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O surrealismo como válvula de escape para o desenho homoerótico!

Os filmes surrealistas tem mesmo o que podemos classificar como uma estrutura de
sonho.

Sonho: “realização disfarçada de um desejo reprimido”


(definição clássica de Freud sobre o sonho!

1 - Se o filme se estrutura à semelhança de um sonho, e o sonho é sempre a realização


de um desejo, qual é, pois, o desejo que este sonho realiza?
2 - Se Kenneth Anger chegasse em meu consultório e contasse Firework como um
sonho que tivera na noite passada e James Bidgood fizesse o mesmo com Pink
Narcissus poderíamos interpretar ambos os sonhos à luz da história de vida e do
percurso de análise de cada um descobrindo alguma verdade de seus respectivos
inconscientes.
3 - Mas por se tratar de uma obra de arte, feita a partir da subjetividade de um pessoa
mas compartilhada para servir de identificação para outras pessoas, qual verdade ela
carregaria que abarcaria todas essas pessoas que assistiram ao filme e tiveram com ele
alguma identificação?
4 – Então, há um desejo homoerótico universal? Se sim, qual seria esse desejo
homoerótico por excelência?

É isso que tentaremos responder...

Primeiramente, sobretudo Pink Narcissus, parece se tratar de uma atualização do mito


da virilidade verdadeira, não castrada e sem lei. (Mito freudiano do Totem e Tabu
comentado por Pedro Ambra no dossiê “Cartografias da masculinidade” da edição de
fevereiro de 2019 da Revista Cult.):

“O construto ideológico do que chamam crise da masculinidade, prega ter havido uma
‘era de ouro’ onde os homens poderiam ser homens de verdade, mas tal era foi ceifada
pela pós-modernidade globalista. No entanto, o que se observa, na clínica e na política,
desde sempre homens são assombrados por esse passado viril que, mesmo não tendo
existido de fato, produz subjetividades dispostas a sustentar esse ideal vazio na tentativa
de não ter de se haver com seus próprios limites e seu futuro incerto”.

O quarto de Narcissus vira seu santuário sexual.


Que transita entre o épico e o intimista —, cujo combustível é justamente sua imersão
fantasiosa nas mais involuntárias manifestações do desejo humano sob o espectro da
masculinidade: homens dominadores, gladiadores romanos, a figura do grego e do
cowboy
Luis Monteiro, em “A experiência estética em Pink Narcissus” no Medium.

Neste sentido, tanto Narcissus quanto o sonhador de firework, parecem estar a procura
de homem, mas não qualquer homem, contato que seja viril.

Por que dessa prevalência do falo na sexualidade homoerótica?

Para responder, recorro as fórmulas da sexuação propostas por Lacan.


Fórmulas da sexuação = duas formas de gozo que podem ser experimentadas no corpo
na relação de um sujeito com o outro.

Gozo fálico: lógica da série, aborda-se o outro como objeto, um mais um mais um mais
um...
Gozo não-todo: lógica da singularidade, aborda-se a outra pessoa como sujeito, uma
por uma, em sua singularidade.

Há sempre na homossexualidade masculina a prevalência do falo (o que está mudando


por conta da maior visibilidade dos homens trans).
Há homossexuais cujo erotismo está restrito à certa relação com o órgão fálico.
Há homossexuais onde há uma abertura para dimensão do amor.

A título de exemplo:
Gays do GRINDR ou os ditos heterossexuais curiosos...
(partes do corpo em uma vitrine, o órgão – pode ser o falo – quase deslocado de seu
portador)
- O homem não goza do corpo de outro homem, mas de sua fantasia.
- A sexualidade masculina é fetichista (perversão polimorfa do macho) na medida que
não aborda o outro por si, mas o aborda enquanto objeto.
- Há uma procura compulsiva de um falo e mais um por parte de alguns sujeitos.
É disso que se trata nos encontros fortuitos e apressados em parques, banheiros
públicos, inferninhos e boates.
Mesmo que tenhamos tido avanço no que diz respeito à normalização da
homoafetiviade, certos sujeitos preferem não se identificar sob este nome, ou mesmo
que se identifiquem, somente o conseguem viver de forma acuada ou clandestina.
Uma distinção entre amor e sexo pode ser um tanto démodée, por isso proponho a
distinção entre falta e excesso.

