Você está na página 1de 9

HF1101 - Filosofia Clássica Alemã II

Período Especial – Fevereiro/2021


Discente – Lucas Pozzo de Carvalho

Resenha Crítica
SCHOPENHAUER COMO EDUCADOR

Escritos por Nietzsche próximo dos seus 30 anos de idade, então ainda jovem e
promissor professor de filologia clássica na Universidade da Basiléia, os quatro textos
que seriam mais tarde reunidos como Considerações Extemporâneas são ainda pouco
difundidos e estudados no contexto da obra nietzschiana, mas vêm ganhando cada vez
mais relevo, dado sua fundamental importância para a compreensão da filosofia de
Nietzsche em suas origens e em sua proposta. Tais textos são um momento de
exposição clara de um primeiro rompimento com a academia e os círculos intelectuais
mais tradicionais, ponto de inflexão de sua vida e pensamento, que culminaria na sua
crítica total da racionalidade e do modo de vida tipicamente europeu (ou ocidental) de
sua época. Publicados inicialmente como trabalhos individuais, as quatro
considerações exprimem uma crítica ampla à cultura alemã de seu tempo –
direcionada ao Estado alemão e àqueles que o serviam e ancorada na denuncia da
frivolidade presunçosa de uma potência imperial de matriz militarista que
desconsiderava o papel central da cultura como princípio para a elevação de um povo
ao seu mais alto potencial - e apontam, como alternativa, para um projeto pedagógico
audacioso, direcionado à criação de uma cultura pautada pelo gênio, com matriz
romântica e inspiração clássica, que elevaria o homem alemão a um revigorado e
nobre tipo de vida artístico-filosófico.
O testemunho da decadência cultural da Alemanha, que Nietzsche explicita na
crítica aos intelectuais e à formação acadêmica de sua época, é dado pelo exagero do
historicismo e por uma busca exagerada pelo conhecimento científico frio e alijado de
uma perspectiva artística e filosófica, sem a qual tal conhecimento se torna estéril para
a edificação humana, servindo apenas a si mesmo e acabado num cientificismo. Este
paradigma, então dominante, seria consequência e causa de uma cultura fraca, que
não dá vazão à dimensão criativa da vida e que, portanto, castraria a cultura alemã e a
impediria de alçar mais altos voos. Uma cultura de funcionários públicos, comerciantes
e militares, guiados por clérigos e homens teóricos altamente especializados – é esse o
panorama desenhado por Nietzsche, ao qual ele volta sua censura.
É na terceira e na quarta extemporânea – Schopenhauer como educador e
Richard Wagner em Bayreuth, respectivamente - que Nietzsche adquire um ar mais
propositivo junto às severas críticas. Nietzsche descreve-as, mais tarde, no Ecce
Homo, como:

“... duas imagens do mais duro egoísmo, da mais dura autodisciplina em


oposição a isso, na condição de sinal para um conceito mais alto de cultura,
para a restauração do conceito “cultura”; essas imagens são tipos
extemporâneos, cheios de desprezo soberano contra tudo o que em volta deles
se chame “império”, “formação”, “cristianismo”, “Bismarck”, “sucesso” –
Schopenhauer e Wagner ou, em uma palavra, Nietzsche...”

