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Comentários, Reflexões e Breves

As Misericórdias de Lisboa a Manila:


Muito poder e alguma caridade
Ivo Carneiro de Sousa
* Professor no Departamento de História, Faculdade de Letras do Porto. Coordenador do Centro Português de

Enquanto noutros horizontes sócio- exclusões sociais estende-se igualmente às


geográficos e temporais, das sociedades economias e sociedades locais, obrigadas a
tradicionais aos diferentes mundos pré- integrarem-se num sistema que, pelo menos
industriais que se estendiam da Europa processual e representacional, se propaga
à Ásia ainda nos inícios do século XIX, discriminadamente à escala planetária
para (sobre)viver era fundamentalmente exercendo constrangimentos mais gerais,
preciso pertencer a um grupo, a uma tão freneticamente concorrenciais como
família extensa, a uma comunidade local ou universais.
cultural, acumulando estratégias territoriais, Entre as instituições caritativas que,
de etnicidade ou de estamentação, nestas existindo desde finais do século XV, voltaram
nossas sociedades dominadas pela atracção em força a pautar agendas, protagonismos e
constrangente e cada vez mais global da até os recorrentes debates sobre as “novas”
«economia de mercado» tendem a desaparecer solidariedades, contam-se precisamente as
quase completamente essas formas Misericórdias que continuam a dominar
tradicionais de parentesco, solidariedade parte importante da paisagem assistencial
e vizinhança que permitiam acumular e hospitalar portuguesa, mas que se podem
modalidades de defesa e protecção sociais. A também visitar em alguns espaços do
rápida extensão económica e comunicacional antigo império colonial português, do
do chamado processo de globalização tem Brasil a Macau. Fundada em 1498 numa
vindo a aprofundar um paradoxo intrínseco capela da Sé de Lisboa, sob a direcção
à (des)ordem das sociedades de mercado empenhada da rainha D. Leonor (1458-1525)
actuais, potenciando a economia enquanto e dos seus círculos religiosos e sociais, a
fonte principal de exclusão dos indivíduos, primeira grande confraria dedicada a Nossa
mas agora já não os excluindo apenas Senhora da Misericórdia representava um
restritamente da economia, excluindo-os ou esforço importante apostado em reformar a
ameaçando excluí-los também da sociedade caridade, afastando-a dos ideários medievais,
geral. De forma cada vez mais dramática e potenciando a mobilização do laicado urbano
generalizada, para estes milhões de excluídos para, em contexto de “devotio moderna”,
da economia, as hipóteses de nela entrarem multiplicar solidariedades e piedades capazes
e, assim, reacederem à própria «sociedade» de pacificar espaços progressivamente
e suas relações formais, são cada vez mais cosmopolitas e mercantis de que a
menores.1 Esta situação de marginalização cidade lisboeta era no período quinhentista
através da recriação de novas relações paradigma maior2.
entre centros e periferias, dominações e Organizando uma caridade misericordiosa