Distinção entre desejo e gozo.


No campo do desejo, é próprio haver falta, afinal de contas, desejamos apenas o que não
possuímos.
Ao passo que no campo do gozo, é próprio haver o excesso. Há um objeto ao alcance da
mão do qual se extrai mais que satisfação, invariavelmente, sofrimento.

Trago essa distinção à luz da descrição feita pelo próprio Kenneth sobre seu curta: “um
sonhador insatisfeito desperta, sai na noite procurando uma ‘luz’ e mergulha no buraco
de uma agulha. Num sonho dentro do sonho, ele retorna à sua cama ainda mais vazio
do que antes”. Há algo de lesivo da fantasia do sujeito, o corte da garrafa no peito.

Trata-se do vazio suscitado pelo excesso, que não movimenta, mas paralisa. Pois está
mais próximo do fastio e do tédio que do vazio do desejo que nos movimenta em busca
de um objeto que se deseja.

Penso que os filmes, principalmente Pink Narcissus, é tanto um louvor estético ao


homoerotismo, uma espécie de “poema audiovisual” quanto uma crítica, ou no mínimo
um retrato psicossocial da homossexualidade masculina, apresentando tanto aspectos de
um momento histórico específico, quanto aspectos universais sobre o funcionamento do
desejo.
Há um ideário de devassidão: Porque não havia muita escolha para se exercer a
homossexualidade. Eram narrados assim e punha em ato as palavras com as quais eram
descritos. É uma forma de reconhecimento, o jeito que possuíam de se inscrever. Hoje a
indústria cultural nos narra de outra maneira: muitas vezes não mais como um pecador
lascivo, mas sim um bom pai de família e, quem sabe, até mesmo um empreendedor de
sucesso.

Temos por exemplo os dois últimos que concorrem ao Oscar, os escolho por uma
questão de visibilidade. Moonlight e Me chame pelo seu nome. Pontos geográficos
distintos, realidades sociais e culturais opostas, a homossexualidade é abordada de
maneira mais “normal”, ainda que com pesos, contradições e enfrentamentos distintos
para cada filme.

Ser homem tratou-se sempre de criar uma ficção. E a homossexualidade papel


fundamental na elucidação disso. Continuemos, pois, sonhando ou acordados, tendo
coragem de bancar nosso Desejo.
Pink Narcissus
estética extremamente kitsch

- Botânica: Narcissus L. ou narciso é um género botânico pertencente à família


Amaryllidaceae.

- Mitologia: Segundo a versão de Ovídio (poeta romano): Narciso era um rapaz


plenamente dotado de beleza. Narciso cresceu, e se transformou um jovem bonito de
Beócia, que despertava amor tanto em homens quanto em mulheres, mas era muito
orgulhoso e tinha uma arrogância que ninguém conseguia quebrar. Para dar uma lição
ao rapaz frívolo, a deusa Némesis, o condenou a apaixonar-se pelo seu próprio reflexo
na lagoa de Eco. Encantado pela sua própria beleza, Narciso deitou-se no banco do rio e
definhou, olhando-se na água e se embelezando. Depois da sua morte, Afrodite o
transformou numa flor, Narciso.

No filme aparece tanto o beijo no espelho quanto a flor chamada narciso.

