Resumo: Contar histórias é uma prática que perpassa nossa memória afetiva, partem dos acontecimentos do
dia a dia, da imaginação, das sensações das relações sociais. Pensando nessa dinâmica e no projeto
interdisciplinar proposto pela professora regente da turma, que era a construção de narrativas para
composição de um livro autoral. O presente projeto de ensino realizado com os alunos do 4º ano na
disciplina de artes, consistiu no desenvolvimento de processos de construção cênica que pudessem
representar as histórias criadas pelas crianças. Esta experiência integrou o pré-campo da minha pesquisa de
mestrado em Artes com o tema Ensino de Teatro para emancipação - uma experiência no Ensino
Fundamental I. Ao longo de dois meses trabalhamos percepção corporal, espacial, temporal por meio de
jogos teatrais e dramáticos voltados para a criação do drama. Contudo, percebi a dificuldade que a maioria da
turma apresentava para expor em cena suas criações. Dessa maneira, optamos por conhecer o universo
cênico do Teatro de Formas Animadas. Após exibição de alguns espetáculos e fragmentos de cenas com
títeres, fantoches, dedoches, bonecos de manipulação direta, bonecos de vara, teatro de sombras, os alunos
escolheram criar dedoches para contar suas histórias. Desenvolvemos uma série de experimentos corporais
para compreender que nosso corpo é matéria primordial para o exercício da comunicação, posteriormente o
manuseio de objetos proporcionou a percepção sobre o espaço, tempo e ação nas coisas, como meu corpo
pode conceber vida em um objeto. Elaboraram em grupos as histórias, confeccionaram os dedoches com
diversos materiais, na perspectiva do reaproveitamento, incorporando outras formas como personagens
secundários, utilizando a técnica de bonecos de varetas, dentre outras. Criar situações, histórias e
acontecimentos é pensar sobre a vida, é se colocar no mundo, nesse movimento de representando histórias,
mesmo que fantasias, se representa o próprio mundo e suas.
Este artigo é resultado das reflexões sobre um projeto de ensino realizado com os educandos de uma
turma de 4º ano, em escola de Ensino Fundamental I, localizada na cidade de Cubatão, no litoral de
São Paulo. Desenvolvido com dois encontros semanais que ocorriam nas aulas de artes, entre os
meses de agosto a outubro de 2018.
Essa experiência integrou o pré-campo da pesquisa de mestrado com o título: Ensino de teatro e
emancipação — experiências no Ensino Fundamental I, que venho realizando junto ao Programa
em Rede Nacional de Mestrado Profissional em Artes (PROFARTES), no Instituto de Artes da
UNESP, campus Barra Funda, São Paulo/SP.
O projeto tem como objetivo compreender as potencialidades do uso de jogos dramáticos em
processos de aprendizagem em artes, para desenvolver a criatividade e a ludicidade, em atividades
que tenham a intersecção entre imaginário e realidade.
O teatro é lembrado na escola para expor trabalhos, homenagear personalidades em comemorações
de datas festivas e cívicas. Nesse intuito não se pensa em ensinar teatro, ou seja, não são
considerados (muitas vezes) o desenvolvimento dos conteúdos e práticas próprias das artes cênicas,
que são fundamentais na formação cidadã (FALKEMBACH, FERREIRA, 2012).
Tenho presenciado situações em que os alunos mal sabem porque estão proferindo determinadas
falas, ou, porque interpretam os personagens, não percebem a temporalidade e contextualização
histórica daquilo que representam. Gostam do teatro porque é uma forma de ser outras pessoas,
viver momentos que talvez nunca possam vivenciar. Conseguem “fazer de conta” que está
acontecendo histórias imaginárias, mas principalmente porque é um momento diferente na escola.
Uma quebra na rotina massacrante de fazer filas, sentar na carteira, copiar textos, resolver
exercícios, além de uma série de ações e atitudes que marcam o aprisionamento dos corpos, limitam
as formas de expressão, e aquilo que desejam ou precisam expressar.
Dessa maneira, os processos de aprendizagem que proponho para as turmas em que sou professor
baseiam-se na livre expressão do corpo e do pensamento. O teatro como prática de educação que
objetiva impulsionar as capacidades de comunicação, dessa forma que os educandos alcancem
maneiras de falar e movimentar sem a necessidade de esquemas repetitivos. Priorizando a
autonomia nos processos de aprender, para que tenham ampla consciência do ato de se comunicar
consigo mesmo, com o outro e com a realidade social (LOPES, 2017).
