Itamar Vieira Junior • HQ | Rafael Sica


2 MARÇO DE 2020

DIVULGAÇÃO

JOÃO ALMINO ficá-lo ao longo do processo, quando

Q
novos rumos podem ser dados à nar-
ue conselho a quem quer se rativa, e personagens podem ser aban-
dedicar à escrita de ficção? donados, cindidos ou fundidos. Tenho
Acima de tudo, que não leve me dedicado sobretudo ao romance,
em conta o que digo se não lhe inte- no qual me parece mais significati-
ressa. Escrever é uma batalha, pala- va a criação de personagens do que os
vra por palavra. E a experiência de um enredos e temas. Estes, os temas, vão
serve pouco para a de outro. surgindo, do específico para o geral.

Como trabalho? Com discipli- Como escrever? É a busca de


na. Escrevo diariamente durante al- cada um. Prezo a clareza. Gosto de es-
gumas horas. crever para ser compreendido. Tenho
considerado fundamental mesclar o
Brancos diante da página? Du- realismo com elementos de fabula-
rariam anos se eu não tivesse incor- ção, valorizando a verossimilhança
porado na minha maneira de escrever mais do que a verdade. Não há nada
o hábito da revisão. Ao rever, surgem de novo para dizer, nenhuma possibi-
outras palavras, ideias e histórias. lidade de originalidade, alguns dizem.
No entanto, a própria citação e rees-
Por onde começar? Na escrita crita contêm elementos novos, pos-
dos romances, pelo narrador e pelos to que concebidas por novas cabe-
personagens. Eles exigem linguagem, ças, noutro tempo. Elementos novos,
temas e enredos. Procuro também de- portanto, sempre poderão existir pelo
finir a evolução temporal das histórias simples fato de que não existem duas
e os espaços em que tomam corpo. pessoas iguais, em sua história e ex-
periência. Cada um pode, com seu ta-
Sofrimento ou prazer? O pra- lento, esforço e dedicação, encontrar
zer vem ao expelir um nó que se for- sua maneira particular de dizer, ou
mou na mente e corroía o pensamento seja, sua linguagem, para isso rees-
ou o sentimento. Também ao encon- crevendo quantas vezes seja preciso.
trar a expressão certa. Mas o percur-
so para chegar a esse resultado pode Autoficção, confissão ou fic-
ser sofrido. ção? O fundamental é como con-
tar. Pessoalmente, evito a autofic-
Ambição ou despretensão? Es- ção, caminho frequente nos dias de
crever não é fácil, em especial quando a hoje. Acho importante a compaixão.
escrita se faz com ambição e não como A compreensão do outro. O lugar de
mero entretenimento, embora algum fala é problema, creio, para a crítica
grau de entretenimento seja útil à dis- mais do que para a escritora e o escri-
cussão ou exposição de temas sérios, tor de ficção, que podem escrever so-
nas quais cabem a ironia e o sarcasmo. bre o que são e conhecem, mas tam-
bém sair de si, colocar-se no lugar do
Esquema detalhado ou escrita outro e expandir seu conhecimento
espontânea? O esquema ajuda, desde através da escrita. Acredito na imagi-
que se tenha total liberdade de modi- nação e na aventura da escrita.
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Escrever para quê? Deve-se sileiros. A lista é longa, começando por Dostoiévski, Eça,
transmitir mensagem? Dar opinião? “Cada um pode, com Proust e Virginia Woolf, além de muitos escritores contem-
A meu ver, o romance ou outra peça seu talento, esforço e porâneos, brasileiros e estrangeiros.
de ficção não deveriam ser uma de-
monstração, nem meio para mani-
dedicação, encontrar Por que escrever? Terão razão os que dizem que
festar opinião. Não substituem o tra- sua maneira particular se trata de atividade inútil. No entanto, é necessária. E se
balho do jornalista, mesmo quando de dizer, ou seja, escreve principalmente por necessidade. Se lhe é absolu-
tratam da atualidade, nem o do his- tamente necessário escrever, então persista. Não escreva
sua linguagem.”
toriador, ambos trabalhos indispen- para ser famoso ou rico (se acontecer, ótimo, parabéns).
sáveis. Se têm essa vocação, melhor Quem escreve não deve tampouco se limitar, se restrin-
serem substituídos por ensaio, tese ou gir, tentar se acomodar ou explorar temas ou questões,
artigo de jornal. Sua função não é a interessado na crítica, embora o trabalho da crítica possa
de chocar, exaltar, ensinar ou chegar ser tão relevante e criativo quanto o da escrita de ficção.
a algum lugar. É a de desconcertar,
iluminar o obscuro, problematizar o É atividade em extinção? Sua paixão pelo que faz o
claro, interrogar, tornar complexo o levará a descrer dos profetas do fim da arte, da ficção ou
simples, mesmo sob forma simples. especificamente do fim do romance. Este não morrerá tão
cedo, pois assimila tudo de seu tempo. Assimilou a psica-
Quais influências, leituras? A “Escrever é uma batalha, nálise, outros domínios da ciência, a pintura, a fotografia,
leitura também cria, abre horizon- o cinema, a TV, a internet, as redes sociais e assimilará o
palavra por palavra. E a
tes para a imaginação. Releio alguns que quer que venha a ocorrer no futuro. Em algum sentido,
escritores brasileiros, que me ensi- experiência de um serve é insubstituível. Ressalvando que não advogo um psicolo-
nam algo sobre a linguagem em lín- pouco para a de outro.” gismo literário, a ficção permite a visão interna, intros-
gua portuguesa, nunca, claro, para se- pectiva dos personagens, o que não se pode transmitir de
rem copiados, apenas para servir de maneira tão extensa e profunda noutras formas artísticas.
base para criar outra coisa. Graciliano
e João Cabral, que ensinam a escrever O principal instrumento da escrita de ficção? Não é
de forma substantiva, com economia o computador, a caneta, o lápis ou o papel, nem o conhe-
de palavras. Lima Barreto, com sua lin- cimento da língua ou das técnicas da escrita. É a liberdade.
guagem contundente, direta, adapta- Ela pode levar à incompreensão, ao insucesso, até mesmo à
da a seu tempo. Machado, que soube prisão. Mas pelo menos que quem escreve saiba que foi ao
ser um brasileiro do mundo, com sua fundo do que pretendia dizer. Expôs-se. Será reconhecido ou
linguagem universal. O mesmo po-
“Se lhe é absolutamente antipatizado, glorificado ou demonizado. Por mais que te-
deria ser dito de Clarice, que nos tra- necessário escrever, nha sido radical, poderá ser recebido com indiferença. É bom
ga em sua vertigem da linguagem. São então persista. Não saber de antemão que existem todas essas possibilidades.
apenas alguns exemplos de uma lista
escreva para ser famoso
de grandes, que poderia incluir Eucli-
des, Drummond, Bandeira e Guimarães ou rico (se acontecer, JOÃO ALMINO é escritor e diplomata. Publicou sete romances,
entre eles Cidade Livre (2010) e Entre Facas, Algodão (2017). Ocupa a
Rosa. Mas, claro, não só escritores bra- ótimo, parabéns).” cadeira 22 da Academia Brasileira de Letras.

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4 MARÇO DE 2020

P E N S ATA
A coluna abre espaço para que escritores, tradutores,
jornalistas e pesquisadores reflitam sobre temas ligados à
literatura, livro e leitura. Nesta edição, Paulo Polzonoff Jr.
escreve sobre a nova geração de poetas “midiáticos”.

GERAÇÃO
MELANCIA
NO PESCOÇO
PAULO P OLZONOFF JR .

