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que se dirigia para as velhas e novas margens miseráveis», objectivos panorâmicos que
sociais do mundo renascentista português, se recenseiam em todos os regulamentos
dos presos aos pobres envergonhados, das irmandades espalhadas pelos diferentes
passando pela orfandade ou pela viuvez, a espaços de reivindicação de soberania
nova confraria haveria rapidamente de se portuguesa. A doutrina centra-se neste
multiplicar pelo reino e suas “conquistas” programa amplo de concretizar as obras de
graças a um apoio verdadeiramente Misericórdia explicando-se a sua dimensão
oficial que se verteria, simetricamente, dual, já social, já espiritual. As obras de
na convocação das Misericórdias para misericórdia espirituais, primeiras nos
difundir uma devoção régia que se mostraria textos compromissais3, eram ensinadas com
fundamental na celebração de uma soberania esta hierarquização: «A primeira dar bom
portuguesa nos diferentes espaços e enclaves conselho; a segunda ensinar os ignorantes; a
que, entre representação e negociação, terceira consolar os tristes; a quarta castigar
foram formando o que se viria a chamar os que erram; a quinta perdoar as injúrias;
demoradamente “império português”. a sexta sofrer com paciência as fraquezas
Por isso, grande parte das Misericórdias dos nossos próximos; a sétima rogar a Deus
coloniais funda-se ao mesmo tempo que se pelos vivos e defuntos». Imediatamente a
erguem os primeiros Senados Camarários seguir a estas obras vinculadas à oração e
ou outras formas ofi ciais de administração à espiritualidade cristãs, enumeravam-se
colonial, acompanhando os esforços sociais as obras de misericórdia corporais, mais
e religiosos das missionações, concorrendo debruçadas sobre os jogos e problemas do
tanto para fundar patriciados e alimentar social: «a primeira dar de comer aos que
superioridades sociais e culturais, como para têm fome; a segunda dar de beber a quem
dominar educações, hospitais, esmolas ou tem sede; a terceira vestir os nús; a quarta
seguros discriminadamente dirigidos para visitar os enfermos e encarcerados; a quinta
as populações cristãs. dar pousada aos peregrinos; a sexta remir os
Até finais do século XVI, quase todas cativos; a sétima enterrar os mortos». Apesar
as Misericórdias, do Minho a Macau, desta constelação ampla de orientações
procuravam seguir o modelo entendido caritativas, a maior parte das Misericórdias,
como exemplar da casa-mãe de Lisboa, de Lisboa a Manila, seleccionava somente
copiando mais do que adaptando os seus algumas direcções e protecções sociais mais
compromissos e funcionalidades. Com a precisas acompanhando presos e indigentes
impressão, em 1516, do compromisso da cristãos, cativos, o crescimento da «pobreza»
Misericórdia de Lisboa, descobre-se uma envergonhada e privilegiando uma especial
larga estabilidade doutrinária e orgânica «assistência» a grupos femininos que, das
que procura unificar a expanão do novo orfãs às viúvas e escravas cristianizadas,
movimento confraternal. A doutrina era passando pelo recolhimento e educação de
tão simples como generosa, vazando-se no uma verdadeira subalternidade de gênero,
cumprimento confraternal voluntário das especializava um formidável controlo
obras de Misericórdia, espirituais e corporais, dos mercados nupciais femininos locais,
para «acudir às necessidades dos pobres e absolutamente decisivos na reprodução das
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dominações coloniais que, até bem entrado cumpriam as actividades subalternas, desde a
o século XIX, praticamente não instalavam limpeza de cadeias e hospitais até à produção
mulheres europeias nos diferentes espaços industrial de panificações e outras obrigações
coloniais. «duras». Os compromissos das Misericórdias
Os estatutos sublinhavam essencialmente inspirados na experiência confraternal
as normas de recrutamento e funcionamento lisboeta estipulavam uma muito cuidadosa
das Misericórdias. A selecção de irmãos organização confraternal, sublinhando
fazia-se exclusivamente entre cristãos obrigações minuciosas que, alargando-se
com «pureza de sangue» e sem qualquer dos deveres eleitorais à ética económica,
«mancha de origem mourisca ou judaica». tentam destacar a exemplaridade moral da
Procurava-se mobilizar geralmente cristãos irmandade e dos seus elevados membros,
adultos casados e solteiros com mais de dissipando qualquer suspeita de manipulação
trinta anos que, devidamente alfabetizados, dos testamentos, legados pios, esmolas e
eram seleccionados entre os grupos elitários doações que, atraindo sobretudo as fortunas
locais, cumprindo voluntariamente, sem mercantis locais, rapidamente constituíram
qualquer salário ou benefi cio económico, as patrimónios impressivos na dimensão dos
actividades caritativas materiais e espirituais capitais, das usuras, dos rendimentos, das
estipuladas no compromisso. Doze irmãos, alfaias ou das propriedades.
eleitos simetricamente entre «nobres» e As Misericórdias começam também
«fidalgos», formavam a poderosa Mesa da desde cedo a trilhar os caminhos da expansão
Misericórdia, conquanto muitas irmandades e dos espaços dos escambos ultramarinos,
espalhadas pelo império colonial não percorrendo interessadamente muitos
conseguissem cumprir rigorosamente esta dos territórios e enclaves coloniais de
dualidade de representação social. Dirigia movimentação portuguesa. 4 Chegam nas
a Misericórdia um poderoso Provedor, primeiras décadas do século XVI aos
obrigatoriamente um «irmão fidalgo ou presídios portugueses em Marrocos e
nobre de autoridade, prudência, virtude, instalam-se com celeridade nessas cidades
reputação, idade de maneira que os outros portuárias negociadas e conquistadas pela
irmãos o possam reconhecer por cabeça», presença política e mercantil de Portugal na
eleito para ser a verdadeira polarização da Índia, difundindo-se a partir da experiência
irmandade, mobilizando uma personalidade original da Misericórdia de Cochim, erguida
de larga infl uência política, económica e talvez ainda em 1505, logo depois seguida
social na vida da «cidade cristã». Seguia-se pela erecção de renovada confraternidade
uma organização burocrática, administrativa em Cananor. Mais decisivamente, após a sua
e financeira, reunindo, pelo menos, um conquista em 1510, a cosmopolita cidade de
escrivão, tesoureiro, mordomos dos presos, Goa funda igualmente a sua Misericórdia
das capelas e hospitais, vários visitadores, na primeira década da sua história colonial,
definidores com competências jurídicas, a especializando uma espécie de casa-mãe
que se somavam ainda capelães, vário pessoal de larga projecção no desenvolvimento de
pessoal menor assalariado e muitos escravos várias Misericórdias no mundo asiático. 5
que, na metrópole e nos espaços coloniais, A irmandade de Goa espalhava uma muito
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