Para este projeto em específico foram desenvolvidos jogos de improvisação associados a jogos para
o desenvolvimento corporal e expressivo. Os jogos de improvisação cênica constituem-se em um
momento em que os educandos vivenciam uma cena de maneira improvisada, ou seja, sem ensaio.
A improvisação pode ser gerada a partir de fragmentos de histórias, uma ou mais imagens, um tema
específico, a proposição de um lugar, entre outros tantos dispositivos que despertem a vontade de
jogar.
O espaço de jogo é um lugar de encontros, trocas, experimentações e surpresas. A invenção e o
imaginário se entrelaçam na descoberta de novos gestos, fisionomias, olhares, o cruzamento dos
corpos origina uma vivência privilegiada de ruptura com a rotina.
Pensando nessa dinâmica e no projeto interdisciplinar proposto pela professora regente da turma,
que era a construção de narrativas para composição de um livro autoral, desenvolvemos uma série
de experimentos corporais para compreender que nosso corpo é matéria primordial para o exercício
da comunicação. Posteriormente o manuseio de objetos proporcionou a percepção sobre o espaço,
tempo e ação nas coisas, como meu corpo pode conceber vida em um objeto.
A dinâmica dos encontros consistiu no desenvolvimento de processos de construção cênica que
pudessem representar as histórias criadas pelas crianças. Ao longo de dois meses trabalhamos
percepção corporal, espacial, temporal através de jogos teatrais e dramáticos voltados para a criação
do drama.
Contudo, percebi a dificuldade que a maioria da turma apresentava para expor em cena suas
criações. A inibição originada da timidez, ou da vergonha de se exporem diante dos colegas, foi um
dos obstáculos mais difíceis de serem derrubados. Dessa maneira, optamos por conhecer o universo
cênico do Teatro de Bonecos, como uma alternativa para contarem suas histórias colocando o foco
da interpretação nos bonecos.
Após exibir fragmentos de cenas com títeres, fantoches, dedoches, bonecos de manipulação direta,
bonecos de vara, teatro de sombras. Apresentei uma breve trajetória do teatro de mamulengos de
José Júlio, o Mamulengo Jurubeba, que consta no livro didático utilizado na escola.
O mamulengo é o teatro de bonecos popular do Nordeste, incluído em 2015 no Livro de Formas de
Expressão, que faz parte do acervo de manifestações populares consideradas, patrimônio cultural do
Brasil pelo IPHAN. Reconhecido como bem imaterial, os bonecos não são brinquedos, e sim um
traço da cultura popular que envolve a produção de conhecimento criativo, artístico e
primordialmente cênico.
[...] apesar desse bem ser amplamente conhecido como mamulengo, em cada
contexto se desenvolveu de forma diferenciada e possui diversas denominações:
Cassimiro Coco, no Maranhão e Ceará; João Redondo, no Rio Grande do Norte;
Babau, na Paraíba; e Mamulengo, em Pernambuco. Carrega elementos
fundamentais para a identidade e memória de seus praticantes e ainda desempenha
um papel agregador que legitima as práticas cotidianas nesses locais. (IPHAN,
2004).
Os mamulengos são conhecidos como bonecos de luvas. A mão dentro do fantoche que movimenta
e fornece vida para o boneco. Geralmente, são feitos com pano, madeira e papel machê, também
podem ser encontrados utilizando cabaças, casca de coco, papelão e jornal.
Existe uma estrutura onde ocorre o teatro, chamada de empanada, pode ser construída com madeira
e revestida de chita. Em formato de tenda funciona como o palco para os bonecos, que escondidos
nas laterais ou abaixo da empanada surgem e “brincam” em diversificadas histórias.
Os educandos escolheram criar dedoches para contar suas histórias, pela proximidade com o teatro
mamulengo acreditavam que o formato da estrutura para apresentação favoreceria o anonimato, e
assim não seriam atingidos pela timidez e vergonha.