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que se dirigia para as velhas e novas margens miseráveis», objectivos panorâmicos que
sociais do mundo renascentista português, se recenseiam em todos os regulamentos
dos presos aos pobres envergonhados, das irmandades espalhadas pelos diferentes
passando pela orfandade ou pela viuvez, a espaços de reivindicação de soberania
nova confraria haveria rapidamente de se portuguesa. A doutrina centra-se neste
multiplicar pelo reino e suas “conquistas” programa amplo de concretizar as obras de
graças a um apoio verdadeiramente Misericórdia explicando-se a sua dimensão
oficial que se verteria, simetricamente, dual, já social, já espiritual. As obras de
na convocação das Misericórdias para misericórdia espirituais, primeiras nos
difundir uma devoção régia que se mostraria textos compromissais3, eram ensinadas com
fundamental na celebração de uma soberania esta hierarquização: «A primeira dar bom
portuguesa nos diferentes espaços e enclaves conselho; a segunda ensinar os ignorantes; a
que, entre representação e negociação, terceira consolar os tristes; a quarta castigar
foram formando o que se viria a chamar os que erram; a quinta perdoar as injúrias;
demoradamente “império português”. a sexta sofrer com paciência as fraquezas
Por isso, grande parte das Misericórdias dos nossos próximos; a sétima rogar a Deus
coloniais funda-se ao mesmo tempo que se pelos vivos e defuntos». Imediatamente a
erguem os primeiros Senados Camarários seguir a estas obras vinculadas à oração e
ou outras formas ofi ciais de administração à espiritualidade cristãs, enumeravam-se
colonial, acompanhando os esforços sociais as obras de misericórdia corporais, mais
e religiosos das missionações, concorrendo debruçadas sobre os jogos e problemas do
tanto para fundar patriciados e alimentar social: «a primeira dar de comer aos que
superioridades sociais e culturais, como para têm fome; a segunda dar de beber a quem
dominar educações, hospitais, esmolas ou tem sede; a terceira vestir os nús; a quarta
seguros discriminadamente dirigidos para visitar os enfermos e encarcerados; a quinta
as populações cristãs. dar pousada aos peregrinos; a sexta remir os
Até finais do século XVI, quase todas cativos; a sétima enterrar os mortos». Apesar
as Misericórdias, do Minho a Macau, desta constelação ampla de orientações
procuravam seguir o modelo entendido caritativas, a maior parte das Misericórdias,
como exemplar da casa-mãe de Lisboa, de Lisboa a Manila, seleccionava somente
copiando mais do que adaptando os seus algumas direcções e protecções sociais mais
compromissos e funcionalidades. Com a precisas acompanhando presos e indigentes
impressão, em 1516, do compromisso da cristãos, cativos, o crescimento da «pobreza»
Misericórdia de Lisboa, descobre-se uma envergonhada e privilegiando uma especial
larga estabilidade doutrinária e orgânica «assistência» a grupos femininos que, das
que procura unificar a expanão do novo orfãs às viúvas e escravas cristianizadas,
movimento confraternal. A doutrina era passando pelo recolhimento e educação de
tão simples como generosa, vazando-se no uma verdadeira subalternidade de gênero,
cumprimento confraternal voluntário das especializava um formidável controlo
obras de Misericórdia, espirituais e corporais, dos mercados nupciais femininos locais,
para «acudir às necessidades dos pobres e absolutamente decisivos na reprodução das

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dominações coloniais que, até bem entrado cumpriam as actividades subalternas, desde a
o século XIX, praticamente não instalavam limpeza de cadeias e hospitais até à produção
mulheres europeias nos diferentes espaços industrial de panificações e outras obrigações
coloniais. «duras». Os compromissos das Misericórdias
Os estatutos sublinhavam essencialmente inspirados na experiência confraternal
as normas de recrutamento e funcionamento lisboeta estipulavam uma muito cuidadosa
das Misericórdias. A selecção de irmãos organização confraternal, sublinhando
fazia-se exclusivamente entre cristãos obrigações minuciosas que, alargando-se
com «pureza de sangue» e sem qualquer dos deveres eleitorais à ética económica,
«mancha de origem mourisca ou judaica». tentam destacar a exemplaridade moral da
Procurava-se mobilizar geralmente cristãos irmandade e dos seus elevados membros,
adultos casados e solteiros com mais de dissipando qualquer suspeita de manipulação
trinta anos que, devidamente alfabetizados, dos testamentos, legados pios, esmolas e
eram seleccionados entre os grupos elitários doações que, atraindo sobretudo as fortunas
locais, cumprindo voluntariamente, sem mercantis locais, rapidamente constituíram
qualquer salário ou benefi cio económico, as patrimónios impressivos na dimensão dos
actividades caritativas materiais e espirituais capitais, das usuras, dos rendimentos, das
estipuladas no compromisso. Doze irmãos, alfaias ou das propriedades.
eleitos simetricamente entre «nobres» e As Misericórdias começam também
«fidalgos», formavam a poderosa Mesa da desde cedo a trilhar os caminhos da expansão
Misericórdia, conquanto muitas irmandades e dos espaços dos escambos ultramarinos,
espalhadas pelo império colonial não percorrendo interessadamente muitos
conseguissem cumprir rigorosamente esta dos territórios e enclaves coloniais de
dualidade de representação social. Dirigia movimentação portuguesa. 4 Chegam nas
a Misericórdia um poderoso Provedor, primeiras décadas do século XVI aos
obrigatoriamente um «irmão fidalgo ou presídios portugueses em Marrocos e
nobre de autoridade, prudência, virtude, instalam-se com celeridade nessas cidades
reputação, idade de maneira que os outros portuárias negociadas e conquistadas pela
irmãos o possam reconhecer por cabeça», presença política e mercantil de Portugal na
eleito para ser a verdadeira polarização da Índia, difundindo-se a partir da experiência
irmandade, mobilizando uma personalidade original da Misericórdia de Cochim, erguida
de larga infl uência política, económica e talvez ainda em 1505, logo depois seguida
social na vida da «cidade cristã». Seguia-se pela erecção de renovada confraternidade
uma organização burocrática, administrativa em Cananor. Mais decisivamente, após a sua
e financeira, reunindo, pelo menos, um conquista em 1510, a cosmopolita cidade de
escrivão, tesoureiro, mordomos dos presos, Goa funda igualmente a sua Misericórdia
das capelas e hospitais, vários visitadores, na primeira década da sua história colonial,
definidores com competências jurídicas, a especializando uma espécie de casa-mãe
que se somavam ainda capelães, vário pessoal de larga projecção no desenvolvimento de
pessoal menor assalariado e muitos escravos várias Misericórdias no mundo asiático. 5
que, na metrópole e nos espaços coloniais, A irmandade de Goa espalhava uma muito

