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net/publication/322460345
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All content following this page was uploaded by Maria Cecília de Souza Minayo on 26 January 2018.
Presidente
Paulo Gadelha
Editora Fiocruz
Diretora
Nísia Trindade Lima
Editor Executivo
João Carlos Canossa Mendes
Editores Científicos
Carlos Machado de Freitas
Gilberto Hochman
Conselho Editorial
Claudia Nunes Duarte dos Santos
Jane Russo
Ligia Maria Vieira da Silva
Maria Cecília de Souza Minayo
Marilia Santini de Oliveira
Moisés Goldbaum
Pedro Paulo Chieffi
Ricardo Lourenço de Oliveira
Ricardo Ventura Santos
Soraya Vargas Côrtes
Deserdados Sociais
CONDIÇÕES DE VIDA E SAÚDE DOS PRESOS
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Organizadoras
Maria Cecília de Souza Minayo
Patricia Constantino
Copyright © 2015 dos autores
Todos os direitos desta edição reservados à
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ / EDITORA
Revisão
Augusta Avalle
M. Cecilia G. B. Moreira
Myllena Paiva
Normalização de referências
Clarissa Bravo
Catalogação na fonte
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica
Biblioteca de Saúde Pública
2015
EditorA FiocrUZ Editora filiada
Av. Brasil, 4036 – Térreo – sala 112 – Manguinhos
21040-361 – Rio de Janeiro – RJ
Tels: (21) 3882-9039 e 3882-9041 | Telefax: (21) 3882-9006
e-mail: editora@fiocruz.br | www.fiocruz.br/editora
Nos últimos anos, houve revoltas em prisões em muitos lugares do mundo.
Os objetivos que os presos tinham, suas palavras de ordem apresentavam
certamente qualquer coisa de paradoxal. Eram revoltas contra toda uma miséria
física que dura há mais de um século: contra o frio, contra a sufocação e o excesso
de população, contra as paredes velhas, contra a fome, contra os golpes. Mas
eram também revoltas contra as prisões-modelos, contra os tranquilizantes, contra
o isolamento, contra o serviço médico ou educativo. Revoltas cujos objetivos
eram só materiais? Não. São revoltas contraditórias contra a decadência e ao
mesmo tempo contra o conforto; contra os guardas e, ao mesmo tempo, contra os
psiquiatras? De fato, trata-se realmente dos corpos e das coisas materiais em todos
esses movimentos: como se trata disso nos inúmeros discursos que a prisão tem
produzido desde o começo do século XIX. O que provoca esses discursos e essas
revoltas, essas lembranças e invectivas são realmente as pequenas, as ínfimas
coisas materiais.
Foucault, 2009
Autores
Sandra Maria Besso
Advogada, doutoranda em saúde coletiva; pesquisadora colaboradora
do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural da
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo
Cruz.
Prefácio 11
Apresentação 13
Conclusões 227
Referências 235
Prefácio
11
Apresentação
13
como agentes, médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas
ocupacionais e outros.
Os objetivos específicos do referido estudo foram: identificar as condições
sociais e de saúde dos presos; investigar a qualidade de vida dessa população no
sistema prisional; verificar a forma como as condições ambientais das unidades
prisionais impactam a saúde e a qualidade de vida dos detentos.
A investigação foi composta por um inquérito sobre saúde com uma amostra
representativa da população carcerária; uma avaliação das condições ambientais
de 11 unidades, distribuídas pela Capital, Baixada Fluminense e Interior do
estado, que estavam cumprindo termos de ajustamento de conduta ajuizados pelo
Ministério Público; entrevistas com uma amostra qualitativa de presos, presas
e gestores do sistema; e observações das condições ambientais das unidades,
guiadas por instrumentos padronizados e reconhecidos internacionalmente.
Os dados empíricos e os autores referenciados no estudo focalizam muito
bem a ambiguidade do estatuto da prisão que substituiu, desde a metade do
século XVIII, o cruel justiciamento realizado pelas próprias mãos dos poderosos
ou por ordem dos reis absolutistas. Apesar de todos os questionamentos pró
e contra a proposta de ressocialização da população carcerária, este trabalho
mostra as dificuldades e as contradições no lidar com um grupo social que, em
geral, a maioria da sociedade quer ver longe e afastado de sua vida e até de suas
preocupações humanitárias.
O livro se divide em cinco capítulos que dão ênfase a três tempos da vida
dos presos: antes de serem encarcerados, a vivência do cumprimento da pena e
as expectativas que cercam a vida pós-prisão. Nesse percurso se observa uma
dinâmica recursiva em que os momentos de ruptura reforçam e magnificam a
continuidade das situações adversas de uma população marcada por diferentes
níveis de exclusão social, cultural e subjetiva.
O primeiro capítulo é dedicado à contextualização do estatuto da prisão no
passado e no presente. Inicia com uma sistematização dos referenciais teóricos
tanto do conceito de prisão como do tema saúde dos detentos, em uma perspectiva
nacional e internacional. Nele, apresentam-se informações atualizadas sobre o
sistema carcerário de vários países, comparando-os com a situação do Brasil e
do estado do Rio de Janeiro. Faz-se também uma análise das leis, das políticas e
das normas que regem o sistema carcerário do país e das diretrizes que tratam da
inserção dos presidiários no Sistema Único de Saúde (SUS), considerando-se que,
14
como qualquer brasileiro, o detento tem direito a um atendimento público, universal
e gratuito. São descritos os caminhos metodológicos e operacionais utilizados
para realização da pesquisa, que está baseada em um processo de triangulação de
perspectivas e abordagens quantitativas, qualitativas e observacionais.