P
retendo falar sobre o melan-
cólico renascimento da poesia
popular brasileira, representa-
do principalmente pela aparição coti-
diana de Fabrício Carpinejar e Bráulio
Bessa no programa matinal Encontro
com Fátima Bernardes. Mas, antes, pre-
ciso fazer umas considerações sobre a
popularidade, abrangência e relevân-
cia da poesia entre a elite brasileira até
a década de 1980 — pedindo já perdão
pela imprecisão cronológica. É que não
sou nem pretendo ser acadêmico.
O leitor de hoje em dia pode não
acreditar, mas não faz muito tempo
(só velhos como eu acham que uma
coisa que aconteceu há 40 anos não se
enquadra na categoria “não faz mui-
ILUSTRAÇÃO: ALINE DAKA
to tempo”) a poesia — sim, a poesia!
— era não só relevante no debate pú-
blico como também era popular. Falo que consumiam Drummond e Vinicius de Moraes até os intelectual que se prezasse (e aqui estou pensando em vá-
“popular” não no sentido de hoje em anos 1980, isto é, como algo que certa elite intelectuali- rios níveis de intelectualismo, desde o erudito versado em
dia, carregado de coisas como “lugar zada consumia ávida e orgulhosamente. grego antigo até o reles jornalista) sabia ao menos alguns
de fala” e luta de classes e identita- Naquela época, consumir poesia era sinal de status — versos de cor de seu poeta preferido. E, quando não sabia de
rismo. Falo popular no sentido com- mais ou menos como é hoje andar pela praia com aquelas cor, sabia em que livro procurar o poema específico para a
preendido justamente pelas pessoas caixinhas de som bluetooth tocando funk ou hip-hop. Todo ocasião específica.
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Poemas importavam. Não que algo difícil de definir sem apelar para E qual a forma mais eficiente
presidentes ou vereadores citassem imagens muito pouco poéticas. Eles de fazer isso se não apelar ao senti-
poetas em comícios. Até porque a po- abandonaram os jornais e as conver- mentalismo rápido e raso tão carac-
lítica nunca foi afeita a essas coisas sas de banco de pracinha do interior terístico da televisão contemporânea?
da alma, nem mesmo quando “es- para se encastelarem em delírios edi- É dessa necessidade de se fazer no-
sas coisas da alma” flertavam expli- toriais e principalmente na univer- tado e, com alguma sorte, lembrado
citamente com a política. Tampouco sidade. Onde, sabe-se, ninguém lê cinco minutos depois de subirem os
o metalúrgico apertava melhor o pa- poesia. Lá, estuda-se poesia, o que é créditos do programa de variedades
rafuso depois de recitar um poema de bem diferente. que nasce a poesia aforística de Fa-
Bandeira. Não. Foi uma mudança lenta, mas brício Carpinejar, por exemplo. Afo-
Mas, entre os formadores de profunda. Mudança essa que não re- rismos que muitas vezes não resistem
opinião, palavrinha démodé substi- fletia uma forma diferente de enca- a um escrutínio maior. Mas quem é
tuída hoje pelas formas cafonas “in- rar só a poesia, e sim toda a cultura. A que tem cabeça para escrutinar poe-
fluenciadores” ou influencers, um poe- poesia virou assunto a ser discutido, sia às 11h da manhã de uma quinta-
ma com a assinatura de Drummond ou ou melhor, dissertado com um objetivo -feira nublada?
de Ferreira Gullar ou até de, vá lá, um muito claro à frente: o diploma com o Ao mesmo tempo Bráulio Bes-
Mário Quintana tinha algum peso. carimbo do MEC e, com alguma sor- sa, com seus cordéis que insistem em
Poemas serviam, se não para te, um cargo de professor numa insti- rimar amor e dor (mas com aquele
esclarecer o leitor, para ilustrar con- tuição federal, com estabilidade e um olhar para a câmera de quem não só
ceitos abstratos. Sim, caro leitor, salário que, apesar das reclamações, é sabe usar palavras bonitas como tam-
porque houve um tempo em que os mais alto do que o da maioria dos bra- bém já passou muita necessidade na
próprios intelectuais nutriam certa sileiros. Em resumo, o leitor de poesia vida e, por isso, conquistou o tal “lu-
vergonha virtuosa de sua incapaci- se profissionalizou. gar de fala”), aprofunda o fosso en-
dade de transformar em beleza aque- Aí é que entram os poetas que tre a poesia-poesia, isto é, a poesia do
le palavrório todo cheio de vírgulas e volta e meia aparecem no programa tipo que Bruno Tolentino fez, e a poe-
conjunções e notas de rodapé e infin- Encontro com Fátima Bernardes. Nada sia dessa geração cheia de boas inten-
dáveis citações, sem falar nas opres- contra a popularidade deles. Muito me- ções, mas de qualidade questionável,
soras regras da ABNT. Daí, quando a nos contra o bom cachê que recebem que há de ficar conhecida como a Ge-
coisa ficava técnica demais e amea- e merecem. Nada contra, de jeito ne- ração Melancia no Pescoço.
çava escapar da força gravitacional da nhum, seus best-sellers que com sorte E, nesse desespero por evocar
Terra, usava-se um poema. esgotam duas edições. O problema está cotidianamente Fernando Pessoa e ser
Mas então alguma coisa acon- na forma como esses poetas encaram a qualquer coisa que não nada, os poe-
teceu. Alguma coisa estranha. Há au- poesia, o que na minha época se cha- tas televisivos fazem questão de ig-
tores que creditam o fenômeno à as- mava “fazer poético”, e principalmen- norar o problema mais importante da
censão de certo espírito técnico em te como os espectadores a consomem. poesia-poesia nos últimos 40 anos:
nossas sociedades. O que faz senti- A poesia, que durante décadas o fato de a elite intelectual simples-
do. Os poemas passaram a ser subs- lutou para se afastar da pompa ri- mente ter deixado de se importar com
tituídos por gráficos. “Essas coisas da dícula dos saraus parnasianos, vol- “essas coisas da alma” para se impor-
alma” viraram motivo de chacota. E tou a ostentar essa mesma pompa, só tar com hashtags, relatórios de venda
os intelectuais, do erudito versado em que agora em cadeia nacional. Não, e o próximo prazerzinho fugaz de ou-
grego antigo ao reles jornalista, pas- o poeta não se orgulha mais da tísi- vir, pela bilionésima milionésima vez,
saram a dar mais valor ao tal rigor ca melancólica aliada à mais rigoro- dor rimar com amor.
acadêmico e ao Manual de Redação da sa métrica. Ele prefere escrever algo
Folha de S.Paulo. no couro cabeludo e ostentar óculos
É curioso notar que, paralela- espalhafatosos que são a cereja do
mente à ascensão dessa visão técni- bolo de um figurino todo performá-
PAULO POLZONOFF JR. é jornalista,
ca do mundo, os poetas abdicaram de tico, na esperança, ou melhor, no de-
escritor e tradutor. Publicou, entre outros
um papel de honra no debate públi- sespero de recuperar a relevância de livros, Desculpe & Outros Textos que Ninguém
co para se tornarem outra coisa — não-tão-antigamente-assim. Vai Ler (2018) e Zero Vírgula Nada (2017).
6 MARÇO DE 2020

C A PA

AGORA É QUE SÃO ELAS


B U D DY B E R L I N / L I T E R A R Y E S TAT E O F L U C I A B E R L I N L P

A crítica e ensaísta Camila von Holdefer


elenca e comenta as obras de autoras
estrangeiras “irreprimíveis” — de nomes
consagrados a talentos iniciantes

V
ocê já deve ter ouvido falar de Elena Ferrante,
pseudônimo de uma escritora italiana de enorme
destaque. Seus romances receberam elogios da crí-
tica, foram traduzidos para várias línguas e venderam mi-
lhões de cópias. Os mais conhecidos são os que compõem
a Tetralogia Napolitana, transformada em série da HBO.
A Tetralogia acompanha duas amigas da infância à
velhice. A complexidade das relações que se produz a par-
tir de uma escrita acessível ajuda a explicar a combinação
rara de análises aclamatórias e sucesso comercial. Embo-
ra apareçam em destaque, as questões de gênero só po-
dem ser compreendidas quando subordinadas aos confli-
tos geracionais e de classe. Quase todas as assimetrias e
enfrentamentos da narrativa se refletem nas protagonis-
tas, Lenu e Lila, nascidas na década de 1940 num bairro
pobre de Nápoles. Ambas se destacam na escola primária,
mas ligeiras diferenças entre as famílias Greco e Cerullo
fazem com que seus caminhos se separem — enquanto
Lenu é autorizada a dar continuidade aos estudos, Lila se
casa com um sujeito do bairro.
Este é o enredo de A Amiga Genial (2011), ao qual
se seguem História do Novo Sobrenome (2012), História de
Quem Foge e de Quem Fica (2013) e História da Menina Per-
dida (2014), todos traduzidos por Maurício Santana Dias.
Ao longo dos quatro livros, os caminhos das duas se dis-
tanciam e tornam a se cruzar.
Para além das protagonistas, é fascinante obser-
var as outras mulheres da Tetralogia — mães, professoras,
amigas e conhecidas de Lenu e Lila, com suas origens e
idades distintas, suas ideias e atitudes, suas alianças e em-
bates. Decidi incluir Elena Ferrante neste texto — mais do
que isso, decidi citá-la em primeiro lugar — pela enorme A escritora americana Lucia Berlin é autora do livro de contos Manual da Faxineira
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importância da Tetralogia e de outros paradoxais, inexplicáveis, impertinentes, autodestrutivas, melhor romance para você conhecer
livros para a literatura que se propõe mas acima de tudo públicas, é a coisa mais revolucionária a prosa de Hustvedt é O Que Eu Ama-
a discutir papéis de gênero. do mundo”, diz Kraus. va (2003), em que conflitos familia-
Dito isso, a ideia aqui é, com É comum que uma única autora reúna todos esses res, incluindo a trágica morte de uma
exceção de Ferrante, apresentar ao adjetivos, caso da austríaca Ingeborg Bachmann (1926- criança, são narrados por um sujei-
leitor um punhado de autoras estran- 1973). A obra de Bachmann, influenciada por determinados to ligado ao mundo das artes visuais.
geiras não tão conhecidas, tanto as acontecimentos históricos e por uma bagagem filosófica Pergunto a Sonia Moreira, uma
que poderiam ser mais lidas quanto as que vai de Heidegger à Escola de Frankfurt, não pode ser das melhores tradutoras do país,
que mereceriam ter seus livros tradu- analisada em uma simples resenha. Da sombria coletânea como é traduzir Hustvedt: “Lembro
zidos. Parto, é claro, de um arcabouço O Tempo Adiado e Outros Poemas (organizada e traduzida de ter gostado bastante do estilo cla-
pessoal e necessariamente limitado. por Claudia Cavalcanti), publicada em 2020 no Brasil, ape- ro e elegante da autora, de ter ficado
Também conversei com algu- nas um texto relativamente extenso é capaz de dar conta. fascinada com as descrições vívidas
mas das profissionais que aproximam Toda leitura de Bachmann exige tempo e esforço, algo va- das obras de arte e bastante comovi-
livros e leitores: as tradutoras. É uma lioso em tempos de reações imediatas. Embora seja pos- da com a segunda parte do roman-
obviedade tremenda dizer que obras sível, e até desejável, resgatar alguns fatos da vida da au- ce, em que é narrada a morte do filho
escritas em outras línguas só são lidas tora para melhor explicar os livros, algumas abordagens do narrador-personagem e as con-
em português graças a um trabalho di- têm o efeito de obscurecer o que deveriam complementar. sequências dessa morte para o casa-
fícil e exaustivo, e obviedades tremen- Quando se fala de Bachmann, é comum que as atenções se mento e a vida como um todo dos pais
das tendem a ser ignoradas. Com fre- voltem para Paul Celan, poeta com quem ela se relacionou do menino”.
quência o nome de quem traduziu um durante algum tempo. Ela chama atenção para a es-
livro é omitido. Quis que as próprias Ingeborg Bachmann foi muito próxima da escritora crita de não ficção da autora: “Lem-
tradutoras apresentassem as autoras suíça (que trocou o francês e o alemão pelo italiano) Fleur bro também que o livro tinha partes
cuja leitura elas tornaram possível. Jaeggy. Num conto breve e dilacerante incluído em Sono bastante longas que me davam a sen-
il Fratello di XX, ela alude à dor da perda da amiga. Embo- sação de estar traduzindo não um ro-
A R G U M E N T O I M B AT Í V E L ra seus estilos sejam inteiramente diferentes, Jaeggy é tão mance, mas vários ensaios costurados
Em Eu Amo Dick (lançado em paradoxal, inexplicável e impertinente quanto Bachmann. numa estrutura de romance (o que a
2019 pela todavia, com tradução de Ela não é uma autora de frases, contos ou livros longos. meu ver enfraquece um pouco a obra
Taís Cardoso e Daniel Galera), Chris Suas construções exploram o dizer breve, seco, controla- como ficção) e de achar que a Hust-
Kraus diz que “mulheres irreprimí- do, pausado, numa calmaria nunca menos que enganosa. vedt era mais forte como ensaísta do
veis fazem falta na escrita”. O contro- Tendo um colégio interno ou um museu por cenário, um que como ficcionista”. Hustvedt, que
verso livro de Kraus, que narra o de- quarto escuro ou um casarão, o ruído de fundo das narra- se interessa por ciências cognitivas e
senrolar da obsessão da autora por um tivas da autora vai do incômodo ao assustador. Mas Jaeggy filosofia (sobretudo Kierkegaard), es-
crítico de arte inglês, é a prova de que também é obscurecida. Seu marido, o intelectual Rober- creveu um excelente livro de ensaios
o produto final da liberdade de criação to Calasso, tem vários livros publicados no Brasil. Ela, que chamado A Woman Looking at Men
pode e deve gerar todo tipo de discus- escreveu oito, não tem nenhum. Looking at Women (2016).
são frutífera, incluindo a que admite Como Bachmann e Jaeggy, a norte-americana Siri Sonia Moreira também é tra-
e esmiúça reações não tão positivas. Hustvedt conhece a sensação de ser ofuscada por um ho- dutora de Lucia Berlin (1936-2004),
Seja como for, o argumento é imba- mem — Hustvedt é casada com o escritor Paul Auster, e cuja obra é alvo de um interesse re-
tível. “Acredito que o simples fato de com frequência lhe perguntam, em entrevistas, mais coi- novado no próprio país de origem, os
haver mulheres falando, existindo, sas a respeito do trabalho do marido do que do próprio. O Estados Unidos. No Brasil, quase to-
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C A PA