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selectiva mobilização de uma caridade muito diferente expressão social, impondo


dirigida discriminadamente apenas às modalidades diversas de circulação da
populações cristãs ou convertidas através caridade. Por isso, em 1595, a mesa e
de uma ampla colecção de apoios sociais provedoria da Misericórdia de Goa decidem
e religiosos estendendo-se dos orfãos às organizar um compromisso próprio que,
viúvas, dos prisioneiros aos cativos, passando concretizando adaptações locais dos
ainda pelo desenvolvimento de importantes princípios orgânicos fundacionais, haveria
funções de solidariedade perante a morte, de reger com alguma estabilidade durante
assegurando os ritos funerários católicos mais de trinta e oito anos a vida confraternal,
tanto aos seus membros como aos cristãos muito influenciando os textos regulamentares
falecidos dos grupos sociais subalternos. A de outras misericórdias dos enclaves asiáticos
discussão destas funções a partir da célebre portugueses, incluindo a poderosa irmandade
teoria da dádiva,6 originalmente formulada de Macau, fundada em 1569 sob a activa
por Marcel Mauss, mostra-se um itinerário direcção do bispo Belchior Carneiro.
produtivo de pesquisa, esclarecendo que Descontadas especificidades de redacção
mesmo os «presentes» caritativos podem e pequenas especializações organizacionais,
circular de forma discriminatória na paisagem estes novos compromissos das Misericórdias
social favorecendo determinados grupos coloniais, sobretudo das grandes ‘Santas
e poderes elitários, sistema especialmente Casas’ de Goa e Macau, procuravam
eficaz na produção das dominações coloniais: principalmente modificar as normas
o que se dava em caridade deveria receber-se de gestão financeira das Misericórdias
em conversão religiosa, política e social. espalhadas pelos enclaves portugueses na
À semelhança das outras confrarias que se Ásia que, desde as décadas fi nais do século
espalham pelos enclaves portugueses da Ásia, XVI, tinham vindo a acumular um grande
da Índia a Macau e ao Japão, a Misericórdia património em bens e capitais oferecido em
de Goa seguia as orientações regulamentares centenas de obrigações piedosas e execuções
desse compromisso da Misericórdia de testamentárias de muitos comerciantes,
Lisboa de 1516, generosamente difundido aventureiros, soldados e outros portugueses
através dos prelos, depois acolhendo, em ou luso-descendentes cristianizados, mortos
1568, novo estatuto directamente remetido nas andanças dos riquíssimos fumos dos
da Misericórdia de Lisboa, mais tarde tratos e combates pelas especiarias orientais.
ainda substituído por outro texto normativo Muitas vezes, os ricos legados e testamentos
enviado da capital do reino durante a destas gentes em frenética movimentação
governação de António Moniz Barreto, pelas economias do Índico e dos mares do
entre 1573 e 1576. Frequentemente, esta Sul da China obrigavam as Misericórdias a
ordem dos compromissos da Misericórdia complicadas execuções a favor de herdeiros
de Lisboa ajustava-se mal às realidades já colocados em diferentes espaços do
sociais específi cas de territórios limitados império colonial já instalados na metrópole
em que a presença política, religiosa e à espera, pelo menos, dos restos das fortunas
mercantil portuguesa se confrontava com entretecidas com as aventuras ultramarinas
agrupamentos, culturas e religiões de dos seus parentes. Ao mesmo tempo, a

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acumulação destes capitais empurraram as política da ordem da discrimição social do