No capítulo 2, trata-se da vida antes da institucionalização. Nele são
apresentados e analisados o contexto familiar, comunitário, de trabalho, a
experiência de criminalidade e as vivências e práticas de violência. O percurso
de vida e de experiências dos reclusos mostra uma população pobre, com poucos
recursos sociais e culturais, mas que não se distingue da maioria das pessoas
das classes populares brasileiras, que, cotidianamente, enfrentam os desafios da
subsistência e da própria realização como cidadãos. É importante refletir sobre
essa particularidade, pois, de um lado, é impressionante a mínima proporção
de presos que foge ao estereótipo de jovem, negro e pardo, pobre e morador da
periferia; contudo, de outro, é fundamental ressaltar que a maioria dos moradores
desses espaços, com as mesmas características socioeconômicas e culturais,
são trabalhadores que vivem na legalidade. Ou seja, não há um determinismo
social do crime e, apesar de todas as condições adversas, existe uma opção pela
criminalidade conforme as histórias contadas por boa parte dos entrevistados na
pesquisa.
Nos capítulos 3 e 4, abordam-se os mais diferentes aspectos da vida dos
presos. Nestes capítulos, em que se analisa o cotidiano prisional, desenvolve-se
o foco do estudo: a saúde, seja no seu sentido ampliado, seja na sua acepção
restrita de assistência. Aqui, a saúde, como reza a Constituição de 1988, é uma
resultante das condições de vida e das condições ambientais. O que se vê nas
prisões estudadas é um cotidiano marcado pelo ócio, insatisfação e ausência ou
restrição de atividades laborais e criativas, em que a palavra ressocialização –
salvo raras exceções – permanece como um termo vão e vazio, fugindo, portanto,
ao objetivo precípuo do encarceramento.
Há dois problemas que mortificam e revoltam profundamente os detentos:
a alimentação, cujo preparo é terceirizado, tem uma péssima qualidade, o que
só faz aumentar o sofrimento de quem não tem outra opção a não ser nutrir-se
com o que lhe é oferecido. A segunda questão é o transporte para acesso aos
serviços de saúde e de Justiça, considerado por todos um verdadeiro suplício.
Esses temas são particularmente aprofundados nestes capítulos, assim como a
questão religiosa.
15
Os relacionamentos são tratados sob os mais diferentes aspectos, mas
chamam atenção: a falta que os detentos e as detentas sentem de suas famílias
quando elas se afastam; os laços que eles e elas criam para suprir a carência dos
afetos primários e, ao mesmo tempo, o confiar desconfiando do companheiro
próximo que pode se constituir em amigo ou risco e ameaça.
No capítulo 5, analisam-se as expectativas e os propósitos dos presos para os
momentos pós-reclusão, bem como suas idealizações e a realidade que os espera.
Este é um capítulo curto porque os detentos foram lacônicos, mostrando certo
ceticismo quanto ao futuro. Chama atenção que a família, ainda que criticada
pelos reclusos e muitas vezes acusada como parte da situação que os levou ao
crime, é invocada pela maioria deles como seu porto de salvação. É a ela que
juram nunca mais delinquir, é a ela que devotam seus afetos e é dela que esperam
o gesto da mão que os erguerá e os ajudará a enfrentar as discriminações sociais.
Todos são cientes das dificuldades que enfrentarão. Alguns não se arrependem
do caminho escolhido e o reafirmam como uma opção de risco. A maioria, no
entanto, promete a si mesma e a suas famílias que se tornará cidadão, vivendo
dentro da legalidade e à espera de uma nova chance na comunidade próxima e
da sociedade. Em relação às instituições, muito poucas apostam na recuperação
e na integração social dos presos.
Nas conclusões, sintetizam-se os principais problemas encontrados na
pesquisa: a prisão dramatiza a questão social brasileira e clama por mudanças.
Sugerem-se também alternativas que podem ser caminhos para a ressocialização.
A obra finaliza com um aceno de esperança, mesmo sabendo que é um desafio
transformar um sistema que, sob todos os sentidos, atua na contramão da
construção da cidadania.
Pensando na enorme quantidade de pessoas que contribuíram para que este
livro se tornasse possível, cabe agradecer a importante colaboração dos diretores
das penitenciárias, dos presos e das presas que responderam ao inquérito ou
aceitaram ser entrevistados; assim como ao Ministério Público estadual, que deu
um suporte imprescindível à realização de todo o trabalho de campo, sem esse
apoio teria sido impossível o acesso a esse grupo social segregado cujo cotidiano
é marcado pela interdição.
O grande desejo de todos que participaram da pesquisa e da elaboração do
livro é que ele possa ser replicado. Que a partir do estudo de uma situação local,
promova-se uma reflexão nacional sobre o processo de ressocialização. Nesse
sentido, com base na bibliografia analisada, os autores não hesitam em afirmar
16
que o caso do estado do Rio de Janeiro pode ser entendido como um estudo
situacional que se reproduz em condições muito mais dramáticas em outras
partes do Brasil.
O trabalho aqui apresentado segue uma filosofia desenvolvida pelo Claves,
de onde procedem os principais autores deste livro. Em todos os seus 25 anos de
existência, esse departamento se propôs a produzir conhecimentos estratégicos
que possam ajudar os políticos, os gestores e os profissionais da prática a
melhorar a realidade que enfrentam. Como diz Hooks (1995: 466) sobre os
trabalhos acadêmicos: “A teoria não é intrinsecamente curativa, libertadora e
revolucionária. Só cumpre essa função quando lhe pedimos que o faça e dirigimos
nossa teorização para esse fim”. Ou como ressalta Brecht, sob a pele de Galileu
Galilei numa peça teatral em que discute o papel dos intelectuais: “Para que serve
a ciência se não for para diminuir o sofrimento da humanidade?”.
As organizadoras
17
1
Passado e Presente
da Instituição Prisional
19
individualizado. A assistência material, jurídica, educacional, social, religiosa,
assim como a assistência em saúde estão previstas com a finalidade de colaborar
para o retorno do preso à convivência em sociedade. O artigo 14 da seção III
dessa lei versa especificamente sobre a assistência à saúde e afirma que ela deve
ter caráter preventivo, curativo e incluir atendimento médico, farmacêutico e
odontológico. Mesmo quando a instituição prisional não estiver preparada para
prover a assistência médica necessária, a lei prescreve que tal assistência deverá
ser prestada em outro local, mediante autorização da direção do estabelecimento.
Em outras palavras, nos termos da Lei de Execução Penal, deve-se priorizar o
código humanitário que se instaurou no mundo ocidental desde o fim do século
XVIII e início do século XIX.