O autor utiliza Schopenhauer e Wagner nestas duas considerações como porta-


vozes; empresta suas personas, como havia feito com Strauss na primeira
extemporânea, para fortalecer a tarefa que se propõe. Aqui nos detemos na terceira
extemporânea, que pode ser entendida, em linhas gerais, como uma exposição da
experiência de Nietzsche com Schopenhauer servindo como pano de fundo para a
apologia de uma forma de educação nova, que poderia, idealmente, elevar o homem
alemão e dar luz a uma cultura superior.
Esta tarefa se inicia com a defesa da unicidade de cada um, denunciando a
atitude de rebanho daqueles que se escondem atrás de opiniões comuns e convenções
e afirmando que uma educação efetiva deve levar em conta que cada homem é único.
Só ao permitir o reconhecimento de si mesmo como indivíduo e a libertação do
pensamento comum é que a educação poderia cumprir sua tarefa: libertar do julgo do
banal em nome da efetivação original da potência individual. Esse voltar-se a si mesmo
passaria necessariamente pela relação com um mestre, um guia, e é aí que entra
Schopenhauer, o único mestre de quem poderia se orgulhar, segundo o próprio
Nietzsche. O autor questiona, então, de que forma se daria a educação pelo mestre,
este educador que liberta, chegando à conclusão de que seria levando o individuo a
encontrar sua virtude preponderante, a força central que carrega em si, para alimentá-
la de forma que realize seu potencial, sem que isso diminua as outras forças todas que
o compõe. Este ponto de vista é trazido da educação clássica, numa interpretação do
que seria a formação grega e romana, contrapondo-as à cultura de eruditos e filisteus
de seu tempo, cultura que coloca a ciência acima do homem, ou seja, uma abstração
acima do que é mais real e imediato. O mestre seria, nesse contexto, a imagem a ser
buscada, o exemplo a ser seguido, sendo essa a sua principal função na formação – a
de modelo.
Nesse momento, Nietzsche ressalta as virtudes que vê em Schopenhauer: sua
simplicidade, honestidade, serenidade e constância. Virtudes que o fariam
incompreendido por seus contemporâneos e que se somariam ao fato dele escrever
não para o Estado ou para a religião dominante, nem por um salário ou para o sustento
próprio, mas para dar vazão a si mesmo. Estas característica são chave para a
compreensão do caráter único do educador, características expressivas que fariam de
Schopenhauer um artista, um filósofo independente, um livre-pensador. Ao seu lado
haveriam ainda outros homens modelo que deveriam ser considerados – Beethoven,
Goethe e Wagner – modelos de vida em um tempo de homens fracos. A estes
contrapõe a figura de Kant, que esteve sempre a serviço da Universidade e do Estado,
exemplo que produziu uma “filosofia de professores” e influenciou uma geração de
educadores alinhados ao poder vigente, reprodutores de um saber teórico que de
maneira alguma gera qualquer incômodo, mas serve aos interesses estabelecidos. A
vida solitária e o pouco reconhecimento que recebeu por seus escritos em vida seriam
indícios do valor de Schopenhauer, indícios de sua sinceridade independente; estar
contra o que é comum, não se submetendo aos interesses políticos e religiosos
vigentes, seria testemunho de sua verdade e fidelidade a si mesmo. A ideia aqui
apresentada é a de que a filosofia é necessariamente incômoda, pois quando edifica
algo sempre o faz derrubando um saber ultrapassado, no pólemos - que o conflito é
necessário à verdade e que o verdadeiro educador é solitário e pouco reconhecido,
vivendo só consigo mesmo e expondo sua vida de forma a mover os outros nessa
direção sem esperar em troca qualquer benefício. Seriam poucos os que suportariam
tal tipo de existência, daí a raridade do gênio, pois além de naturalmente capaz deve
ter a constituição que lhe permite suportar uma vida com tais provações.
Esse seria o exemplo do mestre educador: a busca por uma vida que aspira à
profundidade da genialidade, pautada pela expressão do que é autêntico e não pela
conformidade. Este que se opõe à busca cética e científica seria o sábio, semelhante a
Schopenhauer, cuja filosofia aspira à totalidade e se pauta pela compaixão,
fundamento da moral e justificativa última para a ação humana. É esse, para Nietszche,
o exemplo a ser seguido.
Nietzsche busca, então, apresentar um projeto de formação ideal para o futuro
homem alemão; projeto que faz parte de um contexto de reformas da sociedade alemã
do fim do século XIX e se insere na sua época como um projeto de Bildung. Conceito
fundamental da cultura alemã, a Bildung é assim descrita por Antoine Berman, em sua
obra "Bildung et Bildungsroman" ("Formação cultural e romance de formação"):

A palavra alemã Bildung significa, genericamente, "cultura" e pode ser


considerado o duplo germânico da palavra Kultur, de origem latina. Porém,
Bildung remete a vários outros registros, em virtude, antes de tudo, de seu
riquíssimo campo semântico: Bild, imagem, Einbildungskraft, imaginação,
Ausbildung, desenvolvimento, Bildsamkeit, flexibilidade ou plasticidade, Vorbild,
modelo, Nachbild, cópia, e Urbild, arquétipo. Utilizamos Bildung para falar no
grau de "formação" de um indivíduo, um povo, uma língua, uma arte: e é a partir
do horizonte da arte que se determina, no mais das vezes, Bildung. Sobretudo, a
palavra alemã tem uma forte conotação pedagógica e designa a formação como
processo. Por exemplo, os anos de juventude de Wilhelm Meister, no romance
de Goethe, são seus Lehrjahre, seus anos de aprendizado, onde ele aprende
somente uma coisa, sem dúvida decisiva: aprende a formar-se (sich bilden).

