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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

MARCIO GOLDMAN

A POSSESSÃO E A CONSTRUÇÃO RITUAL

DA PESSOA NO CANDOMBLÉ

RIO DE JANEIRO

1984
MARCIO GOLDMAN

A POSSESSÃO E A CONSTRUÇÃO RITUAL

DA PESSOA NO CANDOMBLÉ

Dissertação de mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Antropologia Social do Museu Nacional

da Universidade Federal do Rio de

Janeiro.

RIO DE JANEIRO

1984
RESUMO

Este trabalho visa desenvolver, em esboço, os princípios de


uma teoria antropológica da possessão. Para isto, toma como
referência empírica o modo de manifestação do êxtase nos chamados
cultos afro-brasileiros, especialmente no Candomblé, e tenta a
partir daí estabelecer qual é a estrutura básica do transe, bem
como sua posição no campo dos fenômenos ditos religiosos. O
primeiro capítulo é uma revisão bibliográfica das diversas
abordagens sobre a possessão na teoria antropológica geral. Adota-
se uma perspectiva histórica e o recorte é efetuado em termos de
“escolas” do pensamento antropológico. O segundo capítulo cerra
mais a questão, abordando as diferentes teorias elaboradas sobre o
êxtase pelos estudiosos dos cultos afro-brasileiros. A partir de
uma crítica de todas as abordagens da possessão, tanto das mais
gerais quanto daquelas desenvolvidas no Brasil, pretende-se propor
um modelo teórico que não incorra nas principais dificuldades
detectadas nos esquemas analisados. Para isto, apresenta-se no
terceiro capítulo um “esquema etnográfico” dos fatos relativos à
possessão no Candomblé, esquema produzido a partir do confronto
entre a experiência de campo do autor com aquelas fornecidas por
outros estudiosos do tema. Finalmente, o quarto capítulo é
dedicado à tentativa de elaborar uma antropologia da possessão,
tentando ao mesmo tempo definir estruturalmente o Candomblé,
encontrar o lugar do transe em tal estrutura e extrair algumas
conclusões de caráter mais abrangente acerca dos mecanismos de
funcionamento dos sistemas religiosos.
AGRADECIMENTOS

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e


Tecnológico (CNPq) tornou possível minha primeira experiência de
campo com o Candomblé através de uma série de bolsas de pesquisa
que financiaram meu trabalho em Tribobó. A Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal (CAPES) do MEC possibilitou
materialmente a conclusão dos créditos do Mestrado através da
concessão de bolsas de estudo. A Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (juntamente com a
Fundação Ford) forneceu a Dotação de Pesquisa essencial para o
trabalho de campo em Ilhéus. O Gay-Lussac Instituto de Ensino
Superior (GLIESP) assumiu as despesas relativas à datilografia e à
reprodução deste trabalho. A todos estes órgãos e instituições,
bem como ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Museu Nacional, devo portanto o suporte material que tornou
exeqüível esta dissertação. Agradeço também à Marisa pela
cuidadosa datilografia dos originais.
Versões preliminares do primeiro e do quarto capítulos foram
apresentadas em cursos dos professores Gilberto Velho e Luís
Fernando Dias Duarte, respectivamente; a eles agradeço portanto a
oportunidade para determinar, de modo abrangente, o objeto teórico
e o ponto de vista adotados nessa dissertação. Foram contudo, sem
dúvida, as inúmeras conversas com Ovídio Abreu Filho que
alargaram, esclareceram e precisaram este objeto e este ponto de
vista, fornecendo, em parte, a este trabalho sua forma e postura
finais. É preciso também registrar minha enorme gratidão ao Dr.
Roberto Augusto da Matta, pela atenção amiga com que me honrou;
infelizmente não me foi possível dedicar aqui a devida atenção a
seus trabalhos, reconhecidamente importantes, sobre ritual e
pessoa. E isso, sem dúvida, devido às óbvias diferenças existentes
ii

entre o nível em que eles se situam e aquele, muito mais limitado,


que me contentei em adotar aqui. Agradeço também ao Dr. Peter Fry
por ter aceito participar da banca examinadora desta dissertação.
A meu orientador de curso e de dissertação, Eduardo Viveiros
de Castro, agradeço não apenas indicações e sugestões importantes
para a realização desta dissertação, mas também, e acima de tudo,
o fato de ter me oferecido um elemento essencial para o
desenvolvimento de qualquer trabalho intelectual — a liberdade de
pensar e, consequentemente, de errar, no duplo sentido da palavra,
sozinho; virtude que o exime, evidentemente, de qualquer
responsabilidade pelas hipóteses aqui levantadas.
Nivaldo Pereira Bastos, Camuluaji, zelador-de-santo do Ilê
de Obaluaiê em Tribobó, ofereceu meu primeiro acesso ao complexo
universo simbólico do Candomblé, sendo um dos responsáveis diretos
pelo fato de eu ter por ele me interessado teoricamente. Depois
dele, Dona Ilza Rodrigues, Mametu Mucalê, mãe-de-santo do terreiro
Tombenci de Euá, em Ilhéus, mostrou-me que o Candomblé é muito
mais que um sistema cosmológico ou mesmo uma religião, mostrou-me
que ele é também uma prática e um modo de vida. A estes dois
Vodunsis que me honraram com seu saber, sua dedicação, sua
paciência e, sobretudo, com sua amizade, devo o pouco que conheço
de sua religião.
Em Ilhéus, foi imprescindível o apoio de Líscia Martins e de
toda sua família, bem como o de Mário Gusmão e Valdir Silva que me
conduziram ao Tombenci. Também foi inestimável o auxílio e a
amizade dos membros deste terreiro, especialmente a de Gilmar e
Gilvan. A todos eles é difícil agradecer, pelo muito que fizeram.
A Wagner Neves Rocha devo, além de uma amizade profunda, o
interesse teórico pelos cultos afro-brasileiros. Durante três anos
fui seu assistente de pesquisa, e quase tudo do que é dito nesta
dissertação foi por ele sugerido. No entanto minha incapacidade
para desenvolver suas idéias e sugestões com a sofisticação
iii

teórica com que foram propostas me faz lamentar que este trabalho
não faça, nem de perto, justiça ao que ele me ensinou.
Finalmente, há alguém que, ao lado das instituições citadas,
também contribuiu materialmente para este trabalho; que, junto às
pessoas mencionadas, me ajudou a entender a Antropologia e o
próprio pensamento teórico; que, melhor do que eu, captou junto
aos informantes o sentido do Candomblé. Por tudo isso, eu deveria
também agradecer a ela. Mas porque ela me ofereceu muito mais do
que isso, este trabalho é a ela dedicado.
Para Tânia, portanto.
APRESENTAÇÃO E INTRODUÇÃO

Kuba ki kutexi ê,
Kuenda ki kujimbirilê1

Se é verdade, como disse Lévi-Strauss, que o modo particular


como cada investigador pensa e escreve pode abrir novas
perspectivas de estudo, creio ser importante no início deste
trabalho precisar este meu “modo de pensar”, bem como as
contingências pessoais e intelectuais que conduziram à elaboração
desta dissertação. Desse modo será possível esclarecer
preliminarmente uma série de questões que o desenrolar do trabalho
inevitavelmente colocará. Daí “apresentação” e “introdução” virem
juntas.
O ponto de partida desta dissertação está localizado numa
pesquisa efetuada entre 1978 e 1980, sob orientação e coordenação
de Wagner Neves Rocha, num pequeno terreiro de Candomblé de nação
Angola situado em Tribobó, nos arredores de Niterói — o Ilê do
Obaluaiê. Havendo três assistentes de pesquisa, o trabalho foi
dividido, de modo mais ou menos aleatório, entre nós, tendo tocado
a mim a coleta e análise de dados relativos ao transe e à
possessão, bem como daqueles relacionados a estes fenômenos.
Assim, comecei a me interessar por esta questão e dediquei um bom
tempo à leitura das teorias antropológicas sobre o tema, e também
aos trabalhos relativos aos cultos afro-brasileiros e ao lugar da
possessão em seu interior. Esta leitura, que acabou gerando os
dois primeiros capítulos deste trabalho, teve simultaneamente o
efeito de demonstrar a existência de um rico universo simbólico

1 Dar não é desperdiçar; andar não é perder-se (dito do


Candomblé).
2

conectado ao êxtase, e a produção de uma sensação de insatisfação


generalizada. Insatisfação devida basicamente à disparidade que
parecia existir entre os dados relativos à possessão — de uma
riqueza extraordinária — e as teorias básicas simplificadoras que
procuravam deles dar conta. Assim, acabei constatando a existência
de não mais de dois modelos explicativos para o êxtase, seja entre
os autores que estudaram especificamente os cultos afro-
brasileiros, seja entre aqueles que dedicados à análise do
fenômeno em outros grupos e sociedades, ou mesmo interessados no
desenvolvimento de um modelo geral de explicação.
O primeiro modelo reduzia a possessão à doença, ora tratando-
a diretamente como enfermidade mesmo (geralmente doença mental),
ora concedendo-lhe o estatuto de forma de tratamento “pré-médico”
para perturbações psico-fisiológicas. Já a segunda via explicativa
buscava antes dar conta do êxtase tentando vê-lo, e ao culto que o
encerra, como um reflexo — direto ou invertido, dependendo do
autor em questão — da “estrutura social” abrangente. Os dois
modelos me pareceram bastante decepcionantes. Não, certamente,
porque estivessem intrinsecamente errados: eu conhecia
concretamente, em minha experiência de campo, as ligações entre
possessão, doença e manipulação sócio-política. A questão parecia
ser antes, como eu havia aprendido na obra de Lévi-Strauss, que
estas abordagens apenas contornam o fenômeno visado. Ora, eu
também havia aprendido como este autor que a análise das
implicações, históricas ou sociológicas, de um fato social devia
ser precedida pela determinação de sua estrutura última. Era
justamente isto que as teorias propostas não conseguiam atingir.
O problema me parecia teoricamente ainda mais grave na medida
em que era possível constatar que, no que diz respeito aos estudos
afro-brasileiros, uma espécie de bifurcação teórica havia se
produzido, com o tempo, em seu direcionamento. Pois se os autores
mais antigos, a despeito do evolucionismo e do racismo contidos em
3

seu modo de estudar os cultos, ainda pareciam crer na


possibilidade de uma análise teórica do material coletado, isto
não parecia ocorrer mais a partir da década de 70. Alguns
pesquisadores contentavam-se em descrever o sistema da melhor
maneira possível, chegando mesmo a sustentar a impossibilidade de
um trabalho teórico que não “violentasse” a riqueza e a
especificidade do universo estudado. Tratava-se então do que se
convencionou chamar uma “visão de dentro”. Por outro lado, os
estudos de caráter mais sociológico ou micro-sociológico (estudos
de federações, dramas, acusações etc.) só se interessavam pelas
ligações exteriores do culto sem se preocupar muito com sua
sistematicidade específica. Pareceu-me assim que faltava uma
abordagem antropológica da questão, na medida em que a
Antropologia moderna se caracteriza, creio, justamente em unir o
que as duas perspectivas mencionadas separam: dar conta
teoricamente, isto é, num plano distinto do vivido pelos
informantes, de um conjunto de dados que devem contudo ser
integralmente respeitados em sua particularidade. Em outros
termos, trata-se sempre de fundir “explicação” e “compreensão”.
A pesquisa no Ilê de Obaluaiê levou-me primeiramente a supor
que a chave explicativa do Candomblé, de um ponto de vista
estritamente antropológico, poderia ser encontrada no sistema de
classificação e na cosmologia adotados no culto. Para isso
contribuíram certamente alguns caracteres pessoais do pai-de-santo
do terreiro, nosso principal informante, e homem dedicado a
elucubrações místicas e à construção de intrincados sistemas
cosmológicos. Não que ele os tivesse prontos, ou que se tratasse
de pura invenção pessoal: os esquemas eram flagrantemente
construídos ao longo das entrevistas e conversas, e
progressivamente aperfeiçoados. Por outro lado, não se deve supor
que isto retire de tais esquemas todo valor etnográfico. Ao
contrário, são documentos importantes na medida em que, embora
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sintetizados individualmente, são “bricolados” a partir de um


conjunto e de uma estrutura tradicionais. Não sendo o Candomblé
uma religião codificada, eles fornecem uma das únicas vias de
acesso possíveis a seu sistema de pensamento. É inclusive com este
espírito que eles são utilizados no terceiro capítulo deste
trabalho. No entanto, esta peculiaridade demonstrava — o que só
fui perceber bem depois — a quase inexistência de grandes sistemas
cosmológicos prontos e acabados no Candomblé, ponto freqüentemente
desconhecido ou mal interpretado pelos pesquisadores que trabalham
com os pouquíssimos centros de culto onde tais esquemas parecem de
fato existir e desempenhar uma função importante. E, apesar disto,
trata-se, como veremos, de ponto fundamental para a compreensão de
todo o sistema.
Esta impressão só foi de fato confirmada quando de minha
segunda experiência de campo, no terreiro Tombenci de Euá, em
Ilhéus, no sul da Bahia. Tendo permanecido ali apenas três meses
(contra os quatro anos no Ilê de Obaluaiê), o contato com o grupo
foi muito mais intensivo do que na pesquisa anterior, o que tornou
possível compreender que a essência última do Candomblé devia ser
buscada em outra parte que não sem sua cosmologia ou mitologia. O
Tombenci é um terreiro muito diferente do Ilê de Obaluaiê. Trata-
se de um centro “familiar” cuja mãe-de-santo já faz parte da
terceira geração no comando, e cuja organização repousa sobre os
quatorze filhos carnais da chefe do terreiro e em sua parentela.
Assim, em Ilhéus ressaltava muito mais o aspecto vivido do
Candomblé, enquanto em Tribobó sua faceta litúrgica era muito mais
pronunciada. Além disso, e de modo talvez coerente com sua ênfase
no vivido, a mãe-de-santo do Tombenci não parecia muito preocupada
com detalhes de doutrina ou cosmologia; seu interesse se voltava
marcadamente para o lado ritual do culto. Isto começou a me fazer
levar a sério a afirmativa, ouvida por todo pesquisador de
Candomblé, de que o importante nesta religião é o “saber fazer” os
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rituais, saber secretíssimo a que só têm acesso os iniciados, e


que as informações dadas aos estudiosos — relativas geralmente à
cosmologia, mitologia e classificação de animais, plantas, etc. —
não passam de superfície visível de realidades muito mais
profundas.
Assim, se minha primeira experiência de campo muniu-me de
informações essenciais para a compreensão da estrutura do culto, a
segunda funcionou antes fazendo-me experimentar a realidade vivida
do Candomblé, consistindo portanto muito mais num “trabalho de
campo” no sentido clássico do termo. Foi este trabalho então que,
ao produzir, em escala minorada, este “choque cultural” de que
falam os etnógrafos, me permitiu a leitura crítica de outras
etnografias acerca desta religião. Pois ainda que não haja termo
de comparação entre a pesquisa em sociedades indígenas e a
experiência com o Candomblé, esta última é também a única forma de
ensinar uma perspectiva crítica na consideração de dados
fornecidos por outros pesquisadores. Deste modo, e ainda que este
trabalho não seja uma “etnografia”, a pesquisa de campo foi
essencial para sua elaboração.
Através do confronto entre minhas próprias experiências de
campo e as leituras teóricas e etnográficas que eu efetuava
paralelamente, o plano desta dissertação foi então sendo
precisado. A primeira intenção foi basicamente produzir uma
etnografia do terreiro de Ilhéus e tentar analisá-la da melhor
forma possível. Esta possibilidade contudo logo se afigurou
desanimadora. Em parte, é preciso confessá-lo, devido a uma certa
resistência pessoal a um trabalho estritamente empírico; mas em
parte também, e principalmente espero, em função de uma sensação
de certa inutilidade que este tipo de trabalho provocava. Durante
as leituras acerca dos cultos afro-brasileiros, impressionou-me
sempre a insistência dos autores em apontar a enorme diversidade
que marcaria as manifestações empíricas destas religiões.
6

Sustenta-se que a cosmologia e o ritual variam enormemente de tipo


de culto a tipo de culto, e mesmo de terreiro a terreiro. Ora,
minha experiência em Ilhéus, bem como a consulta às etnografias,
causou-me a impressão de que o inverso parecia mais verdadeiro.
Pois o que impressiona de fato é que uma religião não codificada
formalmente e que, estruturalmente, dá margem a uma enorme gama de
sínteses específicas, pudesse ser tão semelhante no Rio de
Janeiro, em Ilhéus, em Salvador, e em tantas outras partes. Deste
modo, compreendi que uma etnografia corria o risco de não passar
de pura repetição, acrescentada de alguns dados novos, daquilo que
tantos outros já haviam feito — e certamente bem melhor do que eu.
O segundo plano de elaboração do trabalho foi então imaginado
no extremo oposto do precedente. Pretendi neste momento elaborar
uma “análise estrutural” do Candomblé: tomar os sistemas de
classificação aí em vigor como estruturas lógicas e desvendar as
leis ocultas que presidiriam a manifestação concreta de tais
sistemas. A leitura do importante trabalho de Claude Lépine
(Lépine, 1978 — este trabalho será analisado no Capítulo IV)
colocou contudo uma série de dúvidas a respeito da viabilidade de
um tal empreendimento. Não que, teoricamente, ele não seja
possível, e Lépine consegue mesmo alguns resultados admiráveis. No
entanto, e é o próprio Lévi-Strauss que o sustenta, a despeito dos
críticos cegos para este ponto, o que distingue o estruturalismo
do puro formalismo é o rigoroso respeito que o primeiro é obrigado
a demonstrar frente aos dados empíricos e etnográficos. Isto
porque é só o texto etnográfico que pode fornecer a posição
semântica de símbolos que, por possuírem por definição um
significado estritamente relacional, apenas aí podem ter seu
sentido último desvendado. Neste caso, para legitimar uma
abordagem estruturalista do Candomblé, seríamos obrigados a
indagar qual é seu “contexto etnográfico”. Seria ele africano?
Brasileiro? E neste caso, qual? Baiano; Carioca, etc.? A pergunta
7

assume um ar tão estranho que é fácil perceber que a resposta é


obviamente impossível porque, submetido, a partir do processo de
escravização, a um complexo jogo histórico, o Candomblé consiste
de fato numa síntese de diversos elementos de procedências
díspares. Assim, para que uma verdadeira análise estrutural — e
não formal — desse sistema seja possível um longo trabalho
histórico teria antes que ser efetuado, através do estudo
cuidadoso das formas de manifestação das religiões de origem
africana em seu solo natal, das transformações introduzidas pela
escravização, daquelas produzidas com a abolição, com a
industrialização, etc. E ainda assim seria preciso distinguir
níveis, regiões de proveniência e de adaptação, misturas com
outros sistemas, e assim por diante. Só desse modo um “contexto”
poderia ser reestabelecido sem jamais termos a certeza de que as
coisas teriam se passado efetivamente desta maneira e não de outra
qualquer. O célebre trabalho de Roger Bastide (Bastide, 1960)
demonstra, para além de suas virtudes incontestáveis, a
dificuldade empírica — devida fundamentalmente a uma generalizada
escassez de documentos — de um tal empreendimento.
Finalmente, após estas duas tentativas, o plano do trabalho
se precisou. Situei-o num nível intermediário aos dois
precedentes, decidindo que seria mais proveitoso tomar um traço
específico do culto — o transe, traço central — e elaborá-lo o
máximo possível no sentido de conectá-lo com um teoria
antropológica. Esta dissertação não é portanto nem uma etnografia
nem uma etnologia, no sentido dado por Lévi-Strauss a estes
termos. Ou seja, não se trata nem da coleta e descrição de dados
relativos a um terreiro de Candomblé particular (muito menos ao
Candomblé em geral), nem da análise particular de tais dados.
Tenho de fato a pretensão de ter escrito um trabalho de
Antropologia, no sentido da construção de uma teoria geral de
determinada instituição cultural. Esta teoria geral, é verdade,
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está apenas esboçada, mas creio que esta dissertação só pode ser
compreendida se este pressuposto for levado em consideração. Caso
contrário, correrá o risco de ser julgada não pelo que pretende
ser, mas pelo que “deveria” ter feito, o que não seria muito justo
ou proveitoso.
Sendo assim, e embora a influência da obra de Lévi-Strauss
seja aqui evidente, seria errôneo, e mesmo, até certo ponto,
ridículo, rotular como “estruturalista” este trabalho. Ele se
situa muitíssimo aquém de uma tal ambição e visa simplesmente
esclarecer, do ponto de vista da Antropologia, a questão do êxtase
religioso, e, ao mesmo tempo, utilizar as manifestações concretas
do transe para repensar algumas questões chaves da Antropologia.
Eis tudo.
Estas colocações explicam, creio, o plano concreto desta
dissertação que procura seguir o mais próximo possível a ordem de
constituição de minhas hipóteses acerca do fenômeno investigado. O
primeiro capítulo é uma resenha, bastante abrangente, das
diferentes teorias antropológicas a respeito da possessão. O
recorte foi conscientemente efetuado em termos de “escolas” do
pensamento antropológico, colocadas segundo uma ordenação
histórica simples. Esta perspectiva, ainda que tenha alguns
inconvenientes, serviu para isolar os temas básicos que têm, de
Tylor a Luc de Heusch, direcionado os estudos antropológicos sobre
o êxtase religioso em suas diferentes formas de manifestação.
A partir da caracterização de duas vertentes básicas de
explicação — uma “medicalizante” e outra “sociologizante” — o
segundo capítulo procura investigar se e como estes dois modelos
se manifestam no caso das análises acerca do transe nos chamados
cultos afro-brasileiros. Constatando que estas análises
correspondem exatamente às teorias mais gerais sobre o fenômeno,
uma tentativa de crítica é elaborada, crítica que leva a precisar
o tipo de abordagem que se pretende adotar bem como o alvo visado.
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Isto significa que estes dois primeiros capítulos não são nem uma
análise de “campo intelectual”, nem uma simples “história das
idéias”, nem mesmo uma “arqueologia” desta área do saber. Trata-se
apenas de, através de uma leitura crítica de autores clássicos
(que me parece imprescindível numa dissertação de Mestrado),
determinar o objeto teórico a ser investigado e o tipo de análise
a ser utilizado em tal investigação2.
Mas para que a análise teórica, esboçada no Capítulo IV,
ficasse clara e pudesse ser compreendida, o terceiro capítulo teve
de ser elaborado para fornecer os dados essenciais a partir dos
quais foram formuladas as hipóteses do capítulo seguinte. Não se
trata portanto — e este ponto é importante — de uma etnografia,
mas do que se poderia chamar um “esquema etnográfico” visando
ilustrar uma análise teórica. Os dados aí utilizados foram
coletados basicamente no Ilê de Obaluaiê porque, como já foi dito,
o material doutrinário daí proveniente é mais abundante e rico em
detalhes. Acredito, apesar disto, que as conclusões teóricas

2 Notar-se-á uma diferença de estilo na apresentação das teses


mais gerais acerca da possessão, efetuada no Capítulo I, e aquela
das teorias desenvolvidas sobre os cultos afro-brasileiros
especificamente, desenvolvida no capítulo seguinte. Neste último
caso, com efeito, as citações diretas serão mais freqüentes e mais
extensas, enquanto no primeiro será privilegiada uma forma mais
direta de exposição. Isto se deve a um duplo motivo: em primeiro
lugar porque há um esforço de aproximação no segundo capítulo, uma
tentativa de tratar mais de perto a questão do transe; em segundo,
porque — e isto não constitui a meu ver nenhum demérito — os
autores que trataram do êxtase no Brasil não apresentam nem a
sistematicidade nem o caráter explicitamente teórico daqueles que
tentaram esboçar uma teoria geral da possessão, o que se explica,
evidentemente, pela própria diferença de nível de abstração que se
pretende atingir em cada caso.
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apresentadas no Capítulo IV possuem uma validade bem mais ampla do


que a estreita base empírica apresentada. Pois embora possa haver,
e haja efetivamente, diferenças importantes de terreiro para
terreiro, tais diferenças não passam de manifestações concretas de
um esquema básico que permeia todas estas realizações empíricas. A
experiência no Tombenci de Ilhéus e a leitura das monografias
sobre vários terreiros convenceram-me que o modo pelo qual a
possessão foi encarada tem uma aplicabilidade bastante abrangente,
desde que se o aplique num nível mais profundo do que a pura
superfície dos dados brutos.
Estas últimas observações conduzem diretamente a um dos temas
recorrentes na literatura acerca dos cultos afro-brasileiros, a
questão da “pureza” dos terreiros investigados e do material
coletado. Por “pureza” entende-se geralmente uma maior ortodoxia
em relação à tradição africana, e neste sentido os centros por mim
investigados seriam considerados “impuros” por serem, ambos, de
nação Angola (vista tradicionalmente como sincrética, em oposição
à pureza Nagô e, em menor escala, Gêge) e por conterem elementos
nitidamente extraídos de cultos como a Umbanda e mesmo o
Kardecismo.
No entanto, se aceitarmos que o critério distintivo entre o
Candomblé e os demais cultos de procedência africana, ou a eles
mesclados, é a possessão por divindades ligadas à natureza (os
Orixás), e não por espíritos de mortos ou “encantados”, os
terreiros aqui em questão são de Candomblé e se opõem, explícita e
conscientemente à Umbanda, por exemplo. A partir deste ponto
contudo as coisas começam a ficar mais confusas. Como determinar
como isenção o que é “puro” ou “impuro”? E ainda que isto seja
possível, através de um confronto — sempre parcial e suspeito,
aliás — com realidades africanas, qual a utilidade teórica de uma
tal distinção? Não seria ela apenas uma certa forma de
etnocentrismo, praticada meio às avessas? Uma recente polêmica
11

opondo Juana Elbein dos Santos e Pierre Verger, dois guardiães da


ortodoxia afro-brasileira, pôs a nu o caráter falacioso de uma tal
questão. Pois percebe-se claramente aí que neste ponto, para
retomar literalmente uma expressão popular, cada um faz sua
África. A partir daí não é difícil reivindicar, sempre de modo
legítimo então, uma maior proximidade em relação a ela. Talvez
estas reivindicações possam apresentar um interesse político
qualquer, o que ainda é duvidoso. Mas para quem pretende uma
abordagem teórica elas não possuem, é evidente, qualquer sentido
ou utilidade.
Este é o motivo pelo qual não me preocupei aqui com
transcrições fonéticas precisas. Os Orixás e seu culto fazem parte
certamente da realidade brasileira, e seus nomes e conceitos a
eles ligados estão inteiramente integrados à língua portuguesa. As
especificidades aí existentes são as mesmas observáveis em
qualquer dialeto regional, com a diferença de possuírem um sentido
eminentemente religioso. Grafo tais nomes e conceitos portanto
utilizando a transcrição clássica utilizada desde Nina Rodrigues.
Outra sutileza que não causará preocupação aqui é a distinção
entre termos como “possessão”, “transe”, “êxtase”, etc. Existe uma
série de tipologias, variáveis aliás de autor para autor (a mais
detalhada pode ser encontrada, creio, em Rouget, 1980: 25-102), e
elas são certamente válidas na medida em que distinguem realidades
que não se justapõem com exatidão. Como a pretensão aqui não é
taxonômica, mas analítica, deixei de lado estas sofisticações e
utilizei os termos do mesmo modo que os fiéis do culto o fazem, ou
seja, como denominações intercambiáveis.
Vê-se então que este trabalho situa-se no cruzamento de uma
série de experiências bastante pessoais: trabalhos de campo
específicos, preferências teóricas, certa forma de entender o que
é a Antropologia e qual sua tarefa teórica, etc. Desse modo, as
várias críticas aqui propostas contra visões teóricas e autores
12

não têm evidentemente um sentido pejorativo, nem mesmo pretendem


desqualificar o ponto de vista visado. Trata-se antes de um
exercício para tentar pensar a possessão, o Candomblé e, de um
modo ínfimo, a própria Antropologia, de uma maneira alternativa.
Trata-se então de utilizar certas predisposições pessoais para
tentar esboçar uma nova perspectiva de abordagem sobre a possessão
e sobre todo o mundo do Candomblé.
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CAPÍTULO I

