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Mostrar, narrar, vender e convencer: a invenção de táticas de display

Mirtes Marins de Oliveira ∗

Alguns textos que tratam das histórias das exposições costumam colocar
como marco zero para a constituição de narrativas desse campo as iniciativas em
torno do Salão dos Recusados (1863), em Paris1. Como contraponto aos Salões da
Academia Real de Pintura e Escultura francesa, artistas como Courbet e Manet, além
do grupo impressionista francês, buscavam mostrar seus trabalhos de forma
qualificada e, ao mesmo tempo, fora das categorias artísticas estabelecidas pela
Academia. Uma das críticas dos Impressionistas aos Salões era de que a disposição
das obras, espalhadas por uma mesma parede, não permitia aos visitantes a devida
apreciação. Assim, os Impressionistas, em suas exposições, não apenas mostravam de
forma particular cada trabalho, mas, quando capitaneados pelos marchands, também
os exibiam em galerias que simulavam o ambiente doméstico, entre mobílias e outras
peças, de forma a estimular o comprador, que visualizava a instalação da peça em seu
(possível) futuro reduto.
Essa narrativa, bastante consolidada, pode ser recuada um pouco mais no
tempo, incorporando a própria instituição que promoveu os Salões Acadêmicos, o
Museu do Louvre, protagonista na institucionalização dos museus, tais como os
conhecemos nos dias de hoje. A partir de iniciativas dos revolucionários franceses,
foram criados os dispositivos legais e técnicos para a compreensão de museus como

                                                                                                               

Mestre e doutora em Educação: Política, Sociedade pela Pontifícia Universidade Católica
(PUC-SP), Mirtes Marins de Oliveira é docente e pesquisadora da pós-graduação (mestrado
e doutorado) em Design na Universidade Anhembi Morumbi desde 2012.
Ela idealizou e coordenou o curso de mestrado em Artes Visuais da Faculdade Santa
Marcelina (2004-2013) e foi co-editora, com Lisette Lagnado, da revista "marcelina" (2008-
2013). Foi curadora da exposição "Contra o estado das coisas - anos 1970", na Galeria
Jaqueline Martins (2014). É uma das autoras do livro "Cultural Anthropophagy: The 24th
Bienal de São Paulo 1998" (coleção Exhibition Histories, Afterall, 2015), editado por Lisette
Lagnado e Pablo Lafuente. É docente convidada do curso de Especialização em Crítica e
Curadoria da PUC-SP e coordenou o curso "Histórias da Arte Moderna e
Contemporânea" (1o semestre de 2016) no MASP. É curadora da exposição "Arte para
Todos! Liberação e Consumo", no Instituto Figueiredo Ferraz (2016).
1
Cf. ALTSHULER, Bruce. Salon to Biennial 1863-1959. Exhibitions that Made Art History. ,
vol. 1. Londres: Phaidon, 2008. A narrativa também está presente em CASTILLO, Sonia
Salcedo del. Cenário da arquitetura da arte: montagens e espaços de exposições. São
Paulo: Martins, 2008.
protetores dos patrimônios das nações2. A abertura do Museu do Louvre, em 1793, se
deu após o confisco do edifício e da coleção real, transformados em propriedade do
povo francês. A organização das obras nas galerias seguiria um sistema cronológico
que levaria em conta os supostos estilos e os países de origem das obras, articulando,
assim, linearidade progressiva e identidade nacional. 3
Essa articulação é ponto de origem do museu moderno, estudada em
profundidade em The Birth of the Museum (1995), por Tony Bennett4. Segundo o
autor, algumas pesquisas mostram a história dos museus – não apenas os de arte – a
partir das práticas de organização classificatórias e de disposição dos objetos, isto é,
de um ponto de vista interno à sua própria história e como parte de seu
aprimoramento classificatório e técnico. O propósito de Bennett, em contrapartida, é
verificá-la a partir de uma perspectiva política, expandindo e cruzando narrativas. Isso
permite, para estudos históricos com foco em exposições, demonstrar as zonas de
atrito entre versões, os aspectos obscuros nos quais o narrador e suas hipóteses não
são suficientemente comprováveis e, por fim, colaborar para colocar em xeque o
estabelecido, o cristalizado e o hegemônico.
O museu, para Bennett, tem a mesma origem de outras instituições que, no
século XVIII, foram organizadas a partir de uma orientação racionalista, como
bibliotecas e parques públicos; assim como se assemelham às iniciativas das
Exposições Universais e feiras modernas, caracterizadas pelo autor por suas práticas
de “mostrar & narrar”, e por serem lugares de “mostrar artefatos e/ou pessoas de
maneira calculada ao encarnar e comunicar significados e valores culturais
específicos”.
Essas instituições também teriam, segundo ele, a preocupação de inventar
maneiras de condução e de coordenação do comportamento dos visitantes por meio da
arquitetura e dos dispositivos de ordenação do fluxo. Essa caracterização certamente
não se restringe aos museus, mas à todas as atividades nas quais a multidão
participante pode rapidamente se tornar perigosa e, por exemplo, iniciar uma
                                                                                                               