No entanto, apesar de haver um marco legal que prevê o acesso do preso
à assistência à saúde, as condições precárias de confinamento se tornam
obstáculos para a garantia dos direitos dos indivíduos. As situações mais
comumente encontradas no espaço das prisões, como se poderá constatar neste
livro, são: falta de higiene e insalubridade; insuficiência de acesso às unidades
de saúde; carência de material de higiene pessoal; colchões e vestuário sujos
e higienicamente inadequados; aeração insuficiente dos ambientes; refeições
nutricionalmente desbalanceadas; instalações malconservadas; déficit de vagas
para estudo e trabalho; falta de projetos voltados para a qualificação profissional
dos presos; atraso no recolhimento de resíduos, inclusive dos hospitalares; e
precária assistência social e psicológica ao recluso e a seus familiares.
No que concerne às enfermarias e consultórios dentários das unidades
prisionais, assim como as unidades de saúde em geral, constatam-se carência de
profissionais, ausência de medicamentos e armazenamento irregular de material.
Tais condições repercutem tanto nas dificuldades de reintegração social do preso
como no agravamento de seu estado de saúde física e mental. Com as condições
de vida e ambientais apresentadas e com o tratamento de seus problemas de
saúde postergados ou negados, os presos podem adquirir patologias ou, se já
estiverem doentes, ter piora no seu estado de saúde, o que demandará tratamentos
complexos, como nos muitos casos constatados aqui.
Mesmo com tamanhas carência e inadequação, os presos são mantidos nas
penitenciárias a um custo mensal médio de 3,5 salários mínimos – valor muito
mais elevado do que, em geral, suas famílias recebem no mercado de trabalho, ou
mesmo, que eles próprios ganhavam antes de serem detidos.
20
As raízes teóricas do estatuto da prisão
Apesar de terem sido desenvolvidas desde o fim do século XVIII, a história
das prisões e seus significados continuam atuais, na medida em que as falas
espontâneas dos presos os reatualizam de forma candente. Assim, ao buscar
entender os problemas que surgem no cotidiano contemporâneo é importante
não perder os fundamentos de sua permanente reincidência e cronicidade. Por
isso, mesmo recorrendo a uma bibliografia paulatinamente crescente de autores
nacionais e internacionais, faz-se uma inflexão especial sobre o pensamento de três
autores seminais: Durkheim (2007), que no fim do século XIX estudou o crime e a
punição como fatos sociais; Goffman (1990), que nos anos 1950 analisou a fundo
as instituições totais; e Foucault (2009), que na década de 1970, com sua teoria
da arqueologia do saber, acompanhou a história das formas de punir e retomou o
estudo do nascimento das prisões, os ideais que acompanharam sua implantação
no mundo e os problemas que, desde o início, os encarceramentos suscitaram.
21
O crime não se produz só na maior parte das sociedades, mas em todas. Ele muda
de forma, pois os atos assim classificados não são os mesmos em todos os lugares,
mas em todos os lugares e em todos os tempos existem pessoas que se conduzem
de tal forma que a repressão penal se abate sobre eles.
Durkheim (2007) chega a afirmar que o crime faz parte de uma coletividade
sadia e que se deveria desconfiar tanto de uma sociedade em que não houvesse
crime como daquela em que a criminalidade fugisse do controle. Isso porque, no
primeiro caso, nem a comunidade de santos nem a emergência de sábios existem
sem transgressão; e no segundo, os mecanismos de coesão e de coerção entram
em estado de “anomia” – outro conceito criado pelo autor –, isto é, demonstram a
situação de falência dos mecanismos internos de controle das sociedades. “Para
que a originalidade do idealista que ambiciona ultrapassar seu século se possa
manifestar, é preciso que a do criminoso que está aquém de seu tempo o possa
igualmente. Não pode existir uma sem a outra” (Durkheim, 2007: 86).
Portanto, de acordo com o autor, o crime atua como um agente regulador
da sociedade, na medida em que o ato criminoso pode ser entendido como ofensa
ao que é definido como resultado da coesão e da convivência na consciência
coletiva. Dessa forma, as sanções não teriam a finalidade de prevenir a repetição
do ato culpado: sua função seria satisfazer a consciência comum ferida por algum
membro transgressor. A pena, portanto, dentro dessa filosofia, não serve, ou
serve apenas secundariamente, para corrigir o transgressor ou intimidar seus
possíveis imitadores; seu verdadeiro propósito é manter intacta a coesão social,
sustentando toda a vitalidade da consciência comum.
Durkheim não tratou do sentido da punição para o criminoso, mas do
sentido do crime para a sociedade, mostrando a normalidade tanto das sanções
como das transgressões como um fato social que existe e existirá sempre.
22
seus estudos de genealogia das “técnicas morais”, seguindo o fio condutor das
transformações sociais.
Para entender o que se castiga e por que se castiga, o autor propôs uma
terceira pergunta: como se castiga? Esta pergunta só poderia ser respondida por
meio da análise das práticas, já que elas constituem o lugar de encadeamento
do que se diz e do que se faz, das regras que se impõem e das razões por que
ocorrem, dos projetos que se elaboram e das evidências a que se chegam.
Foucault (2009) considera que conseguiu atingir a compreensão do efeito
procurado, demonstrando que o encarceramento é parte das tecnologias
do disciplinamento do ser humano, da vigilância, do comportamento e da
individualização dos elementos do corpo social. Para atingir tal compreensão, ele
acompanhou historicamente a transformação do suplício em encarceramento,
movimento que se fortaleceu na segunda metade do século XVIII e se
institucionalizou no século XIX.
Em Vigiar e Punir, Foucault (2009) descreve as formas impactantes
de punição empregadas até o século XVIII. Na época, conduzia-se a uma
representação, encenação pública, do suplício, cuja finalidade era imprimir no
corpo do condenado todo o sofrimento desencadeado por ele à sociedade.