A POSSESSÃO NA ANTROPOLOGIA

1. Introdução

Em 1655, dois missionários capuchinhos italianos, os padres


Giovanni Antonio Cavazzi da Montecaccolo e Antonio de Gaeta, são
capturados pela então rainha de Angola, conhecida por Nzinga,
nascida em 1582 e convertida ao cristianismo em 1622, no curso de
uma tentativa de negociação com os portugueses levada a cabo por
seu irmão e antecessor no trono, Ngola Mbandi. Negociação
fracassada, o rei angolano prossegue sua guerra contra Portugal
até 1627, ano de sua morte. Nzinga assume então o poder, renega a
fé cristã e segue guerreando os portugueses de forma ainda mais
encarniçada que seu irmão. Adere mesmo ao clã “antropofágico” dos
Jagga, cujos membros professam um culto aos antepassados que se
manifestam possuindo feiticeiros conhecidos como singhilli. Nzinga
dedica especial devoção ao espírito de seu irmão morto, de quem
ela conserva os ossos em uma caixa de prata.
Ao receber os capuchinhos italianos capturados, Nzinga
decide, devido a uma mistura de fé religiosa e razões de Estado,
tornar-se cristã novamente. Para isso, contudo, crê dever
consultar cinco feiticeiros singhilli através de quem cinco
antepassados deverão dizer se lhe é permitido ou não abolir a lei
dos Jagga. Os quatro primeiros espíritos (Kasa, Casange, Chinda,
Calanda) afirmam pouco lhes importar a rainha tornar-se cristã
novamente e deixar de honrá-los, tais honrarias não lhes estariam
fazendo qualquer falta. De qualquer forma, sustentam eles, os
demais Jagga continuariam adorando-os. Mas a última palavra cabe
ao quinto dos espíritos, justamente Ngola Mbandi, irmão e
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predecessor da rainha no trono. Este, para o espanto final dos


missionários, autoriza Nzinga a fazer o que lhe aprouver e,
inclusive, a abandonar seu esqueleto e a adoração a ele dedicada
por ela, que poderia mesmo desfazer-se da caixa de prata.
Três anos mais tarde, um novo caso de possessão pelos
antepassados confirmará para os padres aquilo de que já
suspeitavam. Em 1656, o padre Antonio de Gaeta retorna à corte da
rainha Nzinga, realiza sua segunda conversão e, junto a ela,
começa a introduzir a vida cristã na aldeia: igrejas e cemitérios
são construídos, um tratado de paz com os portugueses é concluído.
Em 1658, contudo, a rainha faz trazer à presença do missionário um
feiticeiro singhilli que, possuído, estaria provocando enormes
distúrbios na aldeia. O capuchinho o enfrenta de modo inequívoco —
através do exorcismo. Instigado, o possesso sustenta que seu nome
é Ngola Mbandi, o irmão morto de Nzinga. Esta deseja matá-lo como
farsante, mas o padre, querendo demonstrar o poder da fé e a força
da Igreja, proíbe a execução e procede aos rituais de exorcismo. O
feiticeiro se debate, atirando-se ao solo, rugindo, reafirmando
sua pretensa identidade, até que num arremate final escapa da
igreja mergulhando em uma profunda fossa, queda que o mataria
algumas horas mais tarde.
Ao padre Gaeta não resta nenhuma dúvida sobre o acontecido.
Os dois episódios por ele presenciados, o de 1655 com os cinco
singhilli e o de 1658 com o possesso suicida, nada mais teriam
consistido, em sua interpretação, do que em conflitos entre a
verdadeira e a falsa fé, entre Deus e o Demônio. Este último, para
atingir seus objetivos, assume as mais variadas formas, entre elas
as falsas divindades cultuadas pelos primitivos. Forçado pelo
representante de Deus, não tem outra alternativa: diz a Verdade
curvando-se aos poderes sagrados, ou, ao recusá-lo, termina por
15

aniquilar o corpo que o abriga. Tal teria ocorrido respectivamente


em 1655 e em 16583.
Cerca de meio século antes destes acontecimentos africanos,
a pequena cidade de Loudun, na França, havia sido palco de um
teatro semelhante embora, sem dúvida, muito mais espetacular. Uma
dezena de irmãs ursulinas do convento da cidade são consideradas
possuídas pelos demônios e resistem a todas as tentativas de
exorcismo que se estendem por nove longos anos, de 1632 a 1640.
Durante estes anos, o cura da aldeia será queimado como
feiticeiro, a Igreja voltará toda sua atenção para o estranho
fenômeno, e, finalmente, a principal das possuídas, Madre Joana
dos Anjos, liberta da influência satânica pelo exorcista Surin,
encontrará a glória como visionária mística, vagando e se
mostrando por todas as paróquias francesas e, depois, por toda a
Europa (cf. Certeau, 1970).
Estes dois acontecimentos, tão próximos no tempo quanto
afastados no espaço, não são evidentemente estranhos um ao outro.
Seu confronto pode nos sugerir algo. A “possessão de Loudun” não
foi nem o primeiro nem o último ato de um enorme ciclo místico que
varre a Europa nos séculos XVI e XVII. Feiticeiros e possessos,
bem como seus algozes e exorcistas, marcam profundamente estes
duzentos anos da história européia. Mas estes personagens não são
tampouco os iniciadores desta longa e equívoca cumplicidade que o
Ocidente demonstra frente aos fenômenos extáticos. Dois mil anos
antes de Loudun, os sacerdotes levitas, em seu esforço pela
centralização do culto de Yahvé, se dedicavam a um combate contra
videntes, profetas, orgiásticos, todos aqueles enfim que se

3 A estória da rainha Nzinga, seu irmão e seus catequistas, foi


publicada de forma independente pelos padres Gaeta e Cavazzi em
1669 e 1690, respectivamente. O resumo aqui utilizado é o do padre
Laurent Kilger (cf. Kilger, 1948: 122-129).
16

atreviam a um contato direto, não mediatizado pelas instituições


sagradas, com as potências divinas (cf. Weber, 1970: cap. I).
Nesta mesma época, e ainda na bacia mediterrânea, o controle da
verdade passava, na Grécia Antiga, das mãos dos místicos, poetas e
videntes para aquelas do homem sóbrio, com domínio pleno de sua
vontade, o filósofo (cf. Cornford, 1975: 1a parte; Detienne, 1967:
caps. I e IV).
Os conflitos envolvendo a possessão na Judéia e na Grécia
antigas podem ilustrar em boa medida algumas das razões da
exclusão que o Ocidente tem imposto, ao longo dos tempos, àqueles
que buscam a experiência direta do sagrado, tendo como único
intermediário seu próprio corpo. Em primeiro lugar, o exemplo
judaico demonstra que a forma específica de desenvolvimento das
instituições religiosas ocidentais, através de uma centralização
progressiva, faz com que o monopólio da relação com as forças
sagradas se encontre irremediavelmente ameaçado pelo simples
reconhecimento de que esta relação poderia se efetuar por outros
meios que não aqueles institucionalmente previstos e recomendados.
E, mais do que isso, correr-se-ia o risco de ver a palavra divina
apresentada diretamente, quando sua legitimidade só é reconhecida
quando representada por um corpo sacerdotal institucionalizado e
hierarquizado. De fato, na tradição judaico-cristã, a revelação se
faz apenas uma vez, ou no máximo algumas vezes e sempre nos tempos
bíblicos, e a partir deste momento só pode ser (re)transmitida por
quem possui o direito de fazê-lo. As revelações trazidas pela
possessão, ao contrário, são contínuas, repetem-se
indefinidamente, podem variar, e seus portadores podem ser, ao
menos virtualmente, qualquer um.
Por outro lado, o caso grego ilustra uma outra antinomia
básica entre certos valores centrais do mundo ocidental e a
experiência do transe. De fato, o possuído é, evidentemente, um
ser unitário e, no entanto, de modo paradoxal, ele é mais do que
17

um. O que fazer então desta “unidade do eu”, tão cara ao Ocidente
e que tem na Grécia, sem dúvida, um de seus focos de origem? Como
aceitar que o “sujeito” possa se colocar fora do domínio de sua
consciência, sem enxergar aí uma manifestação de um estado
“selvagem”, de uma natureza maligna, ou mesmo a irrupção de um
processo patológico? O “energoumenos” grego, o “mente captus”
latino são decididamente colocados do lado da anormalidade, pois
constituem o signo visível de uma impossível, ou inaceitável,
transformação do homem em “outro” (cf. Foucault, 1979: 88).
As formas de êxtase reconhecidas como mais ou menos
legítimas no Ocidente, longe de questionarem essas constatações,
podem, ao contrário, reforçá-las. Pois, de um lado, o possesso
demoníaco está obviamente “fora de si”, “inconsciente”, as faltas
por ele cometidas neste estado não sendo consideradas pecados, e
sendo preciso “salvar sua alma”, ou seja, restituir a unidade
perdida de seu eu. Por outro lado, o místico cristão cuja alma
busca ascender até Deus encara sua trajetória ao mesmo tempo como
ascese e como “mergulho no interior de si”, já que é apenas aí —
São João da Cruz é claro sobre este ponto — que a verdadeira
unidade (com Deus) pode ser encontrada (cf. Saint-Joseph, 1948:
86-87).
A tradição cristã reunirá então as lições provenientes dos
dois universos paralelos, o judaico e o greco-latino. A vidência,
o desdobramento do eu, a possessão, serão codificados sob o signo
do demoníaco e constituirão, ao mesmo tempo, um desafio e um
instrumento para os poderes da Igreja. Desafio porque é imperativo
dar combate, sem tréguas, às manifestações do demônio no mundo;
instrumento porque através deste combate a vontade de Deus é
reafirmada perante os homens:

“Deus permite as possessões, diz São


Boaventura, com a finalidade de manifestar
sua glória, seja através da punição do
18

pecado, da correção do pecador ou para


nossa instrução” (Foucault, 1979: 88-89).

Eis porque o padre Gaeta não pode permitir à rainha Nzinga


executar o feiticeiro singhilli possuído que blasfema contra a fé
cristã. Seu exorcismo lhe servirá, crê o missionário, para mais
uma vez reafirmar a crença verdadeira frente aos pagãos. Assim
havia acontecido três anos antes com os cinco singhilli que acabam
autorizando a conversão da rainha; assim deveria acontecer
novamente. Pois o Demônio é impotente face aos imperativos do
exorcista: acuado, fustigado, termina por ceder e confessar a
verdade, verdade que nada mais é do que seu próprio caráter
ilusório e enganador. É esta também a inevitável conclusão de
Monsenhor Anouilh, missionário francês que visita a China em 1862:

“Le croiriez-vous? Dix villages se sont


convertis. Le diable est furieux et fuit
les cent coups. Il y a eu, pendant les
quinze jours que je viens de prêcher, cinq
ou six possessions. J’ai vu des choses
merveillheuses. Le diable m’est d’un grand
secours pour convertir les païens” (citado
em Tylor, 1913, vol. II: 141 — os grifos
são meus e o trecho encontra-se em francês
no original).

Neste sentido, a partir do que foi sumariamente aqui


colocado, pode-se perceber claramente que o contato, cada vez mais
freqüente a partir do século XVI, entre o Ocidente e as novas
sociedades que a expansão européia põe em seu alcance, está
submetido desde o início a uma codificação mais ou menos precisa.
O encontro como o Outro jamais é inocente; somos conduzidos
através dele por esquemas mentais e culturais pré-existentes que
invariavelmente buscam reduzi-lo a uma manifestação do Mesmo, ou
então a alguma forma de alteridade menos radical e ameaçadora. É
19

exatamente o que parece ocorrer quando o Ocidente se defronta com


sociedades, inúmeras e espalhadas por todo o mundo, onde o transe
e a possessão são fatos, normativa e até estatisticamente,
“normais”. A constatação progressiva de que quase todas as
culturas apresentavam algo de semelhante às “possessões
demoníacas” abria evidentemente a teórica possibilidade do
reconhecimento deste tipo de experiência como inscrita, enquanto
virtualidade, na natureza humana e, por conseguinte, podia levar a
admitir sua normalidade potencial. No entanto, é fácil perceber
que os esquemas mentais ocidentais, culturalmente determinados, só
poderiam conduzir a um resultado diametralmente oposto, atribuindo
estes fenômenos a um tipo de natureza pré-social ou mesmo “pré-
humana”. Assim, como se acreditava que os possuídos pelo Demônio
no Ocidente eram aqueles que não possuíam o controle de si
próprios, ou seja, aqueles que não eram capazes de assumir
plenamente sua cultura — daí a predileção demoníaca pelas
mulheres, “melancólicos” e “insensatos”, aqueles em quem a
“vontade e a piedade” são menos fortes (cf. Foucault, 1968: 20-
21), seres situados então nos limiares da cultura, lá onde esta se
mescla e se confunde perigosamente com a natureza — acreditou-se
também que povos inteiros que se supunha viverem em pleno estado
de natureza estariam, com muito mais razão ainda já que não
dispunham sequer virtualmente dos mecanismos salvadores do
cristianismo, à mercê dos ataques do diabo e de suas incontáveis
falanges.
Ora, é exatamente neste contexto que o saber antropológico é
forjado e se desenvolve num primeiro momento. Não que ele seja
simplesmente o herdeiro da tradição cristã ou mesmo colonial; ou
ainda, que consista numa ciência desenvolvida como justificativa
ideológica da expansão européia, ao mesmo tempo um efeito e um
instrumento seu. Tudo isso já foi repetido inúmeras vezes e é
simplista demais, as coisas se passando, como sempre, de modo um
20

pouco mais complexo. A expansão ocidental, o colonialismo, a


catequese “descobrem” e produzem um objeto particular sobre o qual
se constituirá a futura ciência antropológica. Esta não resulta
portanto de um confronto direto com um objeto real e inerte que
estaria pronto à sua espera, mas sim de um diálogo complexo e
equívoco do qual participam as sociedades “primitivas”, os vários
discursos que o Ocidente vai produzindo a seu respeito e a
respeito de suas diferenças em relação a ele (o discurso do
conquistador, o do colonizador, do administrador, do missionário,
etc.) e a nascente ciência da sociedade. Num tal contexto
histórico e ideológico, não será surpreendente constatar que
muitos dos temas analisados pelos primeiros antropólogos sociais —
alguns deles tendo se tornado objetos “clássicos” para a reflexão
antropológica posterior — provenham não das sociedades que
pretendem analisar, como eles certamente o supõem, mas do
confronto entre estas sociedades e aquela mesma de onde provêm os
cientistas. Estes terminam assim por projetar sobre outros panos
de fundo culturais fenômenos inerentes a seu próprio sistema
social, fenômenos que acabam então por sofrer uma espécie de
difração deformante.
Assim, quando marinheiros portugueses, observando a
“veneração” demonstrada por certas populações africanas face a
determinados objetos inanimados, aproximaram estes objetos dos
talismãs que eles próprios utilizavam e que chamavam de
“feitiços”, teve início a longa história do “conceito” de
fetichismo, alvo de tantos debates no decorrer do desenvolvimento
da Antropologia, e cuja utilização no caso dos cultos afro-
brasileiros é bem conhecida (cf. Tylor, 1913, vol. II: 143). É
óbvio que os navegadores portugueses não estavam apenas projetando
um nome, mas fundamentalmente noções e princípios. É exatamente a
mesma coisa que ocorre quando, após dois séculos de perseguições e
21

fogueiras, os europeus passam a encontrar bruxos, feiticeiras e


possessos entre os “selvagens”.
Esta situação coloca um problema para as investigações da
Antropologia moderna, especialmente no campo da chamada
Antropologia da Religião, já que é nesta área (mas não somente
nela) que este tipo de projeção parece ocorrer com mais
freqüência. Pois é sempre essencial saber se estamos lidando com
objetos dotados de algum grau de realidade, ou se estamos apenas
às voltas com sombras projetadas por nossas próprias luzes sobre
outras telas. Sem dúvida, a dissolução do “conceito” de totemismo
levada a cabo por Lévi-Strauss é o melhor exemplo de denúncia,
crítica e esclarecimento de uma tal perspectiva que pode ser
chamada, com exatidão, de etnocêntrica. Demonstrando que a
substantivação e a particularização da noção de totemismo
desempenhava uma função ideológica ao projetar

“na ordem da natureza modos de cultura que,


se tivessem sido reconhecidos como tais,
teriam logo determinado a particularização
de outros aos quais se atribuía um valor
universal” (Lévi-Strauss, 1975: 14),

Lévi-Strauss acaba por chegar à conclusão de que o pretenso


totemismo não é nada mais do que um caso particular de uma
universal classificatória onipresente nas sociedades humanas, não
podendo servir portanto para individualizar aqueles que o adotam
no seio da humanidade.
Sucederia então, talvez, com a possessão o mesmo que com o
totemismo? Estaríamos condenados irremediavelmente a vê-la se
desvanecer como objeto no momento mesmo em que a isolamos? Seria
possível tratá-la como algo menos brutal do que uma força selvagem
que individualiza e põe à parte aqueles que a experimentam?
Estaríamos às voltas enfim com uma espécie de “ilusão extática”?
Responder a estas questões significa, creio, colocar-se na via de
22

uma explicação verdadeiramente antropológica para o transe.


Observamos anteriormente, de modo excessivamente sumário, como não
poderia deixar de ser aqui, que a possessão exerce um estranho
fascínio, misto de atração e repugnância, sobre a cultura
ocidental; vimos também, rapidamente, que num primeiro momento ela
foi interpretada de acordo com a concepção cristã da possessão
demoníaca. Gostaria agora de interrogar os efeitos que este tipo
de relação e este tipo de interpretação primeiras do transe
exerceram sobre a constituição de um saber antropológico a
respeito deste fenômeno. Para isto, apresentarei como as
principais “correntes” de pensamento antropológico refletiram e
teorizaram acerca da possessão.

2. O Evolucionismo e a Possessão

É por demais sabido que a Antropologia Social ou Cultural se


constitui em torno de um debate entre a natureza biológica do
Homem e suas modalidades de existência cultural. A articulação
entre o reconhecimento da unidade da primeira e a constatação da
diversidade da segunda constitui, em última análise, o solo
epistemológico desta ciência. Neste sentido, pode-se supor que as
diferentes maneiras de fazer funcionar esta articulação entre
unidade bio-psicológica da espécie e diversidade cultural
constituem a base de diferenciação das diversas tradições e
teorias antropológicas.
Até meados do século XIX, os filósofos contentavam-se em
explicar a diversidade cultural através do postulado da existência
de uma diversidade paralela no plano biológico ou geográfico, ou
então, admitindo a unidade última destes planos, em aceitar o fato
das diferenças sociais sem se preocupar muito com sua
fundamentação e explicação teóricas. Foi basicamente com Morgan e
23

Tylor, a partir de 1860, que uma Antropologia que se pretende


científica começa a se esboçar, sob o signo, sabe-se, de um
problemático conceito de “evolução social”. Pressupondo que a
diversidade cultural empírica não passasse de uma máscara que
ocultava a verdadeira unidade da “Humanidade”, não constituindo
mais que uma defasagem no tempo entre as várias sociedades, os
autores evolucionistas buscavam não apenas classificar estas
sociedades de acordo com alguns esquemas evolutivos, mas
fundamentalmente tentavam construir estes esquemas. Ora, construir
uma escala, qualquer que ela seja, supõe um padrão, padrão que não
poderia deixar de ser constituído pelos valores e ideais próprios
à sociedade ocidental do final do século XIX, mais
especificamente, à Europa vitoriana. Assim, um autor como Morgan,
que trata de esboçar a evolução global da humanidade de uma “idade
étnica” a outra, adota como critérios decisivos para marcar a
passagem de um estágio ao seguinte alguns aperfeiçoamentos
técnicos ou tecnológicos que assegurariam ao homem um maior
controle do meio natural, ou uma capacidade de transformação da
natureza mais ampla. É óbvio, hoje, que se este tipo de critério
corresponde a um certo ideal socialmente valorizado no Ocidente
especialmente a partir da Revolução Industrial, ele se mostra
totalmente desprovido de valor objetivo para a quase totalidade
das culturas que se pretende classificar justamente através dele.
Na verdade, parece que os diferentes critérios utilizados
pelos vários evolucionistas na classificação evolutiva das
sociedades podem sempre ser reduzidos a este ideal de controle da
natureza. Para Morgan, preocupado com fenômenos mais “objetivos”
tais como o parentesco e a tecnologia, este domínio sobre o meio
ambiente aparece de forma clara e direta como capacidade real para
transformá-lo. Na obra de outros autores, mais interessados em
fatos “ideológicos” ou de ordem mental, o critério aparecerá na
forma de uma espécie de controle cognitivo sobre a natureza. Ou
24

seja, uma sociedade seria considerada tanto mais evoluída quanto


melhor parece conhecer a realidade objetiva. É claro que este
“melhor” se refere ao grau de semelhança entre os conhecimentos de
uma sociedade qualquer e aqueles tidos por verdadeiros pela
ciência ocidental da época.
Este ponto é bastante claro na “lei dos três estágios de
Comte”, no esquema “magia-religião-ciência” de Frazer e,
especialmente, nos trabalhos de Tylor que, entre os
evolucionistas, parece ter sido sem dúvida quem mais se dedicou ao
estudo dos fenômenos religiosos. Dos dezenove capítulos de sua
principal obra (Tylor, 1913), nada menos que onze são consagrados
a fatos deste tipo (mitologia, ritual e religião propriamente
dita). Ao contrário de Morgan, que acreditava ser a religião
alguma coisa completamente destituída de sentido, atribuindo-a
mesmo a um estágio inferior de desenvolvimento do próprio cérebro
humano4, Tylor sustenta a plena racionalidade das crenças e
práticas religiosas, acreditando que o antropólogo tem como missão
própria à sua disciplina buscar

“the reasonable thought which once gave


life to observances now become in seeming
the most abject and superstitious folly.
The reward of these enquires will be a more
rational comprehension of the faiths in
whose midst they dwell...” (Tylor, 1913,
vol. I: 421).