2
Cf. JULIÃO, Letícia. “Apontamentos sobre a história do museu” In: Caderno de diretrizes
museológicas. Brasília: Ministério da Cultura/ Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional/ Departamento de Museus e Centros Culturais, Belo Horizonte: Secretaria de
Estado da Cultura/ Superintendência de Museus. 2006. pp.19-32.
3
BIRKETT, Whitney. To Infinity and Beyond: A Critique of the Aesthetic White Cube. [New
Jersey] Theses Setton Hall University, 2012. p.9.
4
BENNETT, Tony. The Birth of the Museum. History, Theory, Politics. London and New York:
Routledge, 1995.
festividade carnavalesca, ou pior, um motim. Assim, estações, lojas de departamentos,
parques – lugares nos quais circulava grande número de pessoas – desenvolveram
preceitos comportamentais e adequações tecnológicas para impedir possíveis
insurreições. Necessário lembrar que, nesse instante, estão no imaginário das
sociedades europeias, principalmente de seus governantes, as manifestações populares
que ultrapassavam, desde a Revolução Francesa, os limites impostos pela religião ou
pelo direito dos reis. Prescrições e tecnologias seriam compartilhadas por esses
espaços de “mostrar & narrar”, e formariam, na expressão de Bennett, um “complexo
exibicionário”, semelhante às formulações de Michel Foucault sobre o complexo
carcerário5. Segundo Bennett, é possível verificar a passagem da organização dos
objetos e corpos do domínio fechado e privado para o espaço público, que serviriam
tanto para esse controle das multidões, quanto para a inscrição e transmissão de
mensagens de saber e poder.6
Como exemplo privilegiado dessa situação, o autor cita a Exposição de
Londres, em 1851, na qual foi apresentado

(...) um conjunto de disciplinas e técnicas de visualização desenvolvidas anteriormente em


museus, panoramas, exposições dos institutos de mecânica, galerias de arte, arcadas. Ao
fazê-lo, traduziu em formas expositivas que, simultaneamente, ordenavam objetos para a
inspeção do público e ordenava o próprio público que os inspecionava, e que tiveram uma
influencia profunda e duradoura no desenvolvimento de museus, galerias de arte, exposições
e lojas de departamento.7

Foi essa a exposição que demonstrou, segundo Bennett, que a ameaça da


multidão poderia ser contornada pelos dispositivos de organização visual e pelo apelo
pedagógico de uma perspectiva do capital. Durante sua organização, houve uma
preocupação da imprensa com o convívio de classes em um mesmo espaço público,
algo que foi resolvido pela diferenciação de preços em diferentes dias da semana, o
que impediria aquele confronto. As Exposições Universais do século XIX serviram
para constituir um amálgama no qual a visibilidade fosse elaborada e exercitada em
um fim didático, comercial e ideológico: mostrar, narrar, vender e convencer.
As assertivas de Bennett desenham um outro campo no qual histórias de
exposições, ou histórias da arte, se dilatam para além da disposição de trabalhos em
espaços arquitetônicos e institucionais e abarcam projetos ideológicos de grande
                                                                                                               
5
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da Prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Rio de
Janeiro: Ed. Vozes, 2000.
6
Cf. BENNETT, p.61.
7
Idem, p. 61
amplitude, em um trânsito entre perspectivas micro e macro. Muito próximo do que
Pablo Lafuente define como display:

(…) o aspecto essencial do meio – exposições – é o display. Por display, não me refiro ao
exercício de seleção, nem à questão de quem tomou as decisões sobre aquela seleção e foi o
autor do quadro conceitual, mas à articulação efetiva de um conjunto específico de relações
entre objetos, pessoas, ideias e estruturas, dentro de um formato expositivo. O display, e os
princípios que regem sua articulação, propõe um discurso que está, por vezes, em desacordo
com o discurso que cerca a exposição. Apenas abordando os dois conjuntamente é que
podemos ter uma posição sobre a história da exposição a partir dessa luta de identidade8.

Na afirmação de Lafuente está implícito que, a cada display visitado, há a


ativação de um complexo de noções: arte, exposição, visitante, sociedade. Portanto, o
ponto de origem das histórias das exposições modernas é também aquele que marca
os processos de instrumentalização da produção cultural aliada à gestão
governamental do comportamento social. Nesse sentido, a regulação dos
comportamentos elaborados e adestrados nos espaços públicos abarcaria lugares
impensáveis à primeira vista, como os parques de diversões, esfera dos prazeres
ilícitos e, ao mesmo tempo, de maravilhamento do visitante diante da tecnologia
industrial à serviço do tempo livre9.
O display pode atuar, então, nas exposições contemporâneas, tanto na
continuidade dessas instrumentalizações da produção artística engendradas em
políticas macro, quanto na possibilidade tática de criar dissonâncias e desobediências
às normas disciplinadoras de comportamento social.

                                                                                                               
8
LAFUENTE, Pablo. “Introduction: From the Outside In – ‘Magiciens de La Terre’ and Two
Histories of Exhibitions”. In: STEEDS, Lucy, et al. Making Art Global (Part 2): ‘Magiciens de la
Terre’ 1989. Londres: Afterall Books (Exhibition Histories), 2012. Tradução livre da autora.
9
Cf. BENNETT, p.6.

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