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Demétrio Magnoli (/colunas/demetriomagnoli/)

Biopolítica da pandemia
Narrativa de que o totalitarismo é mais eficiente na contenção do contágio está errada

5.mar.2021 às 23h15

EDIÇÃO IMPRESSA (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2021/03/06/)

A eclosão da Covid-19 em Wuhan (https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/02/o-enigma-de-wuhan.shtml), em dezembro de


2019, foi muito mais ampla do que se imaginava. Naquele mês, circulavam ao menos 13 variantes
da cepa A do novo coronavírus na cidade chinesa, uma indicação de que a doença já se difundia,
silenciosamente, havia tempo. A descoberta da missão da OMS na China
(https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/02/oms-diz-que-nao-ha-evidencia-de-que-mercado-de-wuhan-foi-epicentro-da-pandemia.shtml)

lança luz sobre a transformação de uma epidemia localizada na mais dramática pandemia desde a
gripe espanhola.

O percurso derivou de uma conjugação de fatores políticos e biológicos. Sob o peso de um


lockdown aplicado com a força implacável de um Estado totalitário
(https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/03/apos-matar-oposicao-em-hong-kong-china-agora-prepara-seu-enterro-com-novas-leis.shtml),
Wuhan
emergiu da onda de contágios com poucos milhares de mortos. As cifras modestas desarmaram os
espíritos no resto do mundo, semeando a complacência inicial. Daí, em março de 2020, uma
avalanche de óbitos atingiu a Lombardia, deflagrando o lockdown italiano, logo replicado em
diversos países europeus.

Hoje sabemos que o desastre não seria tão trágico sem a mutação D614G, sofrida pelo vírus na
Europa, fonte das variantes dominantes no resto do mundo. O coronavírus da cepa “original” (A)
era menos transmissível que o B.1, difundido fora da China. Não é preciso ser um Estado totalitário
para impor um lockdown decisivo. A diferença entre a China e a Itália situou-se na esfera da
biologia. Mas o fenômeno desvenda a escala das responsabilidades políticas da China.
A árvore de mutações virais (https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/03/variante-britanica-do-coronavirus-e-ate-90-mais-
transmissivel-estimam-cientistas.shtml) não tinha sido desenhada em meados de 2019. Naquele ponto, diante do

chocante contraste entre a taxa de óbitos em Wuhan e na Lombardia, analistas suspeitaram que a
China escondia pilhas de cadáveres. Sabe-se, agora, que isso não ocorreu.

Obcecado pelo segredo, hipnotizado por cálculos de prestígio, o regime chinês suprimiu a notícia
dos primeiros casos detectados e ocultou a extensão dos contágios. O tempo perdido propiciou a
disseminação subterrânea do vírus fora da China e a eclosão das variantes que vergaram o mundo
inteiro.

Vírus mudam sem parar, mas só prevalecem as mutações que aumentam suas oportunidades de
reprodução. Normalmente, essa regra evolucionária reduz a letalidade, pois matar o hospedeiro
contribui negativamente na velocidade de transmissão. A regra, porém, parece não valer para o
novo coronavírus porque a fase de contágio intenso se dá nos dias iniciais da doença, quando a
carga viral concentra-se na garganta. Assim, do ponto de vista do vírus, uma letalidade maior não
traz desvantagens.

Desse modo, explica-se o surgimento recente de variantes não só mais transmissíveis como,
também, mais letais no Reino Unido (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/03/apos-cacada-reino-unido-encontra-viajante-
misterioso-com-variante-brasileira.shtml), na África do Sul e no Brasil. As novas ondas pandêmicas resultam, ao

menos em parte, da trajetória evolutiva de um vírus que se espalhou por toda a humanidade,
expandindo suas oportunidades de mutação.

A história da pandemia, que começa a ser contada, impugna o elogio da China. A narrativa de que
o totalitarismo é mais eficiente na contenção do contágio está errada. A verdade é que o regime
chinês lidou com um vírus menos eficiente. Inversamente, é falsa a afirmação de que o Ocidente
fracassou no combate à pandemia. A verdade é que, por culpa da China, reagiu tardiamente,
quando a Covid já se disseminara nas sociedades (https://arte.folha.uol.com.br/ciencia/2021/veja-como-esta-a-vacinacao/), e
enfrentou variantes mais transmissíveis do vírus.

2021, Ano 2 da pandemia, abre a etapa da imunização. A China (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/03/xi-traca-


os-planos-para-a-ascensao-da-china-pos-covid-e-aponta-eua-como-maior-ameaca.shtml), triunfante no Ano 1, vacina em ritmo lento,

enquanto EUA, Reino Unido e, logo, União Europeia, protegerão antes suas populações.

A balança geopolítica tende a se inclinar para o lado das sociedades imunizadas, que poderão
reabrir com segurança suas economias e suas fronteiras. Mas, no fim das contas, tudo depende de
uma escolha política crucial de Joe Biden. Se os EUA se fecharem no nacionalismo vacinal,
perderão sua vantagem potencial. Se, pelo contrário, liderarem o esforço de vacinação dos países
em desenvolvimento, virarão o jogo.
Demétrio Magnoli
Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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