4 “O desenvolvimento das idéias religiosas é tão difícil de seguir


que, provavelmente, nunca poderá constituir matéria de uma
exposição perfeitamente satisfatória. As crenças religiosas estão
a tal ponto imbuídas de imaginação e afetividade e assentam por
conseguinte em conhecimentos tão incertos que todas as religiões
primitivas são grotescas e, em certa medida, ininteligíveis”
(Morgan, 1976, vol. I: 15).
25

Em outros termos, Tylor parece crer que a diferença


primordial entre “primitivos” e “civilizados” não consiste na
ausência de racionalidade por parte dos primeiros, mas
simplesmente no fato de que eles não teriam tido “ainda” tempo
suficiente e necessário para organizar corretamente suas
observações sobre a realidade. Ou seja, haveria ao longo da
evolução da “Humanidade” uma acumulação de experiências que, por
sua própria seqüência, corrigiriam progressivamente as explicações
esboçadas a seu respeito. Este “progresso” dos conhecimentos
conduziria o homem desde as primeiras formas de pensamento
religioso (cuja função seria então fornecer estas explicações) até
a ciência moderna. Subjacente a esta evolução, e às modificações
por ela produzidas nas teorias sobre a realidade, permaneceria,
desde sempre, uma racionalidade absolutamente intemporal que se
modificaria apenas quantitativamente e que permitiria, no fundo,
que as crenças primitivas, por mais estranhas que sejam, possam
ser explicadas nos termos do pensamento científico.
Para isso, bastaria reduzi-las a juízos promulgados acerca
do mundo objetivo, juízos certamente inadequados e errôneos quando
comparados aos modernos, mas nem por isso menos racionais ou
objetivos. A evolução da humanidade consistiria então, em suma, no
progressivo refinamento quantitativo de uma racionalidade que, em
estado bruto, existiria desde o início. Para Tylor, a época
vitoriana estaria assistindo ao derradeiro capítulo desta vitória
da razão superior, quando as últimas formas de pensamento
supersticioso — aí compreendida a própria religião cristã que,
mesmo sendo a mais “evoluída” das religiões, conteria ainda muitos
traços “primitivos” — estariam cedendo frente ao inexorável avanço
do pensamento científico. Desse modo, o trabalho do evolucionista
era também encarado como um importante momento deste combate ao
funcionar como denúncia destes últimos resquícios irracionais,
destas “sobrevivências” (termo cujo radical coincide com
26

“superstição) e contribuir para sua superação definitiva. É pois


com este duplo espírito que a investigação acerca da religião é
levada a cabo por Tylor: demonstração da racionalidade, entendida
como observação inadequada porém razoável da realidade, presente
no pensamento primitivo, e denúncia simultânea de suas
sobrevivências no mundo moderno no intuito de ultrapassar tais
superstições e instaurar o domínio absoluto das idéias claras e
positivas, do pensamento científico enfim. Acompanhemos então,
resumidamente esta “démarche”.
De início, Tylor preocupa-se em encontrar para a religião
uma definição suficientemente abrangente, capaz de conter as
diversas espécies do gênero e não se restringir a um ou outro tipo
de crença religiosa. Esta é aliás sua principal crítica aos
autores que negavam a existência de vida religiosa entre os povos
ditos primitivos: terem utilizado uma definição demasiado restrita
que acabava fazendo com que só fosse considerado “religioso”
aquilo que coincidia com as próprias crenças do investigador.
Sendo assim, propõe como “definição mínima de religião” a crença
em Seres Espirituais (cf. Tylor, 1913, vol. I: 424). É justamente
esta crença que recebe o nome de “Animismo”. Este,
consequentemente, não consiste para Tylor, como alguns autores
chegaram a interpretar, erroneamente, numa etapa primitiva e
original da religião que tenderia a ser ultrapassada ao longo da
evolução. Ao contrário, trata-se para ele da própria essência do
pensamento religioso, de seu traço característico, e que,
portanto, estaria presente em todas as modalidades que a vida
religiosa teria assumido ao longo do tempo.
A forma mais elementar — e então mais primitiva e original —
que o Animismo (isto é, a religião) assume é vista como sendo a
crença na “alma” (“Doutrina das Almas”), entendida pelo primitivo
como um princípio misterioso que anima o corpo que habita mas que,
por ser distinta dele, pode afastar-se em certas ocasiões. Esta
27

“Doutrina” não teria aparecido contudo como obra do acaso ou da


difusão, mas derivaria inevitavelmente, como resposta lógica e
racional, dado o baixo nível de desenvolvimento da humanidade
nascente, de um duplo problema colocado ao homem por sua própria
natureza: de um lado, a crença na alma explicaria a diferença
entre a vida e a morte (bem como estágios intermediários como a
doença, por exemplo); de outro, forneceria uma satisfação
intelectual ao enigma proposto pelas figuras humanas e paisagens
naturais que aparecem nos sonhos e nas visões. A morte, em
primeiro lugar, poderia ser explicada como a separação total e
definitiva entre o corpo e a alma que o animava (quando a
separação é parcial e provisória ter-se-ia as enfermidades); os
sonhos e as visões, por seu turno, nada mais seriam do que
afastamentos temporários da alma, período durante o qual ela
visitaria outras regiões e encontraria outras pessoas, vivas ou
mortas, regiões e pessoas que comporiam justamente as aparições
que se percebem nos sonhos e visões (cf. Tylor, 1913, vol. I: 428-
429).
Esta Doutrina das Almas, primeira manifestação do Animismo e
da vida religiosa, é encarada como se ampliando e complexificando
progressivamente, atravessando estágios como a Doutrina dos
Espíritos, o Fetichismo, o Culto aos Antepassados, Naturismo,
Politeísmo, Dualismo e, finalmente, o Monoteísmo, forma mais
avançada da religião, mas nem por isso menos presa nas malhas das
ilusões animistas na medida em que seu deus único não passa do
resultado da generalização e da abstração lineares das idéias de
alma e espírito. Para Tylor, apenas o materialismo científico
poderia nos libertar de nossos últimos devaneios.
Para os objetivos deste trabalho, no entanto, não é preciso
acompanhar o pensamento de nosso autor até tão longe. Basta deter-
se no ponto em que uma explicação para o transe e a possessão é
deduzida de sua teoria geral da religião. Este ponto situa-se no
28

momento em que a “Doutrina das Almas” original seria ampliada numa


generalizada “Doutrina dos Espíritos”:

“Spirits are simply personified causes. As


men’s ordinary life and actions were hold
to be caused by souls, so the happy ou
disastrous events which affect mankind, as
well as the manifold physical operations of
the other-world, were accounted for as
caused by soul-like beings, spirits whose
essential similarity of origin is evident
through all their wondrous variety of power
and function” (Tylor, 1913, vol. II: 108-
109).

Ora, do mesmo modo como sustentavam que as almas podiam existir


por si próprias, encarnando-se nos corpos para dar-lhes vida
(“embodiment of souls”), os primitivos creriam também que os
espíritos — espécie de almas hiperbólicas de existência paralela
às almas comuns — poderiam perturbar a alma normal de alguém, seja
tomando seu lugar no corpo que anima, seja influenciando seu
comportamento por aproximação. No segundo caso estaríamos às
voltas com uma obsessão; no primeiro com uma possessão (cf. Tylor,
1913, vol. II: 123-124). Estas seriam as duas modalidades básicas
de “possessão demoníaca”, nome dado por Tylor aos fenômenos
relativos ao transe e ao êxtase religioso. Trata-se certamente,
ele não tem dúvidas sobre o assunto, de crença totalmente falsa
mas que no entanto, de acordo com os pressupostos positivistas do
evolucionismo acima mencionados, deve cumprir alguma função útil
para o desenvolvimento da humanidade. Para Tylor a função das
crenças na “possessão demoníaca” seria fundamentalmente fornecer
uma explicação, falsa e provisória é claro, para o fenômeno
universal da doença:
29

“it provides na explanation to the


phenomena of morbid exaltation and
derangement, especially as connected with
abnormal utterance, and this view is so far
extended as to produce an almost general
doctrine os disease” (Tylor, 1913, vol. II:
123).

A possessão consistiria dessa maneira numa interpretação


cuja existência corresponderia a uma primeira etapa dessa “teoria
geral das doenças”. Com o progresso do saber médico-científico
esta explicação se retrairia primeiramente para o campo das
perturbações mentais fornecendo um quadro explicativo para
distúrbios como a epilepsia, a histeria, etc., para, finalmente,
desaparecer, cedendo frente ao avanço da medicina positiva também
neste setor (cf. Tylor, 1913, vol. II: 135). Neste sentido, Tylor
acha-se então em condições de concluir que:

“It has to be thoroughly understood that


the changed aspect of the subject in modern
opinion is not due to disappearence of the
actual manifestations which early
philosophy attributed to demoniacal
influence. Hysteria and epilepsy delirium
and mania, and such like bodily and mental
derangement, still exist. Not only do they
still exist, but among the lower races, and
in superstitious districts among the
higher, they are still explained and
treated as of old (...). It is in the
civilized world, under the influence of the
medicine doctrines which have been
developing since classic times, that the
early animistic theory of these morbid
phenomena has been gradually superseded by
views more in accordance with modern
science, to the great gain of our health
30

and happiness” (Tylor, 1913, vol. II: 142-


143).

Deste modo, assim como os fenômenos reais do sonho e da


morte teriam a capacidade de gerar a ilusória idéia de “alma”, que
no entanto, num estágio evolutivo primitivo, funcionaria
adequadamente ao fornecer uma explicação intelectualmente
satisfatória para os mistérios levantados por essas duas
realidades, também o fenômeno, igualmente real, da doença poderia
ser plenamente explicado através da idéia de espírito e das
perturbações, obsessão ou possessão, que este poderia causar. É
evidente não ser aqui necessário tornar a levantar todas as
críticas de que a visão evolucionista pode e tem sido objeto. Seu
intelectualismo e positivismo ingênuos, bem como seu etnocentrismo
não tão ingênuo, têm sido denunciados repetidamente já há quase um
século e seria mais ou menos inútil retomar aqui estas denúncias.
Dentro do espírito desta revisão bibliográfica acerca das teorias
antropológicas sobre a possessão — tentar determinar a natureza
geral destas teorias e, a partir daí tratar de esboçar uma visão
alternativa — basta evocar algumas características importantes do
pensamento de Tylor relacionadas com os desenvolvimentos teóricos
posteriores e que podem mesmo ajudar a compreendê-los.
Em primeiro lugar, fundar a própria definição de religião na
adoração de “seres espirituais” e, simultaneamente, estabelecer
sua origem em torno da dicotomia corpo/alma, parece bastante
cristão, demasiado cristão mesmo. Isto só pode ser confirmado e
reforçado quando o transe é “classificado” em obsessão e
possessão, justamente as duas categorias utilizadas pelo
cristianismo para catalogar e combater as influências do Demônio
sobre os homens. Em outros termos, tudo indica que Tylor, que no
final das contas pretende elaborar uma crítica materialista da
religião que fira o próprio universo cristão, utiliza na
construção desta crítica termos e conceitos forjados por este
31

sistema de crenças. É talvez para ultrapassar este paradoxo que


ele se vê obrigado a enraizar essas “falsas teorias” mentais na
realidade material do corpo, da morte e da enfermidade. E ele não
está sozinho neste empreendimento. Toda a segunda metade do século
XIX, da Filosofia à Psiquiatria, passando pela nascente ciência
social, se une nesse esforço reducionista e positivista que,
entretanto, não se esgotará com o final do século. Ao contrário,
este tipo de visão fundará todo um modo de tratar a possessão que
irá permear as mais variadas perspectivas teóricas, e isto até
hoje.
No campo propriamente antropológico, Tylor, ao inverter
simplesmente a perspectiva teológica anterior — pois, como vimos,
os temas e problemas básicos são mantidos — instaura todo um campo
para as análises científicas do transe. Este campo se encontra,
parece, balizado por dois marcos essenciais: a possessão como
enfermidade real (re)conhecida através de uma falsa explicação. O
preço a ser pago então para se atingir uma perspectiva considerada
científica a respeito do transe é a dissociação deste fenômeno
sobre dois planos qualitativamente distintos. De um lado, a
verdade de uma realidade objetiva enraizada na natureza biológica
do homem — a doença, mental ou não; de outro, a falácia de uma
explicação subjetiva, embora racional, originada no
desconhecimento parcial e temporário da verdade última do mundo
real.
Esta dissociação teórica do fenômeno estudado, bem como o
duplo reducionismo, biologizante (a “realidade” da doença) e
psicologizante (a “falsidade” da explicação), que a acompanha
invariavelmente, permanecerá de forma direta ou transformada em
praticamente todas as tentativas teóricas de dar conta do êxtase
religioso, mesmo nos modelos explicativos mais recentes.
32

3. A Explicação Funcionalista e o Transe

Admite-se correntemente hoje em dia que a história de uma


disciplina científica não consiste em um processo único e contínuo
de redefinições e aperfeiçoamentos constantes e progressivos. Os
discursos ditos científicos parecem apresentar inflexões, pontos
de rompimento, descontinuidades, “rupturas epistemológicas” enfim.
Também as ciências humanas refletem deste modo acerca de seu
processo de desenvolvimento histórico. Que ele tenha efetivamente
se dado assim ou que os cortes tidos como fundamentais realmente o
sejam é uma outra questão que não cabe tratar aqui. O importante é
somente lembrar que, no caso da Antropologia Social ou Cultural, o
grande ponto de ruptura que a teria desligado finalmente de seu
passado filosófico e especulativo, costuma ser usualmente situado
no início deste século em torno de dois desenvolvimentos teóricos
paralelos: de um lado a obra de Franz Boas na América do Norte; de
outro, o surgimento do funcionalismo britânico.
Não é difícil perceber o que há de comum entre esses dois
estilos, de resto tão diferentes, de fazer Antropologia: tanto
Boas quanto Malinowski opõem-se radicalmente às elucubrações
reconstrutivistas do evolucionismo, bem como do difusionismo,
vitorianos. A este tipo de história, “conjectural” como foi
pejorativa e justamente denominada, estes dois pensadores passam a
opor uma exigência estrita de dados concretos confiáveis que
possibilitem induções seguras e generalizações legítimas. Ora,
sabendo-se que as sociedades estudadas preferencialmente pelo
antropólogo encontram-se, em sua imensa maioria, desprovidas de
praticamente qualquer registro histórico de seu passado, esse tipo
de exigência só poderia vir a ser preenchido através do recurso às
técnicas de trabalho de campo e observação participante. É
justamente aqui que se costuma localizar o nascimento da moderna
Antropologia, ou seja, no contato direto, longo e intensivo
33

estabelecido pelo pesquisador com a sociedade estudada. Boas e


Malinowski forneceriam assim os paradigmas desse “corte
epistemológico” que fundaria as bases de uma disciplina
verdadeiramente científica. A questão que se poderia colocar a
esta pretensão é a de saber se uma descontinuidade no plano
metodológico, ou antes, ao nível das técnicas de pesquisa, de uma
ciência pode de fato ser considerada como uma ruptura tão radical.
Cumpriria antes indagar acerca de possíveis cortes no plano
teórico, isto é, não nos processos de coleta de material empírico,
e sim na forma de procedimento das generalizações analíticas.
Deste ponto de vista a posição de Boas (a que retornarei mais
adiante) parece mais sólida do que a de Malinowski, embora
paradoxalmente termine numa negação quase total do verdadeiro
trabalho antropológico, a construção de teorias gerais sobre as
culturas e sociedades humanas. Tudo se passa como se, pressentindo
sua incapacidade para transpor de modo positivo para o nível
teórico as inovações obtidas em termos de métodos e técnicas de
pesquisa, bem como o grau de rigor exigido, Boas terminasse por
evitar cuidadosamente toda e qualquer tentativa de abstração
teórica e mesmo de generalização empírica.
Malinowski, ao contrário, procederá de modo bastante
diferente. Recusando, como Boas, o “método comparativo” que
caracterizava para ambos as fracassadas tentativas teóricas do
evolucionismo e do difusionismo, ele não se furta contudo às
generalizações e abstrações teóricas. O problema é que quando a
base empírica, essencial para essas operações intelectuais, foi
reduzida desde o início a apenas uma sociedade, ainda que
pesquisada de forma intensa e extensiva, fica muito difícil
generalizar e abstrair sem cair em armadilhas epistemológicas
comprometedoras.
A saída funcionalista para este dilema é o recurso à idéia
de “natureza humana” que, na antropologia malinowskiana, longe de
34

corresponder a um virtual ponto terminal da análise aparece, bem


ao contrário, como seu pressuposto inicial e foco de resolução de
todos os problemas teóricos. Esta “natureza humana” é encarada
primeiramente de um ponto de vista quase biológico como o conjunto
de processos vitais que caracterizam o homem enquanto ser vivo e
que, portanto, geram determinadas necessidades que têm que ser
preenchidas. Num tal contexto, a cultura (bem como qualquer
cultura particular) é reduzida a um conjunto de respostas
instrumentais dadas pelo homem a certos problemas colocados por
sua própria natureza (as “necessidades”). Num primeiro momento
estes problemas são puramente biológicos, adaptativos,
correspondendo ao que Malinowski denominava “necessidades básicas”
(“metabolismo”, “reprodução”, “saúde”, etc.), necessidades que
engendrariam “respostas culturais” na forma de instituições
(“aprovisionamento”, “parentesco”, “higiene” e assim por diante).
O preenchimento cultural dessas necessidades básicas produz
contudo um efeito de geração de novas necessidades, chamadas
conseqüentemente de “derivadas”. Assim, por exemplo, o
“aprovisionamento”, instituição que funciona como resposta
cultural para a necessidade básica “metabolismo” se transforma em
novo “imperativo” (na forma de “necessidade derivada”) porque
exige uma “aparelhagem” cultural de implementos e bens de consumo,
ou seja, a instituição da “economia”. Nesse sentido, para
Malinowski, explicar uma instituição ou costume significa
exclusivamente indagar a respeito de sua “função”, isto é,
determinar que “necessidade”, básica ou derivada não importa, esta
instituição ou costume contribui para satisfazer5.

5 A posição teórica de Malinowski sobre a “teoria das


necessidades” está explicitada em Malinowski, 1941: passim. Para
uma crítica radical desta perspectiva, cf. Sahlins, 1976: 73-91.
35

É a partir desses pressupostos que deve ser entendida a


abordagem funcionalista dos fenômenos que aqui nos interessam,
“religião” e “magia” (já que Malinowski, influenciado certamente
pelas colocações de Frazer, trata sempre destas duas instituições
em conjunto). Seria certamente difícil considerar os fenômenos
mágico-religiosos como respostas diretas a necessidades básicas,
ou mesmo derivadas. Para se compreender perfeitamente a posição de
Malinowski em relação a este tipo de fenômenos, é preciso
acrescentar que sua concepção de “natureza humana” não se esgota
nos componentes biológicos desta, englobando também uma dimensão
psicológica. Isto porque é o indivíduo que experimenta as
necessidades; é ele que tem que se adaptar a um determinado meio-
ambiente, a cultura não sendo vista mais do que como um
instrumento a serviço desta adaptação, instrumento do qual o ser
humano detém o monopólio certamente, mas que não difere
substantivamente, fazendo-o apenas em grau, dos diferentes
mecanismos adaptativos encontrados na natureza entre os animais.
Ora, quando os processos culturais não asseguram uma adaptação
perfeita, quando a incerteza se interpõe entre o indivíduo e o
meio, aquele experimentaria uma sensação de temor e angústia
frente ao desconhecido e àquilo que não consegue controlar
materialmente. A magia e a religião são consideradas então
justamente como mecanismos culturais destinados a minimizar estes
sentimentos, porque forneceriam ao indivíduo tanto uma ilusão de
que o que é incontrolável por meios técnicos objetivos poderia sê-
lo por meios mágicos, quanto um canal através do qual ele pode
manifestar legitimamente sua angústia e assim exorcizá-la — os
comportamentos e atitudes rituais (cf. Malinowski, 1974; Nadel,
1957).
Deste ponto de vista acabamos por nos encontrar estranha e
espantosamente próximos às teses evolucionistas sobre a religião.
De fato, para Malinowski, esta continua sendo uma falsa explicação
36

sobre fenômenos reais. A diferença essencial é que aqui o


intelectualismo vitoriano é substituído por uma perspectiva
afetivista que privilegia os sentimentos, as emoções, e não o
raciocínio. Para Tylor a falsa explicação imaginada pelo primitivo
possuía a virtude de lhe proporcionar uma satisfação intelectual
acerca do sentido do mundo e de abrir o caminho para o progresso
constante do saber e da razão; para Malinowski, as ilusões mágico-
religiosas do “selvagem” impediriam um “stress” emocional frente
ao misterioso e ao incontrolável, não sendo contudo dotadas de
qualquer caráter lógico ou racional. Com o avanço da ciência e o
aumento dos conhecimentos sobre o mundo objetivo, os procedimentos
religiosos tenderiam, para ambos os autores, a diminuir
progressivamente. Para o primeiro, devido a uma superioridade
natural dos conhecimentos mais recentes sobre os anteriores; para
o segundo, porque cada vez menos situações apareceriam como
desconhecidas e/ou incontroláveis, diminuindo conseqüentemente o
número de momentos angustiantes para o homem. Neste contexto, as
diferenças realmente básicas distinguindo Malinowski dos
evolucionistas que ele tanto criticava, parecem muito menores do
que se costuma crer. Na verdade, elas praticamente se reduzem ao
fato de que Malinowski não pretendia reconstruir o processo
evolutivo da humanidade. E isso não porque discordasse
teoricamente da utilidade ou da validade desta reconstrução, mas
simplesmente porque acreditava não dispor de informações e dados
seguros que permitissem fazê-lo. Ele não deixava contudo de tomar
a idéia de evolução, se não como pressuposto teórico, ao menos
como evidência material. Eis porque, talvez, um método tão
diferente do comparatismo tyloriano podia conduzi-lo a resultados
bastante semelhantes àqueles obtidos pelo pensamento
evolucionista. Algumas análises do transe extático direta ou
indiretamente influenciadas pela teoria malinowskiana sobre
religião e magia permitirão aprofundar esta estranha aproximação.
37

Malinowski parece jamais ter se interessado diretamente pelo


estudo da possessão, mas alguns de seus discípulos e seguidores
tentaram algumas incursões neste campo de trabalho. Assim, Raymond
Firth, cuja teoria sobre a religião pretende estar diretamente
vinculada às teses funcionalistas (cf. Firth, 1951), e que afirma
ter se interessado pelo transe ao presenciar diversas sessões
mediúnicas durante seu trabalho de campo em Tikopia, esboça uma
análise do êxtase completamente deduzida das principais hipóteses
da antropologia da religião de Malinowski. Trata-se, como sempre,
de descobrir a “função” do transe:

“For societies lacking modern psychological


medicine, spirit medium treatment of
patients can be an extremely interesting
instance of self help” (Firth, 1969: XI).

E, de modo ainda mais explícito, algumas páginas adiante no


mesmo texto:

“But the most important social function is


to provide treatment for sick people. This
the cult do by operating a set of extra-
normal behavious in speech and gesture.
They offer to the sick person, who is
himself behaving in an abnormal way, a
framework of ideas and practices which is
very different from that of normal,
everyday life. For the more purely physical
ills the therapeutic effect of spirit
medium practices may be no more than
reassurance. But for the mentally ill (the
‘possessed’), the conceptualization in
spirit idiom gives diagnosis and prognosis
in terms of the patient’s own fantasies.
Such a mode of fighting fire with fire
often seems to have great stress-reducing
effect, for both patient and audience”
38

(Firth, 1969: XIII-XIV; os grifos são


meus).

O esquema explicativo é portanto, a despeito das diferenças


de doutrina, rigorosamente paralelo ao de Tylor. A doença é aqui
também tomada como uma realidade substantiva que introduziria um
elemento exógeno, perturbador e disruptivo, na vida social normal.
Tylor se contentava em acreditar que uma explicação, ainda que
falsa, desse elemento seria suficiente para conjugar a ameaça que
ele traria para a sociedade. Já Firth supõe que o mais importante
não consiste numa solução intelectual para o problema, mas sim que
haja um controle cultural sobre a enfermidade que beneficie todo o
grupo ao impedir que a ansiedade causada pela doença influa
negativamente na estrutura social. Que este controle seja encarado
como relativamente eficaz (no caso das doenças mentais) ou apenas
forneça “segurança simbólica” (no caso de doenças físicas) não é a
questão essencial. O importante é que em ambos os casos atingir-
se-ia aquilo que Firth denomina “stress-reducing effect”. Em suma:
existiria um impulso natural (a doença, especialmente mental) que
deve provocar necessariamente uma resposta cultural que minimize
seus efeitos negativos sobre a vida social — a crença no transe e
os rituais de possessão. A explicação de Firth para o êxtase é
perfeitamente congruente então com a “teoria das necessidades” de
Malinowski: a possessão apareceria como instituição cultural
derivando de uma necessidade fundamental, a cura das enfermidades
(ou, ao menos, seu controle simbólico). Neste sentido parece que o
transe está relacionado com um tipo de necessidade que se poderia
considerar como básica, uma vez que na doença joga-se
simultaneamente com a vida e a morte. Mas por outro lado, Firth
apresenta uma outra “função social” da possessão que a encara mais
como resultante de processos relacionados com necessidades
derivadas:
39

“But in many societies spirit possession


and spirit medium cults offer a field for
some degree of individual self-expression,
may be of a fantasy order, going well
beyond the convention of tradition (...).
Spirit possession allows an individual to
throw off ordinary restraints and, in
speech or in non-verbal behaviour, to act
in ways not sanctioned by his ordinary role
in society (...). Whatever be the physical
and psychological difficulties entailed by
the ‘possession syndrome’, some personal
benefits may at times accrue. Redress or
enhacement of status is one such
compensation...” (Firth, 1969: XI-XII).

Na Introdução à mesma coletânea sobre cultos de possessão


africanos (Beattie e Middleton, 1969), em cujo prefácio Raymond
Firth efetua as observações citadas, os organizadores do livro
retomam várias de suas colocações, concluindo que esses cultos
extáticos podem funcionar ora reforçando a estrutura social (ponto
que nos leva a uma outra vertente do funcionalismo que será
abordada mais adiante), ora fornecendo uma via de “letting off
steam”, ou seja, exercendo uma função catártica ao permitir que:

“behaviour which would not be tolerated in


everyday life may be permitted, even
expected, in possessed persons (...). It
would appear that the relief of anxiety
thus brought about may be definitely
therapeutic” (Beattie e Middleton, 1969:
XXVIII).

Esta última “função” do transe agiria então como estratégia


de alívio de ansiedades e como modo de exprimir tensões sociais
ligadas a fenômenos como a mudança social, por exemplo. Neste
sentido então, a sociedade ou cultura aparece nitidamente em
40

confronto com o indivíduo, assim como a natureza o estava na


primeira forma de explicação. Isto porque embora os mecanismos
culturais sejam basicamente respostas aos imperativos naturais,
eles passariam, uma vez instituídos, a exercer sobre o indivíduo
uma pressão semelhante àquela exercida por esses últimos,
provocando conseqüentemente angústia e tensão que devem também ser
aliviadas para a satisfação individual e perfeito funcionamento
social. Este aspecto das teorias sobre a possessão de inspiração
malinowskiana é fundamental, pois irá informar, ao se cruzar com
modelos derivados da vertente estruturalista do funcionalismo, a
maior parte das análises contemporâneas sobre o êxtase. Antes
contudo de chegarmos até elas convém uma rápida passagem por uma
outra tradição teórica que, de alguma forma, possui uma série de
princípios e pontos em comum com as teses de Malinowski, apesar
das aparências em contrário.