O filósofo analisa o suplício como um processo punitivo do corpo. O corpo
supliciado era o corpo torturado, violentado, humilhado, esquartejado, exposto
ao público em uma cerimônia teatral, em que o criminoso, totalmente dominado,
tinha sua sentença cumprida em um ritual de crueldade. O espetáculo consistia
na exposição do suposto criminoso à comunidade; ele era conduzido pelas vias
públicas e anúncios afixados nas partes de seu corpo, de modo a trazer à tona
sua sentença. Em geral, o pronunciamento do texto de condenação era realizado
na entrada de uma igreja, numa cerimônia na qual o condenado afirmava
solenemente seu delito.
O autor elenca uma série de suplícios, destacando os que culminavam em
pena de morte: açoites ou enforcamento; arrebentamento do corpo vivo, depois
do condenado ter sua mão ou língua furadas; tortura na roda de expiação;
estrangulamento e queima na fogueira em local público; esquartejamento para
exposição das partes do condenado em vários espaços por onde a população
circulava.
Foucault destaca que, ao contrário do que se possa imaginar, o suplício
obedecia a alguns princípios. Um dos principais era o de produzir certa quantidade
23
de sofrimento mensurável e proporcional à importância do crime. A morte, uma
das formas esperadas de suplício, representava o ápice de determinado tipo de
sofrimento. Por exemplo, na forma de decapitação que reduz todos os sofrimentos
a um só gesto ou por meio do esquartejamento que os leva quase ao infinito. No
cerimonial punitivo, o ciclo se fechava. Da tortura à execução, o corpo produzia
e reproduzia a verdade do crime. O condenado, através do jogo de rituais e de
provas, acabava confessando que o crime havia acontecido, que ele mesmo o
cometera, por isso o levava declarado por meio de inscrições penduradas em seu
corpo, suportando a operação do castigo e manifestando seus efeitos da maneira
mais ostensiva possível. O corpo supliciado sintetizava a realidade dos fatos e a
verdade da informação e era organizado em torno dos direitos do soberano, do
inquérito e do segredo: o sentido do suplício não era restabelecer a justiça e, sim,
reativar o poder.
Um segundo princípio era de que a execução do condenado deveria ser
realizada segundo um ritual organizado de forma a dar conhecimento ao público e
para manifestação do poder punitivo. Nesse sentido, o suplício não era concebido
como a exasperação de uma justiça sem controle, mas como um ato pensado e
calculado.
O processo incriminatório acontecia de modo secreto, com a ocultação
dos fatos tanto à sociedade quanto ao indivíduo acusado; o saber era privilégio
absoluto da acusação. Ao suposto criminoso eram vedados o direito a defesa e,
portanto, a um advogado, o conhecimento dos seus denunciadores e o acesso
às peças do processo. O julgador que representava o soberano detinha o poder
em suas mãos para acatar todos os tipos de acusações, mesmo as anônimas,
e de interrogar o acusado de forma meticulosa. Ele constituía sozinho, e com
pleno poder, uma verdade com a qual investia contra o acusado. Essa forma
secreta do processo conferia com o princípio de que, em matéria criminal, o
estabelecimento da verdade era um direito absoluto e um poder exclusivo do
soberano e seus juízes.
O supliciamento vigorou até o século XVIII, sendo substituído pela instituição
da prisão como castigo, que se consolidou no século XIX, estabelecendo uma
nova visão sobre o ato e o direito de punir por parte do Estado. Sobre a prisão,
aqui se discutem dois tipos complementares da realidade: a visão de “instituição
total” de Goffman (1990) e a perspectiva histórica de Foucault (2009). Foucault
reforça a ideia de que o corpo é o objeto de castigo, como o foi no estatuto do
suplício, ao passo que Goffman ressalta que a prisão visa à mortificação do eu.
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Goffman (1990) afirma que, apesar do discurso de ressocialização, as prisões,
destinadas ao controle social, são instituições totais que têm como objetivo a
proteção da sociedade contra os perigos de ruptura do tecido social pelo crime.
Lembra o autor que uma instituição total se define pelo grande número de
indivíduos em situação semelhante, que leva uma vida fechada e formalmente
administrada, na qual todos os aspectos do cotidiano são racionalizados e
efetuados no mesmo local e sob uma única autoridade, o que permite um controle
estrito de seus relacionamentos e de suas possibilidades de ação.
O principal problema das instituições totais, das quais as prisões são
exemplos clássicos, é a mortificação do eu, de acordo com Goffman (1990).
O autor descreve a forma como ocorre esse sacrifício do sujeito. O condenado
chega ao cárcere com determinada concepção de si mesmo, forjada nas relações
primárias e sociais; ao entrar, ele é imediatamente despido dessas disposições
por uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações da
subjetividade. Os processos pelos quais seu eu é mortificado são relativamente
padronizados: a barreira entre o que é interno e o mundo exterior, o que
dura o tempo todo e por muitos anos; a sequência de horários estabelecidos
e rotinas diárias obrigatórias, diferentes de sua vida pregressa; e, sobretudo, o
despojamento de seu papel social.
Em relação a seu papel social, em primeiro lugar, a prisão perturba e profana
exatamente as ações que na sociedade civil a pessoa tem o direito de cumprir com
autonomia e liberdade. A impossibilidade de manter esse nível de competência
adulta pode provocar no preso o horror de se sentir radicalmente infantilizado.
Em segundo lugar, corroborando o foco no processo de infantilização que ocorre
nas prisões, Goffman (1990) lembra que algumas mortificações parecem ser
organizadas apenas ou principalmente pelo seu poder de humilhar e que as
várias justificativas para fazer sofrer o eu são muito frequentemente simples
racionalizações, criadas para controlar a vida diária de grande número de pessoas
em espaço restrito e com pouco gasto de recursos.
Embora alguns dos papéis possam ser restabelecidos pelo preso se e quando
ele voltar para a vida social fora da prisão, muitas perdas são irrecuperáveis e
podem ser dolorosamente sentidas, como o tempo não empregado no progresso
educacional ou profissional, no namoro e na criação dos filhos. Um aspecto legal
dessa perda permanente pode ser encontrado no conceito de “morte civil”: os
presos enfrentam não apenas um dano temporário, mas permanente enquanto
estiverem internados, por não poderem dispor de dinheiro, assinar cheques, ter
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cartões de crédito, se opor a processos de divórcio ou adoção, votar. Assim, o
rebaixamento moral do recluso e o processo de despojamento criam um meio
de reatualizar de forma permanente o sentido de fracasso e de desgraça pessoal.
