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Um Texto Natalino: A

variante Textual de 1
Timóteo 3.16
Estamos no mês de celebração do Natal, mês esse no
qual a igreja cristã celebra o nascimento do Senhor Jesus
Cristo, o salvador do mundo. Nessas ocasiões, diversos
textos bíblicos relacionados ao tema dessa época são
lidos nas igrejas, em especial as belas narrativas da
infância narradas nos evangelhos de Mateus e Lucas.
Todavia, há também outros trechos no Novo Testamento
que citam o nascimento de Jesus de maneira resumida
(cf. Rm 1.3, Jo 1.14). O apóstolo Paulo, em especial, faz
uma declaração magnífica acerca da encarnação de
Jesus e sua subsequente obra que se seguiu em prol da
humanidade pecadora em 1 Timóteo 3.16. Esse texto,
além de possuir extrema relevância por resumir de
maneira brilhante pontos essenciais da fé cristã, possui
também uma intrigante variante textual.

Análise do Texto:

O texto de 1 Timóteo 3.16, nas versões clássicas:

“E, sem dúvida alguma, grande é o mistério da


piedade: Aquele que se manifestou em carne, foi
justificado em espírito, visto dos anjos, pregado entre
os gentios, crido no mundo, e recebido acima na
glória” (Almeida- IBB).

“Evidentemente, grande é o mistério da piedade:


Aquele que foi manifestado na carne foi justificado em
espírito, contemplado por anjos, pregado entre os
gentios, crido no mundo, recebido na glória”. (ARA)

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Agora, nas versões Fiel e na NVI:

“E, sem dúvida alguma, grande é o mistério da


piedade: Deus se manifestou em carne, foi justificado
no Espírito, visto dos anjos, pregado aos gentios,
crido no mundo, recebido acima na glória.” (ACF).

“Não há dúvida de que é grande o mistério da


piedade: Deus foi manifestado em corpo, justificado
no Espírito, visto pelos anjos, pregado entre as
nações, crido no mundo, recebido na glória” (NVI).

Ao fazer uma rápida comparação percebe-se que tanto a


a Fiel quanto a NVI (Sendo que esta última não segue sua
contraparte americana), trazem “Deus” em vez do
indefinido “aquele” da Corrigida e da Atualizada. As
razões disso se devem por causa da base textual grega
do Novo Testamento que as edições em português usam.

Enquanto que a leitura da Atualizada e IBB seguem a


leitura encontrada no Texto Crítico, a Fiel e
(surpreendentemente) a NVI seguem a leitura encontrada
no Texto Bizantino refletido nas edições clássicas do
Textus Receptus, do Texto Patriarcal e do Texto
Majoritário(1). Cabe agora ver o fundamento
manuscritológico que diferencia o Texto Crítico do
Bizantino.

Análise Manuscritológica:

O Texto Crítico (também chamado de Eclético) se baseia


fundamentalmente nos dois manuscritos essencialmente
completos do Novo Testamento, que remontam ao 4°
século, intitulados Álef e B(conhecido também como
Vaticanus). Esse manuscritos formam o chamado Texto-
Tipo Alexandrino( que corresponde ao formato de texto
que se encontravam na região de Alexandria, no Egito).
Sendo portanto, os mais antigos, as leituras variantes
encontradas nesses manuscritos formam a base para o
Texto-Crítico. Esse texto favorece a tradução “aquele que
se manifestou em carne”.

Já as edições do Textus Receptus, Patricarcal e


Majoritário seguem o chamado Texto-Tipo Bizantino
(devido serem em grande parte oriundos de Bizâncio,
mas que provinham das mais variadas regiões do Império
Bizantido, encontrado na grande massa dos manuscritos
gregos existentes, que vão do 5° ao 16° século. Esses
manuscritos formam a base do Texto da Reforma
(Receptus) e das traduções clássicas como Almeida,
King James, Reina-Valera, etc. Esse texto favorece a
leitura “Deus manifesto em carne”.

O texto Crítico de Nestlé-Aland, em sua mais recente


edição (28), se lê:

“καὶ ὁµολογουµένως µέγα ἐστὶν τὸ τῆς εὐσεβείας


µυστήριον·

ὃς ἐφανερώθη ἐν σαρκί,

ἐδικαιώθη ἐν πνεύµατι,
ὤφθη ἀγγέλοις,
ἐκηρύχθη ἐν ἔθνεσιν,
ἐπιστεύθη ἐν κόσµῳ,
ἀνελήµφθη ἐν δόξῃ.

No Texto Bizantino, na edição de Stephanus(1550), se lê:

καὶ ὁµολογουµένως µέγα ἐστὶν τὸ τῆς εὐσεβείας


µυστήριον·

Θεὸς ἐφανερώθη ἐν σαρκί ἐ

δικαιώθη ἐν πνεύµατι

ὤφθη ἀγγέλοις

ἐκηρύχθη ἐν ἔθνεσιν

ἐπιστεύθη ἐν κόσµῳ

ἀνελήφθη ἐν δόξῃ
O Texto Crítico traz “ὃς “(gr. hos), já o Textus Receptus
traz “Θεὸς” (gr.Theós). A diferença entre essas duas
leituras é passsivel de explicação através da história dos
manuscritos, o uso de “hos” com “Theós” certamente
se originou através do uso de Nomina Sacra nos
manuscritos gregos.