4. Cultura e Possessão

De fato, não parece haver nada superficialmente mais


distinto do que o brutal reducionismo malinowskiano de um lado e o
chamado princípio de relativismo cultural, postulado pelos
culturalistas, de outro. Lá onde Malinowski supunha sempre o peso
dos imperativos naturais determinando respostas culturais, os
culturalistas norte-americanos privilegiariam justamente a imensa
diversidade de tais respostas, e a apontariam como sinal da
infinita riqueza e complexidade da natureza humana. Na verdade, a
questão é mais complicada e esta oposição pode não ser tão nítida
quanto parece.
A chamada escola de “cultura e personalidade” representa
nitidamente um desenvolvimento transformado das idéias de Boas.
Este, como foi dito acima, recusava toda e qualquer tentativa de
41

generalização teórica por acreditar não dispor de base empírica


suficiente para isso, base que só seria obtida quando todas as
sociedades — ou, para ser mais exato, um número excepcionalmente
elevado delas — tivessem sido pesquisadas e analisadas com o rigor
e a profundidade almejadas por ele próprio em seu estudo dos
Kwakiutl, estudo que após meio século de investigação empírica
Boas continuava considerando incompleto e portanto inadequado para
o trabalho teórico. Como disse Lévi-Strauss, as exigências de Boas
eram tão rigorosas que, no caso de seguidas à risca, terminariam
por paralisar todo o trabalho antropológico.
Seus discípulos, consciente ou inconscientemente, parecem
ter pressentido esta armadilha e, como que para escapar dela,
restringiram suas análises às interações entre o meio social e os
indivíduos que nele vivem, ou, em seus próprios termos, entre a
cultura e a personalidade. Este tipo de abordagem é perfeitamente
coerente com as posições de Boas, e já está sem dúvida presente em
sua obra, especialmente em seus últimos escritos. Pois quando nos
colocamos como tarefa essencial a descrição completa de uma
sociedade ou cultura antes que qualquer abstração possa ser
efetuada, esta termina por aparecer como um aglomerado de
instituições, valores e símbolos que só podem encontrar alguma
unidade e substância no modo pelo qual um indivíduo concreto os
absorve e sintetiza, já que desde o início o investigador condenou
a si próprio a não observar as leis de ligação entre os diversos
componentes do todo social (sobre todos esses pontos, cf. Boas,
1966).
A partir desses pressupostos, o culturalismo se vê
constrangido a imaginar a existência de uma base bio-psicológica
para o comportamento humano. O que caracterizaria esta base seria
sua extrema fluidez e diversificação, constituindo um “leque”
sobre o qual cada cultura executará uma escolha e procurará a
partir daí impor a todos os seus membros a “personalidade”
42

(pensada então como inscrita virtualmente na natureza humana)


eleita como sendo a ideal. O problema, óbvio, é que nem mesmo a
mais simples e “indiferenciada” das sociedades apresenta uma
homogeneidade integral nos padrões de personalidade de seus
membros. Para contornar esta dificuldade empírica os culturalistas
pressupõem que a base bio-psicológica individual, inata, exerce
uma certa resistência ao trabalho de seleção e moldagem executado
pela cultura. Em outros termos, existiria uma personalidade
substantiva individual anterior ao processo de socialização e, no
caso desta “personalidade original” ser diferente demais daquela
culturalmente escolhida como adequada, o indivíduo portador desta
personalidade jamais poderia ser plenamente integrado à sociedade,
convertendo-se inevitavelmente em um desviante, ou como preferem
os culturalistas, num “inadaptado”.
O culturalismo adere então a uma certa concepção de
realidade que remonta ao positivismo e que talvez tenha sido
totalmente explicitada na idéia de “superorgânico” proposta por
Kroeber. Esta concepção supõe uma estratificação do real em níveis
de complexidade crescente: do inorgânico ao cultural, passando
pelo orgânico e pelo psicológico (individual). Cada nível é
pensado como englobando o anterior, sendo mais complexo e, de
algum modo, distinto dele. Neste sentido, a cultura é encarada
como uma modalidade de tratamento de fenômenos integralmente
constituídos em outros níveis, sendo sua tarefa exclusiva a
seleção entre as diversas possibilidades oferecidas em cada plano
e sua difusão homogênea através de todos os membros da sociedade.
Esta é a razão última do fascínio exercido sobre os culturalistas
pelas ciências do comportamento individual, psiquiatria (Ruth
Benedict), psicologia (Margareth Mead), psicanálise (Abram
Kardiner). Pois tais ciências pareciam poder fornecer a eles os
elementos substantivos sobre os quais seria exercida a seleção
cultural, ainda que um efeito de “retorno” pudesse também ser
43

observado (a posição culturalista fica evidenciada com nitidez em


Kroeber, 1948).
Deste ponto de vista, as posições da escola de cultura e
personalidade é extremamente próxima à de Malinowski que, como
vimos, também encarava a cultura como um conjunto de respostas a
questões formuladas e produzidas a outros níveis, biológicos e
psicológicos. A diferença entre essas duas correntes se reduz ao
fato de que o funcionalismo se dedicou mais — no momento de
refletir teoricamente, e não nos trabalhos etnográficos — a
apontar os elementos bio-psicológicos aos quais toda cultura
particular poderia ser reduzida, sem conceder muita atenção à
variação de respostas que um mesmo problema pode comportar. Os
culturalistas, por outro lado, sempre gostaram de enfatizar a
infinita variedade e diversidade das elaborações culturais, mas
jamais se preocuparam em explicar nem o porquê destas variações,
nem um possível caráter sistemático delas, contentando-se em
atribuí-las a alguma forma de acaso totalmente estranho aos
procedimentos científicos de pesquisa, e terminando assim por
repousar sobre o mesmo solo teórico que sustenta Malinowski.
Neste contexto, alguns recentes estudos acerca do transe e
da possessão derivados, direta ou indiretamente, dos esquemas
culturalistas são ao mesmo tempo esclarecedores deste esquema e
podem ser perfeitamente compreendidos à sua luz. Num trabalho
datado de 1972, Sheila Walker se propõe apresentar uma visão
“multidimensional” do êxtase, pretendendo encará-lo sob vários
pontos de vista, única forma segundo ela para que uma explicação
adequada para o fenômeno possa ser atingida:

“The phenomenon of spirit possession has


existed in most areas of the world down
through history. The form and
interpretation of the experience vary from
culture to culture but there is a common
44

substratum. Possession, to be really


understood, must be studied from various
points of view because no simple
explanation appears adequate to it (...).
My aim in this book is to consider the
various elements involved in possession,
such as neurophisiology, hypnosis,
socialization and culture determinism, to
see how each one junctions and what its
role is alone and in relationship to the
others (...). I am concerned with what
possession is on various levels, from
physiological to cultural, and what general
role it plays in societies and in
individuals” (Walker, 1972: 1).

Em termos mais teóricos, poder-se-ia dizer então que Walker


supõe a existência de uma base neurofisiológica e psicológica para
a possessão, base que algumas culturas selecionariam como
comportamento adequado a certas ocasiões e imporiam a seus membros
através de processos de socialização. Em outros meios culturais,
esta mesma base poderia originar formas de doença mental, como a
histeria por exemplo. O fato de que, jamais, todos os membros de
uma sociedade sejam possessos, nem mesmo em potência, é explicado
a partir de possíveis diferenças genéticas entre os indivíduos que
experimentam o transe e aqueles que nunca o fazem. A possessão é
encarada então como uma reação neurofisiológica normal a situações
de “stress”, seja este artificialmente provocado (através de
drogas, toque de tambores, danças e cânticos, que compõem os
rituais onde ela tem lugar) ou não. Assim, as variáveis culturais
não fazem mais do que estimular ou reprimir um comportamento dado
a nível psicofisiológico (cf. Walker, 1972: 25).
Erika Bourguignon, teórica da chamada “antropologia
psicológica” que deriva em linha direta do culturalismo, propõe um
modelo similar ao de Walker, advogando também uma “abordagem
45

multidimensional” que encare todos os aspectos do fenômeno do


transe (cf. Bourguignon, 1972: 429). Para isto, seu primeiro passo
é estabelecer um plano de identificação entre o sonho e a
possessão, imaginando a existência, entre ambos, de um continuum.
Ora, como o sonho é considerado uma característica universal do
homem (enquanto ser natural mesmo, já que compartilharia esta
propriedade com todos os mamíferos), o trabalho da cultura fica
reduzido à produção de algum “grau de institucionalização” tanto
para o sonho quanto para o transe, estando aqui a raiz da
diversidade de modos de tratamento a que ambos estes fenômenos
estão submetidos em distintas sociedades.
Desse modo, tanto Sheila Walker quanto Erika Bourguignon
pressupõem então a existência de uma base biológica invariável
que, diferentemente trabalhada por cada cultura, pode dar origem
ao que ambas denominam “altered states of consciousness”,
categoria que abarca, entre outras manifestações de “dissociação
da personalidade”, o transe e a possessão. O esquema se aproxima
bastante, como pode ser facilmente percebido, daquele proposto por
Raymond Firth, inspirado no funcionalismo malinowskiano, para dar
conta do êxtase religioso.
Subsiste contudo uma diferença entre os dois modelos, o
funcionalista e o culturalista: enquanto Firth (assim como Beattie
e Middleton) supõe que a crença na possessão por espíritos pode
funcionar ao mesmo tempo como explicação simbólica e terapia para
doenças mentais, Walker e Bourguignon enfatizam sistematicamente o
caráter normal dos processos fisiológicos e psicológicos
envolvidos no transe, aproximando-o de estados hipnóticos e do
sonho, respectivamente. Esta diferença é contudo, do ponto de
vista em que procuro me colocar aqui, bastante superficial. O que
importa é que tanto funcionalistas quanto culturalistas imaginam,
ao tratar da possessão, estarem às voltas com simples explicações
ou vestimentas culturais para fenômenos (patológicos ou não)
46

integralmente constituídos em esferas não sociais, biológicas ou


psicológicas.
Tanto isto é verdadeiro que alguns autores podem considerar,
ao mesmo tempo, o transe como ligado ou não a distúrbios
patológicos. Assim, Vincent Crapanzano em uma excelente monografia
sobre o culto marroquino do Hamadsha, combina as duas perspectivas
e encara a possessão como fruto de distúrbios neurofisiológicos ou
psicanalíticos e, simultaneamente, como terapêutica para estes
problemas (cf. Crapanzano, 1973). O mesmo ocorre com Edward Foulks
que analisa o xamanismo esquimó (juntamente com a “histeria
ártica”, o que já é significativo), seja como conseqüência
patológica, seja como alívio terapêutico, de múltiplas influências
negativas provenientes do meio ambiente (hostilidade e monotonia),
substrato biológico (carência alimentar), características
psicológicas (inadaptação à sociedade), e traços culturais
(tradicionalismo) (cf. Foulks, 1972).

5. Estrutura e Função do Êxtase Religioso

Criticando as explicações de fenômenos religiosos que tendem


a reduzi-los a soluções culturalmente inconscientes, embora
satisfatórias na prática, de problemas higiênicos e de saúde, Mary
Douglas as denomina pejorativamente, utilizando uma expressão de
William James, de “materialismo médico” (cf. Douglas, 1976: 43-
46). Poderíamos também utilizar este termo para designar a
primeira vertente antropológica de explicação para o transe, que
acaba de ser apresentada. Isso porque tanto no evolucionismo de
Tylor, quanto no funcionalismo malinowskiano e na chamada escola
de cultura e personalidade (e seus seguidores contemporâneos que
adotam a significativa rubrica de Antropologia Psicológica), este
fenômeno é analisado ora como o “disfarce” cultural de
47

enfermidades reais, ora como procedimento “clínico” para


tratamentos destas enfermidades, correspondendo tanto num caso
quanto no outro a elaborações secundárias sobre fatos totalmente
constituídos a nível fisiológico ou psicológico (patológicos ou
não, pouco importa) dos quais — cumpre assinalar — apenas a
ciência contemporânea (Neurofisiologia ou Psiquiatria)
reconheceria a verdadeira natureza.
Existe contudo uma outra modalidade de teorização acerca do
êxtase da qual a própria Mary Douglas é um dos principais
expoentes. Esta outra vertente — que possui, veremos, inúmeras
conexões com a outra — encontra suas raízes e bases
epistemológicas num desenvolvimento teórico paralelo ao
funcionalismo malinowskiano e ao culturalismo norte-americano.
Desde 1887, Durkheim advertia que a atividade social só poderia
ser compreendida como visando finalidades também sociais, e ano
aquelas do indivíduo (cf. Sahlins, 1976: 109-110). Apesar desta
profissão de fé na importância das funções sociais das
instituições, Durkheim parece jamais ter acreditado que as
primeiras pudessem explicar integralmente as segundas, sustentando
ser necessário o conhecimento de sua “morfologia” (e não apenas de
sua “fisiologia”) para sua justa compreensão. Radcliffe-Brown, o
grande inspirador de todo o estrutural-funcionalismo, tomou como
ponto de partida a primeira idéia de Durkheim, mas não a segunda.
Ou seja, ao contrário de Malinowski, ao falar em “função social”
ele tem em mente a contribuição que uma dada instituição presta
para a manutenção da sociedade como um todo. Mas também ao
contrário de Durkheim, Radcliffe-Brown reduz o sentido total desta
instituição a essa função em benefício da totalidade, sem se
interessar muito pelo aspecto morfológico da questão.
A explicação estrutural-funcionalista consiste então,
invariavelmente, em tentar captar a relação entre a parte e o todo
manifesta na função desempenhada pelo elemento analisado para a
48

manutenção da estrutura da totalidade. Levado até as últimas


conseqüências, o modelo acaba por desembocar num raciocínio
psicologizante mais ou menos tautológico: qualquer uso ou
instituição sociais contribuem para a criação, reforço e
manutenção dos sentimentos de solidariedade que mantêm agregados
os membros do grupo. Ou seja, a preservação da “forma estrutural”
(esqueleto da “estrutura social”, entendida significativamente
como a totalidade das relações sociais diádicas interpessoais)
acaba sendo atribuída à criação e manutenção de difusos
sentimentos psicológicos individuais.
A partir dessa perspectiva teórica, Radcliffe-Brown pode
concluir a respeito dos sistemas de crenças que:

“a religião desenvolve na humanidade o que


se pode chamar de senso de dependência”
(Radcliffe-Brown, 1945: 217),

proposição que, neste nível, não se importa com qualquer espécie


de particularidade do fenômeno religioso assimilando-o, através de
sua “função” (comum a todas as instituições sociais) à totalidade
dos fatos sociológicos. Radcliffe-Brown sugere contudo que a
especificidade das funções desempenhadas pela religião tanto na
amplitude tomada pelos laços de dependência criados, alcançando os
mortos, os antepassados, as divindades e a natureza, quanto na
“sobre-autoridade” que adquirem na medida em que, do ponto de
vista do fiel, atuam de fora, a partir do sobrenatural, sobre a
totalidade social (cf. Radcliffe-Brown, 1945: 218).
Neste sentido, é verdade, a religião deixa de ser tratada
como simples preenchimento de uma necessidade bio-psicológica do
homem enquanto indivíduo isolado (como em Malinowski ou no
culturalismo) e passa a ser encarada como atendendo a pré-
requisitos sociológicos. No entanto, como mostrou Marshall Sahlins
(1976: 109), isto só é possível porque a própria sociedade passa a
49

ser vista como uma espécie de “super-indivíduo”, dotada de


necessidades e exigências. Por causa disto, as pretensas
“necessidades sociais” acabam reduzidas a alguns indefinidos
sentimentos individuais (no sentido próprio) de simpatia, atração,
solidariedade e auto-preservação.
Ora, este esquema de interpretação da religião frutificou na
antropologia britânica: trata-se sempre de estabelecer as
presumíveis conexões entre o sub-sistema religioso (conjunto de
crenças e ritos pertencentes ao universo simbólico da “cultura”) e
o sistema social “concreto” (a “sociedade” propriamente dita,
entendida como conjunto de relações inter-individuais), tentando
demonstrar como o primeiro reflete o segundo e, ao mesmo tempo,
contribui para sua manutenção. Na área dos estudos sobre os
fenômenos extáticos parece que as duas contribuições estrutural-
funcionalistas mais importantes consistem, sem dúvida, nos
trabalhos de Mary Douglas (1982) e de Ioan Lewis (1970; 1977).
Lewis parte da questão estrutural-funcionalista clássica:
como estabelecer uma “sociologia do êxtase”? Ou seja, sendo o
êxtase um fenômeno religioso e sendo que a religião, como conjunto
de símbolos e valores, se situa a nível da “cultura”, como reduzir
o transe às “relações concretas entre os homens”? Para responder a
essas questões seria preciso primeiramente notar, de acordo com
Lewis, que a possessão consiste em um mecanismo cultural que não
pode deixar de exprimir a estrutura última da sociedade em que ela
se processa. Neste sentido, o êxtase tanto pode ser

“um agudo grito de protesto contra os


membros mais afortunados da sociedade”
(Lewis, 1977: 256),

quanto pode expressar

“uma estentórea voz de comando, a linguagem


da autoridade legítima em termos da qual o
50

homem de substância compete pelo poder”


(Lewis, 1977: 256).

A evidente contradição entre as duas “funções sociais” da


possessão seria superada, segundo Lewis, se se admitisse que cada
uma dessas funções corresponderia a um determinado tipo de
segmento social envolvido no grupo, bem como a um certo padrão de
estrutura social. Assim, os segmentos de uma sociedade — escravos,
servos, mulheres, e todo tipo de “inferiores estruturais” —
tenderiam a se organizar em grupos de cultos específicos: os
“cultos periféricos”, onde indivíduos situados em posições
socialmente inferiores, dentro de dada estrutura, incorporariam
espíritos igualmente “marginais” (inconstantes, rebeldes, etc).
Este tipo de culto funcionaria, pois, invertendo as posições
sociais ordinárias, ao colocar como agentes e pacientes principais
do culto pessoas e espíritos social ou religiosamente
marginalizados. Aqui, portanto, alguém tornar-se-ia xamã ou
possesso como compensação por sua baixa situação cotidiana.
Quando o culto de possessão não inverte a ordem social mas,
ao contrário, parece reforçá-la, não estaríamos mais,
evidentemente, diante de “cultos periféricos”, mas sim frente às
“religiões de moralidade principal” praticadas pelos segmentos
superiores e dominantes da sociedade e da qual participariam
apenas espíritos ancestrais, divindades também dotadas, num certo
sentido, de moralidade e de status elevados. Assim, as “religiões
de moralidade principal” contribuiriam para a manutenção da ordem
social abrangente na medida em que, deslocando da esfera dos
homens para aquela dos deuses as decisões tomadas e as ordens
proferidas, reforçariam a subordinação e a obediência das camadas
sociais inferiores e, consequentemente, o grau de integração
social. Isto não quer dizer, em hipótese alguma, como se poderia
imaginar, que os “cultos periféricos”, constituam alguma espécie
de ameaça contra a ordem estabelecida. Ao contrário, ao inverterem
51

apenas “simbolicamente” (isto é, ilusoriamente) as posições


sociais dos indivíduos estruturalmente inferiores, esses cultos
também estariam contribuindo para o reforço dela na medida em que
forneceriam a estas pessoas uma espécie de “válvula de escape”
para a pressão social a que elas estariam submetidas. Vê-se logo
quão próximas estas teses se encontram daquelas elaboradas por
Raymond Firth a partir do funcionalismo malinowskiano.
Paralelamente, Lewis tece algumas considerações a respeito
das condições psicofisiológicas adequadas para a possessão,
questão respondida em consonância com a análise sociológica
resumida acima. Nos “cultos periféricos”, o transe seria possível
devido à própria posição social inferior de seus participantes,
posição que os tornaria extremamente vulneráveis a “crises
histéricas” (cf. Lewis, 1977: 247). Já no caso das “religiões de
moralidade principal”, seus praticantes — os membros das camadas
superiores da sociedade — estariam, de acordo com uma proposta de
Yap aceita sem restrições por Lewis, ao abrigo dessas “crises
histéricas”, fruto de pressões sócio-políticas fortes. Neste caso,
o autor sustenta então que a possessão deve aparecer como resposta
a condições sócio-econômicas altamente instáveis, transferindo
consequentemente o foco das pressões da estrutura social para o
meio-ambiente (cf. Lewis, 1977: 250-251). Em síntese, o transe
derivaria da submissão dos indivíduos seja a sistemas sociais
opressores (nos “cultos periféricos”), seja a realidades naturais
hostis (no caso das “religiões de moralidade principal”).
As hipóteses de Ioan Lewis a respeito das “religiões
extáticas” correspondem então, sem dúvida, a um certo tipo de
“teoria de compensação”, que, considerando essas religiões como
“deprivation cults”, se dedica a demonstrar a que “privações” elas
respondem simbolicamente. Ora, a outra grande teórica
funcionalista da possessão, Mary Douglas, dirige a essa modalidade
de explicação uma crítica incisiva:
52

“The theory is couched in vague


psychoanalytical terms, made to include too
much and too many contradictory cases in
its scope (...). Compensation theory treats
the symbolic order as a secondary result of
the social order, as purely expressive”
(Douglas, 1982: XIII-XIV).

Como alternativa a este tipo de teoria “compensatória”, Mary


Douglas propõe o que ela denomina “replication hypothesis” — a
suposição de que o ritual, assim como todo sistema de símbolos,
consiste em um “código restrito” que não inverte ou compensa o
“código abrangente” (a sociedade), mas, basicamente, tende a
repeti-lo a outro nível e com outra eficácia (cf. Douglas, 1982:
XIV). Em outros termos, o tipo de estrutura social e o tipo de
sistema simbólico (e ritual) encontrado em seu interior seriam
sempre congruentes. Assim, as sociedades rigidamente estruturadas
(seja em termos de grupos exclusivos fortemente marcados ou de
códigos de relações interpessoais restritivos — “group” e “grid”
como os chama respectivamente Douglas) corresponderiam rituais
ligados a proibições alimentares, sacrifícios, purificações,
proteção de orifícios corporais, etc. Isto porque nesse tipo de
sistema social o corpo humano funcionaria como metáfora adequada,
devido a seu alto grau de estruturação e a seus limites bem
marcados, características homólogas àquelas desse tipo de
estrutura social. Ao contrário, em sociedades ou grupos de
estrutura mais fluida, menos submetida portanto aos
constrangimentos do “group” ou do “grid”, o corpo só poderia
funcionar de maneira inversa, como metáfora de negatividade,
devendo portanto ser negado em sua ordem e sistematicidade. É por
isto que os cultos de possessão (ao menos aqueles que encaram o
transe como positivo) encontram seu substrato propício nesse tipo
de ordem social, frouxa e instável, da qual eles “repetiriam” a
estrutura (ou a falta dela) no momento em que promovem a
53

dissociação da personalidade e do próprio corpo: o transe


reproduziria então a nível ritual e simbólico um certo tipo de
padrão real de relações sociais vigentes (cf. Douglas, 1982: 74).
Assim, apesar de discordâncias aparentes e de críticas
explícitas, o esquema de interpretação proposto por Mary Douglas
para a possessão é rigorosamente paralelo àquele apresentado por
Ioan Lewis, correspondendo apenas, por uma simples diferença de
ênfase, a duas vertentes possíveis dentro do mesmo arcabouço
estrutural-funcionalista. De fato, a questão de base de ambos é
exatamente a mesma: como relacionar um fenômeno de ordem
“religiosa” com o nível “sociológico”. Tanto um quanto o outro
admitirão tratar-se de uma relação de “reforço” (Lewis) ou de
“repetição simbólica” (Douglas) da estrutura social por parte da
religião. A diferença é que Lewis pressupõe que, em alguns casos
(“cultos periféricos”), a modalidade de relacionamento
cultura/sociedade pode deixar de ser a de reflexo direto passando
a constituir uma inversão simbólica do segundo termo efetuada pelo
primeiro. Mas esta diferença é superficial. Mary Douglas que, como
vimos, critica este tipo de posição por não reconhecer o poder
específico dos símbolos, argumenta entretanto, justamente para
defender esta força do simbólico, que

“The symbols themselves lash back at the


people and divert their attempts to change
their lot into channels which do more to
symbolise than to improve it” (Douglas,
1982: XIV),

chegando assim, paradoxalmente, à mesma posição de Lewis, para


quem os símbolos apenas fornecem falsos meios de compensação para
os desprivilegiados, sem que a harmonia, a unidade, e a
estabilidade da estrutura social fiquem por isso comprometidas. Em
suma, pode-se dizer que o teórico da inversão e da compensação
admite a reprodução direta da estrutura social ao menos nas
54

“religiões de moralidade principal”, e que a defensora da


“replication hypothesis” aceita, ao menos implicitamente, a
inversão ao sustentar que ao proceder simbolicamente os agentes
sociais terminam por abandonar a ação social real.
Essa concordância entre estes dois autores deriva
evidentemente dos postulados básicos do estrutural funcionalismo
que ambos adotam explicitamente. Firmemente ancorada na tradição
durkheimiana, essa corrente de pensamento antropológico começa por
recusar todo reducionismo de tipo bio-psicologizante a que chegam,
como vimos, tanto o evolucionismo quanto o culturalismo e o
funcionalismo de inspiração malinowskiana. Para isso, contudo,
termina por transpor este reducionismo externo para um plano
interno, pressupondo que todo o “social” não passa de expressão,
direta ou invertida, da estrutura social, entidade que em tal
sistema não pode deixar de ser definida, em termos quase
psicológicos, como o somatório das relações pessoa a pessoa. Tudo
se passa como se, de modo evidentemente absurdo, houvesse “dentro”
da sociedade uma sociedade mais real do que ela, e da qual a
primeira não passaria de projeção. Os funcionalistas tentam
resolver a óbvia contradição apelando para a tradicional dicotomia
sociedade/cultura, mas, ao fazê-lo, terminam por restringir o
simbolismo ao segundo destes domínios, reduzindo-o no mesmo golpe
a uma espécie de elaboração secundária efetuada sobre a realidade
(não-simbólica) das relações sociais concretas (para uma
elaboração refinada em torno deste ponto, cf. Sahlins, 1976: 117-
120).
É possível então, neste ponto tentar resumir as principais
posições do funcionalismo em relação à questão da possessão. Dos
quatro pontos abaixo, os dois primeiros são enfatizados pelos
autores de influência malinowskiana, enquanto os dois últimos
aparecem com mais nitidez naqueles seguidores da vertente
estrutural-funcionalista. Isto não significa uma exclusividade,
55

uma vez que os quatro temas aparecem em praticamente todos os


autores funcionalistas, bem como, de alguma forma, também nas
análises evolucionistas e culturalistas do transe:
a) A “ideologia” da possessão fornece uma explicação para
fenômenos psico-fisiológicos (mórbidos ou não) e provê a
sociedade com um mecanismo simbólico para lidar com as
enfermidade, especialmente com as doenças mentais.
b) A possessão é uma estratégia de alívio de tensões,
seja a nível das relações da sociedade com o meio-ambiente,
seja a nível das relações do indivíduo com a sociedade.
c) A possessão fornece um meio pelo qual indivíduos
socialmente desprivilegiados manipulam sua situação buscando
atingir status mais elevados e obter maior prestígio e poder.
d) A possessão possibilita a manutenção da ordem social:
seja porque transfere para os deuses decisões tomadas pelos
homens — impedindo assim um conflito entre grupos com
interesses opostos — seja porque, invertendo apenas
simbolicamente as posições sociais, evita uma inversão real que
transformaria a própria estrutura da sociedade.