Misericórdias mais poderosas, em Goa ou império colonial português, chegando mesmo
em Macau, a poderem funcionar também a suportar a viabilidade de muitos circuitos,
como espécies de grandes montes de piedade itinerários e investimentos comerciais.
e casas seguradoras, conseguindo emprestar Assim, o jesuíta Fernão de Queiroz, por
somas avultadas tanto a instituições oficiais exemplo, ao escrever já nos fi nais do século
do chamado «Estado da Índia» como a XVII em Goa, conta a história fantástica de
empresas e particulares, tantas vezes contra um «mouro de Granada» (sic) que morreu
os seus fretes e mercadorias. Trata-se de uma em Macau e deixou os seus bens a herdeiros
especialização que se consegue recuperar muçulmanos residentes em Istambul. Ao ter
em várias direcções asiáticas que assistiram conhecimento das suas últimas vontades, as
à criação, por vezes esporádica, de outras Misericórdias de Macau e Goa informaram
Misericórdias, somando ao seu poder social os herdeiros de que poderiam receber a
e económico uma activa monopolização quantia doada na feitoria portuguesa de Kung
da caridade cristã colocada ao serviço da no golfo pérsico.8 Por isso, as Misericórdias
missionação religiosa e, até mesmo, das coloniais eram neste período procuradas
estratégias da poderosa Companhia de Jesus, por governadores e capitães, fidalgos e
como se esclarece, por exemplo, no caso da mercadores que se serviam dos seus cofres
Misericórdia de Nagasáki.7 Esta pluralidade nas situações de emergência, pediam seguros
de funções caritativas e poderes sociais ou tentavam fi rmar os seus negócios, dos
acabaria mesmo por ultrapassar os limites tráficos de Manila ao sândalo de Timor, dos
políticos da presença oficial portuguesa escravos africanos aos açúcares do Brasil.
na Ásia, edificando-se Misericórdias Identifica-se, assim, um complexo mundo
noutros espaços de circulação europeia, de interesses sociais e económicos tanto
erguendo tanto instituições duráveis como como espaços de devoção e assistência que
a Misericórdia de Manila ou brevíssimas se estruturam em torno das Misericórdias
experiências de algumas décadas como que, em todos os espaços de circulação
aconteceu com essa outra Misericórdia de dominação portuguesa, representavam
inaugurada na ilha «Hermosa» dos mares juntamente com as instituições municipais
do Sul da China. um dos principais alicerces da ordem de
Estas funções de monopólio social de ‘Antigo Regime’ proposta pela monarquia
uma discriminada caridade cristã somadas portuguesa entre os séculos XVI e XVIII
ao formidável poder económico acumulado para os muitos territórios e enclaves que
pelas Misericórdias começaria desde finais procurava perspectivar como um império
do século XVI a estender-se igualmente ao plasmado também pela «superioridade» da
Brasil, abrindo-se muitas irmandades nos caridade cristã.
principais centros urbanos coloniais em A história das Misericórdias coloniais
estreita comunicação com a produção das encontrava-se, porém, excessivamente
suas elites locais. Constrói-se uma verdadeira dependente das complexas conjunturas
rede quase «global» de instituições com comerciais e políticas que foram irregularmente
ligações fundamentais na reprodução sócio- potenciando os enclaves políticos e

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mercantis portugueses nas estruturas do assistências e hospitais das irmandades. Com