das as resenhas do excelente Manual concordo que as características da que acima de tudo formam um fluxo
da Faxineira (2017), uma coletânea de narrativa em si acabaram ficando em de consciência de uma dona de casa,
contos, ressaltavam aspectos difíceis segundo plano em muitas das rese- um fluxo de consciência que, diga-se,
da vida de Berlin ao mesmo tempo em nhas publicadas aqui, o que me dei- abarca mais de mil páginas, é um livro
que deixavam a escrita de lado. A tris- xou bastante frustrada. Tenho a im- cheio de tragédias reais e imaginadas,
teza eventual dos contos, com temas pressão de que os críticos, de maneira reais e exageradas, reais e amplifica-
variados que vão do alcoolismo à de- geral, têm muito mais curiosidade em das, reais e superdimensionadas. E
pressão, é aliviada por uma comicida- relação à vida pessoal das escritoras cheio de onomatopeias, de medo jus-
de estranha, que não raro parece fora mulheres do que em relação à dos ho- tificado e de histeria, de neurose, de
de lugar, embora nunca seja menos do mens e de que essa curiosidade tende boas tiradas.
que original. A literatura em si, no en- a empobrecer a análise que eles fazem Prêmios, o Nobel entre eles,
tanto, o resultado da transfiguração, das obras escritas por mulheres.” ajudam a difundir ou a consolidar no-
não fez parte das discussões. Nem o mes que antes eram inéditos ou pou-
estilo, nem o humor, nem a ousadia de PRÊMIOS RECENTES co conhecidos. É o caso da canadense
Berlin. “Demorei muito mais do que Em 2019, a canadense Mar- Alice Munro, a melhor contista viva,
deveria para traduzir o Manual, até ter garet Atwood, conhecida autora de cujas tramas são centradas na vida de
a sensação de estar conseguindo fazer O Conto da Aia (Ana Deiró), dividiu o mulheres. Não deixe de ler Vida Que-
jus minimamente ao estilo e à voz a Booker Prize por Os Testamentos (Si- rida (Caetano Galindo) e Ódio Amizade
meu ver originalíssimos dela”, diz a mone Campos) com a britânica Ber- Namoro Amor Casamento (Cássio de
tradutora. nardine Evaristo, que venceu com Girl, Arantes Leite). Também é o caso da
“Para mim, a força da obra não Woman, Other. No romance de Evaris- romena Herta Müller, que, na fron-
está de forma alguma no que ela tem to, doze personagens, imigrantes ou teira entre o ensaio e a narrativa au-
de autoficção (embora entenda que o filhas de imigrantes de países africa- tobiográfica, fala de como foi viver
caráter autobiográfico possa ser como nos, se revezam para contar cada uma sob um regime totalitário no exce-
que um selo a garantir a ‘verdade’ da a sua história. É um livro poderoso, lente Sempre a Mesma Neve e Sempre
ficção dela e que isso pode ser um repleto de mulheres fortes. Evaristo o Mesmo Tio (Claudia Abeling). Nas-
grande atrativo para muitos leitores), propõe que se olhe diretamente para cida na Ucrânia, a jornalista Svetla-
mas no estilo extremamente íntimo, o racismo — sua estrutura, perpe- na Aleksiévitch, que se define como
que gera em nós a sensação de ‘co- tuação e seus danos — e para o ma- uma “historiadora da alma”, costura
nhecer’ a autora, na forma bem-hu- chismo. Autoras já consagradas como histórias reais em Vozes de Tchernó-
morada como ela elabora os ‘aconte- Alice Walker, Maya Angelou e Toni bil (Sônia Branco), em que entrevista
cimentos’, até mesmo os mais tristes, Morrison (Nobel de 1993), todas nor- testemunhas do acidente nuclear de
na seleção cuidadosa e extremamen- te-americanas, também procuraram 1986, e A Guerra Não Tem Rosto de Mu-
te inteligente do material a ser narra- discutir as mesmas questões. Outra, lher (Cecília Rosas), em que conversa
do, no ritmo narrativo variável e, cla- ainda jovem e já mundialmente co- com mulheres que lutaram na Segun-
ro, na maneira surpreendente, muitas nhecida, é a nigeriana Chimamanda da Guerra Mundial.
vezes insólita mesmo, de narrar, en- Ngozi Adichie. Recém-publicada no Brasil, a
tre outras coisas. Sei que a autoficção Na lista de finalistas do Booker polonesa Olga Tokarczuk, Nobel de
pode ser encarada como uma espécie Prize do mesmo ano estava a britâni- 2018, teve Sobre os Ossos dos Mortos,
de convite a ‘invadir’ a vida do(a) au- ca Lucy Ellmann com o hilário Ducks, mistura de thriller policial com roman-
tor(a), e acho que é preciso levar em Newburyport. O pai da autora é Ri- ce filosófico, traduzido por Olga Ba-
conta também que as próprias edito- chard Ellmann, considerado o maior gińska-Shinzato. É ela quem melhor
ras chamaram muita atenção para a estudioso de James Joyce, o que tal- descreve o estilo da autora: “A escri-
vida atribulada da escritora e para o vez explique a inspiração joyceana de ta é muito poética e, ao mesmo tem-
aspecto autobiográfico da obra, mas Ducks. Com oito imensas sentenças po, filosófica. Ela tem um olhar muito
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DIVULGAÇÃO

so, a Olga Tokarczuk gosta de descrever


aquilo que é diferente, frágil, que não
se encaixa nos padrões sociais e cultu-
rais e de uma forma que também foge
dos padrões (um thriller que não é um
simples thriller, um romance-conste-
lação, o ‘narrador carinhoso’ do dis-
curso oficial do prêmio Nobel), então é
preciso saber sair dos padrões na hora
de traduzir.”
Traduzir Tokarczuk é transpor
não só uma barreira linguística, mas
também cultural: “A maior dificul-
dade é transmitir tudo de tal forma
(com toda a poeticidade e leveza) que
o texto traduzido desperte no leitor
brasileiro as mesmas sensações, que
ele possa sentir e entender uma rea-
lidade tão distante da brasileira (as
paisagens, a mentalidade das perso-
nagens, o senso de humor). O mais
importante, e muitas vezes o mais di-
fícil, é ultrapassar a barreira cultu-
ral para que o leitor brasileiro tenha
a sensação de que a Olga Tokarczuk
escreve mesmo em português. O que
A britânica Lucy constitui uma dificuldade neste as-
Ellmann é autora de
pecto é a formalidade da língua po-
Ducks, Newburyport,
perspicaz e uma sensibilidade enorme, enxerga coisas, fenô- um romance de mais lonesa e a informalidade da língua
menos que para os outros são muitas vezes imperceptíveis. de mil páginas portuguesa (na variante brasileira).
Diria que a escrita dela se baseia muito nisso, em descre- Muitas vezes é preciso ultrapassar
ver (de diferentes pontos de vista) fenômenos do cotidiano a formalidade do polonês, procurar
que muitas vezes passam despercebidos, mas que no fun- diferentes recursos para manter um
do são essenciais. E ela consegue exprimir isso de uma ma- tom um pouco mais formal (onde ne-
neira muito poética, delicada, carinhosa. Faz pensar, mas cessário) ou adequá-lo, e ao mesmo
de uma maneira indireta. Na maioria das vezes insere essas tempo evitar um estranhamento da
reflexões filosóficas na fala das personagens (p. ex. Janina parte do leitor brasileiro causado por
Dusheiko com as suas ‘teorias’), disfarçando-as ou escon- um formalismo excessivo”.
dendo no meio de observações simples, que são, na verda-
de, muito profundas”. E quanto ao processo de tradução? EXPERIÊNCIA PRÓPRIA
“É preciso ser muito atento a isso, ter uma grande sensibi- Muitas mulheres usam a pró-
lidade para que essas pequenas nuances, essas metáforas ou pria experiência fora do espectro he-
reflexões não passem despercebidas, para não banalizá-las. teronormativo em seus livros. Em Ar-
E ter, também, uma grande sensibilidade poética para po- gonautas (Rogério Bettoni), Maggie
der passar essa dimensão poética do texto dela. Além dis- Nelson mistura vários gêneros textuais
10 MARÇO DE 2020

C A PA

para fabricar uma espécie de declara- maravilhosa!). Fascínio, acho que isso Episódios de Racismo Cotidiano (Jess
ção de amor para o marido, um ho- resume o que senti quando li Chelsea Oliveira), que mistura estudos pós-
mem trans. Em Por que ser Feliz Quan- pela primeira vez; depois, coragem. E -coloniais e de gênero, psicanálise,
do se Pode ser Normal? (José Gradel), era disso que eu precisaria para tra- feminismo negro e narrativa poética.
Jeanette Winterson resgata memórias duzir esse calhamaço que é o espírito
de uma infância difícil. Já Alison Be- Eileen, mais possível de ser tateado e TA N TA S M U L H E R E S
chdel narra uma saga familiar repleta reconhecido nos poemas.” Outra autora que merece des-
de autodescoberta em Fun Home (An- E como foi captar uma voz tão taque é Lydia Davis, com dois livros
dré Conti) e Você é Minha Mãe? (Érico única quanto a de Myles? “Ouvi todas publicados no Brasil: Tipos de Pertur-
Assis), ambas graphic novels. as entrevistas e leituras da Eileen Myles bação e Nem Vem, ambos com exce-
Cada vez mais celebrada no ex- que encontrei no YouTube, ouvir a voz lente tradução de Branca Vianna. Não
terior, a poeta e escritora Eileen My- dela me ajudou a construir/tentar re- é fácil captar o ritmo, as mudanças
les foi publicada no Brasil em 2019. Por produzir a voz que diz/escreve o texto, bruscas e a variedade de estilos e de
Qual Árvore Espero (Mariana Ruggie- para a partir da prosódia tentar espe- registros dessas narrativas difíceis de
ri, Camila Assad e Cesare Rodrigues), lhar a métrica do pensamento dela, que classificar, mas que se aproximam do
um livro de poemas, e Chelsea Girls, eu já tinha vasculhado nos poemas.” conto — é por isso que considero a
um romance, chegaram às livrarias tradução de Vianna quase milagrosa.
quase ao mesmo tempo. Myles é ou- NA FRONTEIRA Como Siri Hustvedt, Davis também é
tra que transpõe algo da própria ex- É fácil notar que muitas dessas uma excelente ensaísta. Se puder, leia
periência para seus livros. Para Bruna mulheres transitam por vários gêneros os textos reunidos em Essays One.
Beber, tradutora de Chelsea Girls, a au- literários, nem sempre tão próximos Quero indicar excelentes au-
tora “é essencialmente, na prosa, uma da ficção. É o caso da jornalista Janet toras de língua espanhola. Não dei-
toureadora — atiça, corteja, engana”. Malcolm, com vários livros publicados xe de ler a mexicana Valeria Luiselli
A definição de Beber é excelente: Ei- no Brasil. Em 1990, Malcolm deu sua com A História dos Meus Dentes (Pau-
leen Myles é “uma narradora que se contribuição à discussão sobre ética e lina Wacht e Ari Roitman), nem Gua-
concebe como narradora, a olhos vis- liberdade de imprensa com O Jornalista dalupe Nettel, também mexicana,
tos, enquanto narra”. Em Chelsea Girls, e o Assassino (Tomás Rosa Bueno), hoje com O Corpo em que Nasci (Ronaldo
ela costura alguns episódios soltos que um clássico. A Mulher Calada (Sergio Bressane). Os contos perturbadores
vão da perda do pai na infância às pri- Flaksman) esmiúça algumas biogra- da argentina Mariana Enríquez em
meiras incursões na poesia. “Ela con- fias de Sylvia Plath, e Anatomia de um As Coisas que Perdemos no Fogo (José
ta também o que não quer dizer”, ex- Julgamento: Ifigênia em Forest Hills (Pe- Geraldo Couto) merecem ser lidos aos
plica a tradutora. “Tudo isso eu senti dro Maia Soares) disseca os mecanis- poucos. A chilena Lina Meruane es-
quando li o Chelsea Girls pela primeira mos de um tribunal. Já o excelente 41 creveu o ótimo Sangue no Olho (Josely
vez e pensei que deveria ser publicado Inícios Falsos (Pedro Maia Soares) reú- Vianna Baptista) e o fantástico Sis-
no Brasil, mesmo sabendo dos desa- ne ensaios sobre artistas e escritores. tema Nervoso (Sérgio Molina), além
fios que me espreitavam; também por Algo a ser comemorado é a pu- de Tornar-se Palestina (Mariana San-
serem histórias de uma poeta. Uma blicação de novos livros da canadense chez), em que resgata a ascendência
poeta viva, lésbica, em atividade, com Anne Carson, que até então só con- palestina numa crônica de viagem a
uma obra vasta em vários gêneros li- tava com O Método Albertine (Vilma Israel. Na linha jornalística de J. Mal-
terários, que dialoga com a perfor- Arêas e Francisco Guimarães) publi- colm há Garotas Mortas (Sérgio Mo-
mance, com o teatro, com os estudos cado no Brasil. lina), da argentina Selva Almada. A
teóricos do feminismo, que inspirou Na mesma linha há Grada Ki- jornalista e escritora mexicana Elena
personagem de série (Transparent, lomba com Memórias da Plantação: Poniatowska usa um fato real, o re-
MARÇO DE 2020 11