6. As Estruturas Elementares do Xamanismo e da Possessão

O estruturalismo antropológico, talvez mais do que qualquer


outra corrente de pensamento nesta disciplina, é acima de tudo
obra de um autor. Aplicando à análise etnológica princípios
desenvolvidos em outros campos científicos, especialmente na
Lingüística estrutural, e transformando-os de acordo com as
necessidades, Claude Lévi-Strauss tentou explicitamente forjar
para a Antropologia um método de análise que evitasse e superasse
os principais impasses e dificuldades contidos nas abordagens
anteriores. E se existisse algum traço marcante na perspectiva
56

estruturalista, que paira, creio, acima das inúmeras discussões


por ela levantadas, é seu caráter essencialmente anti-
reducionista. Trata-se sempre, no caso do estruturalismo, de
estudar um fenômeno a partir de sua estrutura, definida aqui como
o jogo de transformações lógicas internas ao campo enfocado. Em
outros termos, qualquer que seja o fenômeno em questão —
parentesco, totemismo, mitologia, etc. — o estudo parte sempre do
pressuposto de que cada nível da realidade social é definível e
compreensível através de relações que lhe são imanentes, evitando-
se consequentemente reduzi-lo a alguma outra instância do real
tida, aprioristicamente, como mais substantiva ou determinante. É
verdade que Lévi-Strauss, em seus últimos escritos, tende a
pressupor a existência de um tipo de redução cientificamente
legítimo mas, como veremos mais adiante, ele não tem nada em comum
com o tipo de reducionismo que temos tratado até aqui.
Os fenômenos de transe e possessão são tratados apenas
marginalmente não obra do próprio Lévi-Strauss. Apenas três
artigos (Lévi-Strauss, 1949a; 1949b; 1950) de sua extensa produção
científica referem-se de uma forma mais direta ao assunto,
abordando-o principalmente pelo lado do xamanismo. Os dois artigos
de 1949 não se preocupam muito com a questão do êxtase
propriamente dito, consistindo antes, o primeiro numa tentativa de
explicação psico-sociológica para o recrutamento e a conversão de
xamãs, e o segundo, numa análise das condições simbólicas de
possibilidade para a eficácia fisiológica da cura xamanística. Já
na famosa “Introdução à Obra de Marcel Mauss” (Lévi-Strauss, 1950)
o tema é abordado de mais perto. E muito embora Lévi-Strauss
sugira a existência de algumas semelhanças estruturais entre os
fenômenos extáticos e as chamadas doenças mentais, o que convém
por ora (já que este ponto será retomado) é chamar a atenção para
a advertência feita por ele contra a apressada assimilação destes
57

fenômenos seja a perturbações psicológicas, seja a técnicas


“médicas” para seu tratamento:

“Cela ne signifie pas que les sociétés


dites primitives se placent sous l’autorité
de fous; mais plutôt que nou-mêmes traitons
à l’aveugle des phénomènes sociologiques
comme s’ils relevaient de la pathologie,
alors qu’ils n’ont rien à voir avec elle,
ou tout au moins, que les deux aspects
doivent être rigoureusement dissociés. En
fait, c’est la notion même de maladie
mentale que est en cause” (Lévi-Strauss,
1950: XXII).

A análise estrutural da possessão permanece então apenas em


estado de esboço na obra de Lévi-Strauss, e será preciso talvez um
dia completá-la. Enquanto isso devemos constatar que a tentativa
de elaboração desta teoria se encontra, de forma mais acabada, nas
mãos de Luc de Heusch que em três artigos, datados respectivamente
de 1964, 1971 e 1974, procura encontrar o sentido subjacente às
diferentes formas de manifestação empírica do transe nas várias
sociedades humanas. Autores como Gilbert Rouget (1980) ou Jean
Pouillon (1975) que, implícita ou explicitamente, pretendem
assumir um ponto de vista estruturalista, limitam-se, no que diz
respeito especificamente ao tratamento teórico da possessão, a
retomar as teses de Luc de Heusch, analisando sua conexão com
fenômenos marginais aos objetivos deste trabalho (música no caso
de Rouget; relações entre medicina, psicanálise e possessão no
trabalho de Pouillon). Para o que aqui interessa, o texto central
é sem dúvida o artigo de Heusch de 1971 que, retomando as
principais colocações de 1964, pretende oferecer uma visão
sintética do fenômeno em questão. Parece conveniente, pois, seguir
as idéias deste artigo, na medida em que elas indicam, por suas
58

virtudes, o caminho a ser seguido na busca de uma teoria


antropológica da possessão, como também mostram, por seus
defeitos, as armadilhas a serem evitadas num tal empreendimento.
Em primeiro lugar, Heusch busca definir logicamente um campo
estrutural próprio aos fenômenos extáticos. Para fazê-lo, sugere
que este campo estaria composto por quatro tipos de manifestação
extática que formariam, devido ao jogo de seus afastamentos
diferenciais internos, um “grupo de transformação”: xamanismo e
possessão se oporiam globalmente entre si, pois enquanto o
primeiro consiste numa ascensão dos homens até os deuses, a
segunda é sobretudo uma “descida” das divindades até o mundo e o
corpo humanos. Por outro lado, cada uma dessas duas modalidades de
transe se subdividiria em duas formas de manifestação: o xamã
tanto pode operar através da recuperação de almas perdidas pelos
homens — e temos aqui o que Heusch denomina de adorcismo, ou seja,
a cura através da introdução de alguma coisa no corpo do enfermo;
ou, para ser mais preciso neste primeiro caso, a reintrodução de
sua alma perdida — como através da extração de um suposto corpo
estranho que haveria se introduzido em alguém causando-lhe uma
doença — estaríamos às voltas então com um exorcismo, cura através
de extração.
Por seu turno, a possessão também apresentaria esses dois
tipos de manifestação, o adorcismo e o exorcismo. O primeiro
ocorreria no que Heusch denomina “possessão benéfica”, ou seja,
naqueles casos em que o próprio objetivo do culto é provocar a
incorporação das divindades nos fiéis; já o segundo tipo de
possessão seria encontrado nas “possessões maléficas”, casos em
que a incorporação ou influência espiritual é diagnosticada como
causa de uma enfermidade, devendo então proceder-se à expulsão do
espírito responsável. Existiriam portanto os quatro tipos
seguintes de manifestação extática:
59

a) o “xamanismo adorcista”, representado pelas práticas


siberianas classicamente estudadas por historiadores da
religião e antropólogos, onde o xamã viaja pelos espaços
míticos em busca da alma perdida do enfermo;
b) o “xamanismo exorcista”, que encontra seu exemplo na
prática terapêutica do xamã cuna descrita por Lévi-Strauss
(1949a), onde a cura depende da “extração” de uma criança que
se recusa a nascer, obstruída que está por determinada entidade
espiritual;
c) a “possessão adorcista”, caso clássico dos cultos
afro-brasileiros, entre outros, onde a intenção das práticas
rituais é provocar a descida dos deuses para que estes se
encarnem no corpo dos homens; e
d) a “possessão exorcista”, da qual poder-se-ia citar
como exemplo o tratamento dado à “possessão demoníaca” na
tradição judaico-cristã, e que consiste na expulsão de um
espírito cuja encarnação é pensada como causa de perturbações
físicas e mentais.
Estes quatro tipos de manifestação extática mantêm complexas
relações lógicas entre si, constituindo o que Luc de Heusch chama
de uma “geometria da alma”, e que ele sintetiza no seguinte
diagrama caracterizado, em seus próprios termos, por uma “dupla
simetria”, horizontal e vertical ao mesmo tempo:

ADORCISMO EXORCISMO
Xamanismo A Xamanismo B
(retorno da alma) (extração de uma presença estranha a si
mesmo)

Possessão A Possessão B
(injeção de uma nova (extração de uma alma estranha a si mesmo)
alma)
60

(Heusch, 1964: 266)

Teríamos assim nas linhas verticais adorcismo e exorcismo, que se


opõem logicamente termo a termo, e nas horizontais, ascensão (os
dois casos de xamanismo) e descenso (as duas formas de possessão),
que também estão opostos em bloco: completar-se-ia portanto o
“grupo de transformação” esboçado por Luc de Heusch e
característico, sabe-se, do método estrutural.
No entanto, e conforme o próprio Lévi-Strauss o sustentou
(cf. Lévi-Strauss, 1975: 26), a constituição de um grupo de
transformação não corresponde ao objetivo último da análise
estrutural mas, ao contrário, pretende fornecer apenas seu ponto
de partida ao corresponder ao momento de construção de seu objeto
teórico, objeto que deve então ser exaustivamente analisado. Ora,
é aqui justamente que se encontra o ponto cego do trabalho de Luc
de Heusch, uma vez que, ao invés de buscar esgotar as
determinações internas a seu objeto, ele se dedica apressadamente
a explicá-lo através de uma comprometedora redução a outro nível
de realidade, esquecendo, parece, a lição levistraussiana de que a
explicação se encontra já, de forma imanente, nas relações lógicas
entretidas pelos componentes do grupo, não havendo portanto nem
necessidade nem sentido em buscá-la em outra parte.
Heusch, por sua vez, pretende fundar a razão última do
transe, seja ele de possessão ou xamanístico, na experiência
“universal” da infelicidade e da desgraça, representada da forma
mais pura, segundo ele, pela enfermidade:

“A prática religiosa universal das


sociedades chamadas arcaicas mostra
suficientemente que no plano individual o
rito é, muito freqüentemente, resposta à
desgraça e ao fracasso. E sem dúvida a
experiência pessoal mais dolorosa da
61

desgraça não cessou de ser a da


enfermidade. Nosologia e religião se acham
sempre estreitamente soldadas; nas culturas
pré-científicas esses domínios não chegaram
a se separar completamente nem no próprio
seio do cristianismo” (Heusch, 1971: 280).

A primeira redução operada por Heusch conduz portanto da religião


à angústia experimentada frente à “desgraça e ao fracasso”; a
segunda leva da infelicidade à enfermidade. Finalmente, a terceira
conduzirá da enfermidade em geral até sua forma específica de
“doença mental”:

“Pode-se inclusive dizer que a doença


mental é a doença por excelência, já que a
propriedade ‘sobrenatural’ de toda doença
se afirma nela com o máximo de notoriedade.
Nela é onde se expressa em estado puro o
vínculo entre doença e religião,
substituindo o ser do espírito, momentânea,
periódica ou definitivamente, ao ser do
homem, na mais inquietante das epifanias”
(Heusch, 1971: 284).

A partir dessa tríplice redução fica bastante fácil


“explicar” o transe. Este consistira então num mecanismo
universalmente apto a funcionar como uma “resposta para a
enfermidade”; os diversos tipos de possessão e xamanismo isolados
(poder-se-ia talvez perguntar para que) trabalhariam e utilizariam
um dado natural — a doença, especialmente a mental — construindo
intrincados sistemas simbólicos cuja única função, parece, seria a
de se oporem à angústia sentida em relação à degradação do próprio
corpo (cf. Heusch, 1971: 283). Assim, alguns sistemas investiriam
nas doenças fisiológicas, outros nas mentais, seja arrebanhando
62

entre os enfermos seus xamãs e/ou possessos, seja encontrando


entre eles os pacientes adequados para seus sacerdotes-médicos,
seja, finalmente, fazendo uma coisa e outra:

“o transe pode aparecer como o aspecto


cultural da doença mental (...) ou, pelo
contrário, em virtude de uma inversão
radical que fundamenta o campo estrutural,
como o instrumento generalizado da ação
terapêutica” (Heusch, 1971: 294).

Procedendo desta maneira Luc de Heusch afasta-se do


estruturalismo que pretende praticar, dirigindo-se aos terrenos
menos sólidos do culturalismo e do funcionalismo (especialmente
malinowskiano) e, atrás deles, do evolucionismo vitoriano. Um
estudo verdadeiramente estruturalista deveria adotar uma
perspectiva muito diferente. Criticando aqueles que pretendem
explicar determinados tipos de ordem através de sua redução a
conteúdos de outra natureza, Lévi-Strauss escrevia em 1971:

“Le structuralisme authentique cherche, au


contraire, à saisir avant tout, les
propriétés instrinseques de certains types
d’ordres. Ces propriétés n’expriment rien
qui leur soit extérieur” (Lévi-Strauss,
1971: 561).

O estruturalismo autêntico se opõe então diametralmente ao


reducionismo e é esta, vale repetir, uma das inúmeras novidades
introduzidas na Antropologia por Lévi-Strauss, na medida em que,
como vimos, todas as correntes anteriores estão marcadas por um
reducionismo global que assume em cada autor uma feição
particular. Deste ponto de vista, a teoria de Luc de Heusch
somente se acrescenta às anteriormente resumidas sem apresentar
63

qualquer novidade. Uma explicação “autenticamente” estruturalista


para a possessão deveria, ao contrário, ser construída a partir de
certas observações de Lévi-Strauss acerca da religião em geral
(especialmente em Lévi-Strauss, 1971; 1975; 1976) e do transe (cf.
Lévi-Strauss, 1950). Por ora, contudo, convém abandonar esta
discussão teórica mais geral que será retomada e desenvolvida no
último capítulo deste trabalho.

A partir do que foi exposto acima então, creio ser possível


isolar dois temas recorrentes no discurso antropológico a respeito
da possessão, temas que fornecem para os diferentes autores
supostas chaves explicativas para dar conta deste complexo
fenômeno. Em primeiro lugar, a conexão postulada entre possessão e
enfermidade (ou, ao menos, certas formas às vezes consideradas
como não-patológicas de “dissociação da personalidade”, o que não
altera em nada a questão): ora considerando o êxtase como doença,
e mais especificamente como doença mental, ora tomando-o como
forma de tratamento “pré-científico” para perturbações
psicofisiológicas, a Antropologia tem sustentado desde Tylor que
transe e doença transcorrem sobre um mesmo plano lógico. O outro
tema presente nas análises antropológicas da possessão é o de seu
caráter político, funcionando como canal de manifestação para
segmentos sociais oprimidos ou como estratégia de manutenção da
ordem social, tratando-se então nestes casos de um terreno aberto
para manipulações individuais que procurariam alterar o equilíbrio
do poder em seu próprio benefício. Duplo reducionismo pois: ao
bio-psicológico no primeiro caso; ao sócio-político no segundo.
Tentarei mostrar mais adiante as razões pelas quais
considero inadequadas, de um ponto de vista estritamente
antropológico, essas duas concepções fundamentais acerca do
transe, tentando elaborar sua crítica e indagando a respeito da
possibilidade de construção de uma teoria antropológica da
64

possessão que escape a esses dilemas. Antes disso contudo, parece


conveniente tentar perceber como princípios teóricos gerais operam
quando aplicados a realidades etnográficas concretas. Para isso
procederei a uma revisão das diversas modalidades de explicação do
transe geradas a partir das análises de manifestação deste
fenômeno nos quadros dos chamados “cultos afro-brasileiros”.
Perceber-se-á então que os temas básicos isolados acima aparecerão
aí também, de forma ainda mais explícita, e nesse ponto será
possível elaborar uma crítica e tentar seguir adiante.
65

CAPÍTULO II

A POSSESSÃO NO BRASIL

1. Introdução

Vimos no capítulo anterior que o tipo de interesse


manifestado pelo Ocidente em relação aos fenômenos extáticos
observáveis nas “outras” sociedades com quem a aventura colonial o
colocava em contato pode ser entendido, ao menos em parte, como
resultado de uma projeção da relação que a própria sociedade
ocidental tem mantido com o transe e a possessão em seu próprio
interior. Ora, sendo esta relação marcada fundamentalmente por uma
exclusão e pela recusa do êxtase como resultante de uma natureza
patológica, e sendo que as sociedades “primitivas” ofereciam uma
espécie de imagem invertida desta situação, por localizarem
freqüentemente a possessão no centro de suas atividades “normais”,
a observação do transe e de seu lugar nessas sociedades não
poderia deixar de provocar um certo questionamento, implícito, de
alguns dogmas ocidentais. Este questionamento, contudo, não foi
evidentemente levado adiante, ao menos nesse primeiro momento,
tendo-se produzido ao contrário uma tentativa de neutralização
desta ameaça lógica. Para esta tentativa, a recente “ciência da
sociedade” parece ter contribuído de alguma forma, ao buscar
reduzir os fenômenos extáticos a formas de patologia ou de poder
bastante conhecidos pela sociedade ocidental.
Ora, se esse violento processo etnocêntrico de rejeição
ocorre quando de um contato com sociedades “exóticas” e distantes,
próximas apenas em função de contingências políticas e econômicas
derivadas da exploração colonial, pode-se imaginar o que
aconteceria quando os fenômenos sujeitos a esse processo se
66

encontram no seio, ou ao menos ao lado, da própria cultura que


busca rejeitá-los. É claro que algo assim também se passa na
Europa vitoriana, na medida em que o nascimento da Antropologia
Social e de sua preocupação com o êxtase, preocupação aliás
compartilhada com fervor pela psiquiatria da época, coincidem com
a formação de um culto extático, o espiritismo “científico”
europeu. Mas não pode haver termo de comparação entre este
processo e o que ocorre numa sociedade onde convivem, lado a lado,
as ambições cientificistas do século XIX ocidental, e
manifestações religiosas de transe e possessão oriundas de
“primitivas” sociedades africanas. É exatamente isto que ocorre no
final do século XIX no Brasil, onde o segmento branco dominante
busca afirmar e reafirmar seu alto grau de “civilização” e
libertar-se das amarras de um passado visto como obscurantista e
inferior.
Neste sentido, quando começam a surgir no Brasil os esboços
de uma ciência social, é exatamente para este problema, mais
sócio-político do que teórico, da convivência entre uma sociedade
civilizada, branca e “européia”, com uma outra, primitiva, negra
ou indígena, que as atenções se voltam. E se, num primeiro
momento, são as populações indígenas e sua assimilação que
constituem o foco das preocupações, já a partir de 1873 com Silvio
Romero a questão negra começa a ser encarada no contexto de uma
problemática geral com a formação étnica e cultural da sociedade
brasileira (cf. Pereira de Queiroz, 1978: 101-102). Mas será
apenas com Nina Rodrigues, a partir da última década do século
XIX, que o “negro” passa a ser um objeto de investigação em si
mesmo, investigação incitada por um problema central, aquele da
“integração do negro” na sociedade abrangente a partir da
Abolição: como pensar a coexistência igualitária de duas raças
intelectual e culturalmente desiguais sem pôr em risco a harmonia,
o ordem e o desenvolvimento do país (cf. Rocha, 1973)? Os autores
67

que se sucedem — Euclides da Cunha, Manuel Querino, Oliveira


Vianna, Gilberto Freyre, Arthur Ramos — permanecerão todos dentro
desta questão “dualista” básica, variando apenas o “pessimismo” ou
o “otimismo” respectivo de cada um deles, desde o temor de Nina
Rodrigues pelo “enegrecimento” da civilização branca brasileira
com sua conseqüente e inevitável queda na barbárie e na
selvageria, até a apologia integracionista de Gilberto Freyre. Em
outros termos, como sustenta Maria Isaura Pereira de Queiroz, a
noção central a todos esses autores é:
“a noção de que a integração só é possível quando há
harmonia entre as diversas partes que constituem o conjunto —
harmonia que para alguns resultaria da semelhança indiscutível
entre estas partes (...) e para outros se basearia na indiscutível
dominação de uma raça superior sobre as raças inferiores” (Pereira
de Queiroz, 1978: 110).

É assim num tal contexto, simultaneamente teórico e político,


que surge o interesse nos chamados cultos africanos no Brasil.
Afinal, estes não poderiam deixar de ser vistos como prova e
exemplo claros da “heterogeneidade dos espíritos” para retomar uma
expressão significativa de Nina Rodrigues: cultos “bárbaros e
primitivos” no próprio coração de uma moderna sociedade cristã e
científica. E é bastante evidente que no interior dos estudos
sobre tais cultos a possessão ocupará um lugar central compondo,
como um de seus traços mais aberrantes, o quadro primitivo e
aterrorizante que se imaginava poder pintar da cultura negra no
Brasil. Roger Bastide, um tanto ingenuamente, parece acreditar que
a ênfase obstinada com que a possessão foi estudada pelos
primeiros pesquisadores dos cultos afro-brasileiros se deveria ao
fato de que, em sua maioria, estes pesquisadores eram médicos de
formação. Ora, parece óbvio, ao contrário, que, além da questão
central da “eugenia” (seja em sua forma diretamente biológica da
mestiçagem racial e dos males por ela pretensamente causados, seja
em sua transformação antropológica com o “sincretismo religioso”,
esta “mestiçagem do espírito” como a chamava Nina Rodrigues — cf.
68

Rocha, 1973: 08), são exatamente esses estados “mórbidos” do


transe que parecem ter feito com que médicos-legistas e
psiquiatras tivessem se dedicado ao estudo de um objeto tão
distante de suas preocupações cotidianas. A partir de tais
pressupostos, o destino do transe nos cultos afro-brasileiros só
poderia ser mesmo o gabinete médico, e o diagnóstico que lá o
espera será, inevitavelmente, o de “enfermidade mental”. É
justamente esta a posição dos primeiros estudiosos do assunto.

2. As Explicações Médico-Psiquiátricas

Foi então Raimundo Nina Rodrigues o primeiro a se interessar


de forma mais direta pela posição ocupada pelos negros africanos
trazidos como escravos e por seus descendentes no seio da
sociedade brasileira. Seus primeiros trabalhos sobre este tema são
explicitamente médicos, ou de medicina “social” talvez. Consistem
eles numa série de artigos escritos entre 1883 e 1898, publicados
por Arthur Ramos meio século mais tarde (cf. Nina Rodrigues,
1939). Estes artigos tratavam basicamente dos problemas
patológicos, tanto individuais quanto sociais, causados pela
mestiçagem racial, desde sublevações populares como Canudos
(episódio classificado como “loucura epidêmica”) até bárbaros
assassinatos como aqueles praticados por Lucas da Feira (cf.
também Rocha, 1973: 05-07). A partir desses estudos, Nina
Rodrigues projeta um grande trabalho a respeito do “problema da
raça negra na América Portuguesa”, trabalho do qual o estudo dos
fenômenos religiosos deveria constituir apenas uma parte, mas que
terminou por ser a única coisa publicada pelo próprio autor,
primeiramente em 1896 na “Revista Brazileira” e depois, quatro
anos mais tarde, como livro editado na Bahia em francês. Tratava-
se, de seu ponto de vista, de contribuir para a solução dos
problemas raciais e sociais levantados pela formação do povo
69

brasileiro, de estudar ao mesmo tempo as mestiçagens “racial e


espiritual” às quais ele estaria submetido, tudo isso sem jamais
perder de vista sua condição de médico, tal como afirma na
Introdução de sua principal obra:

“Je suis médecin, j’ai à peine besoin


de le dire et n’ai pas d’autre ambition.
Les excursions de la médicine dans le
domaine de l’amélioration ou du
perfectionnement des peuples ont inspiré
ces pages consacrées au service — petit
sans doute, car je ne saurait faire mieux —
de ma chére patrie” (Nina Rodrigues, 1900:
VI-VII)6.