Goffman (1990) ressalta que as mutilações do eu ocorrem mesmo se
o detento coopera com a direção do presídio e esta mostra interesse por seu
bem-estar. Nesses casos, a instituição costuma tratá-lo como um colaborador
e ele se torna um participante que dá e recebe com espírito adequado o que foi
sistematicamente planejado, independentemente do fato de isso exigir muito ou
pouco dele. É o que foi observado nesta pesquisa em relação aos “faxinas”.
O termo “ajustamento primário” é usado por Goffman (1990) para se referir
à adaptação do sujeito à organização e, em muitos casos, ao ajustamento por
parte da organização em relação ao preso, como se observa no Brasil, em que
prisões inteiras ou alguns de seus setores recebem apenas determinadas facções
criminosas. O autor cunha ainda o termo “ajustamento secundário”, e o define
como qualquer disposição que o participante de uma organização tenha para
empregar meios ilícitos ou não autorizados com o objetivo de escapar daquilo
que se supõe que ele deva cumprir. Nas prisões, as práticas que não desafiam
diretamente a equipe dirigente, mas permitem que os presos consigam satisfações
proibidas, ou obtenham, por meios proibidos, as satisfações permitidas, poderiam
ser consideradas “ajustamentos secundários”. O mesmo preso pode empregar
diversos mecanismos de adaptação em diferentes fases de sua carreira moral e
pode alternar variadas táticas, para fugir do controle.
Goffman (1990) classifica os mecanismos de ajustamento secundário da
seguinte maneira: “afastamento da situação”, em que o preso deixa de dar atenção
a tudo, com exceção dos acontecimentos que cercam o seu corpo, e vê sua conduta
em perspectiva diferente da que tem a maioria dos detentos; “intransigência”, em
que intencionalmente o recluso desafia a instituição ao se negar a cooperar com a
equipe dirigente; “colonização”, em que o preso transforma o espaço interno num
domínio com elementos externos capazes de tornar sua existência relativamente
satisfatória; “conversão”, em que o preso parece aceitar a interpretação oficial e
tenta representar o papel do detento perfeito.
Para Goffman (1990), é impossível que as prisões, como instituição,
cumpram a função de libertar o ser humano e de fazer com que ele, ao sair, seja
melhor do que era quando entrou – no que também acredita o filósofo Foucault,
estudioso das transformações das formas de punir, como se sabe.
26
Segundo Foucault (2009), do estatuto da prisão – que, como já foi dito,
substituiu o suplício – não consta a tortura física como ato legítimo exercido pela
autoridade – embora ela continue a existir de forma ilegítima em várias partes
de mundo, sendo utilizada como castigo e vingança, tanto por criminosos contra
seus inimigos como por agentes de segurança com ou sem o aval do Estado.
A morte, como espetáculo e como ato político, também tem insistentemente
reaparecido nos meios de comunicação e mídias sociais, enaltecida por grupos
terroristas que ameaçam as sociedades.
Um dos fatores que contribuiu para que a punição diretamente ligada à
tortura física e moral fosse substituída pelo encarceramento foi o aspecto de
ambivalência das ações de suplício: por um lado, fazia aumentar a autoridade
do soberano e, por outro, fomentava na comunidade a piedade e a compaixão
pelo sentenciado. Tais sentimentos, ao longo do século XVIII, passaram a ser
estopim para desencadear, com frequência, o descontrole social, causando
tumultos, principalmente nos casos em que o povo duvidava da culpa do acusado.
Revoltas em prol da libertação e eliminação da pena do condenado impediam,
não raras vezes, a conclusão da sentença e ainda alimentavam insatisfações e
insubordinações.
As inquietudes decorrentes das formas atrozes de suplício fizeram emergir
diversos movimentos que reivindicavam o respeito aos aspectos humanitários do
indivíduo sentenciado. Os protestos populares em prol da suavização do modo
punitivo ganharam força com o apoio de grandes articuladores intelectuais em
pleno florescimento do pensamento iluminista. É o caso do jurista italiano Cesare
Beccaria (1738-1795); do advogado e jornalista francês Jean Michel Servant
(1737-1807); do jurista francês Charles Dupaty (1771-1825), entre outros
citados por Foucault (2009), para os quais era inconcebível manter espetáculos
tão arcaicos numa sociedade desenvolvida. Para esses pensadores, os castigos
pelas transgressões deveriam continuar existindo, mas seria preciso punir de
outro modo: eliminar a confrontação física entre o soberano e o condenado e
exercer a justiça criminal respeitando a humanidade do criminoso.
Investigando o que aconteceu a partir da institucionalização das prisões,
Foucault ressalta que o parâmetro proposto de humanização do sujeito, na
realidade, constituiu apenas um deslocamento do poder do rei para as mãos dos
magistrados. E o castigo aos criminosos deixou de ser uma arte de sensações
insuportáveis para se transformar numa “economia dos direitos suspensos”
(Foucault, 2009). Foucault trata a discussão tanto do suplício como da prisão
27
como dispositivos de poder; o poder não como algo centralizador ou totalitário que
pertence ao soberano ou à determinada classe social, mas como transversalidade,
como dispersão, constelação, multiplicidade, microfísica, uma vez que passa a
estar em todo lugar e em todas as coisas.