desenvolvimento da concorrência económica estas arricadas aventuras económicas vinha
regional e internacional. Na segunda metade também o desprestígio social, as acusações
do século XVIII e ao longo de quase todo recorrentes de corrupção e a limitação das
o século XIX, as principais actividades actividades caritativas das Misericórdias.
sociais das Misericórdias, do Minho a Em rigor, trata-se de transformações que
Macau, seriam profundamente alteradas sobrepujam largamente qualquer ética
pelas transformações políticas, económicas confraternal para prefi gurarem esse longo
e sociais gerais, marcadas sem retorno movimento político e social que, começando
pela definitiva movimentação e circulação a organizar-se ainda com o Pombalismo, foi
de novos poderes coloniais europeus. 9 A mobilizando o Estado a intervir, controlar e
profunda limitação do poder comercial instituir renovadas formas de assistência com
dos enclaves portugueses na Ásia somada impacto incontornável na centralização do
à definitiva viragem para a colonização ordenamento político e na circulação social,
económica do Brasil reflectem-se tanto prefigurando a demorada história outra do
nos patrimónios como na capacidade de que, já na contemporaneidade europeia, se
atracção das grandes fortunas burguesas tem vindo a designar, não sem exagero, por
pelas Misericórdias, associando-se a ‘Estado Social’.
uma larga depreciação dos seus bens e Quando se procura perspectivar esta
capitais que, incapazes de responder a extraordinária experiência histórica da
inflacções e concorrências, fragilizam as difusão das Misericórdias no império colonial
suas possibilidades de cumprir legados pios, português, a teoria mais frequentada remete-
dotações e obrigações testamentárias, pagar nos para um dos mais importantes estudos
capelães e assalariados, honrar devoções e de Charles Boxer, publicado em 1965,
cultos. Por inícios do século XIX, ser provedor, com o sugestivo título Portuguese Society in
mesário ou mordomo das vetustas ‘Santas the Tropics. The Municipal Councils of Goa,
Casas’ signifi cava cada vez mais gerir dívidas Macao, Bahia, and Luanda, 1510-1800. Obra
e créditos mal parados que frequentemente absolutamente referencial da história social
ressaltavam de actividades dos seus próprios do mundo colonial português, a investigação
irmãos, utilizando desesperadamente os pioneira do grande historiador britânico
cofres das Misericórdias para tentar salvar procurava enredar-se numa polémica bem
despesas pessoais, familiares e insucessos maior com essas outras teorias marcantes
comerciais num quadro de concorrência para a interpretação das sociedades coloniais
cada vez mais capitalista e industrial. Um desse verdadeiro príncipe da sociologia
período em que toda a documentação brasileira que foi Gilberto Freyre, geralmente
disponível acumulada nos riquíssimos e, sumariadas em torno da categoria do
tantas vezes, quase abandonados arquivos de «luso-tropicalismo», acolhidas nos meios
centenas de Misericórdias vai convocando a políticos e intelectuais portugueses a partir
palavra «decadência» para justificar usuras, da década de 1950. 10 Criticamente, a obra
dívidas, clientelismos e muitas obrigações de Boxer inseria no coração da estruturação
contingentes com que se procuravam salvar as da ordem colonial portuguesa evidentes

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modalidades de discrimação racial e social as esmolas que, do dinheiro à alimentação,


que se podiam descobrir precisamente do vestuário à própria educação cristã, se
nas estreitas modalidades de acesso às dirigiam para pobres, orfãs, viúvas e outros
Câmaras e às Misericórdias, os dois pilares grupos em situação de subalternidade social.
instrumentais em que se estribava tanto a Algumas das investigações que se têm
desigualdade sócio-política colonial como vindo a realizar nas últimas décadas tendem
a reprodução do poder dominante das suas mesmo a desafi ar as teorias excessivamente
elites locais. Infelizmente, estamos ainda sistémicas para colocar embaraçosos
muito longe de uma teorização sistemática problemas de complexidade e diversidade:
capaz de integrar a formidável massa na ilha de S. Tomé, por exemplo, muitos
de documentação produzida por essas irmãos da Misericórdia recrutavam-se entre
instituições nos tempos e espaços diversos de os degredados e em Macau os confrades
um império colonial português mantido com eram obrigados a provar em exclusividade
dificuldades muito longe de formas políticas a sua nobreza, mas muitos provinham de
totalmente homogéneas, aqui organizando descendências luso-asiáticas e até mesmo dos
um enclave comercial, ali concretizando uma meios elevados das comunidades chinesas
feitoria, mais além suportando militarmente instalados no território de muito duvidosa
fidelidade cristã. Acrescente-se ainda que,
uma «conquista» e em muitos outros
ao saírem dos limites dos territórios coloniais
espaços reproduzindo-se graças a demoradas
portugueses na Ásia para ganharem outros
estratégias de negociação com outros
espaços orientais avidamente visitados pelo
poderes e soberanias. Em muitos destes
comércio colonial, como em Manila, no
diferentes territórios, com especial destaque
Japão ou em Taiwan, estas Misericórdias
para os mundos asiáticos, foi-se mesmo
eram mais criadas e suportadas por esse
organizando uma presença portuguesa que,
império sombra de mercadores e aventureiros
como se continua a discutir na historiografia
privados portugueses e europeus do que
de Macau, 11 nem sempre se conseguiu
pelas estratégias dos estados e dos seus
aproximar das categorizações formais e reis. A história das Misericórdias coloniais
institucionais de colónia consagradas no precisa, assim, de mais textos, documentos
século XIX para as grandes massas espaciais e ainda mais de investigações que ofereçam
de África e do Brasil. publicamente os principais monumentos que
O estudo sistemático, comparado e regularam a vida e obra de uma experiência
contrastivo das centenas de Misericórdias confraternal que, «originalmente portuguesa»,
espalhadas pelo império colonial, algumas conseguiu também viver e adaptar-se a
de vida curta outras ainda activas no muitos espaços sociais e culturais dos velhos
presente, está ainda por realizar. Conhecem- impérios coloniais ibéricos, conseguindo
se poucos compromissos, investigaram-se mesmo instalar-se, esporadicamente ou para
raras actividades económicas, ignoram-se ficar, nesses territórios do mais longínquo
livros de entradas, registos hospitalares, oriente ou dos mais recônditos sertões
circulação de legados e testamentos, actas de brasileiros.
mesas e provedorias, empréstimos e seguros
ou esses muitos livros fixando pacientemente