Dentro deste projeto global bastante ambicioso, o estudo dos


fenômenos religiosos de procedência africana possuía um duplo
objetivo, objetivos igualmente importantes para a demonstração da
tese geral: em primeiro lugar estabelecer a própria realidade das
“sobrevivências africanas”, negando que a catequese a que tinham
sido submetidos os escravos, bem como o catolicismo que eles
haviam aparentemente adotado, fossem mais do que um simples verniz
encobrindo o segredo de tradicionais práticas mágico-religiosas (e
nesse ponto Nina Rodrigues se considera um inovador lutando contra
os “lugares-comuns da ciência oficial”). Além disso, tratava-se de
demonstrar que, por sua existência mesmo, essas “sobrevivências”
eram prova cabal de uma inferioridade mental da raça negra que a

6 Nina Rodrigues abre a edição em francês de “O Animismo


Fetichista” (publicada contudo em Salvador) com uma “Advertência”
que chama a atenção para a “ignorância dos nossos tipógrafos” em
relação à língua francesa, o que explicaria os inúmeros erros
ortográficos da edição. As citações aqui utilizadas mantêm a forma
original da impressão do texto.
70

tornava incapaz de absorver plenamente as “altas abstrações do


monoteísmo cristão”. É com esse intuito, para provar esta tese
básica, que Nina Rodrigues passa cinco anos visitando e estudando
os terreiros de Candomblé de Salvador e do Recôncavo Baiano (cf.
Nina Rodrigues, 1900: 03-04).
A hipótese de Nina Rodrigues é pois, desde o início,
biologizante, na medida em que atribui um determinado tipo de
religião a um certo grupo racial. Mas, de uma forma um tanto
curiosa este biologismo racista se encontra mesclado com uma série
de concepções extraídas do “evolucionismo social”, especialmente
de Tylor e de Andrew Lang. Curiosa porque, sabe-se, o
evolucionismo social vitoriano tendeu sempre, explícita ou
implicitamente, a colocar-se em oposição ao determinismo racial,
ao admitir como princípio fundamental uma “unidade do espírito
humano” formalmente invariável, sendo o progresso considerado
antes como função do acúmulo e aperfeiçoamento de experiências e
conhecimentos do que de transformações de ordem biológica. Nina
Rodrigues, num primeiro momento, cruza estas duas concepções,
sustentando que as “leis da evolução psicológica” seriam as mesmas
em todas as raças, e não em todas as sociedades ou culturas como
tendia a dizer o evolucionismo social clássico (cf. Nina
Rodrigues, 1900: 135). Procedendo assim, ele transforma a analogia
darwinista presente no pensamento evolucionista numa verdadeira
homologia, tratando os diferentes ramos da humanidade como
verdadeiras espécies biológicas substantivamente distintas umas
das outras. Deste modo, a catequese e a conversão, e de modo mais
geral a própria integração do negro na sociedade brasileira teriam
que esperar que este atingisse um certo grau de maturidade
intelectual, fruto direto de sua lenta evolução racial. Só então,
acreditava ele, a integração teria alguma possibilidade de sucesso
e, enquanto isso não acontecia, o mais indicado e o mais saudável
71

seria manter as duas “raças” totalmente separadas, evitando assim


os perigos da miscigenação racial e intelectual.
Uma segunda etapa do pensamento de Nina Rodrigues consiste
então em tentar classificar, numa escala de tipo evolucionista, a
religião afro-brasileira. A tarefa não parece muito fácil já que a
seus olhos coexistiriam em tais cultos elementos oriundos de
diferentes estágios evolutivos, indo desde
“le fétichisme le plus étroit et le plus nuancé aux bornes
des généralistions polythéistes...” (Nina Rodrigues, 1900: 11).
Finalmente, após uma série de considerações ele termina por
considerá-la uma manifestação de “animismo difuso” de um
“fetichismo” global, tomando de empréstimo a André Lefèvre essas
expressões. Isto significa, para simplificar, que, para Nina
Rodrigues, os negros afro-brasileiros atribuiriam vida a seres
inanimados (o que corresponderia ao “fetichismo”) e, de modo mais
específico, emprestariam a cada ser ou coisa um “duplo”
independente de seu corpo (o que caracterizaria o “animismo
difuso”). Essas religiões ocupariam portanto uma posição bastante
baixa na escala evolutiva dos sistemas de crenças, posição tida
como congruente ao parco nível de desenvolvimento mental da “raça
negra”, inferior mesmo para nosso autor àquele atingido pelo
indígenas brasileiros (cf. Nina Rodrigues, 1900: 14). Ora, é
dentro deste quadro de referências, ao mesmo tempo evolucionista e
biologizante, que uma explicação para o transe e a possessão será
buscada.
A esse respeito, pode-se dizer talvez que existe um certo
exagero na afirmativa de Roger Bastide de que Nina Rodrigues — por
sua condição de médico, novamente — teria centralizado todo o
culto do Candomblé no transe extático, negligenciando outros
aspectos fundamentais do ritual e da mitologia. Na verdade, menos
de um quarto do “Animismo Fetichista” é consagrado à possessão, e
temas como o sistema mitológico, o panteão divino, os sacrifícios,
72

os ritos fúnebres, a divinação, etc., ocupam também uma porção


significativa do trabalho. No entanto, é certo que o autor
localiza no transe um dos pontos capitais dos cultos afro-
brasileiros, e isto não devido a sua profissão, mas basicamente
porque Nina Rodrigues acreditava que, tanto para o fiel quanto
para o cientista, estava aí, na possessão, a prova definitiva seja
da eficácia, seja da especificidade última desse tipo de culto.
Para o fiel, em primeiro lugar, porque:

“La meilleure prouve de la sincérité


et de la conviction des nègres fétichistes
— simples croyants, prêtres ou pontifes —
c’est précisément cette manifestation de
phénomènes étranges et anormaux, cette
aliénation passagère, mais vraie,
incontestable, dont ils ignorent les causes
et qu’ils attribuent à l’intervention
surnatureelle du fétiche” (Nina Rodrigues,
1900: 78).

Ou seja, tudo se passa como se a possessão, encarnando o


deus no homem, materializando sua existência invisível e abstrata,
criasse no fiel, que ignora as verdadeiras causas do fenômeno em
questão, a certeza de sua presença e de sua eficácia.
Mas a possessão também é essencial para o cientista que
busca justamente descobrir as “verdadeiras causas” do fenômeno.
Estas serão encontradas, sem muita dificuldade, no estreito
parentesco presumivelmente existente entre o transe e certos tipos
de distúrbios e perturbações psicológicas:

“D’aprés ce que j’ai entendu, d’aprés


les cas que j’ai observé et les examens aux
quels je me suis livré, je suis porté a
croire que les oracles fétichistes possédés
de saint ne sont autre chose que des états
73

de somnambulisme provoqués avec


dédoublement et substitution de la
personnalité” (Nina Rodrigues, 1900: 81)7.

Tais distúrbios e transformações seriam provocados por uma


série de técnicas em ação durante os rituais do culto: ingestão de
ervas alucinógenas, abstinência alimentar e sexual, esgotamento
causado pelas danças, efeito hipnótico da música, e assim por
diante. Seriam também em tudo homólogos àqueles estados e
comportamentos observáveis nas crises histéricas, e é dessa
semelhança de forma que Nina Rodrigues extrai a causa última da
possessão. Esta consistiria simplesmente numa determinada forma
cultural de que é investida a perturbação de origem histérica8:

“Quel que soit d’ailleurs le procédé


employé, l’état de somnambulisme une fois
provoqué, la création de la forme
psychologique est toujours affaire de la
suggestion ambiante” (Nina Rodrigues, 1900:
84).

Extraindo então de Pierre Janet e de seus estudos sobre o


mediunismo os conceitos de “histeria”, “sonambulismo” e
“desdobramento da personalidade”, Nina Rodrigues faz do transe o
reflexo direto destas perturbações psicológicas, atribuindo ao

7 É interessante observar como a explicação de Nina Rodrigues,


apesar de tudo, se aproxima do modelo nativo. A primeira iniciada
em cada grupo de noviças é chamada “Dofona”, palavra Yoruba que
significa literalmente “tornar-se vazio em primeiro lugar”.
8 Essa combinação, tantas vezes efetuada, entre possessão e
histeria, é significativa. Sabe-se que com Freud a noção de
histeria foi desubstantivada e privada de toda realidade
discriminadora. Aconteceria então com a possessão o mesmo que com
a histeria (e, evidentemente, com o totemismo — cf. Lévi-Strauss,
1975: 13)?
74

“meio social” apenas a capacidade de direcionar essas


manifestações. Mas restava ainda uma “última” dificuldade: os
psiquiatras da época tendiam a negar a existência da histeria
entre os membros raça negra. Ora, se isto fosse verdade, como
explicar então o êxtase pela histeria se as “vítimas” mais
constantes do primeiro eram imunes à segunda? Para contornar a
objeção, Nina Rodrigues começa por tentar comprovar a existência
de crises histéricas entre os “negros baianos”, embora admitindo
que sua freqüência seria aí muito menor do que aquela observável
entre brancos ou mesmo entre mestiços. Por fim, ele concorda em
admitir, seguindo Janet, que outras causas poderiam gerar o
“desdobramento da personalidade”, causas entre as quais estariam a
“alienação”, a “neurastenia”, a “estupidez”, a “imbecilidade” e a
“idiotia”, entre outras formas de perturbação:

“Or, étant donné le faible


développement intellectuel des nègres
africains et la néurasthérie devant être la
conséquence de l’épuisement où les plongent
toutes ces pratiques ne constitueraient-
elles pas, par hasard, les conditions de ce
dédoublement de personnalité avec état de
possession sugestive, que nous avons
étudiées sous la dénomination d’état de
saint (...). Le faible développement
intellectuel du nègre primitive, aidé par
les pratiques épuisantes des superstitions
religieuses, envisagé comme facteur de
l’état de possession de saint, équivaut
donc à l’hystérie qui, pour les nègres plus
intelligents, constitue ce facteur” (Nina
Rodrigues, 1900: 105-106).

Em suma, uma dimensão biológica é acrescentada à explicação


psico-social esboçada de início, já que a causa do “desdobramento
75

da personalidade” entre brancos, mestiços e “negros mais


inteligentes” — a histeria — teria como equivalente entre os
“negros primitivos” uma característica racial sua, seu “fraco
desenvolvimento intelectual”. Pode-se então resumir esta primeira
posição acerca do êxtase nos cultos afro-brasileiros dizendo-se
que, para Nina Rodrigues, a possessão é um estado patológico
provocado por uma histeria individual associada a um fraco
desenvolvimento de uma certa raça e a um impulso social do meio
que fornece tão somente as direções que o comportamento desta
personalidade patológica tomará: psiquiatria, biologia e
antropologia mesclam-se então através da ação solvente de um
evolucionismo global extremamente bem marcado.

Cerca de trinta anos depois de Nina Rodrigues, o estudo


sistemático dos cultos afro-brasileiros será retomado por Arthur
Ramos. Seu ponto de partida não é muito diferente daquele de quem
ele se considera um discípulo direto. Também médico-legista e
psiquiatra, seu primeiro livro, datado de 1926, intitula-se
significativamente “Primitivo e Loucura”, mas, apesar disto,
procurará marcar alguns pontos de discordância e ruptura em
relação a seu predecessor e mestre. A principal censura dirigida
por Arthur Ramos a Nina Rodrigues diz respeito ao fato de este
último ter baseado, como acabamos de ver, seus estudos e suas
explicações num pretenso estado mental inferior, próprio ao negro
enquanto raça, estado que explicaria desde o sincretismo religioso
(pela incapacidade de compreensão do monoteísmo cristão) até a
possessão (por gerar, ao lado da histeria, os “estados de
sonambulismo com desdobramento da personalidade”). Ramos, ao
contrário, deslocará a ênfase da psiquiatria para a psicanálise e
da antropologia evolucionista intelectualista para os estudos de
“mentalidade primitiva” de Lucien Lévy-Bruhl. Neste sentido, as
particularidades dos cultos afro-brasileiros deveriam ser buscadas
76

e explicadas não através de possíveis caracteres biológicos, mas


nas estruturas “psico-sociológicas” de uma “mentalidade primitiva”
que, longe de constituírem apanágio dos negros como raça, seriam
encontradas também entre as crianças, entre os neuróticos, e nas
obras de arte e sonhos de qualquer grupo racial, inclusive entre
os “brancos civilizados” (cf. Ramos, 1940: 27-31).
Assim, por exemplo, ao invés de explicar o sincretismo
religioso pela suposta incapacidade negra em absorver a abstrata
teologia cristã, como havia feito Nina Rodrigues, Ramos atribuirá
tal sincretismo a uma analogia entre os “inconscientes coletivos”
do branco e do negro, analogia que teria feito corresponderem
santos católicos e orixás africanos precisamente naqueles pontos
em que ambos corresponderiam aos mesmos “complexos” fundamentais.
Deste modo, a equivalência entre a mãe d’água européia, a Iara
indígena e a Iemanjá africana repousaria sobre similitudes
inconscientes relacionadas a um certo arquétipo materno; os Orixás
masculinos seriam “fálicos”, a adoração dos gêmeos corresponderia
a uma manifestação do narcisismo primário através da duplicação do
“eu”, e assim por diante (cf. Ramos, 1940: 2a Parte). Vê-se assim
como a psiquiatria de Janet tão utilizada por Nina Rodrigues cede
terreno à psicanálise dos arquétipos de Jung.
A segunda modificação da teoria de Nina Rodrigues por parte
de Arthur Ramos — a passagem de Tylor e do evolucionismo para a
teoria de Lévy-Bruhl — pode bem ser ilustrada pela interpretação
por ele construída para dar conta dos fenômenos de transe e
possessão nos cultos afro-brasileiros. À primeira vista, sua
abordagem dessa questão poderia mesmo chegar a fornecer uma falsa
impressão de afastamento em relação ao modelo médico-psiquiátrico
de seu predecessor. A objeção levantada contra a assimilação do
transe às perturbações histéricas poderia de fato conduzir a um
entendimento desse tipo:
77

“Como argumenta Oesterreich, se o


parentesco das crises histéricas com os
casos de possessão é evidente, estes
estados não são idênticos. Encarados
exteriormente, a semelhança é perfeita
entre estas contorsões, esta excitação
motora que tanta atenção despertam. A
diferença é, antes de tudo, no domínio
psíquico” (Ramos, 1940: 274).

Ou melhor ainda:

“Vê-se desta maneira que os fenômenos


de possessão não podem ser identificados
somente à histeria como pregou a escola de
Charcot. São muito mais complexos (Ramos,
1940: 282).

Mas, se Arthur Ramos nega a existência de uma conexão direta


entre possessão e histeria, isso não é feito de forma alguma para
retirar o êxtase religioso do quadro etiológico das perturbações
mentais. O que ele censura nessa assimilação não é, como se
poderia imaginar, seu reducionismo extremado mas, bem ao
contrário, sua estreita timidez. Para ele o parentesco entre
histeria e possessão é apenas uma das possibilidades de
enraizamento do transe no domínio do patológico, na medida em que
ele se assemelharia também a todo um complexo quadro, bastante
variado, de distúrbios psicológicos:

“Sintetizando: a possessão espírito-


fetichista é um fenômeno muito complexo,
ligado a vários estados mórbidos. Pode ser
aguda ou crônica. No primeiro caso, nas
formas paroxísticas, transitórias, temos
aqueles processos, afins da histeria, onde
78

se verificam os mecanismos motores de


reação ancestral: ‘tempestade de movimento’
e ‘reflexo de imobilização’, e formas
hiponóicas de pensamento mágico-catártico,
comuns da histeria, dos estados
sonambúlicos, hipnóticos, oníricos,
esquizofrênicos, com modificações da
consciência e da personalidade. Nos casos
sub-agudos e crônicos, as perturbações
demonopáticas e mediumnopáticas dos
possessos, acham-se ligadas ao automatismo
mental, e vão desde os fenômenos
xenopáticos simples, até aos delírios mais
complexos, à base da influência” (Ramos,
1940: 284).

Todo este arrazoado que parece extraído diretamente de um


manual de nosologia psiquiátrica significa simplesmente que Arthur
Ramos busca dissolver a possessão num vasto campo etiológico de
perturbações mentais. O que haveria de comum entre essas
manifestações patológicas todas seria seu caráter “regressivo”, na
medida em que fariam atuar

“esses estratos afetivos profundos,


arcaicos, resto hereditário de um primitivo
estágio da vida, daquela esfera mágico
catártica das reações afetivas” (Ramos,
1940: 283).

Em outro termos, não apenas a possessão é uma “doença


mental”, como várias doenças mentais conduziriam, na ordem
ontogenética, até ela, por gerarem regressões a estágios
evolutivos ultrapassados, representados filogeneticamente pelos
próprios cultos de possessão.
79

Até aqui, nada de antropologia social. No entanto, assim


como para Nina Rodrigues a assimilação do transe à histeria não
bastava para dar conta de sua manifestação nos cultos afro-
brasileiros — pois era preciso manifestamente explicar o tipo de
religião que concedia um lugar a tais processos — também Arthur
Ramos se vê obrigado a acrescentar uma dimensão “etnológica” para
sua explicação. Esta dimensão será encontrada justamente na
estrutura “pré-lógica” da “mentalidade primitiva” negra. Para
Lévy-Bruhl, de quem tais conceitos são diretamente extraídos, o
específico dessa “lógica primitiva” seriam as “participações” que
ela supõe existir entre todos os elementos e compartimentos do
universo, uma “confusão mística” onde

“o eu se confunde com o não-eu, onde


o microcosmo não se separa do macrocosmo e
onde o real não conhece limitação com o
irreal” (Ramos, 1940: 296).

A partir daí, não fica difícil explicar as razões pelas


quais a possessão tenderia a ocupar um lugar privilegiado nas
religiões “primitivas”:

“Torna-se evidente que, nas proto-


religiões selvagens, o essencial do culto é
o contato com as divindades, que o
primitivo provoca em várias práticas da sua
liturgia simbólica. É a busca desta
‘consciência da presença dos espíritos’
(...). Daí, a universalidade, entre os
primitivos, dos fenômenos de possessão,
verdadeiramente a mais perfeita forma desta
fusão mística com a divindade” (Ramos,
1940: 260).

Em síntese, para Arthur Ramos, os cultos afro-brasileiros em


geral representariam a persistência de um certo tipo de
80

mentalidade característica de uma dada fase de desenvolvimento


sócio-cultural, mentalidade que, transplantada para outros
ambientes, passa a conviver com formas mentais mais avançadas,
tendendo neste processo a evoluir ao assimilar alguns elementos
destas formas. Neste contexto, a possessão é encarada como um dos
procedimentos mais adequados para atualizar as estruturas desse
tipo de mentalidade primitiva, ou seja, como uma técnica que
asseguraria (de modo ilusório, é claro) a “participação mística”
entre homens e deuses. Finalmente, a natureza última desta técnica
deveria ser buscada em seu estreito parentesco com todo um quadro
de perturbações mentais que possuiriam em comum o fato de
consistirem em regressões a estados arcaicos do psiquismo
individual que coincidem com primitivos modos de vida da espécie.

Se uma relativa atenção foi aqui dedicada às contribuições


de Nina Rodrigues e Arthur Ramos para o estudo dos cultos afro-
brasileiros em geral e do lugar da possessão em seu interior em
particular, isso não se deve, evidentemente, a possíveis grandes
méritos teóricos de suas análises. Efetuadas há mais de meio
século, encontram-se de tal modo comprometidas pela evolução do
pensamento antropológico que sua desconstrução crítica pode passar
mesmo por um certo anacronismo. Acontece contudo que estes dois
autores balizaram um certo espaço, delimitaram um determinado
campo teórico que, com raríssimas exceções, continuou sendo
durante muito tempo o locus clássico de análise dessas religiões.
Isto é mesmo verdadeiro não somente para aqueles que seguiram
explicitamente seus postulados básicos, mas também para os autores
cujas pesquisas se desenvolveram contra suas hipóteses. Ou seja,
parece-me que Nina Rodrigues e Arthur Ramos definiram uma certa
problemática teórica com a qual se tem, desde há muito, ora
concordado ora discordado violentamente, mas da qual ainda não se
conseguiu escapar completamente. Esta problemática fundamental
81

consiste basicamente numa indagação acerca da estranha permanência


dos cultos afro-brasileiros numa sociedade que se moderniza
velozmente, e dentro desta questão global é que se tem colocado
usualmente o problema teórico do transe e da possessão. Mais
adiante, no contexto de uma crítica global a esta problemática,
retornarei a essas observações. Por ora, convém continuar
esboçando o quadro de desenvolvimento das pesquisas sobre as
religiões africanas no Brasil e sobre o lugar do êxtase em seu
interior.
Acabamos de ver que o que caracteriza a primeira forma de
abordagem desses temas é uma tentativa de reduzir o transe a uma
psico-fisiológica em relação à qual o “meio social”, como dizia
Nina Rodrigues, atua apenas fornecendo uma vestimenta cultural ou
a encaminhando numa dada direção. É esta também, basicamente, a
posição de uma série de outros autores. Manuel Querino, por
exemplo, muito embora critique a visão racista e preconceituosa de
seu contemporâneo Nina Rodrigues, e não adote a tese de ser a
possessão um distúrbio mental, acaba reduzindo-a a um efeito de
dissociação da personalidade produzido pela ingestão de drogas
fabricadas a partir de ervas tradicionais e catalizado pela ação
das danças e das músicas acompanhadas pelo toque dos atabaques,
processos que engendrariam a “auto-sugestão” responsável pelo
transe (cf. Querino, 1938). Mais recentemente, Donald Pierson, em
1942, e Edison Carneiro, em 1948, retomarão sem modificações essas
idéias (cf. Pierson, 1971; cf. Carneiro, 1961; 1981). É também
esta a perspectiva de Gonçalves Fernandes, com a diferença de que
onde Manuel Querino enxergava uma saudável manifestação
folclórica, Fernandes pretende ver rituais primitivos e
envergonhantes, acrescentando ainda que o alcoolismo “disseminado”
nestes “redutos de marginais” estaria também entre as causas da
possessão (cf. Gonçalves, 1937). Antes deles, o padre Etienne
Brazil reproduzirá diretamente as teses de Nina Rodrigues,
82

considerando o transe uma manifestação patológica específica de


uma determinada “raça” sub-desenvolvida (cf. Brazil, 1912). Existe
contudo uma outra forma de tratar a possessão nos cultos afro-
brasileiros.

3. Os Modelos Sócio-Culturais

Os estudos sobre os cultos afro-brasileiros sofrerão uma


primeira torção teórica durante o período da II Guerra Mundial com
a vinda ao Brasil de Melville Herskovits. Interessado nos estudos
de “aculturação” este autor virá a dedicar grande atenção às
religiões de origem africana tentando comparar sua estrutura e seu
funcionamento àqueles, observados por ele mesmo no Daomé, dos
cultos africanos originários. Sua primeira objeção contra o tipo
de pesquisa efetuada até então acerca do Candomblé é que ele não
deveria ser encarada apenas como sistema religioso, mas sim como
verdadeiro “modo de vida”, ou seja, como unidade cultural
integrada, dotada portanto de organização social, econômica,
política, etc., e onde a religião seria apenas mais uma instância
a ser observada, não importando se os membros do grupo em questão
a considerem conscientemente como o único nível pertinente. A
partir deste pressuposto, a técnica de pesquisa só poderia mesmo
consistir em “estudos de comunidade”, isto é, deveria proceder
através da observação participante duradoura e intensiva em
terreiros de Candomblé completamente constituídos. Já a
metodologia a ser utilizada deveria ser um tipo de análise
funcional que permitiria compreender e explicar a coexistência dos
vários níveis culturais dentro da comunidade pesquisada, bem como
a relação desta unidade com outras da mesma natureza e também com
toda a sociedade abrangente. Esta transformação teórica e
metodológica é fundamental e estabelecerá um plano de trabalho que
83

passará a ser seguido por todos os estudiosos do assunto a partir


deste momento (cf. Herskovits, 1943; cf. Bastide, 1971: 37-38).
No que diz respeito aos fenômenos extáticos, este tipo de
perspectiva terá a inegável virtude de extrair a possessão do
domínio psicopatológico, já que, ao situá-la no contexto ritual e
sociológico onde ela se processa, seu caráter de comportamento
normal, estatística e normativamente falando, se manifestará
imediatamente. Herskovits procurará então interpretar o transe
como fato cultural normal, a partir de uma concepção behaviorista
do processo estímulo-resposta. Para ele, a iniciação — que passa a
constituir o foco central de preocupação do pesquisador, na medida
em que nela é possível perceber a integração do indivíduo à
comunidade — e a convivência grupal acabariam por criar um
“reflexo condicionado” ligado a um certo comportamento (a
possessão) que seria detonado a partir de sinais tradicionais,
tais como a música, as danças, a prece, etc. A possessão passa a
ser vista como integrando um complexo cultural que, dentro da
tradição culturalista norte-americana, será encarado como fator de
estabilização da personalidade individual e de sua adaptação tanto
ao meio social quanto ao meio-ambiente natural (cf. Herskovits,
1943; Ribeiro, 1955: 163-164). Este modelo será integralmente
adotado por dois discípulos brasileiros de Herskovits, Octavio da
Costa Eduardo, que estudará desta perspectiva os Voduns do
Maranhão em 1948 (cf. Eduardo, 1948), e Renê Ribeiro, que a
utilizará na pesquisa dos Xangôs do Nordeste em 1952, e cujas
teses sobre a possessão fornecem sem dúvida o melhor exemplo de
como opera este novo quadro teórico (cf. Ribeiro, 1955; 1978).
O ponto central das teses de Ribeiro é exatamente o mesmo de
Herskovits, a saber, considerar os terreiros de Xangô (nome
recebido pelas religiões de procedência africana em Pernambuco,
Sergipe e Alagoas) como unidades culturais totais onde o indivíduo
é ressocializado e onde encontra um verdadeiro “grupo de
84

referência”. Neste sentido, eles poderiam ser analisados como


verdadeiras “estruturas sociais”, no sentido funcionalista
clássico, ou seja, como sistemas compostos por posições (status) a
que correspondem papéis sociais a serem desempenhados pelos
indivíduos compelidos a isso pela pressão exercida por normas e
sanções culturais específicas. A característica essencial desses
sistemas, no quadro da estrutura social abrangente, seria a
alternativa por eles oferecida a indivíduos socialmente
desprivilegiados — ocupando portanto status inferiores e
desempenhando papéis indesejáveis na sociedade inclusiva — e a
conseqüente possibilidade de satisfação de seus objetivos e
necessidades, não preenchidos por seu lugar no meio social
externos aos cultos. Uma longa citação pode deixar bastante clara
esta posição:

“Normas e sanções culturais


representam modelos tradicionais de
ajustamento do indivíduo, indicando-lhe uma
conduta adequada às solicitações e
imposições do seu ambiente natural e do
sistema de relações que ele tem de
estabelecer por sua participação no grupo
social. No caso dos grupos de cultos afro-
brasileiros, constituem-se estes não
somente em unidades de convivência
particulares, dentro de nossa sociedade
geral, como em vetores de um sistema de
valores e de patterns freqüentemente
diversos daqueles adotados nos outros
grupos dessa sociedade. Eles fornecem ainda
aos indivíduos que deles participam, sem
que lhes seja necessário repudiar os demais
valores e estilos da cultura luso-
brasileira, um sistema de crenças e um tipo
novo de relações interpessoais amplamente
85

favorável à redução de tensões. Pessoas


cujas posições e papéis na sociedade global
não lhes oferecem chance para colimarem
seus objetivos ou pelo menos, para um
compromisso entre as realidades da vida
cotidiana e os seus objetivos idealmente
fixados ou seus impulsos culturalmente
condicionados, encontram aí um sistema de
crenças, de relações interpessoais, de
hierarquia, bem como um tipo de relação com
o sobrenatural e de aparente controle do
acidente que lhe permitem a satisfação das
necessidades psicológicas indispensáveis a
seu ajustamento ao mundo em que vivem.
Participação nesses grupos, organizados
diferentemente daqueles outros que se
contam em nossa sociedade urbana, bem como
a obtenção aí de posições e de prestígio
(implicando em novo status, freqüentemente
superior), constituem experiências mais
satisfatórias do que quaisquer outras que
lhes possam ser proporcionadas em nossa
sociedade” (Ribeiro, 1978: 144-145).