Uma prática comum dos copistas cristãos era escrever


de maneira curta e em mai[icula alguns nomes sagrados,
em especial o nome de Deus, Jesus e do Espírito Santo.
Assim sendo, o nome “Θεὸς” nos manuscritos gregos se
escrevia “ΘΣ” (com um pequeno traço em cima). Já “ὃς”
poderia aparecer como “OC”(sem traço). A disrepância
entre o texto alexandrino e bizantino se dá justamente
por algum equívoco de transmissão. dentre as
possibilidades há a sugerida que na verdade a leitura
majoritária, “theós” foi uma adição posterior feia por
escriba ortodoxo não contente com a forma do texto. Já
os proponentes do Texto Receptus/Majoritário afirmam
que “hos” pode ter muito bem se originado de um
pequeno erro de um escriba ao contemplar a a Nomina
Sacra “ΘΣ” com o traço superior e a marca da letra
“theta” apagada, levando-o a entender “theós” como
“hos”. “Theós”, portanto, seria a leitura original.

Análise interna:

Quando se analisa a estrutura interna do texto, as leituras


“hos”(quem) e “ho”(que) apresentam algumas
inconsistências gramaticais, como notado por Wilbur
Pickering:

“Uma anomalia gramatical é introduzida. “Grande é o


mistério da piedade, quem se manifestou em carne” é
pior em grego do que o é em português. “Mistério” é
do gênero neutro enquanto “piedade” é feminino, mas
“quem” é masculino!…em um esforço para explicar o
“quem”, é comumente argumentado que a segunda
metade do verso 16 foi uma citação direta de um hino,
mas onde está a evidência para esta alegação? Sem
evidência, a alegação foge da pergunta por assumir o
fato como provado.

Que a passagem tem algumas qualidades poéticas


não diz nada mais que ela

tem qualidades poéticas. “Quem” é sem sentido


[gramatical], de modo

que a maioria das versões modernas que seguem o


texto da UBS toma aqui ações evasivas. A redação em
latim, “o mistério … que,” pelo menos faz sentido.

A verdadeira redação, como atestado por 99% dos


MSS gregos, é ‘Deus.'”(2)

A análise Pickering é pungente, em especial se


considerarmos citações de alguns pais da Igreja acerca
dessa passagem.

1 Timóteo 3.16 e os Pais da Igreja:


Como demonstrado pelo trabalho de John W. Burgon (
em seu ivro The Revision Revised), a leitura “Deus
manifesto na carne” é encontrada em vários Pais da
Igreja, como Inácio, Cirilo de Alexandria, Gregório de
Nazianzo e Crisóstomo(2). Uma dessas referências é
facilmente encontrada nos escritos de Inácio em
português. Em sua Epístola aos Efésios, Inácio afirma:

“Existe apenas um médico, carnal e espiritual, gerado


e não-gerado, Deus feito carne, Filho de Maria e Filho
de Deus, vida verdadeira na morte, vida passível e
agora impassível, Jesus Cristo nosso Senhor.

Um astro brilhou no céu mais do que todos os astros,


sua luz era indizível e sua novidade causou admiração.
todos os astros, inclusive o sol e a lua, formaram um
coro em torno do astro, e ele projetou sua luz mais do
que todos. Houve admiração. Donde vinha a novidade
tão estranha a eles? então, toda a magia foi destruída,
todo laço de maldade foi abolido, toda ignorância foi
dissipada e todo o reino foi arruinado, Quando Deus
apareceu em forma humana, para uma novidade de
vida eterna”(4)

A afirmação de que tal leitura não é antiga cai por terra


diante dos escritos patrísticos.

Considerações finais:

Diante dos fatos apresentados, tanto a coerência interna


do texto, as abundantes citações patrísticas (como
exemplificado por Inácio), e com a grande massa de
manuscritos a favor, deve-se reconhecer “Deus” deve
ser reconhecida como leitura original e a verdade que ele
expressa, poderosa.

Em Jesus, vemos de maneira clara o intenso desejo de


Deus manifestado desde o antigo Testamento, através
das Teofanias, do Anjo do Senhor, do tabernáculo, dos
templos de Salomão e de Zorobabel: Deus habitar entre
os homens. Ele fez isso de de forma plena. Deus é real e
verdadeiro, não é uma simples ideia ou conceito
filosófico, mas um Deus pessoal que amou
tremendamente os homens para o louvor da Sua Glória.
Moisés olhou para Deus “de costas”. Hoje, podemos
contemplar a face de Deus na pessoa de Jesus Cristo.
Nas palavras de David Murray(5), Cristo é “a visível face
de Deus”³. Em Cristo, cumpre-se o anelo do salmista
Davi, Deus não escondeu o Seu rosto (27w8-9), benditos
são aqueles que não viram e creram, e sabem que um dia
o Verão (cf. Jo 20w29/ Mt 5w8), pois ele é Deus conosco
(Mt 1w23, cf. Is 7w14) .

Feliz Natal!

Soli Deo Gloria

Notas:

1. A versão NVI nesse texto acaba por transmitir uma


forma docética de doutrina (cristo manifestando em um
corpo), mas ainda assim, é superior a versão americana
(“He appeared in Body”).

2. WILBUR, Pickering. Qual o Texto Original do Novo


Testamento?. Disponível nesse link.

3. ANTIOQUIA, Inácio de. In: Padres Apostólicos. Tr. Ivo


Storniolo, euclides M. Balancin. São Paulo: Paulus, 1995.
p. 84; 88

4. Essas citações patrísticas podem ser encontradas


clicando aqui.

5. MURRAY, David. Jesus on Every Page. Nashiville:


Thomas Nelson Publishers, 2013. p. 76

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