Voltemos-nos, isto posto, à Bildung proposta por Nietzsche. O filósofo busca de


alguma forma resgatar uma ideia clássica de formação, em oposição a tudo o que julga
existir na Alemanha de seu tempo. A academia, as faculdades de filosofia, as diretrizes
do Estado na formação dos jovens – nenhum ponto do aspecto formativo escapa à
crítica – pois estariam todos voltados a uma educação de massa, que trata todos como
iguais e que cria uma cultura sem identidade. Contra isso, propõe uma educação que
vá além dos muros da escola, uma educação na vida ou uma educação viva. A
formação deve mirar o mais alto que puder, tendo como norte a construção de uma
cultura superior baseada em indivíduos superiores. Para tanto a educação deveria
buscar a elevação individual antes de uma formação coletiva, tendo foco no individuo e
suas peculiaridades, levando cada um ao encontro de si mesmo e possibilitando a cada
um a edificação de si mesmo a partir disso.
Aqui explicitamos um primeiro ponto para a compreensão da ideia de Bildung na
esteira da ideia de unicidade e de responsabilidade individual sobre si mesmo: o
homem, enquanto unicum, deve se assumir como o responsável por sua existência,
entendendo a sua singularidade e criando assim uma medida própria, sua própria lei,
sob a qual deverá viver. Esta formação partiria, portanto, do reconhecimento da
individualidade e da assunção da responsabilidade que ela demanda, condição inicial
para o cultivo de si. A partir disso se daria um processo de reconhecimento das forças
e fraquezas próprias, das carências e limites naturais de cada um, para então colocar-
se num caminho formativo que culminaria no engendramento de uma cultura superior.
É assim que um novo tipo de homem deveria tomar forma – tendo como centelha o
exemplo de um gênio, autêntico e dotado de virtude, que o levaria a compreender que
deve buscar o valor do que traz dentro de si, compreender sua natureza individual e
única para, a partir dela, construir a si mesmo, lapidar o que é mais forte em si com o
intuito de se tornar a realização efetiva de seu potencial.
Essa perspectiva que parte do original e particular, entretanto, não é a defesa de
uma busca individualista; Nietzsche faz questão de esclarecer que tal busca tem seu
sentido acima de qualquer querer individual, de qualquer busca por conquistas
pessoais, bens materiais, honrarias, comodidades ou reconhecimento – é por fins mais
elevados que se guia a verdadeira formação, sendo esta a condição para a busca de
uma verdadeira serenidade, um verdadeiro bem-estar, possíveis apenas com a
afirmação do valor da própria existência. Para tanto é necessário abandonar as
máscaras que nos são colocadas, nosso “lugar na sociedade” ou nosso papel dentro
da comunidade, para que não se esteja vivendo em função de outrem. Não entendendo
a si mesmo como uma engrenagem de uma grande máquina, mas como existência
única e por si mesma. Assumir a afirmação de si mesmo por si mesmo – querer
sempre continuar sendo quem se é – sem fazê-lo de um ponto de vista individualista ou
egoísta.
Não haveria aqui uma contradição? Uma concorrência entre a ideia de unicidade
auto-responsável - de quem se coloca no caminho de si mesmo com a finalidade de
engendrar uma cultura superior - e o papel de um outro, de um mestre educador que
serve como exemplo?
Para Nietzsche é a propensão à preguiça que faz com que o homem se esconda
atrás de costumes e opiniões e assuma uma postura de rebanho, levando-o a uma vida
espectral, que tem sentido apenas quando vinculada a um papel social. Tal homem até
sabe de sua condição única e singular, mas por medo, pudor ou indolência foge da
responsabilidade e vive uma vida desprovida de forma (Bild) própria, uma vida de
“animal de rebanho”. Retrata isso afirmando não haver nada mais difícil para o homem
do que olhar para si mesmo, buscando em si o sentido de sua existência no mundo,
razão da maioria dos homens temer o silêncio e a solidão e viver cercados pelo outro,
pelo convívio social que dá, de fora, um sentido aparente pra vida – a honestidade
consigo mesmo é algo difícil, áspero e tortuoso, que apresenta a quem a busca uma
série de dificuldades que devem ser vencidas pela força própria: é esta a razão pela
qual a grande maioria opta pela fuga de si mesmo.
É assim se faz relevante o papel fundamental do educador para a Bildung.
Nietzsche afirma que

“teus verdadeiros educadores, aqueles que te formarão, te revelam o que são


verdadeiramente o sentido original e a substância fundamental da tua essência,
[...] teus educadores não podem ser outra coisa senão teus libertadores”.