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Referências

1 GODELIER, Maurice, O enigma da dádiva,Lisboa, 11 HAIPENG, Zhang, “Estudos sobre a História de


2000, p. 10. Macau: Progressos e Dificuldades. Tendências de
2 SOUSA, Ivo Carneiro de, A Rainha D. Leonor Investigação sobre a História de Macau na China”,
(1458-1525), Poder, Misericórdia, Religiosidade in Revista de Cultura, Macau, nº 27/28 (1996), pp. 5-
e Espiritualidade no Portugal do Renascimento, 14; LOUREIRO, Rui Manuel, “A História de Macau
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002; em Portugal: Tendências da Pesquisa e Projectos
SOUSA, Ivo Carneiro de, Da Descoberta da Futuros”, in Revista de Cultura, Macau, nº 27/28
Misericórdia à Invenção das Misericórdias (1498- (1996), pp. 15-12.
1525), Porto, Granito Editores & Livreiros, 1999.
3 Seguimos e resumimos a partir daqui o que escrevemos
em O Compromisso da Misericórdia de Macau
de 1627 (ed. de Leonor Diaz de Seabra e intr. de
Ivo Carneiro de Sousa), Macau, Universidade de
Macau, 2003; Veja-se também SOUSA, Ivo Carneiro
de,“O Compromisso Primitivo das Misericórdias
Portuguesas (1498-1500)”, in Revista da Faculdade
de Letras (série História), XIII (1996), pp. 259-306.
4 SÁ, Isabel dos Guimarães, As Misericórdias, in
BETHENCOURT, Francisco e CHAUDHURI, Kirti,
História da Expansão Portuguesa, A Formação do
Império (1415-1570), Lisboa, Círculo de Leitores,
1998, vol. I; Cf. SÁ, Isabel dos Guimarães, Quando
o rico se faz pobre: Misericórdias, Caridade e Poder
no Império Português, 1500-1800, Lisboa, Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 1997.
5 GRACIAS, Fátima Silva,Beyond the Self. Santa Casa
da Misericórdia de Goa, Goa, Surya Publications,
2000; MARTINS, J. F. Ferreira Martins, História da
Misericórdia de Goa, Nova Goa, 1910; MARTINS,
J. F. Ferreira Martins, Os Provedores da Misericórdia
de Goa. Nova Goa, 1914; MARTINS, J. F. Ferreira
Martins, Dom Fr. Alexio Meneses e a Misericórdia
de Goa, Nova Goa, Imprensa Nacional, 1909; REGO,
A. da Silva (ed.),Documentação para a História das
Missões do Padroado Português no Oriente: Índia,
Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1947-1958,
12 vols. e Documentação Ultramarina Portuguesa,
Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos,
1960-1970.
6 MAUSS, Marcel, Ensaio sobre a Dádiva (int. de
Claude Lévi-Strauss), LisboaEd. 70, 2001.
7 K ATAOKA Rumiko, “Fundação e Organização da
Confraria da Misericórdia de Nagasáqui”, in Oceanos,
Misericórdias – Cinco Séculos, n.º 35 (1998).
8 BOXER, Charles R.,O Império Marítimo Português
(1415-1825), Lisboa, Ed. 70, 1992, p. 284.
9 SÁ, Isabel dos Guimarães, Quando o rico se faz
pobre: Misericórdias, Caridade e Poder no Império
Português, 1500-1800, Lisboa, Comissão Nacional
para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 1997.
10 SOUSA, Ivo Carneiro de, “O Luso-Tropicalismo e a
Historiografia Portuguesa: itinerários críticos e temas
de debate”, in Luso-tropicalismo. Uma Teoria Social
em Questão, Lisboa, 2000.

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