É esta de fato a conclusão central do principal trabalho de


Renê Ribeiro: os cultos afro-brasileiros deveriam ser explicados a
partir da tradicional questão das relações entre cultura e
personalidade, na medida em que eles constituiriam alternativas
culturais para indivíduos cuja personalidade não encontra canais
de realização pelos meios sociais ordinários. Assim, este tipo de
religião forneceria os elementos para uma compensação por uma
posição social inferior: grupo de sociabilidade, possibilidade de
ascensão social, controle do acaso, etc. É fundamental aqui
perceber o esboço de uma nova concepção sobre as religiões afro-
brasileiras, que de sobrevivências primitivas ou pré-lógicas
86

passam a ser encaradas como realidades vivas desempenhando uma


função atual no contexto da sociedade em que se inserem. Isto
porque será esta a perspectiva adotada deste momento em diante,
até hoje, por quase todos os pesquisadores do tema.
Ora, é dentro desse amplo quadro de funções sociais
desempenhadas pelos cultos que o fenômeno da possessão deverá ser
analisado. Em outros termos, a questão a ser indagada a respeito
do transe se relaciona também à função por ele preenchida nesse
processo global de ajustamento do indivíduo ao grupo e à sociedade
abrangente. A partir de um tal pressuposto, é manifestamente
impossível considerar a possessão como uma forma de distúrbio
mental. Ou seja, a partir do momento em que se considera este
problema de uma perspectiva funcionalista é-se obrigado a indagar
e descobrir em que o êxtase contribuiria na manutenção do
equilíbrio grupal e individual, na medida em que o funcionalismo
de Renê Ribeiro está intrinsecamente ligado a uma postura
culturalista. De perturbação médica, a possessão passará então a
ser vista como uma técnica de ajustamento psicológico, seja por
promover um importante alívio de tensões:

“A possessão tem papel dramático e


saliente nas principais cerimônias, os
indivíduos que experimentam tal estado
derivando dele particular satisfação
emocional, decorrente da sua intimidade com
o sobrenatural e da libertação de tensões
psicológicas simultaneamente à aprovação do
grupo, que constituem os elementos
essenciais nesse tipo de experiência
religiosa” (Ribeiro, 1978: 143).

seja por fornecer ao indivíduo um conjunto de status e


papéis bastante desejáveis (o de divindades) que compensariam os
status e papéis inferiores ocupados e desempenhados por ele na
87

vida cotidiana (cf. Ribeiro, 1955: 169). A partir desses


postulados, Renê Ribeiro aplicará testes projetivos de
personalidade sobre um grande número de fiéis dos Xangôs de
Recife, e ao se confrontar com alguns resultados indicativos de
anormalidades psicológicas cujos portadores, contudo, mantinham um
comportamento cotidiano perfeitamente anormal, ele terminará por
concluir que são justamente o pertencimento ao grupo de culto, bem
como a descarga emocional de tensões resultante da possessão, os
responsáveis pelo equilíbrio desses indivíduos que, caso
contrário, dariam sinais de distúrbio em sua vida ordinária. Para
funcionar dessa maneira, o transe é visto como momento de
manifestação de uma série de aspectos psicológicos recalcados e
reprimidos durante a vida cotidiana e que, se não viessem à tona
durante a possessão, poderiam funcionar como agentes patogênicos
(cf. Ribeiro, 1955: 180-182).
Mais ou menos na mesma época em que Herskovits empreende sua
crítica dos modelos analíticos vigentes nos estudos sobre os
cultos afro-brasileiros, esboçando simultaneamente uma nova
interpretação dessas manifestações religiosas a partir de
referenciais teóricos culturalistas e funcionalistas, Roger
Bastide inicia sua gigantesca exploração neste domínio, movido
tanto por um interesse análogo ao do etnólogo norte-americano —
compreender os fenômenos por denominados de “interpenetração de
civilizações” — quanto pelo objetivo de construir uma “sociologia
do transe” (cf. Bastide, 1972: 55). Seus trabalhos me parecem ser,
sem sombra de dúvida possível, a mais completa e melhor abordagem
já efetuada a respeito do “mundo dos Candomblés”, e mesmo os
estudos posteriores estão muito longe do alcance, da qualidade e
das virtudes da obra de Bastide. Sua inspiração teórica é,
confessadamente, a Escola Sociológica Francesa, de Durkheim e
Mauss a Lévy-Bruhl e Griaule, e é a partir deste ponto de
88

referência que ele critica severamente seus predecessores no


estudo das “religiões africanas no Brasil”.
Suas objeções coincidem também com as de Herskovits, ao
ressaltar o fato de que autores como Nina Rodrigues e Arthur
Ramos, entre outros, pecavam por não enxergar no Candomblé mais do
que sobrevivências de um passado a ser abolido pelo progresso da
cultura, arvorando-se então em colecionadores de antigüidades — ao
coletarem material relativo ao culto — ou em reformadores sociais,
ao tentarem entender as razões dessa resistência à mudança,
propondo ao mesmo tempo meios de ultrapassá-la. Bastide, ao
contrário, deseja estudar essas religiões como realidade viva,
inserida na sociedade brasileira abrangente. Mas, apesar disto,
Herskovits e seus discípulos também são visados pela crítica
bastidiana: o postulado culturalista desses autores é posto em
questão na medida em que não saberia dar conta da inserção das
comunidades minuciosamente estudadas no seio da sociedade
inclusiva (cf. Bastide, 1971: 38); a hipótese funcionalista é
descartada porque acabaria por reduzir-se a um truísmo desprovido
de valor informativo ao afirmar que a função do Candomblé é
idêntica a de qualquer instituição social, satisfazendo
determinadas necessidades sociais e/ou individuais (cf. Bastide,
1971: 39).
Bastide propõe então que a análise dos cultos afro-
brasileiros seja efetuada nos quadros de uma “sociologia causal e
histórica” que leve em consideração as origens africanas destes
cultos e as transformações a que foram submetidos quando em
contato com a nova realidade brasileira. Em outros termos, tratar-
se-ia de superar simultaneamente tanto a visão dos primeiros
pesquisadores, que situam o Candomblé sempre no passado e de lá
buscam extrair seu sentido, quanto a dos funcionalistas, que,
omitindo a história dessas religiões, tenta explicá-la apenas a
partir de suas supostas funções atuais (cf. Bastide, 1971: 39).
89

A solução proposta por ele para integrar os “aspectos”


africano e brasileiro dessas religiões encontra seu ponto focal no
importante conceito
de “internalização”. Na África, a “super-
estrutura” religiosa9 estaria inextrincavelmente soldada a sua
“infra-estrutura” sociológica. Assim, a religião bantu (que teria
originado o Candomblé Angola no Brasil) consistiria basicamente
num culto aos antepassados familiares, espíritos de mortos que
possuiriam determinados membros da unidade familiar durante os
rituais religiosos (cf. Bastide, 1971: 85-86); já no caso Gêge e
Yoruba (origens respectivas das “nações” gêge e nagô do
Candomblé), as divindades representariam forças da natureza,
existindo confrarias de iniciados e sacerdotes especiais que
serviriam a cada deus em benefício do grupo como um todo; mas, ao
mesmo tempo, cada divindade parece dirigir uma família humana da
qual é visto como ancestral e que lhe rende culto, culto este
transmitido em linha masculina (cf. Bastide, 1971: 87). Ora, a
escravidão destrói inevitavelmente toda a estrutura familiar,
clânica e tribal sobre a qual repousavam os cultos religiosos.
Isto no entanto não significa que os valores culturais
constitutivos destes cultos tenham se abolido no mesmo golpe. Tudo
se passa então como se um abismo se abrisse entre infra e super-
estrutura, entre morfologia social e o universo dos valores
culturais;

“a ruptura que a escravidão


ocasionaria entre o mundo dos valores e o
mundo das estruturas sociais africanas
expôs, fazendo flutuar por um instante,

9 Os conceitos de infra e super-estrutura não são utilizados por


Roger Bastide num sentido marxista ortodoxo. Apresentam antes uma
marca durkheimiana, designando respectivamente a “morfologia
social” e as “representações coletivas”.
90

essas representações no vazio...” (Bastide,


1971: 221).

Este é o primeiro momento, o do destacamento do mundo dos


valores de sua base morfológica. Mas, este mundo não poderia
sobreviver, acredita Bastide, neste “vácuo sociológico”, sendo-lhe
estritamente necessário segregar uma nova infra-estrutura, base
social influenciada simultaneamente pelos valores africanos e por
algumas instituições européias impostas durante o processo de
escravização forçada:

“Em primeiro lugar, a escravidão


operou uma separação entre as super e as
infra-estruturas, sem darmos a esses termos
um sentido marxista. As estruturas sociais
africanas foram destruídas, os valores
conservados; mas estes valores não poderiam
subsistir se não formassem novos quadros
sociais, se não se criassem instituições
originais que os encarnassem e lhes
permitissem sobreviver, perpetuar-se e
passar de uma geração a outra. Isto
significa que as super-estruturas tiveram
que produzir uma sociedade. O movimento não
é mais um movimento de baixo para cima, que
sobe progressivamente da base morfológica
para o mundo dos símbolos e das
representações coletivas para as
instituições e os grupos. Os modelos
africanos puderam influenciar esta
reestruturação, mas também exerceram
influência os modelos europeus impostos,
como as confrarias ou as associações de
danças dos negros ‘nações’” (Bastide, 1971:
83).
91

Ora, é justamente nesta segunda etapa do processo, a da


formação de estruturas sociais a partir dos valores, que o
Candomblé vai surgir como “nicho” (o termo é de Bastide) africano
enquistado na sociedade brasileira. Neste “nicho” todas as
relações sociais seriam “internalizadas” na forma de relações
místicas: a antiga hierarquia tribal se converteria em hierarquia
sacerdotal, as leis de exogamia, clânica ou familiar, se
transformariam na proibição do casamento entre indivíduos
portadores do mesmo Orixá, e assim por diante (cf. Bastide, 1971:
226-227). E, mais do que isto, o grupo de culto passa a ser vivido
como integralmente separado da sociedade inclusiva, operando entre
ambos o que Bastide chama de “princípio de corte”, princípio que
faria com que o fiel do Candomblé pudesse viver simultaneamente no
mundo sagrado do terreiro e na esfera profana do cotidiano sem
estabelecer interelações entre estes domínios (cf. Bastide, 1971:
238; ver também Bastide, 1955, onde o conceito é forjado). É
dentro desta visão abrangente dos cultos como resultante da
“interpenetração de civilizações” que a “sociologia do transe” de
Bastide será construída.
Na África, primeiramente, a possessão tenderia a constituir
uma função específica exercida por um sacerdote ou sacerdotisa
especializados, compondo o quadro mais amplo da iniciação tribal
(cf. Bastide, 1945: 48-49). Com o desmantelamento da organização
social e a transformação do culto em estrutura puramente mística,
o transe passaria a fazer parte do contexto ritual mais abrangente
que caracterizaria essa estrutura religiosa. Não se trata
portanto, de forma alguma, de algum tipo de perturbação
psicopatológica na medida em que se encontra totalmente regulado
pela tradição e pelo sistema ritual (cf. Bastide, 1945: 88;
Bastide, 1973: 306-307). Mais do que isso, não se poderia querer
ver aí sequer uma técnica terapêutica, pois muito embora a
possessão possa funcionar neste sentido tratar-se-ia aí apenas de
92

um efeito e não de sua natureza última (cf. Bastide, 1972: 71-73).


Esta, deveria ser buscada em outra parte.
Na África, crê Bastide, o êxtase poderia ser reduzido em
última instância a uma modalidade de intermediação entre o sagrado
e o profano; no Brasil, devido às condições de vida particulares a
que foram submetidos os escravos africanos e seus descendentes,
uma outra dimensão se acrescentaria, ou mesmo substituiria, esta
estrutura básica. Esta dimensão — e aqui estamos de volta,
paradoxalmente, a Renê Ribeiro — seria uma forma de compensação
fornecido pelo transe ao negro devido à baixa posição social por
ele ocupada na nova sociedade em que vive (cf. Bastide, 1972: 71-
73). Mas, como se dá, concretamente, esta compensação? A possessão
seria um rito que reproduziria continuamente na Terra uma série de
dramas místicos fundamentais. Nestas representações, quase
“teatrais”, os filhos-de-santo atuariam como personagens que,
abandonando seu eu cotidiano, se transformariam magicamente nas
divindades do culto. Assim, o ritual extático seria um “ritual-
experiência-vivida” e a possessão não uma simples substituição,
mas uma verdadeira “metamorfose da personalidade” (cf. sobre todo
este ponto, Bastide, 1978: 200-202).
É esta a idéia central. É a partir dela que Bastide
sustentará que a influência do mundo dos deuses sobre aquele dos
homens ultrapassaria de muito o momento específico da possessão,
atuando sobre toda a sua vida:

“Não é apenas a dança extática das


filhas-de-santo que vai refletir o mundo
dos mitos, nas noites musicais da Bahia. Na
sua vida, nas suas estruturas psíquicas, o
homem todo inteiro simboliza o divino”
(Bastide, 1978: 235).

Em outros termos, e sintetizando, o Candomblé seria uma


verdadeira “máquina” de fabricação e distribuição de
93

“personagens”, personagens que os filhos-de-santo abraçariam por


serem muito mais satisfatórios e de status incomparavelmente mais
elevado do que aqueles papéis representados por eles
cotidianamente. É isto que acarretaria inevitavelmente uma
sensação de “compensação” por esta posição social tão
desprivilegiada:

“Ora, entre os diversos personagens


que representamos, alguns nos convêm
melhor, seja porque exigem de nós menos
trabalho, seja porque agradam nosso gosto
de grandeza, nosso desejo de aplausos
fáceis. Preferimos o papel de Rei ao de
traidor. No seu significado mais
metafísico, as religiões afro-brasileiras
oferecem aos negros do Brasil um vestiário
completo de personalidades, as mais ricas e
as mais variadas, nas quais pode o negro
encontrar uma compensação para os
personagens menos agradáveis que a
sociedade estratificada, organizada e
dirigida pelos brancos lhe impõe para
desempenho. Na dança extática o negro
abandona seu eu de proletário, seu eu
social, para se transformar, sob o apelo
angustioso dos tambores, no deus dos
relâmpagos ou na rainha dos oceanos”
(Bastide, 1973: 316).

É verdade que existe um outro aspecto da teoria de Bastide


ao qual retornarei no quarto capítulo deste trabalho. Por ora
cumpre tentar sintetizar a mudança provocada no rumo dos estudos
afro-brasileiros durante as décadas de 1940 e 1950.
94

Pôde-se observar então que durante esses vinte anos os


estudos afro-brasileiros sofreram uma modificação aparentemente
radical de perspectiva. No caso específico da possessão, esta
passa a ser encarada, acima de tudo, como fato social, na acepção
durkheimiana do termo, podendo e devendo portanto ser explicada
apenas em relação ao contexto sociológico, e não através do
recurso a categorias extraídas diretamente da psicopatologia
individual. Ou então, no máximo, devendo ser tratada como fruto de
uma ação do social sobre o individual, e jamais vice-versa. Em
outros termos, longe de ser patológico e individual, o transe
seria um fenômeno normal e social. Tanto Roger Bastide quanto
Herskovits e seus discípulos insistirão assim no caráter
socialmente adaptativo do êxtase: indivíduos socialmente
marginalizados e discriminados (por motivos raciais, de classe
social, sexuais, etc.) encontrariam nos cultos afro-brasileiros em
geral e na possessão em particular um meio de extravasar as
tensões advindas desta situação, ao “inverterem” sua baixa posição
social. Tomados pelas divindades africanas, transforma-se-iam em
deuses e reis, compensando assim seu status social inferior. O
transe contribuiria deste modo para a adaptação desses indivíduos
à sociedade mais ampla, altamente estratificada e dificilmente
permeável por canais normais de ascensão, características que
tenderiam a colocar os “inferiores estruturais” como que fora do
jogo social (ao menos como agentes plenos), se os cultos e a
possessão não lhes oferecessem uma compensatória ilusão da
participação.
Uma diferença subsiste entretanto entre Bastide de um lado,
Herskovits, Eduardo e Ribeiro de outro, diferença já ressaltada
acima mas que é preciso frisar em função dos rumos tomados a
partir de 1970 pelas pesquisas sobre as religiões afro-
brasileiras. Para Bastide, era imprescindível demonstrar como os
sistemas de valores trazidos, juntamente com os escravos, eram
95

estruturalmente adequados para a utilização local que deles passou


a ser feita. Isto não parece no entanto preocupar muito os
culturalistas que se contentam em apontar para as funções atuais
desempenhadas por essas religiões sem dedicar muita atenção à
estrutura mesma do culto, a não se na medida em que ela justifica
as funções previamente apontadas como fundamentais.
Assim, se de 1900 a 1940 (datas respectivas das publicações
de “O Animismo Fetichista” de Nina Rodrigues e da segunda edição
revista e aumentada de o “O Negro Brasileiro” de Arthur Ramos)
tivemos a nítida predominância das teorias evolucionistas e
psiquiátricas, as duas décadas compreendidas entre 1940 e 1960
(balizadas pelo trabalho de Herskovits de 1943, e pelas duas teses
de Bastide de 1960 — cf. Bastide, 1971; 1978) são marcadas pelo
abandono daquela vertente e pela entrada em cena dos modelos
funcionalistas e culturalistas de inspiração nitidamente
sociológica. Durante a década de 60, os estudos afro-brasileiros
parecem não ter sido muito privilegiados pela ciência social
brasileira. A exceção é o famoso trabalho de Cândido Procópio
Ferreira de Camargo, que caracteriza simultaneamente uma
continuidade em relação aos vinte anos anteriores — levando ainda
mais longe a perspectiva sociologizante ao utilizar técnicas
típicas da Sociologia na investigação dos cultos (amostragens,
questionários fechados, modelos estatísticos, etc.) — e um
deslocamento de objeto empírico, dos cultos tradicionalmente
considerados como “mais puros” (o Candomblé baiano, os Xangôs do
Recife, os Voduns do Maranhão, o Batuque de Porto Alegre) para
aqueles tidos por mais “sincréticos”, influenciados por modelos
europeus, a Umbanda e o Kardecismo. O tema da possessão não chega
contudo a receber neste trabalho uma atenção mais cuidadosa (cf.
Camargo, 1961).
A partir de 1970, o interesse pelas religiões de procedência
africana parece renascer, e renasce voltado especialmente para a
96

observação e a análise de centros de culto menos tradicionais,


análise conduzida por um modelo ainda nitidamente sociologizante,
queiram ou não os autores. Em 1972, são publicados o trabalho dos
Leacock sobre o Batuque de Belém, e o ensaio de Marco Aurélio Luz
e Georges Lapassade sobre a Macumba carioca.
A hipótese central dos Leacock a respeito da possessão é que
ela consistiria num “papel social” assumido pelos indivíduos
durante o ritual. O que caracterizaria este papel diante dos
demais, representados na vida cotidiana é que ele se manifestaria
durante um “estado psicológico alterado”, o transe (cf. Leacock,
1972: 174-175). Assim, não se poderia atribuir o êxtase (ou o
transe para manter sua terminologia) a um estado psicopatológico
de tipo psicótico, já que trata-se aqui de um sistema de crenças
racional e passível de ser comunicado, aparentando-se antes à
hipótese e tendo como conteúdo o papel preconizado pelo grupo que
se manifesta na forma de “possessão”. Pode-se concluir então que a
essência da possessão no Batuque é o desenvolvimento de um papel
social durante uma “condição psicológica alterada” em tudo
semelhante ao estado hipnótico (cf. Leacock, 1972: 212-217). O
sentido último destas práticas estaria então justamente na
assunção de papéis sociais de status muito elevado (divindades ou
encantados) por parte de pessoas que, no desempenho de seus papéis
cotidianos, não são objeto de qualquer atenção ou prestígio,
processo de “inversão” que acarretaria um sentimento de
“compensação” (cf. Leacock, 1972: 51; 228).
Além disso — e este ponto é importante por sua influência
freqüentemente omitida nos estudos subseqüentes — o transe e a
possessão teriam lugar nos quadros de um tipo de culto que
preconizaria um “contrato diádico” entre o fiel e a divindade,
contrato em tudo semelhante às estruturas de patronagem vigentes
na região amazônica (cf. Leacock, 1972: 51; 58-59). Esta idéia
aliás é uma das inovações teóricas introduzidas pelos Leacock; a
97

outra é a “dissolução sociológica” a que eles submetem o êxtase,


reduzindo-o a um papel social cuja única especificidade é a de ser
assumido durante um “estado alterado”, de transe, estado explicado
por sua vez em termos psicológicos como “próximo” ao hipnótico. A
hipótese de uma inversão de posições sociais e da compensação
disto resultante não acrescenta absolutamente nada em relação aos
estudos de Roger Bastide e de Renê Ribeiro apresentados acima.
O outro estudo mencionado (Luz e Lapassade, 1972) é bastante
curioso pela concepção nada ortodoxa, em termos de Antropologia
Social, que os autores adotam em relação à Umbanda em geral e à
possessão em particular. A primeira parte do trabalho, assinada
por Georges Lapassade, consiste numa tentativa de explicar a
“Macumba” carioca através de idéias importadas diretamente de uma
psicanálise reichiana. Neste contexto, o transe será visto como
irrupção de uma força cotidianamente reprimida, força
estreitamente ligada a mecanismos de protesto e revolta (uma
espécie de libido “política”), que será contudo canalizada e
socializada durante a iniciação que “domestica o transe selvagem”
(cf. Luz e Lapassade, 1972: 40). Na África, a possessão
consistiria numa ruptura psíquica radical que, na escravidão, foi
acrescida de uma ruptura cultural que faz com que o transe seja
uma forma de retorno “mágico” à terra africana natal (cf. Luz e
Lapassade, 1972: 12; 41). Haveria pois, no cerne da Umbanda, uma
contradição entre a revolta contra a ordem existente (representada
pelo “transe selvagem”) e sua aceitação e manutenção tácitas (no
transe socializado). Além disso, e mais marginalmente, embora não
menos importante, a possessão é vista como uma forma de “terapia
popular” tão ou mais eficaz do que a própria psicanálise (cf. Luz
e Lapassade, 1972: XIX).
Essas idéias, nada tradicionais, se precisam na segunda
parte do livro, de autoria de Marco Aurélio Luz. Aí, a Umbanda é
analisada em oposição à Quimbanda, dicotomia que reproduz o
98

paradoxo entre aceitação da ordem e revolta contra ela, paradoxo


manifestado também, como vimos, no transe extático. A Umbanda,
enquanto cristalização das forças conservadoras, é definida então
como um “Aparelho Ideológico de Estado Religioso”, que
contribuiria para a reprodução das relações de produção através da
reafirmação constante das normas impostas pela burguesia dominante
e de sua aplicação sobre o conjunto do “proletariado negro”,
compelido então a se acomodar a elas (cf. Luz e Lapassade, 1972:
94). Em suma:

“Como instituição social, a Umbanda


procura, por um lado, reproduzir numa
representação simbólica a hierarquia social
e por outro lado, em seu ritual, reproduzir
o exercício de obediência à autoridade,
ambos aspectos necessários ao funcionamento
da formação social (...). A Umbanda como
religião, é um retrato da formação social
brasileira num plano imaginário, com suas
leis próprias de ocultação e inversão das
classes sociais” (Luz e Lapassade, 1972:
57).

Com “O Segredo da Macumba” passa-se então de uma perspectiva


quase puramente sociológica (ao menos de um ponto de vista formal,
pois é claro que todas as explicações sociologizantes, de
Herskovits aos Leacock, apresentam concepções implícitas sobre as
relações políticas, conforme veremos adiante) a uma outra que
poderia ser melhor denominada de “sócio-política”, na medida em
que um dos focos de atenção — o principal aliás — é direcionado
para os efeitos dos cultos afro-brasileiros na área das relações
de poder, tanto internas quanto externas a eles, funcionando seja
como mecanismo de dominação e de reforço desta, seja como
possíveis canais para a manifestação de protesto e revolta.
99

De fato, é esta perspectiva “sócio-política” que passará a


predominar nos trabalhos subseqüentes da década de 70. Assim,
Diana Brown negará o caráter de “religião popular” da Umbanda,
analisando-a antes como uma forma religiosa desenvolvida a partir
do Kardecismo por representantes das camadas médias, e onde as
classes populares desempenhariam apenas um papel subordinado. A
Umbanda é encarada pois como repousando sobre um mecanismo de
patronagem que operaria em todos os níveis, desde a relação do
culto com a sociedade abrangente (permitindo a eleição de
deputados umbandistas, por exemplo), passando pela filiação dos
terreiros às Federações, pelas relações hierárquicas internas a
cada terreiro, e chegando até a própria relação ritual mantida
pelo médium com as divindades. Em última instância, tratar-se-ia
então de uma estratégia de controle exercida pelas classes médias
sobre as camadas populares da população, sendo que as inversões de
status observáveis no ritual — onde espíritos “populares”, como os
caboclos e pretos-velhos, ocupam uma posição central — não seriam
mais do que máscaras atrás das quais ocultar-se-iam mecanismos de
dominação política (cf. Brown, 1974; 1977). Este tipo de
perspectiva será adotada por uma série de outros autores.
Assim, Renato Ortiz insistirá nas tentativas de
“legitimação” da Umbanda frente à sociedade abrangente, tentativas
efetuadas a partir da assimilação dos valores dominantes,
“brancos” e de classe média (cf. Ortiz, 1977; 1978). Leni
Silverstein e Patrícia Birman seguem também este caminho, ao
apontarem simultaneamente para as inversões hierárquicas presentes
no Candomblé e na Umbanda respectivamente e, ao mesmo tempo, para
o fato de que essas inversões seriam apenas “táticas”, ou seja,
comporiam uma estratégia global de manipulação e reforço da
dominação. Em outros termos, o fato da hierarquia, preservada na
estrutura dos terreiros e no ritual, seria mais importante do que
seu conteúdo que pode tanto inverter quanto reforçar diretamente a
100

ordem política abrangente (cf. Silverstein, 1979; Birman, 1982).