DIVULGAÇÃO

lacionamento entre o pintor Diego Rivera e a pintora rus-


sa Angelina Beloff, para escrever Querido Diego, sua Quie-
la (Nilce Tranjan e Ercilio Tranjan). Já a espanhola Rosa
Montero usa a história de Marie Curie para falar da perda
do marido em A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver (Maria-
na Sanchez).
A protagonista de O Amigo (Carla Fortino), da nor-
te-americana Sigrid Nunez, é uma professora de escrita
criativa que herda um imenso dogue alemão. No perturba-
dor Canção de Ninar (Sandra M. Stroparo), da franco-mar-
roquina ganhadora do Goncourt Leïla Slimani, uma babá
assassina as crianças de quem tomava conta. Dois magní-
ficos livros de memórias foram publicados no Brasil mais
ou menos no mesmo período: Os Anos (Marília Garcia), da
francesa Annie Ernaux, que procura “captar o reflexo da
história coletiva projetado na tela da memória individual”,
e Afetos Ferozes (Heloisa Jahn), da norte-americana Vivian A escritora americana
Eileen Myles é autora
Gornick, que resgata, entre outras coisas, as lembranças de
do livro de poemas Por
uma relação turbulenta entre mãe e filha. Qual Árvore Espero e do
Também quero indicar a leitura dos seguintes li- romance Chelsea Girls
vros, e você vai ter que confiar em mim: Yoko Tawada com
Memórias de um Urso-Polar (Lúcia Collischonn de Abreu e
Gerson Roberto Neumann). Virginie Despentes com A Vida
de Vernon Subutex (Marcela Vieira). Ali Smith com a tetra-
logia das estações, não traduzida para o português, em- cadas ou a se tornar mais conhecidas dagem prescritiva dos livros escritos
bora eu só tenha lido três dos volumes. Rachel Cusk com no Brasil. Há um interesse renovado por mulheres, ou seja, a abordagem
Esboço (Fernanda Abreu), o primeiro de uma trilogia. Han pela italiana Natalia Ginzburg, que que diz o que elas podem ou devem
Kang com A Vegetariana (Jae Hyung Woo). Nicole Krauss teve o estupendo Léxico Familiar (Ho- escrever, e como, e por qual razão.
com Floresta Escura (Sara Grünhagen). Sharlene Teo com mero Freitas de Andrade) relançado. Na mesma linha, a tendência de di-
Ponti (Alessandra Esteche). Há pouco tempo, a argentina Silvina recionar ou subordinar inteiramente
Há tantos, tantos livros. Tantas autoras. Ocampo teve A Fúria e Outros Contos a leitura ao gênero da autora sempre
De um lado, autoras jovens e muito talentosas co- (Livia Deorsola) publicado por aqui. a torna menos rica. Há ocasiões em
meçam a ter seus livros lidos e elogiados. É o caso de Ot- O mesmo caminho tomam a obra das que o movimento se justifica (já es-
tessa Moshfegh com Meu Ano de Descanso e Relaxamen- norte-americana Ursula K. Le Guin e crevi um ensaio para a revista serrote
to (Juliana Cunha), em que uma jovem usa o sono como Octavia Butler. CAMILA VON em que isolava e reunia alguns aspec-
fuga dos problemas. Da irlandesa Sally Rooney com Pes- Se Ferrante discute papéis de HOLDEFER é tos de livros escritos por mulheres),
soas Normais e Conversas Entre Amigos (Débora Landsberg). gênero, nem todas as outras escri- crítica literária, mas é preciso ter em mente que, mais
ensaísta e
Da norte-americana Carmen Maria Machado, que fala da toras o fazem — e tudo bem. Mui- tradutora. Escreve do que um simples risco, o empobre-
brutalidade do machismo na ótima coletânea de contos O ta gente não vê problema em impor para o jornal Folha cimento é incontornável.
Corpo Dela e Outras Farras (Gabriel Brum). Da norte-ame- uma série de exigências, mais fre- de S.Paulo, revista E os leitores só têm a ganhar
Quatro Cinco Um
ricana Julia Phillips com Disappearing Earth, centrado no quentemente de temas, mas também com a diversidade. Que todas as auto-
e mantém o site
desaparecimento de duas meninas. de tratamentos e estilos, a essas auto- camilavonholdefer. ras sejam, como propõe Chris Kraus,
De outro, autoras já falecidas começam a ser publi- ras. Acho importante recusar a abor- com. irreprimíveis.
12 MARÇO DE 2020

C O N T O | I TA M A R V I E I R A J U N I O R

ILUSTRAÇÃO: ALINE DAKA

LABIRINTO
DE ROSAS
MARÇO DE 2020 13

“E
estas que estão pendura- Ouviu seu amigo botânico explicar guém fazê-lo, intuía que na remo-
das?”, perguntou a mu- como através da poda correta pode- ta vida de seus ancestrais aquela era
lher, apontando para as ria forjar uma copa mais volumosa e, uma habilidade que havia sido desen-
plantas sem folhas ou flores dispos- consequentemente, com mais flores: volvida, e transmitida, agora, por sua
tas como roupas em um varal. lilases, vermelhas, brancas, e tinha seiva. Tudo porque havia descoberto,
“Estavam com as raízes apo- avistado mesmo uma de cor negra. Se num dos livros do botânico, aquela
drecidas, não completamente, apenas crescesse um único caule, como ouviu particularidade sobre a rosa estran-
parte delas. O jardineiro dispôs neste na explanação, bastava decepar na al- geira a que foi destacado para cui-
varal, uma espécie de UTI, depois de tura correta para estimular a planta a dar já há algum tempo. Descobriu,
retirar a parte comprometida e cau- criar novos ramos que compensarão a por exemplo, que nômades da África
terizar com canela em pó, para evi- perda, “ah, como na vida...”, ela sor- utilizavam a seiva curada após longa
tar que o apodrecimento se alastrasse. riu. Os troncos nodosos que eviden- fervura para macular suas armas. Que
Parecem estar mortas?”, disse o botâ- ciavam formas estranhas, quase bi- tornavam aquele leite da terra uma
nico voltando suas mãos para tocar as zarras, não eram caules, mas raízes espessa calda escura para aderir sem
plantas de dimensões medianas. que estiveram enterradas no solo e se dificuldade à ponta das lanças. E o jar-
“Parecem, sim. Não fosse essa metamorfoseavam em tronco, em um dineiro, inspirado, testava sua ponta-
cor verde dormente, que é como a cor processo, se ela não se engana, cha- ria na imagem do ditador e suas care-
do nosso sangue por baixo da pele en- mado de “levantamento de caudex”, tas replicadas ao infinito pelos jornais.
quanto ainda vivemos.” que nada mais é que colocar um “de- Quando se encontrava só, e longe do
“Mas a seiva da rosa do deserto grau” de pedras e substrato deixan- patrão subserviente, pendurava as fo-
é branca, como leite. O verde que você do as raízes robustas à vista, retirando lhas num suporte para que lhe servis-
vê é a clorofila no processo de fotos- com cuidado as auxiliares, mas ten- sem de alvo. Atirava uma, duas, mui-
síntese, não é o ‘sangue’”, riu sutil- do cuidado de deixá-las na parte que tas vezes. Estava cada vez melhor,
mente da comparação que ela fazia. permanecerá enterrada para que pos- tinha consciência, assim como tinha
“Algo me transmite que ela sam alimentar a planta. O encanto não consciência de que estava protegido
está viva, foi o que quis dizer.” estava só na aparência, mas na na- pelo seu silêncio e pelas pessoas que o
A mulher então se afasta em tureza e nos artifícios que os homens cercavam e percebiam-no quase ino-
direção ao grande jardim, com mui- utilizavam para domá-la. fensivo, “homem de pouco vocabulá-
tas espécies plantadas diretamente Mas o que a mulher não ouviu rio”, um jardineiro servil, incapaz de
no solo, diferente do galpão onde se do botânico, e o jardineiro permane- fazer algo diferente do que lhe deter-
encontravam há pouco. Entre uma e ceu em silêncio apenas executando as minava o seu senhor.
outra, de tamanhos variados, do vaso ordens e escutando as explicações da- A mulher estava fascinada pela
ao arbusto, havia colunas com plan- das pelo patrão, é que aquela escultu- beleza da rosa. O botânico, envaide-
tas de diferentes formas em sua base. ra da natureza abrigava em sua seiva cido pela fascinação que o objeto de
A mulher, a princípio, não avistou ne- um poderoso veneno. Ninguém ima- sua devoção provocava. O jardineiro
nhum desenho na paisagem, mas, à ginava que nas horas vagas este ho- só tinha mente e coração para o que
medida em que se afastava, percebia mem simples, tido como inculto, se poderia ser mudado.
que as plantas estavam dispostas em dedicava a encontrar a fórmula cor-
intervalos matemáticos, como se qui- reta para embeber as flechas que se-
sessem desenhar no espaço daquela riam disparadas contra os madeirei-
chácara um labirinto, embora não pu- ros que arruinavam sua terra natal, e
desse chamar aqueles corredores as- que, mesmo à distância, recebia notí-
sim por não serem tão eficientes como cias frequentes dos crimes ignorados
os de murtas. pelos que deveriam zelar pela floresta.
De fato, a mulher estava im- Já antevia, com contentamen-
pressionada com a estranha beleza to, o grande alvoroço que sua batalha
ITAMAR VIEIRA JUNIOR é autor dos
daquela espécie. Imaginava-a agora causaria no coração da selva. Ele, que
livros de contos Dias (2012) e A Oração do
na decoração de seu apartamento, im- nunca havia manejado arco e flecha, Carrasco (2017) e do romance Torto Arado,
pressionando os que se permitissem. nem mesmo nunca tinha visto nin- vencedor do Prêmio Leya 2018.
14 MARÇO DE 2020