Desde o fim do século XVIII e início do século XIX, a sociedade ocidental
passou a desenvolver a era da “sobriedade punitiva”. “Punições menos diretamente
físicas, certa discrição na arte de fazer sofrer, arranjos de sofrimentos mais sutis,
mais velados e despojados de ostentação” (Foucault, 2009: 13). Nesse novo
momento, ao suspeito passou-se a garantir o direito de se defender da acusação
e de negar a culpa que lhe foi imputada. Assim, a verdade do crime era admitida
apenas depois de inteiramente comprovada. A pena deixou de ser decidida a
portas fechadas para se tornar pública, e a própria motivação ou natureza do
crime transformou-se em objeto de investigação e de discussão. A partir de
então, não bastaria dizer que tal delito fora comprovado, era necessário explicá-
lo, especificando em que nível da realidade penal ele deveria ser enquadrado, e
qual dosagem das penas o indivíduo cumpriria, de forma estabelecida em códigos
objetivamente escritos e legais. “A certeza de ser punido é o que deve desviar o
homem do crime e não mais o abominável teatro” (Foucault, 2009: 14).
Foucault localizou a prisão no contexto de um novo momento histórico
do capitalismo e de ascensão da burguesia, a que ele denominou “sociedade
disciplinar”, na qual, não apenas o preso, mas toda a população passa a se guiar
por regras estabelecidas de coesão e coerção. Nesse sentido coesão é também
coerção, como lembra Goffman (1990) analisando a introjeção das formas de
controle na vida cotidiana: “na prisão da vida social, cada pessoa é seu próprio
algoz, mesmo que alguns possam gostar de suas celas” (Goffman, 1990: 10).
O encarceramento como castigo tem como base um novo discurso: o da defesa
da sociedade se alia ao da recuperação do infrator numa proposta de devolvê-lo
recuperado ao convívio social.
Separando-o do corpo social, o prisioneiro seria controlado para adquirir
novas formas de se conduzir socialmente, por meio de intervenções disciplinares
e acompanhamento diário. Na visão dos reformadores, a prisão deveria se
organizar como uma espécie de fábrica, visando a modelar o novo comportamento
dos criminosos. Dessa forma, o ideal seria que todo condenado trabalhasse.
O trabalho prisional representaria um dos meios utilizados para reeducá-lo e
lhe dar um ofício, pelo qual ele aprenderia regras básicas e fundamentais de
convivência e pagaria sua dívida com a sociedade. O trabalho eliminaria a
28
ociosidade, ocupando os detentos com obrigações sociais e custeando suas
despesas na prisão, além de lhes garantir uma renda financeira que deveria ser
usada para assegurar sua reinserção moral e material após a prisão.
Entretanto, a proposta de transformação do culpado por meio de técnicas
corretivas, lembra Foucault (2009), na prática, não tinha e continua a não ter a
finalidade de reconstruir o sujeito de direito e, sim, o de forjar um sujeito obediente
e ordeiro. É por isso que o autor assevera, com certa ironia, que a figura do carrasco
foi substituída pela dos médicos, psicólogos, psiquiatras e educadores.
A punição moderna tem um significado diferente daquela do Antigo Regime,
no entanto. Na verdade, ela exclui o suplício. Porém, apesar das boas intenções
dos reformadores, na prática a reclusão não consegue humanizar a punição.
Foucault fala do fracasso da proposta humanitária e dos males que o regime
disciplinar da prisão produz. Ele vê a cadeia como um reduto de formação e
aperfeiçoamento da criminalidade ao invés de corrigir o criminoso, já que ao
passar pelo encarceramento, frequentemente, o condenado sai pior do que entrou.
E essa reversão de expectativa vem ocorrendo desde as primeiras experiências
institucionais:
A ideia de uma reclusão penal é explicitamente criticada por muitos reformadores.
Porque é incapaz de responder à especificidade dos crimes. Porque é desprovida
de efeito sobre o público. Porque é inútil à sociedade, até nociva: é cara, mantém
os condenados na ociosidade, multiplica-lhes o vício. A detenção provoca a
reincidência. Depois de sair da prisão, existe mais chance do que antes de se voltar
para ela. Os condenados são, em proporção considerável, antigos detentos [...]. A
prisão, consequentemente, em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos,
espalha delinquentes perigosos na população. (Foucault, 2009: 110)
29
Assim, as conclusões de Foucault – e como se constata em muitas situações
reais do país atualmente – são de que a prisão costuma funcionar como um local
de organização de delinquentes, solidários entre si, hierarquizados, prontos para
todas as cumplicidades futuras. Nessa atmosfera, os mais hábeis na marginalidade
exercem a função educativa dos principiantes, incitando ao ódio contra a
sociedade, a lei e as autoridades. O cárcere acaba por funcionar como um curso
sobre delinquência, ministrado por mestres na arte do crime, habilitando os mais
jovens e os novatos com informações e ferramentas para a prática delituosa.
O encarceramento atua de acordo com um princípio de relativa continuidade.
A continuidade das rotinas e dos critérios e mecanismos punitivos que reproduzem
a instituição prisional, de forma que ela apresente extrema solidez. Portanto se há
algum desafio, não é o de saber se o encarceramento será ou não corretivo, mas
sim o de desvendar sua inquestionável solidez, apesar de sua evidente ineficácia.
Nas palavras de Foucault (2009: 290), “o problema atualmente está mais no
grande avanço desses dispositivos de normalização e em toda a extensão dos
efeitos de poder que eles trazem, através da colocação de novas objetividades”.
Foucault também se pergunta: a punição ou os castigos na prisão podem
estar associados à reincidência criminal, e os detentos podem reproduzir no
contexto social todo o sofrimento passado no encarceramento? Eis sua resposta:
O sentimento de injustiça que um prisioneiro experimenta é uma das causas
que mais podem tornar indomável seu caráter. Quando se vê assim exposto a
sofrimentos que a lei não ordenou nem mesmo previu, ele entra num estado que
representa o deslocamento de uma prisão corretiva ou restauradora, para um
ambiente de especialização da criminalidade. Hoje, por exemplo, algumas pessoas
costumam afirmar (criticando essa instituição), tal criminoso entrou formado e
saiu mestre ou doutor em criminalidade. Ao assumir um caráter de imposição à
força, o trabalho deixa de funcionar como um mecanismo educativo e restaurador
do caráter moral do prisioneiro, contribuindo para revolta e hostilidade do mesmo,
perdendo assim seu aspecto educativo e integrador ao contexto comunitário [para
entrar numa atmosfera] habitual de cólera contra tudo o que o cerca. [O preso]
só vê carrascos em todos os agentes da autoridade: não pensa mais em ter sido
culpado; acusa a própria justiça. (Foucault, 2009: 235)
30
lhe é oferecida oportunidade de melhorar sua educação formal e sua formação
profissional. Todas essas dificuldades o colocam em situação de vulnerabilidade
e de risco para reincidência.