Uma variante desta posição é adotada tanto por Yvonne Velho quanto
por Lísias Nogueira Negrão, que reconhecem a presença simultânea
de forças “populares” e “não-populares” na Umbanda (cf. Negrão,
1979), ou a coexistência não muito pacífica de um “código de
santo”, específico ao culto e que inverte as regras sociais
normais, e um “código burocrático” trazido da sociedade abrangente
(cf. Velho, 1975). A partir daí ambos tentam analisar o fenômeno
em questão com resultante dos choques e conflitos entre estes dois
componentes antitéticos.
Mas, a mais representativa forma de análise dos cultos afro-
brasileiros a partir desta perspectiva “sócio-política” parece ter
sido elaborada por Peter Fry. De fato, em seus artigos ficam
bastante explícitas todas as posições desta perspectiva. Assim,
num texto de 1975 escrito em colaboração com Gary Nigel Howe, ele
conclui, numa espécie de síntese desta posição adotada a partir do
trabalho dos Leacock, que

“Nossa preocupação não é estudar os


sistemas de mitos e crenças como sistemas
estruturais divorciados do contexto social
nos quais eles florescem, mas, mais ainda,
entendê-los em termos daquela realidade, e
a maneira pela qual é percebida por aqueles
que dela participam” (Fry e Howe, 1975: 90-
91).

Ora, a partir desta postura nitidamente sociologizante, as


religiões afro-brasileiras serão definidas como “cultos de
aflição”, no sentido de Victor Turner, ou seja, sistemas voltados
para a resolução de crises de vida individuais. No caso específico
da sociedade brasileira, os tipos de “aflição” diriam respeito
especialmente à saúde, problemas profissionais e de relação com as
101

autoridades constituídas, e “dificuldades de associação


interpessoal” — problemas no amor, em relações de vizinhança,
amizade, família, etc. (cf. Fry e Howe, 1975: 75; Fry, 1978: 32).
No entanto, o autor admite que esta definição é, por si só,
insatisfatória, na medida em que tais problemas poderiam ser
solucionados através do recurso a outras instâncias, colocando-se
então a questão das razões pelas quais justamente a Umbanda é
encarada como eficaz (cf. Fry, 1978: 42). Em outros termos,
admite-se que os símbolos religiosos da Umbanda devem
necessariamente aparecer como eficazes para produzir a conversão
de um indivíduo (cf. Fry e Howe, 1975: 89).
A resposta para esta questão, que passa a ser o problema
fundamental da análise, será encontrada no fato de a Umbanda
funcionar como representação metafórica de um determinado aspecto
da sociedade brasileira, aquele nível não marcado pelos códigos
oficiais e pelas leis impessoais, mas sim por conhecimentos
pessoais, pelos favores e pelo “jeitinho”:

“Nossa interpretação da
plausibilidade da Umbanda, portanto, é que
ela expressa e ritualiza a ‘outra face’ do
capitalismo industrial no Brasil (...). A
Umbanda é plausível na medida em que as
relações particularistas que se estabelecem
com os espíritos na esperança de se obter
favores são homólogas às relações reais
estabelecidas para o benefício de pessoas
no sistema social vigente. Questiono, por
exemplo, se há uma grande diferença entre o
eleitor suplicante que promete seu voto em
troca de uma casa do BNH e um cliente da
Umbanda que faz um acordo com o espírito de
Exu para ganhar um emprego” (Fry, 1978:
45).
102

Mas não seria possível, acredita o autor, explicar a


conversão religiosa para a Umbanda — que implica, como foi visto,
uma crença na plausibilidade de manipulações pessoais
transformarem o mundo — através da utilização de variáveis
sociológicas clássicas, como classe social, cor da pele, etc. Ao
contrário, supõe-se que o essencial estaria nas relações sociais
concretas, na biografia, e na forma e conteúdo das redes sociais
(cf. Fry e Howe, 1975: 83). Deste modo, a questão geral que deve
ser respondida para que se entendam os cultos afro-brasileiros
pode ser resumida, sinteticamente, da seguinte maneira:

“Que elementos de experiência social


levarão uma pessoa a interpretar o mundo em
termos da manipulação frenética de uma
hoste de entidades espirituais...? Que
elementos de experiência social levarão um
indivíduo a perceber o mundo a sua volta
como essencialmente manipulável, um mundo
que não obedece regras fixas mas que pode
ser ‘ajeitado’ na base de manipulações
mágicas a curto prazo...? Em outros termos,
que espécie de experiência social leva à
visão ‘carismática’...?” (Fry e Howe, 1975:
90).

Em suma, a Umbanda seria coerente com uma determinada visão


de mundo e para se entender a conversão de alguém para esta
religião seria inútil buscar razões nas variáveis sociológicas
tradicionais, como havia feito Camargo; tais razões deveriam então
ser encontradas na experiência social individual (que inclui as
variáveis citadas acima) que, forjando um certo padrão de leitura
da realidade provocaria, no caso de ser congruente com aquele
existente no universo simbólico da Umbanda, sua conversão para
este culto como modo de “resolver” suas “aflições”. Finalmente, há
a idéia de que enquanto “culto periférico”, no sentido de Lewis, a
103

Umbanda forneceria “nichos” onde as pessoas consideradas pela


sociedade abrangente como marginais ou desviantes poderiam se
reunir e ter uma experiência agradável (cf. Fry, 1977: 116; 121).

É possível observar então como, a partir do trabalho dos


Leacock, a ênfase nos estudos afro-brasileiros desviou-se das
preocupações evolucionistas e médicas do início do século e
concentrou-se cada vez mais, radicalizando a postura dos autores
das décadas de 40 e 50, nos aspectos sociológicos e, mais
especificamente, sócio-políticos dessas religiões. Mas, além
disto, é preciso notar a existência de outros dois deslocamentos
também fundamentais. O primeiro conduziu da atenção preferencial
nos aspectos internos aos cultos (ritual, mitologia, teologia,
possessão, etc.) a um interesse crescente nas formas de interação
e convivência desses sistemas com a sociedade abrangente, de tal
forma que, como se pode perceber na exposição das idéias desses
autores, é difícil encontrar entre eles posições claras a respeito
da possessão, que fica geralmente limitada a ser vista como um
“papel social” entre outros (além dos Leacock que propuseram esta
postura, esta também é a posição explícita de Peter Fry — cf. Fry,
1977 — e implícita de todos os demais autores, com exceção de
Marco Aurélio Luz e Georges Lapassade). Já o segundo deslocamento,
como foi visto acima, correspondeu a uma mudança bastante nítida
de objeto empírico: enquanto os autores “clássicos” voltavam-se
especialmente para as manifestações religiosas afro-brasileiras
consideradas mais “puras” (o Candomblé baiano fornecendo o
“paradigma empírico” para este tipo de análise, para retomar uma
expressão de Duglas Monteiro), as pesquisas mais recentes dirigem-
104

se antes para as formas mais “sincréticas”, a Umbanda, o Batuque,


etc.10
Estes deslocamentos, contudo, não devem ser superestimados.
A questão básica que permeia todo o estudo das religiões afro-
brasileiras diz respeito, de Nina Rodrigues a Peter Fry, ao que se
costuma considerar a “estranha” permanência e resistência destas
formas de culto numa sociedade que se moderniza e se industrializa
velozmente. Se os primeiros autores que trataram do tema dedicavam
uma maior atenção aos aspectos “estruturais” desses sistemas é
porque acreditavam que a resposta para esta questão da permanência
não constituía problema. Localizando-a no conceito evolucionista
de “sobrevivência” (racial para Nina Rodrigues, psicológica para
Arthur Ramos), concentravam-se então em descrever tais
sobrevivências antes que a “lenta obra da cultura”, como dizia
Arthur Ramos, as extinguisse para o bem geral. Para estes autores
portanto, não há qualquer vinculação entre essas religiões e as
bases sociais ou culturais brasileiras sobre as quais elas
simplesmente se justaporiam.
Deste ponto de vista, poder-se-ia dizer que os autores
contemporâneos simplesmente invertem esta perspectiva, fazendo,
por assim dizer, da necessidade virtude. Pois se o mistério se
resumia em compreender a convivência dos cultos com o processo de
modernização, e se não é mais possível aplicar o conceito de

10 Isto não significa evidentemente o fim dos estudos sobre o


Candomblé, embora sua intensidade tenha diminuído bastante. No
entanto, os trabalhos de Gisèle Cossard (1970), Juana Elbein dos
Santos (1977), Trindade-Serra (1978) e Claude Lepine (1978) são
integralmente dedicados ao Candomblé baiano. Estes trabalhos foram
aqui utilizados de modo mais implícito e etnográfico, com a
exceção do último que será objeto de uma análise crítica e
posterior.
105

“sobrevivência”, nada melhor do que fazer da própria modernização


a causa da permanência dos cultos, explicando estes últimos como
reflexo direto ou invertido das estruturas sociais atuais que os
sustentam. Neste sentido, fica bastante clara a posição
intermediária da obra de Bastide, reconhecendo e, ao mesmo tempo,
relativizando a ligação entre religião e “infra-estrutura”
sociológica — ao admitir a possibilidade de um destacamento, mas
provisório, da primeira em relação à segunda. Entende-se também,
desta maneira, o segundo deslocamento mencionado acima, na medida
em que, aparentemente, os cultos mais “sincréticos” são os que
mais se expandem com a industrialização, facilitando assim o tipo
de explicação construída para dar conta de sua permanência.
Em suma, creio ser possível sustentar que, historicamente,
foram apresentados dois modelos para a análise da possessão nos
cultos afro-brasileiros e, evidentemente, para os próprios cultos
como um todo. Por um lado, o modelo mais antigo, que predomina de
1900 a 1940 mais ou menos, propõe explicar o transe através de sua
redução a fatores biológicos, patológicos e individuais, sejam
eles derivados de perturbações histéricas ou neuróticas, ou a
simples conseqüência do uso de bebidas alcoólicas ou de drogas e
alucinógenos. A outra explicação, que entra em cena em torno de
1940 e se solidifica a partir de 1970, sustentada a partir da
constatação do caráter normal do transe e de ser ele um fato
socialmente determinado, a despeito de suas possíveis implicações
a nível bio-psicológico, defenderá a idéia de que explicar a
possessão é basicamente estabelecer sua conexão com a ordem social
abrangente, vendo-a ora como mecanismo adaptativo (especialmente
nos trabalhos escritos entre 1940 e 1960), ora como instrumento
político ambíguo, podendo funcionar tanto como mecanismo de
protesto quanto como meio de reforço da ordem social existente (na
obra dos autores contemporâneos).
106

É bastante claro também que estas duas vertentes


explicativas reproduzem de modo bem direto, como seria aliás de se
esperar, as tendências teóricas mais gerais para a explicação do
êxtase religioso, apresentadas no primeiro capítulo deste
trabalho. Também aí foi possível verificar a presença dos dois
modelos isolados. É evidente que estes dois modelos apresentam
diferenças gigantescas entre si, sendo que o segundo se construiu
mesmo como crítica mais ou menos explícita do primeiro. No
entanto, há um ponto em comum entre ambos, ponto para o qual é
estritamente necessário estar atento. As duas perspectivas
isoladas tendem a explicar a possessão reduzindo-a a alguma coisa
que lhe é, de uma forma ou de outra, exterior, seja no plano
biológico, seja no sociológico. Isto significa que tanto as
teorias mais gerais sobre o transe quanto aquelas restritas aos
cultos afro-brasileiros apresentam um problema metodológico e
epistemológico comum, o reducionismo. Ora, o que caracteriza
justamente a explicação antropológica, parece-me, é seu caráter
radicalmente anti-reducionista. Neste sentido, se se pretende ao
menos esboçar os princípios de uma teoria antropológica da
possessão a primeira tarefa que se impõe é a de uma crítica dos
modelos teóricos em vigor. Não, é evidente, que se pretenda negar
que o transe possua aspectos bio-psicológicos e, muito menos, que
tanto ele quanto o culto de que faz parte, inseridos que estão — e
numa posição sobordinada — numa sociedade mais ampla, não queiram
dizer algo a respeito dela, ou refletir algo de sua estrutura. Não
é este o problema. A questão deve ser colocada em outro nível e
diz respeito basicamente ao processo de conhecimento de um
fenômeno como a possessão e de suas relações com o que lhe é
exterior embora conectado. Diz respeito também, é evidente, ao
tipo de perspectiva que se pretende adotar, e que aqui tenciona
ser a da antropologia social.
107

4. Uma Tentativa de Crítica

Pode-se ver então que o primeiro dos dois grandes paradigmas


que têm norteado os estudos sobre o transe e a possessão poderia
ser denominado de “materialismo médico”, retomando uma expressão
que Mary Douglas toma de empréstimo a William James, e que
significa, grosso modo, a redução do simbólico ao biológico. Este
paradigma possui duas variantes: uma que considera diretamente o
êxtase como perturbação (geralmente mental) não reconhecida
enquanto tal devido aos parcos conhecimentos médicos das
populações que experimentam o processo; e outra que vê o transe
como forma de tratamento “pré-médico” (eficaz ou não, isto varia)
para estas mesmas doenças mentais. Essas duas variantes não se
excluem, aparecendo de forma combinada numa série de autores.
Ora, esta abordagem é passível, parece-me, de pelo menos
três objeções situadas em distintos planos: uma de ordem
etnográfica, outra de ordem histórica, e uma última, de ordem
teórica. A primeira diz respeito ao fato de que é extremamente
difícil, como realçam por vezes os próprios autores que praticam
essa assimilação, conectar empiricamente os fenômenos extáticos
com as perturbações definidas pela medicina moderna como doenças
mentais. Os xamãs e possessos dificilmente considerados por
aqueles que com eles mantêm contato direto e intenso como loucos
ou histéricos, e tal aproximação só pôde mesmo ser efetuada a
partir de uma assimilação apressada entre as formas exteriores do
transe místico e algumas estruturas de comportamento que nossa
própria cultura considera como fruto de distúrbios mentais. Além
disso, Roger Bastide o demonstrou exaustivamente (cf. Bastide,
1973: 306-310), o transe se processa sempre em momentos
socialmente programados, havendo mesmo aqueles (tais como os
rituais funerários no Candomblé) que o excluem irremediavelmente,
108

ainda que as mesmas canções e ritmos observáveis aí produzam, em


outros contextos, possessões quase instantâneas. Há tabus que
proíbem a possessão (menstruação, relações sexuais recentes...);
há indivíduos, ocupantes de certos postos hierárquicos ou no
desempenho de determinadas funções religiosas, que não podem ser
possuídas, etc. Em suma:

“um misticismo que começa em


determinado momento e termina também num
momento dado, seguindo sempre certas
regras, longe de explicar o social, só pode
se explicar pela antecedência do social
sobre o místico” (Bastide, 1945: 88).

É preciso sempre indagar portanto, como afirma Lévi-Strauss,


se são os “primitivos” que se subordinam à autoridade de “loucos”,
ou se somos nós mesmos que tratamos fenômenos sociológicos como se
eles derivassem puramente dos domínios de uma pretensa patologia
individual (cf. Lévi-Strauss, 1950: XXII).
Esta última observação conduz diretamente à segunda objeção,
de ordem histórica, a ser feita contra o “materialismo médico” nas
explicações sobre o transe. Tudo indica que o mecanismo
intelectual que estabelece essas equivalências entre possessão e
loucura parece repousar em última instância sobre uma aparente
certeza histórica: a constatação de que, no Ocidente, o
desenvolvimento da medicina incorporou progressivamente áreas
anteriormente abandonadas ao arbítrio do pensamento religioso.
Ora, esta interpretação, nitidamente evolucionista, é totalmente
equivocada. Como demonstrou, decisivamente, Michel Foucault, ela
repousa:

“num erro de fato: que os loucos eram


considerados possuídos; num preconceito
inexato: que as pessoas definidas como
109

possuídas eram doentes mentais; finalmente


num erro de raciocínio: deduz-se que se os
possuídos eram na verdade loucos, os loucos
eram tratados realmente como possuídos”
(Foucault, 1975: 75).

É a partir destas observações críticas que ele se acha então


em condições de concluir que:
“de fato, o complexo problema da
possessão não releva diretamente de uma
história da loucura, mas de uma história
das idéias religiosas” (Foucault, 1975:
75).

Na verdade, antes do século XIX a medicina só havia


interferido por duas vezes em questões ligadas à possessão, duas
intervenções praticadas justamente a pedido da própria Igreja
Católica: tratava-se, nos dois casos, de combater formas heréticas
de culto em que o transe aparecia largamente disseminado. Neste
contexto, os médicos forneceram um importante aval para a tese
católica de que os fenômenos extáticos observados nessas seitas
marginais derivavam exclusivamente de causas materiais (“de
movimentos violentos dos humores e dos espíritos”), e não de
alguma forma não conhecida — ou reconhecida — de manifestação do
sagrado, ainda que demoníaco (cf. Foucault, 1975: 75-76; ver
também Foucault, 1968: 24). De fato, a anexação deste domínio de
fenômenos ao campo propriamente médico é bastante tardia, datando
do século XIX e tendo significado sobretudo:

“apenas um episódio lateral em


relação ao grande trabalho que definiu a
doença mental; e, sobretudo, ela não é
resultante de um esforço essencial para o
desenvolvimento da medicina; é a própria
110

experiência religiosa que, para se apoiar,


apelou, e de modo secundário, para a
confirmação e a crítica médicas” (Foucault,
1975: 76).

É, consequentemente, apenas a partir de século XIX que esse


tipo de experiência mística será definitivamente medicalizado, e
com ele todo o campo da religião, que tende, cada vez mais, a ser
visto como uma grande “ilusão”, processo coroado talvez pelos
trabalhos “culturais” de Freud onde, significativamente, uma certa
medicina mental e uma certa antropologia têm seu ponto de
encontro. Em suma, poder-se-ia dizer que é um engano crer que o
êxtase tenha colaborado, no seio da própria experiência ocidental,
para a construção mesma da noção de doença mental, sua anexação
tendo se processado apenas depois de a definição desta última, “em
estilo positivista”, já haver sido formulada. Ou, em outros
termos, poderia ser sustentado legitimamente que no contexto
histórico e cultural da sociedade ocidental a relação entre
possessão e doença mental foi, num primeiro momento constitutivo,
de exterioridade, tendo sua assimilação se processado muito
depois, sob o jogo de inúmeras forças de ordem sócio-política.
Tendo caído contudo nas malhas do discurso médico e medicalizante,
o transe não mais deles se livrou, e poderíamos perguntar então,
com certa justiça, se as teorias antropológicas, reduzindo a
possessão à enfermidade, mental ou não, não estariam participando
desse jogo positivista de “desencantamento do mundo” — posição
mais do que evidente em trabalhos como os de Tylor, por exemplo,
que se engajava conscientemente e de boa vontade nesta empresa,
111

mas não menos presente, embora mais oculta e “envergonhada” em


abordagens muito posteriores sobre este assunto11.
Finalmente, há uma objeção de ordem teórica, talvez a mais
fundamental de todas. Reduzir o transe ao nível biológico e/ou
psicológico é pôr de lado uma das mais básicas — se não a mais
básica, na medida em que é ela que funda a possibilidade de uma
ciência do social — “regras do método sociológico”, que assegura
que os fatos sociais processam-se num plano que lhe é específico,
devendo consequentemente se estudados neste nível de autonomia.
Esta posição não pode contudo — e este ponto é essencial —
conduzir a uma espécie de formalismo e de ecletismo
“interdisciplinar” que se contentaria em admitir a presença de
múltiplos planos nos fenômenos sociais e pretenderia assim abordar
cada um deles de forma independente para depois, numa espécie de
somatório, apresentar uma explicação geral. Teríamos assim um
nível fisiológico ou neurológico, um outro psicológico, outro
sociológico, outro cultural, cada um devendo ser estudado por uma
abordagem particular para depois termos os resultados combinados
(esta é, por exemplo, a posição explícita de Sheila Walker e de
Edward Foulks, entre outros — cf. Walker, 1972; Foulks, 1972).
Ora, os antropólogos sabem desde Mauss que os fatos sociais
são totais, ou seja, ao menos num certo sentido articulam e dão
nexo a realidades de outros níveis (fisiológico, psicológico,

11 Assim, é ao mesmo tempo espantosa e natural a profissão de fé


positivista de Luc de Heusch ao recusar o “corte epistemológico”
entre a “história da loucura” e a “história das idéias religiosas”
proposto, segundo ele, por Michel Foucault (cf. Heusch, 1971:
292). Heusch confunde aí explicação científica com reducionismo
naturalista e acaba por deslizar de um pretendido estruturalismo
para um esquema bem adequado ao evolucionismo vitoriano, com o
qual ele se contenta.
112

etc.) que, caso contrário, não teriam, para o ser humano,


existência alguma (cf. Lévi-Strauss, 1950). Assim, ao antropólogo
cumpre tentar compreender e demonstrar como um fato socialmente
determinado e socialmente vivido pode induzir fenômenos de outro
nível. Não, evidentemente, que outras ciências não possam fornecer
elementos para a explicação do transe — isto é praticamente
essencial. O problema consiste em esperar de tais ciências,
quaisquer que elas sejam, o fornecimento da chave explicativa de
um fato que, por ser total, cabe, por direito e dever, à
antropologia explicar. Em outros termos, a questão reside em
escolher entre uma série de explicações mecânicas que ao final
poderão talvez ser adicionadas entre si sem modificar sua natureza
última, isto é, sem dar acesso a uma verdadeira síntese, e a
tentativa de encontrar justamente uma explicação sintética,
qualitativamente distinta dos modelos parcelares mas que poderá,
num outro momento talvez, chegar a esclarecê-los.
Isto não significa, é claro, que o antropólogo suponha uma
existência imaterial dos fenômenos por ele analisados. Mas ele
sabe sobretudo que suas análises

“préfigurent seulement, sur les


parois de la caverne, des opérations qu’il
appartiendra à d’autres sciences de valider
plus tard, quand elles auront enfin saisi
les véritables objets dont nous scrutons
les reflets” (Lévi-Strauss, 1971: 575).

A antropologia corresponde pois somente a uma etapa de um


trabalho, a que visa tornar possível a redução dos fatos humanos a
sua materialidade última. Não há nenhuma contradição aqui: esta
redução não tem nada a ver com aquela acima criticada, pois esta
última tem seu ponto fraco não em pretender reduzir, mas em não
saber como fazê-lo, ao não respeitar nenhuma das exigências que
garantem a cientificidade de um tal trabalho. Tais exigências (cf.
113

Lévi-Strauss, 1976: 282-283) sustentam tanto que o nível a ser


reduzido não pode ser empobrecido, quanto que aquele que deverá
recebê-lo tem que ser enormemente complexificado justamente para
poder dar conta do que se lhe exige. Ora, o “materialismo médico”
só consegue a dissolução do transe no biológico sob o preço de
simplificar excessivamente o primeiro e de adotar uma concepção do
segundo rigorosamente idêntica àquela existente antes do processo
de redução. Neste sentido, e para evitar erros assim, o trabalho
antropológico só pode consistir em complexificar o máximo
possível, em termos estruturais, o nível cuja redução é
pretendida, para que, um dia, outras ciências (pois nesse momento
a antropologia se dissolve juntamente com seu objeto) possam
efetuar uma redução verdadeiramente científica e explicativa.
Para cumprir uma tal tarefa, a única via aberta para a
análise antropológica é tentar desvendar as estruturas lógicas em
operação no fenômeno estudado, estruturas que, supondo-se
redutíveis a mecanismos básicos do pensamento, podem colocar a
explicação no caminho de uma materialidade biológica e, por trás
dela, físico-química. É num tal contexto que o estudo
antropológico das religiões encontra sua validade, e não,
certamente, nem no reducionismo simplista apresentado acima, nem
em uma fenomenologia do pensamento religioso que se contentaria em
reproduzir, com outra linguagem, o que os próprios crentes já
dizem (tal é o caso, no que diz respeito aos estudos afro-
brasileiros, do trabalho de Juana Elbein dos Santos — 1977 — obra
de resto profundamente admirável):

“Se quisermos fazer da religião uma


ordem autônoma, ligada a uma pesquisa
particular será necessário subtraí-la a
essa sorte comum aos objetos da ciência.
Definir a religião por contraste será
inevitavelmente para a ciência fazê-la
114

distinguir-se apenas como o reino das


idéias confusas. Por conseguinte, todo
empreendimento que vise a pesquisa objetiva
da religião será forçado a escolher um
outro terreno que não o das idéias, já
desnaturado e apropriado pelas pretensões
da antropologia religiosa. Ficarão abertas
somente as vias de acesso afetiva — ou
mesmo orgânica — e sociológica, que apenas
rodeiam os fenômenos. Inversamente, se
atribuirmos às idéias religiosas o mesmo
valor que a qualquer outro sistema
conceptual, que é o de dar acesso aos
mecanismos do pensamento, a antropologia
religiosa será validada nos seus empenhos,
mas perderá sua autonomia e especificidade”
(Lévi-Strauss, 1975: 107).

De fato, nos estudos afro-brasileiros, além das abordagens


fenomenológica e “afetiva-orgânica” já mencionadas e analisadas,
pudemos observar a presença de um modelo sociológico. Este modelo
constitui mesmo o outro paradigma utilizado para a explicação dos
fenômenos extáticos, apresentando uma perspectiva sociologizante
onde a possessão é encarada como reflexo, direto ou invertido, da
“estrutura social” que envolve a ela e ao culto em que se
processa. Neste modelo, o transe aparece ora como mecanismo de
reforço da ordem social abrangente (seja