E N T R E V I S TA

R E N ATO PA R A DA / D I V U L G AÇ ÃO
“AS PESSOAS
SABEM ONDE ESTÁ
A HONESTIDADE”
Depois de 35 anos como crítico e jornalista
cultural, Jotabê Medeiros se reinventou como
escritor de biografias — são dele os livros
recentes sobre Raul Seixas e Belchior

SANDRO MOSER

A
pós mais de três décadas como geração foi marcada pela literatu- com o aviltamento das relações hu-
crítico e jornalista cultural, ra e pelo cinema de ficção científi- manas. Um negócio complicado. Meu
com atuação nos principais ca. Sou da geração Blade Runner. Ti- filho mais novo estava para nascer e
veículos da imprensa nacional, Jotabê nha essa fissura em compreender os achei que podia fazer alguma coisa
Medeiros decidiu se aventurar como grandes livros que se baseavam em de fôlego para ocupar meu tempo em
biógrafo. Lançou dois livros do gêne- distopias. Umas ideias de como atua- vez de fazer texto para jornal todos
ro nos últimos quatro anos: Raul Sei- lizar os temas da natureza humana os dias como sempre fiz.
xas: Não Diga que a Canção Está Perdida dentro do espírito da ficção científi-
(Todavia, 2019) e Belchior — Apenas ca. Até cheguei a fazer um livro, iné- E você pensou no Belchior (1946-
um Rapaz Latino-Americano (Todavia, dito até hoje, sobre isso. Chama-se 2017), que era então o maior misté-
2017). Na entrevista a seguir, ele fala A Morte Engarrafada. O texto, porém, rio da cultura pop nacional...
sobre o novo ofício, a vida e a obra de ficou obsoleto porque muitas das Exatamente. Há cinco anos, o Bel-
seus personagens, brigas com her- coisas que eu projetava como ideias chior era um mistério filosófico em
deiros — e com Paulo Coelho — e o de futuro já existem no mundo real. progresso. Ele estava desaparecido.
que mudou no mercado desde a deci- Um drone assassino, por exemplo. Os Tinha negado toda a carreira e fei-
são do STF que liberou biografias não apetrechos ficaram obsoletos. to uma grande ruptura. Repetido um
autorizadas. movimento sobre o qual eu já tinha
O jornalismo cultural em que você lido muito. A pergunta que se impu-
Há cinco anos, você deixou de ser sempre trabalhou também morre de nha era: quem é esse cara para ser tão
crítico musical e se tornou biógra- obsolescência? ousado existencialmente? Sem falar
fo de sucesso. Como o jornalista se O que acontece é que o jornalismo que os versos dele faziam eco na mi-
transformou em escritor? que eu gostava, e ainda gosto muito nha cabeça. Cresci ouvindo Belchior.
Na verdade, sempre tive vontade de de fazer, está se afunilando para uma Conhecia de cor todos esses versos
fazer literatura. Tenho estima mui- extinção de propósitos. Não falo da que viraram grafite. Então resol-
to grande pelo que a ficção científica função, mas dos ambientes em que vi compreendê-lo e passei um ano e
fez pela cultura pop mundial. Minha cresci no jornalismo e que mudaram meio em cima da história dele.
MARÇO DE 2020 15

E, afinal, você descobriu o que fez Belchior sumir do


mapa e dos acontecimentos?
Eu trabalhava no Estado de S. Paulo, que talvez tenha
um dos melhores arquivos do Brasil. Um negócio pro-
digioso. Tem umas pastas com o nome das pessoas e
recortes dos jornais da época, documentos, todas as
fotos. Tinha, por exemplo, a pasta do [arquiteto e ur-
banista francês] Le Corbusier (1887-1956), na qual
havia uma carta de próprio punho dele destinada aos
arquitetos modernos brasileiros que se correspon-
diam com ele. Alguém deu para o Estadão publicar e
ficou por lá. A pasta do Belchior era mais modesta,
mas tinha muita coisa também. Quando finalmente
saí do jornal, já tinha material muito bom e come-
cei a entender que talvez o Belchior tivesse enxerga-
do o futuro.

Qual foi o futuro que ele viu?


Ele começou a perceber o Brasil como algo esgotado.
Não como o fim da História, mas como um momen-
to de profundo esgotamento do país e da sociedade
dentro de um processo civilizatório. Com isso, ele foi
sendo empurrado para uma situação-limite. O livro
começou a ganhar um sentido mais forte para mim.
Quase três anos depois, tenho vontade de fazer ou-
tro livro sobre ele. É como se você se tornasse refém
da história. Vou muito para o Ceará e a cada viagem
algo novo acontece. É uma sensação estranha. Mudou
minha vida em todos os sentidos e a minha forma de
enxergar a biografia como artefato literário.

E como você passou a enxergar os livros biográficos?


Para mim, um livro fundador é a biografia de Os-
car Wilde, escrita pelo crítico Richard Ellmann, que
morreu em 1987, debruçado nas provas tipográficas.
Um biógrafo que evidentemente não viveu no mesmo
tempo em que seu personagem. Ele, porém, conseguiu
criar uma identificação com Wilde que o permitiu exa-
minar a condição humana do biografado sem falsear a
História. A biografia precisa ter este compromisso de
não ser mentirosa. Se for só um amontoado de fatos e
dados, ou pior, se for o exercício de vaidade do autor,
ela também falsifica alguma coisa. Eu me dei conta de
que precisava achar uma linguagem, que tivesse um
pé no ensaio, mas respeitasse todos os rigores e pres-
supostos clássicos de uma biografia bem feita.
16 MARÇO DE 2020

E N T R E V I S TA | J O TA B Ê M E D E I R O S

Quanto de jornalismo, historiogra- Mas esse movimento é perceptível Que biografias você quer escrever
fia e literatura tem numa biografia? no número de venda de livros? agora?
Qual é a medida certa? Não sei se foi o bastante para en- Estou escrevendo uma biografia so-
O autor precisa achar o tom. Ou corre corajar o mercado nesse ponto. Na bre um personagem que entrevis-
o risco de o texto final ficar impes- verdade, você nunca sabe qual livro to e com o qual eu convivo desde a
soal demais. Por outro lado, precisa vai ultrapassar a barreira e existir década de 1980. Vai permitir contar
evitar que o livro se torne relatorial. como um produto. Uma biografia da um pouco da história da migração
Neste caso, o texto passa a ser utili- Fernanda Montenegro, autorizada da minha família. Não posso contar
tário, serve como fonte para outros pela própria, com fotos inéditas, é mais, pois há um contrato de con-
autores, mas não é literatura. Um um produto certeiro. A autobiogra- fidencialidade com a editora e se eu
verbete bem escrito já daria conta. fia da Rita Lee também vai vender. falar pode atrapalhar a apuração.
A biografia precisa ir além. Confor- Tem algumas poucas apostas mer- Mas também quero escrever sobre o
me eu avançava, a pesquisa me dava cadologicamente certas. Mas, em Roberto Piva (1937-2010), que con-
a possibilidade de fazer minhas es- geral, não há barbadas editoriais. A sidero o melhor poeta contemporâ-
colhas. Meus dois biografados são biografia tem isso. É um salto no es- neo brasileiro. Quero escrever, se me
músicos. Isso me permitiu cons- curo, é imprevisível. for dada a possibilidade. Vai vender
truir uma narrativa emocionalmen- livros? Ele não vendia nem os dele.
te conectada ao espírito da música. Depois da decisão, alguns artistas Mas isso não é o mais importante,
Minha experiência como crítico, ao se apressaram a escrever suas pró- quero muito escrever sobre ele e sua
longo de 35 anos, me ajudou a usar prias biografias. Talvez com medo obra.
a música como um guia espiritual e de que alguém o fizesse antes...
emocional. Em alguns casos, certamente. O ar- E quais são outras biografias cuja
tista prefere escrever a toque de leitura você recomenda?
Em 2015, o Supremo Tribunal Fe- caixa para poder dar a palavra fi- A biografia do Oscar Wilde, que já ci-
deral (STF) acabou com a exigência nal. O Fagner escreveu um livro tei, é fundamental para mim. Con-
prévia de autorização para biogra- com uma jornalista sobre sua car- tudo, eu considero biografia muita
fias. Como isso mexeu com o mer- reira para poder rebater coisas que coisa. Meu conceito é amplo. Eu acho
cado de livros biográficos? estavam na minha biografia sobre que Os Sertões, de Euclides da Cunha,
Houve inegavelmente um movimen- o Belchior [Raimundo Fagner: Quem é uma espécie de biografia, além de
to de produção e lançamento de bio- me Levará Sou Eu, Regina Echever- ser um embrião do new jornalism.
grafias desde então. Não sei se liga- ria, Agir, 2019]. O livro dele é um Eu li O Mago [Novas Páginas, 2015],
do diretamente ao teor da sentença, fiasco. As pessoas sabem onde está do Fernando Moraes, sobre a vida
mas, sobretudo, ao efeito psicológi- a honestidade. Você não pode querer do Paulo Coelho, e acho que ele foi
co da decisão. Antes, a família e ou- que sua versão dos fatos se sobre- muito corajoso. Me interessou mui-
tras pessoas achavam muito fácil ponha à verdade histórica. É o que to a forma do autor se contrapor ao
processar o autor do livro. O históri- se tenta com algumas biografias próprio interesse do biografado para
co encorajava a contestação mesmo chapa-branca que inclusive avil- contar fatos sem os quais a histó-
sem nenhuma razão aparente. Lem- tam o mercado e lhe tiram a credi- ria não estaria contada e fez um bom
bro que contestaram o livro do Ruy bilidade. Eu compro um livro quan- livro. Alguns que li por imposição
Castro porque ele disse que o Gar- do tenho confiança de que aquilo profissional não são livros que con-
rincha era “bem dotado”. É absurdo vai melhorar minha constante for- sidero bem resolvidos. A biografia
interditar um livro por casa disso. No mação sobre determinados assun- dos Novos Baianos, escrita pelo poe-
máximo você pode dizer que é de- tos. Pode ser um movimento dentro ta Luiz Galvão, desperdiça uma puta
selegante. Era uma falsa indignação da música ou nas artes. Se o livro é história. Verdade Tropical, do Caetano
oportunista. O que aconteceu é que a uma farsa, o leitor perde o tesão de Veloso, é um livro importante, mas
decisão desencorajou alguns abusos. comprar livros. totalmente autoindulgente.
MARÇO DE 2020 17