Na mesma linha do já exposto, Foucault (2009) conclui que a prisão não
reconcilia a pessoa com a humanidade, como pensavam os intelectuais que
conceberam o modelo do sistema, na medida em que permanecem as espoliações,
continuam os espaços de violência e se reproduz o jogo de forças. Assim, as
estratégias de poder, disseminadas em múltiplas formas institucionais, reafirmam-
se por meio de dispositivos disciplinares, produzindo sujeitos sujeitados.
Suas afirmações coincidem com a visão de Goffman (1990) quando discute o
assujeitamento e a mortificação do eu das pessoas encarceradas como foco de
sua punição.
Em seus escritos, nem Foucault nem Goffman deram muito destaque aos
gestores e técnicos do sistema penitenciário. No entanto, mesmo sem enfatizar
o seu papel, Goffman tece algumas considerações relevantes. Justifica que não
lhe interessa muito saber se são bons ou se são maus porque considera que
eles também obedecem a normas e têm sua subjetividade comprometida pela
cultura em que vivem e trabalham: “penso que elogiaremos e condenaremos
menos determinados superintendentes, comandantes, guardas (...) e buscaremos
compreender melhor os problemas sociais das instituições totais, analisando a
estrutura subjacente a todas elas” (Goffman, 1990: 108).
O autor comenta que esses gestores convivem com uma contradição
latente: o que a instituição faz e aquilo que deve dizer que faz. Nesse mundo
da reclusão, gestores e técnicos precisam impor obediência, dar a impressão de
que os padrões humanitários são mantidos e de que os objetivos da instituição
estão sendo atingidos. Porém, presos, gestores e técnicos mantêm distância
social e interagem apenas de acordo com os “padrões de deferência” impostos
formalmente como exigências especificadas das normas ou quando o corpo
dirigente aplica sanções para as infrações apresentadas por alguém da equipe,
obedecendo ao escalonamento de seus papéis.
Como não existe objetividade perfeita e nem distanciamento absoluto, em
algumas ocasiões rotineiras e, principalmente, nos momentos denominados pelo
autor de “cerimônias institucionais” há uma maior interação entre os agentes
penitenciários e os presos, e relações de proximidade se materializam. Essas
cerimônias, como alguma festa anual, confecção de jornal ou revista, torneios
31
esportivos, ritos religiosos e exibição de teatro e música, são vistas como
possibilidades de o interno reaprender a viver em sociedade. Nessas cerimônias,
a equipe dirigente representa mais que um papel de supervisão, por isso podem
ocorrer influências mútuas entre os padrões sociais de um e de outro lado,
principalmente quando as pessoas são provenientes da mesma classe social.
Essa permeabilidade tem como consequência a redução das diferenças e a
geração de uma comunicação mais intensa. A quebra de barreiras intergrupos
funciona como uma espécie de colonização do preso para que a manutenção da
moral, da estabilidade e dos objetivos institucionais seja garantida. Os gestores
costumam adjetivar as mútuas influências desses encontros como “estratégias de
democratização do tratamento do preso”.
32
Tabela 1 – Informações prisionais de dez países
Taxa de presos sem
País População prisional Taxa de presos Taxa de ocupação
condenação
EUA 2.228.424 698/100.000hab 102, 70% 20,40%
China 1.657.812 118/100.000hab - -
Rússia 673.818 468/100.000hab 94,20% 17,90%
Brasil 607.731 300/100.000hab 161% 41%
Índia 411.992 33/100.000hab 118,40% 67,90%
Tailândia 308.093 457/100.000hab 133,90% 20,60%
México 255.638 214/100.000hab 125,80% 42 %
Colômbia 116.760 237/100.000hab 149,90% 35,20%
Filipinas 110.925 113/100.000hab 316,00% 63,10%
Peru 71.913 232/100.000hab 223,00% 49,80%
33
8,7% de 20 a 30 anos; e 4,9% de mais de 30 anos. É relevante notar que 75,2%
dos encarcerados têm penas que vão até oito anos e que 49,1% da totalidade dos
delitos são crimes contra o patrimônio. Apenas 11,9% do total dos presos
cometeram crimes contra a pessoa.
O mapa das infrações e delinquências pode também ser observado segundo
faixa etária: 29,4% dos detentos têm entre 18 e 24 anos; 25,9% entre 25 e 29;
18,7% entre 30 e 35 anos; 16,9% entre 35 a 45; e 7,4% estão mais de 45 anos.
Como em grande parte dos países, o maior número de encarcerados é formado
por jovens e adultos jovens entre 18 e 35 anos (75%). Analisando-se segundo
a cor da pele, 31% dos apenados são brancos e 67% pardos e negros. No Rio
de Janeiro, segundo o Depen (2015), 27,8% são brancos e 71,6% são pardos e
negros.
Por região, os negros e pardos nas prisões brasileiras assim se distribuem:
no Norte a proporção dos negros e pardos na população geral é de 76% e na
carcerária, 83%; no Nordeste, respectivamente, 71% e 80%; no Centro-Oeste,
57% e 73%; no Sudeste, 42% contra 72%; e no Sul, 21% e 33%. É relevante a
desproporção de negros e pardos na população geral e na carcerária, mostrando
um viés racista e social do encarceramento. A situação mais gritante se observa
no Sudeste.
Em relação ao sexo, 93,8% dos que cumprem pena em regime fechado são
homens e 6,2% são mulheres. Segundo o Depen (2015), havia no sistema em
2014, 1.595 pessoas com alguma deficiência, porém 87% das unidades não
tinham nenhuma adaptação às condições desses presos.