- Psicanálise:
Narcisismo (Senso comum) X Narcisismo (psicanálise)
O narcisismo não constitui por si só uma patologia, ele é um integrador e protetor da
personalidade e do psiquismo.
É estrutural, todos passam por essas fases no desenvolvimento infantil:
1ª fase: Auto-erotismo (prazer que o órgão retira de si mesmo);
2ª fase: Narcisimo (Todos “tem” narcisismo);
- caminho que a libido (energia pulsional) no processo de constituição do eu.
- narcisismo primário: investimento libidinal no eu. O eu é um dos primeiros objetos de
amor da criança.
- narcisismo secundário: investimento libidinal também no objeto
Para todo término é preciso uma boa dose de narcisismo (tanto no âmbito estético
quanto no que se refere à saúde: cuidados com o próprio corpo, alimentação, higiene...
só é possível fazer isso ao se investir energia no Eu).
“A partir daí, só é possível experimentar-se através do outro.”

Questões: Se o personagem não é “narcisista” no sentido clássico do termo, mas, pelo


contrário, vai em direção ao outro e não se restringe a observar-se no espelho das águas,
porque então o diretor deu-lhe o nome do personagem mítico?

Resposta:
- Por mais que ele tome outro por objeto de amor ele o faz de forma narcísica. Freud
justamente dirá que amamos sempre é de forma narcísica.
- Ama-se sempre no outro, o que se é, o que se foi, ou o que se gostaria de ser.
- A criança perde este objeto que foi (eu idealizado) e é na tentativa de recuperá-lo que
ela investirá a libido em objetos esternos.

ENTRAR NO FILME:
- O personagem do filme deseja um objeto que corresponde ao ideal estético
homoerótico de uma época (homens mais novos e sem pelos, por exemplo). Seus
devaneios fazem alusão à um tipo específico.
- Dessa maneira ele não vai ao encontro de outra pessoa, ele vai encontro do objeto de
sua própria fantasia. E este objeto é o que ele foi para Outro no momento de
constituição do seu eu. É assim, que ao ir ao encontro do objeto perdido ele vai ao
encontro, na verdade, desse pedaço de si. Desejamos quem, traz algum traço que nos
remeta a este nosso objeto perdido, ainda que não saibamos qual exatamente é ele,
justamente por ser inconsciente.
- O espelho não é tanto uma experiência que nos mostra a imagem que nós somos, ele
aponta mais para a imagem que nós temos de nós. A anorexia está aí para testificar isso.
Ou o simples fato de no curto espaço de alguns dias nos vermos no espelho e nos
amarmos ora mais ora menos.
- No entanto o objeto não está apenas perdido, ele está para sempre perdido. Por isso
não há a satisfação plena e o que move a vida é mesmo a falta, que podemos também
chamar de desejo. Alguns consentem com essa falta e elegem um objeto específico
como objeto de amor, outros, ao não consentirem com essa falta, podem se lançar
em uma busca sem fim pelo tal objeto. É assim que, por exemplo, na vida de um
determinado sujeito desfilam diversos e diferentes homens, mas é sempre o mesmo
cabelo cacheado.

A aglutinação entre a música, adaptada de acordo com a imagética explorada por


Narcissus, e as diferentes projeções causadas pela harmonia das cores vibrantes em um
amplo jogo de iluminação (que intercala entre o azul e o rosa), combinam ao criar uma
atmosfera extremamente efêmera e excêntrica — que transita entre o épico e o intimista
—, cujo combustível é justamente o epicentrismo imaginativo do personagem e sua
imersão fantasiosa nas mais involuntárias manifestações do desejo humano sob o
espectro da masculinidade: homens dominadores, gladiadores romanos, a figura
do grego e do cowboy e diversos outros arquétipos apropriados pela cultura LGBT, que
moldam e conduzem a extravagante e psicodélica narrativa visual. O quarto de
Narcissus vira seu santuário sexual. Não há ações corridas, apenas reverberações
cênicas enunciativas que viram palco dos mais variados fetiches do personagem, que
assim idealiza diversos universos edificados pelos desejos de seu inconsciente: das
insinuações sexuais em um banheiro à jardins floridos e coloridos, à cenários escuros
que remetem o anseio por uma experiência com o desconhecido. Todos propositalmente
criados pelo autor a fim de serem planificados no imaginário do telespectador.

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