REPRODUÇÃO

Voltando aos seus livros, qual a verdade. Você teve problema com os
maior diferença entre seus dois per- fãs dele?
sonagens, Raul Seixas e Bechior? Tive vários problemas com raulsei-
A diferença básica é que o Belchior é xistas fanáticos. Ameaças de cance-
um racionalista, ainda que um poeta. lamento do livro, xingamentos. Como
Um poeta racionalista. O Raul é mís- escritor me exigiu muito mais rigor na
tico. Metafísico. Meio extraterrestre. pesquisa, pois é fácil ser demagógico
Ao mesmo tempo, um debochado. falando do Raul. As pessoas me mar-
Era preciso que o texto tivesse hu- cavam nos posts para que eu soubes-
mor para ser honesto com Raul. Am- se que eles estavam me chamando de
bos eram grandes mentirosos, mas o canalha. Teve algumas coisas assusta-
Raul cultivava a farsa como processo, doras. Me chegou uma mensagem em
inclusive criativo. Há algumas seme- nome de um satanista já morto, que
lhanças também. fazia uma espécie de suspense maca-
bro sobre meu futuro. Começou a apa-
E quais são elas? recer todo o tipo de doido. Ao mesmo
Os dois eram outsiders, mas ambos tempo, a apreciação crítica foi muito
cortejaram o grande público, a grande boa. Foi recebido como um livro que
plateia, as multidões. Sem que fossem aponta caminhos para outras biogra-
contraditórios ou violentassem seus fias do Raul Seixas.
princípios artísticos. A obra de cada
um é bem diferente entre si. A do Bel- Escrever biografia é sinônimo de
chior é muito fundamentada na litera- suscetibilidades feridas e problemas
tura, inclusiva na literatura popular de com herdeiros. Como você lidou com
autores como Zé Limeira, Patativa do isso?
Assaré e outros poetas sertanejos. Já o A família do Belchior é muito grande e
Raul é muito voltado para a construção. tem diversos irmãos (são 23 ao todo).
Belchior é o roteiro adaptado. Já o ro- Alguns colaboraram bastante e gos-
teiro original vai para o Raul, que sim- tam muito do resultado. Mas há uma
plesmente inventa uma tradição. irmã que se acha a guardiã da obra e
começou a procurar pontos que fos-
Uma das novidades do seu livro é sem passíveis de um eventual proces-
apresentar o Raul como maior for- so. Como não achou nada, ela fantasiou
mulador da música brega brasileira. guitarra. O que rola hoje com o serta- algumas passagens que supostamente
Raul criou a estética da atual canção nejo é que eles tão pegando a música ofenderiam a família. Eles até lança-
popular brasileira? eletrônica, o pop internacional, e fa- ram um compilado de entrevistas do
Sem dúvida. Hoje o que se faz tem zendo a mesma coisa. Mas o Raul foi Belchior, mas o livro não é importante.
a mão dele e de seu parceiro Mauro o cara que inventou o método. Você Porque um livro se prova quando en-
Motta, o cara que fez a interface com ouve essa música de “sofrência” e frenta o grande desafio de chegar aos
ele na música mais popular do país. pensa: sem o Raul, isso nunca teria leitores. Obviamente, estou preparado
O que eles criaram como produto- acontecido. Ouvi dez ou 12 discos que para qualquer tipo de processo. Escre-
res de discos se repete até hoje. Qual ele produziu até começar a ter clareza ver biografias requer cuidados e eu os
era a grande música jovem da época? da radicalidade da obra dele. tomo. Tenho aqui duas caixas de docu-
Era a Jovem Guarda. Eles juntaram as mentos do Raul Seixas, áudios de en-
duas coisas. O brega e a Jovem Guar- Se de Belchior se sabia pouco, do trevistas e outras coisas. Porque, se eu
da, dando-lhes substrato do rock, da Raul havia muita lenda tomada como for questionado, vou ter como rebater.
18 MARÇO DE 2020

E N T R E V I S TA | J O TA B Ê M E D E I R O S

Fora isso, o meu papel é colocar o livro revelação, Coelho disse, no Twitter, que “ficou quieto por 45 te. Qual é a função da biografia nes-
pronto, em pé. Se a partir daí ninguém anos e achou que levaria o segredo para o túmulo”, mas de- te contexto?
gostar, tenho que ser humilde e dizer pois apagou o post e contestou a veracidade dos documentos] Talvez seja recuperar a importância
que fiz um péssimo trabalho, mas o li- De nada, ainda que só tenha me trazido problemas. Não do passado. Uma biografia bem fei-
vro do Belchior é um caso de sucesso. escrevi livro para bajular fã. Isto foi o que fizeram até hoje. ta ajuda a iluminar um pouco o pas-
Sou jornalista, não posso repetir isso. Simplesmente não sado. Assim, o caminho da história,
Belchior está sendo redescoberto consigo ignorar um fato desses, mesmo sabendo do ma- e não só o de determinado persona-
pelos millennials. Suas músicas são nancial de problemas que iria se abrir. gem, fica mais claro, para que as pes-
hits do carnaval 2020. Como expli- soas possam fazer novas relações. Por
car isso? Por que você acha que o Paulo Coelho recuou da afirma- exemplo, o Raul Seixas surge na mes-
Belchior tinha um jeito de falar com ção que fez? ma Salvador que a empreiteira Ode-
franqueza sem ser impositivo, de dis- Acho que ele ficou com medo. Ele viu que a reação foi maior brecht. Uma das primeiras obras deles
cordar com elegância. O tempo em do que ele pensara. Como ele foi um cara que sofreu muito foi o Cine Romam, onde Raul can-
que estamos vivendo politicamente, na mão de um regime cruel, tem sequelas disso. Com toda tou pela primeira vez. O Mick Jagger
e mesmo em relação à sobrevivência, a razão, isso ainda não acabou para ele. foi pra Bahia em 1968 e se encontrou
emprego e relacionamentos humanos, com Raul. O Jagger estava procurando
voltou a ser muito complicado. As le- E como você se sentiu quando ele disse que desconfiava autenticidade global, misturas e viu e
tras dele se encaixam. Podiam ter sido dos documentos? ouviu o que se fazia na Bahia. A leitura
feitas ontem, mas foram feitas em Meu primeiro impulso foi ficar puto com ele, pois, no limi- ensina que existem correlações na his-
1974. Este é o milagre do grande au- te, o Paulo Coelho me acusou de falsificação. Eu falei: sabe tória destes caras que ajudam a clarear
tor. Como Machado de Assis, que an- o que vocês podem fazer? Podem ir ao Arquivo Público, em parte da vida cultural de todo um país.
dava de casaca e monóculo no século Botafogo, no Rio de Janeiro, na pasta número tal. Os docu-
XIX, percebeu e escreveu tantas coisas mentos estão lá. Não precisa nem de mim e nem do Paulo. Você nasceu no sertão da Paraíba,
que fazem sentido hoje? Este milagre Basta ir à fonte original. Se eu fosse ficar indignado, teria mas cresceu em Cianorte, no inte-
pinga das letras do Belchior. Elas têm mandado ele às favas ou tentado polarizar com ele. Bater rior do Paraná. Que ventos te leva-
essa conversa franca sobre as angús- boca em público e dizer que o mentiroso é ele. Mas tem ram de um lugar para o outro?
tias dele que são as mesmas de hoje. duas coisas: ele foi torturado, eu não fui. Ele sofreu tudo Nasci numa cidade chamada Sumé,
Quem tinha sonhos no ano passado aquilo, eu não. A segunda pergunta é: o que eu tenho a ga- no Cariri. Na fronteira com Pernam-
os viu morrer, mas não quer morrer nhar com uma diatribe com o Paulo Coelho na imprensa buco. Estive lá pela primeira vez em
de novo nesse ano. Quem é jovem viu ou nas redes sociais? Evidentemente, o que ele estava fa- dezembro de 2018, depois de mais de
seus sonhos serem ceifados de um jei- lando não era verdade. O que é fácil conferir, pois está em 50 anos. Estou escrevendo um livro
to sombrio. Se reclamarem, podem ser um acervo público. Mas se eu ficasse dando uma de ofen- sobre esta saga da família. Uma fa-
linchados. Tudo isso remete à circuns- dido, não iria ganhar nada. Quando ele falou que eu só es- mília de migrantes da seca, das más
tância da obra dele, que é uma bússola tava querendo vender a “porra do livro”, achei engraçado. condições financeiras. Sou o 11º filho.
para uma situação de extrema neutra- Só quero vender 10% do que ele vendeu. As dez primeiras eram mulheres. Meu
lização da capacidade de sonhar. pai queria ter um filho homem a todo
Você nunca mais falou com ele? custo. Para azar dele, veio justamente
Na biografia, é preciso humanizar os Não, mas tenho respeito por ele. Ele assumiu um papel que eu: um amante do glam rock. Não po-
heróis. Você fez isso com Raul e me- não precisava em relação à situação política brasileira. Ele dia haver decepção maior.
xeu em um vespeiro de polêmicas. usa o prestígio dele para denunciar os absurdos em posições
Você se arrepende de alguma decisão muito corretas, com as quais concordo. Como eu vou brigar Você ouvia glam rock em Cianorte?
editorial? [Durante a pesquisa para o com um cara desse nessa altura do campeonato? Como foi a sua adolescência lá?
livro, Jotabê localizou documentos pú- Nada. Lá você só ouvia o que tocava no
blicos referentes a uma possível dela- Temos a ilusão de que podemos mudar o futuro, mas, na rádio. Era Luiz Gonzaga ou Eagles. Vivi
ção de Raul Seixas sobre o paradeiro de verdade, o que se vê é uma edição constante do passa- lá até os 15 anos. Eu curtia quadrinhos.
Paulo Coelho à ditadura militar. Após a do. As narrativas se ajustam para que sirvam ao presen- Provavelmente, era o maior colecio-
MARÇO DE 2020 19

R E N ATO PA R A DA / D I V U L G AÇ ÃO

nador de Cianorte. Tinha pilhas de gi- como o Doctor Reggae (pseudônimo


bis do Tarzan que eu trocava pelas fo- de Otávio Rodrigues), Paulo Ricardo,
tonovelas das minhas irmãs. A jogada Celso Pucci, Alex Antunes, aqueles
era o escambo de quadrinhos: os mo- caras todos. Queria escrever também.
leques tinham caixas que levavam uns Um dia mandei um texto pretensio-
nas casas dos outros e, assim, íamos so, ensaístico, para a revisa. O Mau-
trocando. Quando chegou a hora de fa- rício Kubrusly era o editor. Ele leu,
zer o segundo grau, peguei um “bu- gostou, me contratou como crítico e
são” e vim parar em Curitiba me mandava discos em Londrina.