Apesar de termos experimentado a composição com objetos variados, na perspectiva do Teatro de
Formas Animadas, as dificuldades de manipulação e composição de movimentos e gestualidades,
não convencia os próprios educandos.
As dificuldades de ressignificarem os objetos cotidianos para construção de personagens não se
realizam com facilidade. É preciso muita consciência corporal, muitos estímulos que provoquem o
imaginário. O teatro utilizando objetos busca as emoções estéticas, nem sempre gera uma história
com começo, meio e fim, ou mesmo a aproximação com a realidade mais objetiva (AMARAL,
2004).
Por outro lado, as potencialidades dessa linguagem são infinitas, uma mistura de linguagens como
dança, mímica, música associam aos objetos. Contudo, requer tempo de estudos e preparação. O
cotidiano escolar nem sempre proporciona as condições adequadas, ou mínimas para desenvolver
determinadas propostas.
É importante pontuar algumas características do Teatro de bonecos. São especificidades da
linguagem que exigem certos procedimentos para o desenvolvimento de habilidades para a
confecção e manipulação, pois sem estas, os espetáculos podem ser tornar meramente exposição de
bonecos, sem a interpretação que concebe a graça e a energia desta manifestação artística.
Segundo Ana Maria Amaral, uma das pesquisadoras mais importantes neste campo, o “Boneco é o
termo usado para designar um objeto que, representando a figura humana, ou animal, é
dramaticamente animado diante de um público.” (2004, p.71). O boneco não deve ser considerado
como um ser humano em miniatura, mas sim como um ser que tem vida própria. Essa vida é
concebida na sua construção, e por um ator-manipulador que vai animar essa vida.
Segundo Ana Maria Amaral (2004), aquele que vai manipular os bonecos, deve observá-los, estuda-
los, experimentá-los para compreender as possibilidades de movimentação, e assim conseguir
desenvolver a interpretação da personagem.
A autora aponta duas possibilidades para a construção de narrativas no Teatro de bonecos, a sátira e
a poesia. No primeiro, os personagens são vistos como objetos, sem vida. Porque a busca de uma
fidelidade na aparência, dando mais ênfase a materialidade, faz com que se tornem grotescos, e
assim despertem os risos. No segundo caso, com bonecos menos realistas, eles se tornam
enigmáticos, mágicos muitas vezes, despertando a sensação de que as histórias estão para além da
realidade.
Os dedoches utilizados no projeto do 4 ano, se encaixam no segundo caso. A maioria representava
figuras humanas, contudo, a forma dos corpos, a composição dos membros e as características
físicas demonstradas na confecção do boneco, não fornece essa estranheza de um mundo muito
próximo da realidade.
Sendo o boneco, por essência, imagem e movimento, ele exige uma dramaturgia
específica. Esta não reside em ações e palavras, mas se apoia muito mais em gestos
e em momentos de não-ação, seguidos de movimentos, nas pausas e nos momentos
de silêncio. (AMARAL, 2004, p.74)
Nas improvisações algumas crianças demonstravam certa habilidade na manipulação, que arrisco
fazer referência as técnicas específicas de manipulação de fantoches. Foram criando maneiras de
olhar e transmitir tristeza, felicidade, raiva, confusão, medo. Além de entradas e saídas que
surpreendiam a plateia.
Nesse sentido, pode se afirmar que os jogos de improvisação se configuram como um espaço de
construção de saberes. Talvez se durante os encontros ao invés das improvisações fossem
instauradas oficinas para transmitir técnicas de manipulação, não conseguiriam desenvolver essas
habilidades com tanta maestria e domínio.
Joana Lopes, arte-educadora que desenvolveu inúmeros projetos de Teatro-educação nas décadas de
1960 e 1970, afirma que “[...] a técnica é como uma bagagem a ser adquirida com a única
finalidade de aperfeiçoar a capacidade natural de se metamorfosear, através do corpo e da voz,
que são nossos instrumentos principais para dramatização.” (LOPES, 2017, p.99).
Dessa maneira, as crianças ao desenvolverem suas próprias técnicas de manipulação, estavam
simultaneamente, vivendo um processo de maturação da capacidade de metamorfose. Como uma
vivência em que os atuantes percebem o essencial para trabalhar suas formas de se comunicar.
Confrontando realidade e imaginário, a dimensão estética é ao mesmo tempo, instrumento de
compreensão de si mesmo e do mundo ao seu redor.