É para emancipar-nos das amarras que nos atam à sociedade e nos impedem
de voltar-nos objetivamente a nós mesmos que é posta a figura do educador. Logo,
não é na imitação ou na mera reprodução de um mestre que se encontra o caminho de
uma educação superior, mas na utilidade do exemplo de emancipação individual. É na
conquista da liberdade que começaria o processo de formação, liberdade que é
revelada pelo mestre, por aquele que já se encontra emancipado e que serve como
farol na escuridão dos estabelecimentos de ensino e da e uma cultura decadente.
Aqui se faz importante compreendermos o que significa, para Nietzsche, a figura
do gênio. Este tipo de homem mais elevado não é entendido como alguém dotado
apenas de uma superioridade natural, uma condição inata ou um talento genial. O
filósofo nos apresenta o gênio como aquele que foi capaz de moldar sua própria
natureza, com dedicação e esforço. O gênio é aquele que de certa forma se manteve
independente das estruturas de poder e das convenções sociais e que se manteve fiel
a si mesmo, para, a partir disso, desenvolver-se em seu máximo, alcançando um
patamar superior de saber e de relação com a vida, podendo assim ser tomado como
mestre. Nietzsche nos deixa a indicação das condições necessárias para o surgimento
deste tipo de homem:

Liberdade viril do caráter, conhecimento precoce dos homens, educação que


não visa a formação de um erudito, ausência de qualquer estreiteza patriótica,
de qualquer obrigação de ganhar seu pão, de obediência ao Estado – em suma,
liberdade, sempre liberdade: este mesmo elemento extraordinário e perigoso no
seio do qual os filósofos gregos puderam crescer.

São essas características que ele vê em Schopenhauer, alguém que teve o


ambiente propício e pôde, através da sua vontade, caminhar na direção de uma vida
superior, tornando-se um farol para os que aspiram a uma verdadeira cultura. Esta
perspectiva se coaduna com toda a compreensão que aparece na obra posterior de
Nietzsche, quando este busca ressignificar a vida. Seria papel do gênio reparar a falta
de significado da vida, que, em ultima instancia, não possui um fundamento metafisico
que a justifique. No lugar de tomarmos como essência da nossa existência alguma
verdade religiosa ou política, o gênio nos daria a possibilidade de uma vida que se
baseia no conhecimento, na cultura, na compreensão e efetivação de toda força
humana. É aí que começa a ficar clara a relação do gênio com a cultura; o ideal de
Nietzsche é a criação de um ambiente cultural voltado para isso - para a elevação
através do saber – o que passaria por instituições e por um povo unido em torno desse
ideal. Assim se desenha a relação do particular com o comum, do cuidado de si e
escultura do próprio caráter com o engendramento de uma cultura superior. O cuidado
de si só tem seu total sentido quando partilhado. Schopenhauer, Goethe e Beethoven
são exceções, homens ilustres que estiveram nas condições certas e fizeram, através
de suas vontades, o melhor de si mesmos. Mas a proposta é que não dependamos do
acaso ou de lampejos, mas criemos, a partir de cada um, as condições para uma alta
cultura e uma sociedade em que o bem individual seja o caminho do bem comum.
É este o compromisso de cada um com uma cultura, fazer de si mesmo o melhor
que puder, de acordo com a própria natureza, para gerar novas instituições que
venham a fomentar um tipo de homem mais elevado. Diz Nietzsche:

Todos aqueles que participam da instituição devem estar empenhados, através


de uma depuração contínua e uma assistência recíproca, com preparar o
nascimento do gênio e o amadurecimento de sua obra, em si e em torno de si
[…] e somente no devotamento a uma tal missão encontram o sentimento de
viver para um dever, o objetivo e o sentido da sua vida.

O que nos é apresentado em Schopenhauer como educador é um desafio.


Conquista a ti mesmo! Nos diz o filósofo. A cultura não está na aglutinação de
informações e na reprodutibilidade de conhecimentos – ela é conquistada com esforço,
apenas a partir do momento em que se assume a responsabilidade sobre si mesmo e
se é honesto consigo no reconhecimento das forças que atuam em seu interior para, de
acordo com isso, lapidar-se a si mesmo, contruir-se numa cultura, sem esperar em
troca nenhum benefício a não ser a própria formação, a escultura de si.
É essa a proposta que apresenta o jovem Nietzsche a seus contemporâneos.
Um rompimento com tudo o que há de fraqueza e submissão em busca de um tipo de
educação forte e contumaz, seguro de si e comprometido com a formação do próprio
caráter em acordo com cada natureza. Toda esta crítica e proposta são o início do
projeto filosófico nietzscheano, se assim pudermos chamar. Ao longo de sua obra as
bases formais da cultura moderna serão dilapidadas, até chegar ao fundamento
mesmo da racionalidade europeia. Desconstruindo toda uma cultura e denunciando as
hipocrisias construídas sobre os mais profundos impulsos humanos através da
denúncia de uma forma de vida baseada na falsidade e no niilismo, apoiada em falsos
conceitos e voltada para o nada. A isso Nietzsche dedicou a vida, derrubar os ídolos,
transvalorar os valores e assim dar nascimento a um novo tipo de homem, a uma alta
cultura, espelhada no ideal clássico – projeto audacioso que o fez (e faz até hoje)
pouco compreendido, mas certamente um dos mais graves, importantes e
revolucionários nomes da história da filosofia.

Você também pode gostar