Você morou em Curitiba no começo A mudança para São Paulo também


da década de 1980. O que tinha para foi num golpe de sorte...
fazer na cidade? Sim. Fui descoberto por um olhei-
Cheguei com uma mão na frente e ou- ro. Em 1986, passou por Londrina o
tra atrás. Não tinha nem onde morar. jornalista [e escritor] Luiz Fernando
Nos primeiros dias, fiquei no sofá da Emediato. Ele estava procurando ta-
minha irmã Salete, no Bacacheri, até lentos para criar o Caderno 2 do Es-
arrumar um emprego. Arranjei numa tadão e comprou a edição da Folha
construtora, no Alto da XV. Eu fazia o de Londrina no aeroporto. Na capa do
pagamento dos peões. Naquele tem- caderno de cultura estava um tex-
po, meu sonho era cruzar com o Dal- to meu sobre os dez anos da morte
ton Trevisan, pois sabia que fazíamos do [cineasta italiano Pier Paolo] Pa-
o mesmo caminho: do Alto da XV até solini. Ele me ligou e fez uma pro-
a Confeitaria das Famílias. Eu morava posta. Perguntei: ‘Quanto vocês pa-
numa quitinete na Marechal Deodoro, gam?’. Ele disse um número que era
com mais sete moleques. Na verdade, oito vezes o que eu ganhava. Peguei
era uma sala comercial. Em volta tinha outro “busão”. Cheguei na redação e
dentistas e advogados. Morei ali dois me colocaram do lado do Caio Fer-
anos e pouco, até a época do vestibu- nando Abreu e do Ademir Assunção.
lar. Passei na Universidade de Londri- A Laerte era a ilustradora exclusi-
na. Assim, numa noite peguei mais um va da equipe. Dos gibis em Cianorte
“busão” e fiz quatro anos de faculdade. até ali foram menos de seis anos. Eu
atribuo tudo isso à minha mãe. Ela
Culturalmente, qual era a grande di- é índia Cariri, feiticeira da aldeia. Só
ferença entre Curitiba e Londrina nos pode ter sido isso. Ela deixou alguma
anos 1980? coisa de proteção para mim.
Morei nas duas cidades e achava Lon- Curitiba. Morava ao lado da Reitoria [da Como você virou crítico musical e
drina uma metrópole perto de Curi- Universidade Federal do Paraná] e ia realizou o sonho de todo garoto fã
tiba. Tudo acontecia em Londrina. A nos shows de graça, mas achava a coi- de música?
vanguarda paulista fazia eco lá. Assis- sa muito protocolar, muito contida. Em Era foca da Folha de Londrina e ga-
ti a shows do Arrigo Barnabé e do Ita- Londrina era tudo muito doido. Na Fo- nhava o piso. Era o único que não ti-
SANDRO MOSER é jornalista.
mar Assumpção em um palco flutuante lha de Londrina, o Rodrigo Garcia Lopes nha como pagar a cerveja e precisava
Trabalhou durante dez anos no jornal
às margens do lago Igapó, eles tocando fazia tradução dos beats. Li “O Uivo” ganhar dinheiro. Morava na casa do Gazeta do Povo, principalmente na
e a gente sentado na margem. Lembro [poema de Allen Ginsberg, publicado estudante e era o mais duro de todos. cobertura cultural. Em breve, lançará seu
que vi algumas coisas como o Blinda- em 1956] nas páginas do jornal. Aqui- Lembro que lia a revista Somtrês, que primeiro livro — a biografia do ex-jogador
de futebol Sicupira.
gem e outras coisas do subterrâneo de lo foi um grande despertar para mim. tinha os principais críticos da época,
20 MARÇO DE 2020

P O E M A S | D E R E K WA L C O T T

TRADUÇÃO: RODRIGO GARCIA LOPES

PA R A N O R L I N E

Esta praia permanecerá vazia


por mais auroras cor de ardósia
de linhas que o oceano incessante
apaga com sua esponja,

e virá outra pessoa


da casa ainda sonolenta,
copo de café aquecendo a palma da mão
como meu corpo um dia encaixou o seu,

para memorizar esta passagem


de uma andorinha-do-mar sugando o sal
feito uma linha numa página
que se adora e é difícil de virar.

TO NORLINE
This beach will remain empty
for more slate-colored dawns
of lines the surf continually
erases with its sponge,

and someone else will come


from the still-sleeping house,
a coffee mug warming his palm
as my body once cupped yours,

to memorize this passage


of a salt-sipping tern,
like when some line on a page

is loved, and it’s hard to turn.


MARÇO DE 2020 21

DIVULGAÇÃO

FINAIS

As coisas não explodem,


falham, fenecem,

como a luz do sol fenece da carne,


como a espuma escoa veloz na areia,

nem o relâmpago do amor


tem fim trovejante,

morre com o som


das flores fenecendo como a carne

da suada pedra-pomes,
tudo dá forma a isto

até que ficamos


com o silêncio que rodeia a cabeça de Beethoven.

ENDINGS

Things do not explode,


they fail, they fade,

as sunlight fades from the flesh,


as the foam drains quick in the sand,

even love’s lightning flash


has no thunderous end.

it dies with the sound


Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1992, DEREK
of flowers fading like the flesh
WALCOTT nasceu na ilha caribenha de Santa Lúcia, em 1930.
Ministrou aulas de poesia em universidades dos Estados Unidos,
from sweating pumice stone, Inglaterra e Canadá. Seu trabalho mais conhecido é o poema épico
everything shapes this Omeros — publicado no Brasil pela Companhia das Letras, com
tradução de Paulo Vizioli. Morreu em 2017, aos 87 anos de idade.

till we are left


with the silence that surrounds Beethoven’s head.
RODRIGO GARCIA LOPES é poeta, romancista e compositor.
Como tradutor, publicou os livros Sylvia Plath: Poemas e Iluminuras:
Gravuras Coloridas, de Arthur Rimbaud (ambos com Maurício Arruda
Mendonça), Ariel, de Sylvia Plath (com Cristina Macedo), Folhas de Relva,
de Walt Whitman, Mindscapes; Poemas de Laura Riding, O Navegante (do
anônimo anglo-saxão) e Epigramas, de Marco Valério Marcial.
22 MARÇO DE 2020

ENSAIO

O CHAMADO
À AÇÃO
Morto há 60 anos, Albert
Camus deixou uma obra
marcada por temas que
inquietaram a humanidade
no século XX — e ainda
hoje nos rondam
GISELE BARÃO

E
m uma viagem à França, a
cantora, compositora e es-
critora americana Patti Smith
recebeu um convite da filha de Al-
bert Camus, Catherine, para conhe-
cer a antiga casa da família em Lour-
main, e lá vivenciou uma espécie de
epifania. Durante uma hora, ela fo-
lheou o manuscrito de O Primeiro
Homem, obra inacabada do escritor
franco-argelino encontrada depois
do acidente de carro que o matou em
4 janeiro de 1960, aos 46 anos. O re-
lato dessa visita está nas páginas fi-
nais de Devoção (Companhia das Le-
tras, 2019): “Era possível perceber
uma missão concentrada e um cora-
ção acelerado impulsionando as úl-
timas palavras do parágrafo final, as
últimas que ele escreveria”, escreveu
Patti. Comovida ao ter em mãos as
anotações originais de uma de suas
influências na literatura, a cantora
conclui que o grande poder de uma
obra singular é “o chamado à ação”.
Nós escrevemos, ela diz, “porque não
podemos somente viver”.
Escritor, jornalista, ensaísta,
dramaturgo, filósofo, integrante da
MARÇO DE 2020 23

REPRODUÇÃO

resistência francesa contra a ocupa-


ção nazista durante a Segunda Guer-
ra Mundial, Albert Camus deixou uma
obra extensa que nos estimula a pensar
a condição humana tanto na dimensão
individual quanto na coletiva e políti-
ca. No Brasil, a Record reeditou 11 de
seus livros entre 2017 e 2018, a maioria
com tradução de Valerie Rumjanek. Em
2019, quando completaram-se 70 anos
da vinda dele para o país, a mesma edi-
tora lançou Camus, O Viajante, com seus
diários de viagem. Além disso, a edi-
ção brasileira do livro A Armadilha, de
Emmanuel Bove (Mundaréu, 2019), re-
trata a tensa atmosfera social durante o
domínio nazista e tem como conteúdo
complementar alguns editoriais escri-
tos por Camus para o Combat — jornal
clandestino do período da militância na
França. Agora, a Record pretende colo-
car mais lançamentos no mercado: es-
tão previstas as publicações de Núpcias,
O Verão e Correspondência: 1944-1959,
que reúne cartas trocadas entre o escri-
tor e a atriz Maria Casares, com quem
teve um relacionamento.
O autor de clássicos como O
Estrangeiro e A Peste soube articular
como poucos a literatura e o pensa-
mento filosófico. “Camus tinha espe-
cial afeição pela literatura enquanto
forma de filosofia, o que põe em práti-
ca em peças, romances e em seus ma-
gistrais comentários sobre a visão de
mundo que se depreende das obras de
Melville, Kafka, Dostoiévski, entre ou-
tros”, explica o jornalista Caio Liudvik,
doutor em Filosofia com tese sobre o
escritor. Os textos de Camus expõem
temas que inquietaram a humanidade
no século XX e que, em diferentes es-
feras e contextos, ainda hoje nos ron-
dam: absurdo, solidão, autoritarismo.
Ter acesso a essas produções, apesar
das marcas históricas, também é uma
oportunidade de olhar para os dias
atuais e, quem sabe, vivenciar nosso
próprio “chamado à ação”.
24 MARÇO DE 2020

ENSAIO
MARÇO DE 2020 25

REPRODUÇÃO

No romance A Peste, de 1947, que narra a história


de uma cidade assolada por uma epidemia — lido também
como metáfora da ocupação nazista na França durante a
guerra —, a impressão é de que a doença pode voltar a
qualquer momento: “[…] o bacilo da peste não morre nem
desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido
nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quar-
tos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada”. Para
o jornalista e crítico literário Manuel da Costa Pinto, tra-
dutor e organizador de obras de Camus no Brasil, esse e
outros textos podem se encaixar em contextos diferentes,
apesar das demarcações históricas e geográficas. Mas não
necessariamente anteciparam os conflitos que vivencia-
mos hoje. “As polarizações ideológicas atuais, marcadas
pela xenofobia e pelo ódio à diferença, à alteridade, são
ditadas por um populismo fruto da precarização do tra-
balho e dos vícios do sistema político democrático glo-
balizado — algo bem distante do contexto em que havia
ideologias fortes, como fascismo, marxismo-leninismo ou
mesmo o liberalismo colonialista / imperialista do pós-
-guerra. A obra de Camus não tem relação com questões
identitárias e religiosas que pareciam ultrapassadas à sua
época, e que retornaram de modo surpreendente em ple-
no século XXI”, explica.
Já Caio Liudvik vê atualidade na perspectiva de te-
mas presentes em ensaios e romances do escritor, como
a morte (suicídio e assassinato, por exemplo) e a intole-
rância. “Camus nos ajuda a fazer frente às epidemias que
nos ameaçam sempre de novo, nos prepara para suportar
os infortúnios sem abandonar a lucidez, sem apelar para
covardias como a de um professor de teologia que vi outro
dia na televisão insinuar que o mundo ‘paga’ com catás-
trofes como o novo coronavírus por sua indiferença em re-
lação a Deus — discurso que repete quase que literalmente
o do padre Paneloux em A Peste”, analisa. Liudvik acredita
que a leitura de Camus é cada vez mais urgente em meio
a radicalismos. “Épocas como a dele, e como a nossa, pa-
recem favorecer não os que pensam melhor, mas os que
gritam mais alto, os que são mais grosseiros, mais sim-
plistas. Quem não se enquadra nisso passa por ‘isentão’,
o que ele nunca esteve nem perto de ser, vide a coragem
com que arriscou a reputação, a liberdade e até a própria
vida por uma solução ponderada para a sangrenta guerra
de descolonização do seu país natal.”
Camus ficou com fama de idealista e conservador
depois de romper com os existencialistas da década de
1950. As críticas ao ensaio O Homem Revoltado (1951) fo-
ram o principal motivo para a briga com filósofo Jean-
-Paul Sartre, de quem tinha se aproximado em 1943, na
26 MARÇO DE 2020