A metamorfose como o espaço potencial (Winnicott apud Machado, 2010) que estrutura a
experiência da criação cênica, como o lugar da ilusão, das trocas, da maior capacidade de imaginar,
ou seja, do desenvolvimento das habilidades de criar, perceber, inventar e reinventar a vida social, e
assim as crianças constroem narrativas coerentes com seus desejos e percepções em relação ao
mundo.
Ao buscar respostas para os desafios encontrados nas improvisações as crianças desencadeiam um
processo em que ultrapassam a si mesmas, elaborando personalidades que independem de uma
idealização perfeita. Porque estão alicerçadas em uma circunstância passageira de vida, no qual os
bonecos que são os seres concebidos para atuar nessa realidade criada.
Essa experiência também provocou alguns questionamentos referentes ao papel do professor nesta
empreitada. Como orientar processos de aprendizagem em uma perspectiva emancipatória, sem
causar interferências que impeçam ou obstruam a autonomia das crianças? Quais caminhos me
levariam a entender meu lugar como mestre de jogo?
Primeiramente, compreender o contexto no qual estou inserido como artista-educador, desprender
das impressões do senso comum em relação à infância. Para assim, entender como as ações do
professor refletem nos caminhos de construção dos alunos, como também a abertura para saber
onde e como propor os jogos, bem como interferir nestes, de modo a proporcionar a autonomia no
processo de descoberta e aprendizado, afinal, é apenas com a compreensão da linguagem dramática
através de suas próprias experiências (CABRERA, 2016) que os sujeitos podem se enxergar como
protagonistas das ações e realizações.
Rancière (2011) também expõe preocupação quanto ao professor, sua postura e método nos
processos de aprendizagem, porque rompe com as possibilidades da construção do conhecimento, e
somente por meio do reconhecimento das capacidades e do potencial será possível traçar caminhos
para escapar da armadilha da educação proposta por um mestre explicador, que segundo o autor
desemboca em um processo de embrutecimento do ser, que não sabe conhecer sem a mediação de
alguém que explica, e consequentemente não se interessará pelo saber, porque se sentirá incapaz de
aprender sem a explicação.
No caso do trabalho com as crianças do Ensino Fundamental I, esse comportamento de mestre
explicador é exigido pela coletividade, e pelo próprio docente, que enxerga esse pedido de socorro
pelo saber das crianças, seja pelas suas formas de se comunicar, ou pelos modelos instrutivos que
segue.
Marina Marcondes Machado (2010, 2013, 2016) provocou ao mesmo tempo, a percepção sobre
minha visão do que é infância, e minhas atitudes em relação às crianças. O resultado do encontro
com essa autora foi o reconhecimento da necessidade urgente de transformar essa visão, e assim
também construir novas atitudes e posturas no trabalho com os pequenos, como a autora diz sobre
“agachar-se” ir ao encontro das crianças onde elas estão, no jeito em que elas são.
Referências
AMARAL, Ana Maria. O ator e seus duplos: máscaras, bonecos. 2ª ed. São Paulo: Senac, 2004.
CABRERA, Theda. A maturação da capacidade de metamorfose no jogo mimicry. Revista Urdimento, v.2,
n.27, Dezembro 2016.
______. Educação como Poiesis: o trabalho sobre si por meio da dramatização. ILINX Revista do Lume, n.
13, 2018.
FALKEMBACH, Maria Fonseca; FERREIRA, Taís. Teatro e Dança nos anos iniciais. São Paulo: Mediação,
2012.
IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Cultural. Dossiê Interpretativo. Registro do teatro de
bonecos popular do Nordeste: Mamulengo, Cassimiro Coco, Babau e João Redondo. Brasília, IPHAN, 2014.
LOPES, Joana. Pega Teatro. 3 ed. Bragança Paulista, SP: Urutau, 2017.
MACHADO, Marina Marcondes. Fenomenologia e Infância: o direito da criança a ser o que ela é. Revista
Educação Pública. Cuiabá – MT. v. 22, n. 49/1. p. Maio-agosto/2013.
______. A criança é performer. Revista Educação & Realidade. Porto Alegre, RS. v. 35. p. maio/agosto 2010.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 3. Ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2011.