ENSAIO luta contra a ocupação nazista. O li- não ter assinatura, a autoria foi con-
vro, em que o escritor franco-arge- firmada por várias fontes, incluindo
lino defende a ética acima da eficácia a filha do escritor, Catherine Camus,
na política, não agradou aos membros pois tem características dos editoriais
mais radicais do grupo. Aliás, apesar do jornal clandestino Combat, que Ca-
de compartilhar pressupostos com mus editava.
essa corrente, Camus negava o título Produzido num período de for-
de existencialista e mesmo de filósofo. te tensão política, o texto evidencia a
O jornalista Manuel da Costa angústia desse contexto e mostra que
Pinto explica que a polêmica em tor- a maior preocupação de Camus era
no da publicação de O Homem Revol- como a sociedade iria se refazer após
tado marcou profundamente a recep- a libertação da França ocupada pelos
ção da obra de Camus após sua morte, nazistas. O escritor diz que a justiça
mas não o enquadrou como um con- e a liberdade são os valores essen-
servador ou reacionário. Na verdade, ciais para reconstruir o mundo e que
suas posições eram resultado de sen- uma nação morre quando suas elites
sibilidade artística e pensamento fi- se dissolvem — e explica, no entan-
losófico difíceis de definir em corren- to, que está chamando de elite o povo
tes pré-estabelecidas. “É verdade que e a inteligência. Em outro ponto, Ca-
pensadores conservadores tentaram mus utiliza o termo “elite” para fazer
cooptar Camus para seu lado, mas referência a outro grupo, o daqueles
isso é incoerente com o modo como que “se colocam como testemunhas
ele articulava seu pensamento”, diz. e não foram mais do que prudentes”.
Hoje, os especialistas o interpretam Aqui, na análise de Manuel da Costa
como alguém que foi, de certa forma, Pinto, ele se refere a pessoas que fo-
isolado intelectualmente por insistir ram omissas ou que até colaboraram
em um humanismo sem concessões. com a ocupação nazista. Esse tipo de
Na visão do pesquisador Caio Liud- elite, para Camus, deveria “aceitar a
vik, a questão central no pensamento ideia da desaparição”. Para o jorna-
de Camus é a defesa da liberdade e da lista, “De um Intelectual que Resiste”
igualdade que, se não andarem juntas, mostra que Camus já previa as críti- Ou seja, assim como nos re-
viram álibi para a opressão em dife- cas que viriam com a publicação de O voltamos contra nossa condição ab-
rentes níveis e posições políticas. Homem Revoltado e também a divisão surda — origem da metáfora de Sí-
entre intelectuais e homens públicos sifo, condenado a rolar eternamente
U M A D E S C O B E R TA ao fim da Segunda Guerra. montanha acima uma pedra que aca-
Graças a uma pesquisa do his- A obra de Camus tem diferen- ba sempre caindo —, também nos re-
toriador francês Vincent Duclert, um tes ciclos. Aos 30 anos de idade, épo- voltamos contra absurdos históricos,
texto inédito de Camus veio a público ca em que já era militante na França mesmo conscientes de que jamais os
neste ano. Escrito em 1943 a pedido e editava o jornal Combat, ele já havia eliminaremos totalmente, como ex-
do Comitê Francês de Libertação Na- publicado O Mito de Sísifo (1941) e O Es- plica Costa Pinto. “Essa revolta sem
cional, o artigo datilografado em três trangeiro (1942), livros que represen- ilusão é uma espécie de antídoto con-
páginas estava nos arquivos do gene- tam suas reflexões no plano subjetivo, tra as soluções radicais, contra a legi-
ral Charles de Gaulle, líder da resis- sobre a falta de sentido da existência, timação do assassinato político ou dos
tência francesa durante a ocupação a solidão, o suicídio. Já A Peste (1947) e sistemas totalitários em nome de uma
nazista. “De um Intelectual que Re- O Homem Revoltado (1951), por exem- eficácia que confia numa justiça ter-
siste” foi publicado pelo jornal fran- plo, são responsáveis por estender o rena absoluta — pois matar e oprimir
cês Le Figaro e incluído no livro Camus, absurdo para uma dimensão coleti- em nome dessas ideologias utópicas
des pays de liberté, lançado em janeiro va e histórica, sinalizando que não há consistiria numa instauração do ab-
pela editora francesa Stock. Apesar de sociedade sem contradição. surdo no plano da história”, explica.
MARÇO DE 2020 27

REPRODUÇÃO

O BRASIL EM CAMUS
Enquanto escrevia O Homem Revoltado,
EPIDEMIA Camus viajou pela América do Sul e
conheceu o Brasil em 1949. Está tudo cima por traças invisíveis. Um dia, esse edifício desabará, e todo um
registrado em cadernos de anotações, pequeno povo agitado, negro, vermelho e amarelo espalhar-se-á
No início de março, a epidemia do novo reunidos no livro Camus, O Viajante, pela superfície do continente, mascarado e munido de lanças, para a
coronavírus impulsionou as vendas de uma lançado no ano passado. Além de elogios dança da vitória”, escreveu.
das principais obras do escritor franco- a intelectuais e artistas como Manuel A conferência “O Tempo dos Assassinos”, que apresentou por aqui
argelino. Na Itália, um dos países europeus Bandeira, Murilo Mendes e Dorival Caymmi, a convite do Departamento de Relações Culturais do Ministério
mais afetados pela doença, A Peste saltou seus diários têm observações sobre as das Relações Exteriores no Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, é
para a lista de mais vendidos em plataformas cidades (definiu São Paulo como “cidade entendida como um trabalho preparatório para O Homem Revoltado.
de comércio eletrônico como a Amazon estranha, Orã desmedida”, em referência Em alguns trechos, a força de suas palavras, mesmo fazendo referência
na categoria dos clássicos (e uma situação à cidade argelina onde se passa A Peste) e a Europa do século XX, é especialmente impactante hoje. “Não existe
semelhante aconteceu com Ensaio Sobre o povo brasileiro. Camus visitou São Paulo, vida sem diálogo. E, na maior parte do mundo, o diálogo é substituído
a Cegueira, de Saramago). Lá, milhões de Rio de Janeiro, Recife, Olinda, Salvador, hoje em dia pela polêmica, a linguagem da eficácia”, diz ele. E
pessoas estão em quarentena, assim como GISELE Porto Alegre e Iguape — mais tarde, a cidade completa: “Tampouco existe vida sem persuasão. E a história de hoje
ficaram isolados os personagens infectados BARÃO é ambientou o texto “A Pedra que Cresce”, só conhece a intimidação, a política da eficácia. Os homens vivem e
na cidade de Orã, onde se passa a história jornalista, com ficção inspirada na viagem. só podem viver com base na ideia de que têm algo em comum onde
de Camus. Na França, quase 9 mil cópias passagens por O olhar do escritor durante a estadia em sempre podem se encontrar. Mas nós descobrimos isto: alguns homens
veículos como
de A Peste foram vendidas nos dois primeiros nosso país mistura encantamento, tédio, não podem ser persuadidos. Era e é impossível para uma vítima dos
Gazeta do Povo,
meses deste ano, quase metade do total Rede Massa e surpresa e sensibilidade. “O Brasil, com sua campos de concentração explicar aos homens que a aviltam que não
vendido ao longo de 2019, segundo o jornal Jornal da Manhã. fina armadura moderna colada sobre esse devem fazê-lo. É que estes já não representam homens, mas uma ideia
italiano La Repubblica. Esse é um indicativo de Atualmente imenso continente fervilhante de forças elevada à temperatura da mais inflexível vontade”. Isso é um pouco do
que os temas em evidência no noticiário estão colabora com o naturais e primitivas, me fez pensar num que Albert Camus escreveu, do que desejou nos contar. Talvez porque,
levando os leitores a revisitar os clássicos. jornal Rascunho. edifício corroído cada vez mais de baixo para como disse Patti Smith, não se pode somente viver.
28 MARÇO DE 2020

C L I Q U E S E M C U R I T I B A | A L E S S A N D R O D A S I LV A R E I S
MARÇO DE 2020 29

ALESSANDRO DA SILVA REIS é jornalista por formação e se considera fotógrafo por


paixão. Flores, retratos, panoramas e a noite curitibana são os temas centrais de seu trabalho.
As imagens publicadas pelo Cândido foram produzidas com máquinas modernas e algumas
lentes antigas adaptadas, fabricadas nas décadas de 1960 e 70.
30 MARÇO DE 2020

H Q | R A FA E L S I C A
MARÇO DE 2020 31

RAFAEL SICA é quadrinista e ilustrador, com trabalhos publicados em diversos veículos de imprensa do país. É autor dos livros Triste (2019),
Fachadas (2017) e Ordinário (2011), entre outros. Venceu duas vezes o Prêmio HQ Mix.
32 MARÇO DE 2020

ILUSTRAÇÃO: ALINE DAKA


P OEMA | ANTONIO CICERO

O GRITO
Estou acorrentado a este penhasco
logo eu que roubei o fogo dos céus.
Há muito tempo sei que este penhasco
não existe, como tampouco há um deus
a me punir, mas sigo acorrentado.
Aguardam-me amplos caminhos no mar
e urbes formigantes a engendrar
cruzamentos febris e inopinados.
Artur diz “claro” e recomenda um amigo
que parcela pacotes de excursões.
Abutres devoram-me as decisões
e uma ponta do fígado mas digo:
E daí? Dia desses com um só grito
eu estraçalho todos os grilhões.

ANTONIO CICERO nasceu no Rio de Janeiro


(RJ), em 1954. Formado em Filosofia pela
Universidade de Londres, ocupa a cadeira 27 da
Academia Brasileira de Letras desde 2017. Poeta,
letrista e ensaísta, é autor dos versos de Porventura
(2012) e dos ensaios de A Poesia e a Crítica (2017),
entre outros. O poema publicado pelo Cândido
faz parte da antologia Estranha Alquimia, que será
lançada pela editora Penalux ainda neste mês.

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