Apenas 1% dos presos brasileiros têm curso superior, ao passo que 80%
são apenas alfabetizados ou cursaram o fundamental. Esse dado é mais um
indicador do preconceito social que se reflete no aprisionamento da maioria dos
encarcerados. Outro ponto interessante demonstrado pelo Depen é a distribuição
dos crimes: 29% tráfico de drogas e grupos organizados; 35% contra o
patrimônio; 3% latrocínio; 14% homicídios e 19%, outros. Ou seja, a maioria
das pessoas está no sistema pelo tráfico de drogas, participação em quadrilhas e
por crimes contra o patrimônio. Essa classificação segue uma tendência que se
observa em várias partes do mundo.
É possível que haja dados desatualizados entre as informações aqui apresentadas
se comparados aos que se encontram no estudo empírico. Isso se deve ao fato de
todo o trabalho de campo ter sido realizado entre 2013 e início de 2014.
34
Apesar da Lei de Execução Penal seguir a filosofia de “humanização” proposta
desde o século XIX, a expressão mais comum utilizada pelas autoridades para se
referirem aos presídios brasileiros é “barril de pólvora”. Levantamento realizado
pelo Conselho Nacional do Ministério Público mostra que, entre 2012 e 2013,
ocorreram 121 motins em 1.598 unidades prisionais, com a trágica marca de
mais de 700 mortes. Um indicador previsível para um total de 549.786 presos e
um déficit de 211.741 vagas.
Uns mais e outros menos degradantes, os presídios são espaços onde os
detentos vivem espremidos tanto nas épocas de frio como nas de calor e estão
suscetíveis a contraírem enfermidades, principalmente pelas precárias condições
de higiene. Segundo o Depen do Ministério da Justiça, no entanto, mesmo com
a superlotação, as casas de detenção não cobrem as necessidades da justiça
criminal: existem entre 200 e 400 mil mandados de prisão não cumpridos.
Como se verá aqui, se na fala das autoridades os presídios são “um barril de
pólvora”, na expressão de muitos detentos, eles são “a antessala do inferno”, seja
pela superlotação, seja pela forma de tratamento que lhes é oferecido. As prisões
brasileiras acumulam sérios problemas estruturais, relacionais, ambientais e
sanitários, problemas esses, reatualizados cotidianamente pela máquina de
execução penal.
No Rio de Janeiro, em 2014, havia 36.126 pessoas presas para 25.558 vagas,
sendo a razão presos/vagas de 1,4 (correspondendo a um déficit de 10.568).
Embora elevada, essa relação é uma das mais baixas do país. Por exemplo,
em Alagoas a razão era de 2,9; em Pernambuco de 2,7; no Amapá de 2,6 e em
São Paulo, de 1,9, onde o déficit é de 97.363 vagas. Havia, no Rio de Janeiro,
em 2013, um total de 3.182 detidos (25,6/100.000) sob custódia da polícia.
A taxa de encarceramento era de 290,4/100.000, bem abaixo da média nacional
(393,3/100.000). Porém, depois de São Paulo (207.447 presos) e Minas Gerais
(54.314), o Rio de Janeiro tem o maior número de detentos, sendo seguido por
Pernambuco (30.894) e pelo Rio Grande do Sul (28.743) (Depen, 2015).
A população jovem de 18 a 29 anos predomina (54,2%) entre os
encarcerados do estado do Rio de Janeiro, conforme o censo nacional e também
como constatado nesta pesquisa. Do total dos detentos, 10.705 cumprem pena
em regime fechado; 7.835 em regime semiaberto; 403, em regime aberto;
13.910, em regime provisório e 91, em medida de segurança e internação. Do
total, 31.204 (94,7%) são homens e 1.740 (5,3%), mulheres. O encarceramento
35
de mulheres no estado do Rio de Janeiro, percentualmente, fica abaixo da média
nacional (6,1%) (Depen, 2015).
O sistema prisional fluminense conta, atualmente, com 50 estabelecimentos
penais em funcionamento, assim distribuídos: 5 hospitais penais, de custódia
e tratamento psiquiátrico; 11 penitenciárias; 10 presídios; 4 cadeias públicas;
7 casas de custódia; 7 institutos penais; 1 patronato; 2 casas de albergados; 1
colônia agrícola e 2 instituições penais militares. As unidades desse sistema estão
localizadas nos bairros de Bangu, Centro, Água Santa e São Cristóvão (na cidade
do Rio de Janeiro) e nos municípios de Japeri, Niterói, Magé, Campos e Itaperuna.
Ressalte-se que o foco desta pesquisa foram apenas os estabelecimentos do
sistema prisional de regime fechado.
36
De qualquer forma, a produção intelectual sobre o assunto é recente no
mundo inteiro e se intensificou a partir da década de 1990. Antes dessa década,
Gois e colaboradores (2012) encontraram apenas 18 textos de autores ingleses e
33 de americanos, datados entre os anos 1975 a 1993. O maior incremento das
pesquisas e análises ocorreu a partir da década de 2000. A literatura brasileira
também apresenta poucos estudos antes dessa data, a saber: Oliveira (1978);
Palma, Rogerio e Neves, 1997; Magnabosco (1998); Almeida (1998); Lemgruber
(1999); Varella (1999). Todos os outros trabalhos são já do século XXI:
Miranda, Mercon-de-Vargas e Viana (2004); Carvalho e colaboradores (2006);
Negrelli (2006); Macedo (2006); Strazza e colaboradores (2007); Sanchez e
colaboradores (2007); Gabe e Lara (2008); Taborda e Bins (2008); Diuana
e colaboradores (2008); Coelho e colaboradores (2009); Coelho (2009); Nogueira e
Abrahão (2009); Tavares e Almeida (2010); Mello e Gauer (2011); Depen (2015);
Pastoral Carcerária, Conectas Direitos Humanos e Instituto Sou da Paz (2014).
Alguns desses últimos não entraram na revisão de Gois e colaboradores (2012).
Os artigos e livros publicados no Brasil, inclusive os que se referem,
especificamente, a diagnósticos de HIV/Aids, tuberculose e problemas mentais
ressaltam a distância entre as leis e normas e a dura realidade da precária prestação
dos serviços de saúde nos presídios. Muitas pesquisas atuais se referem à população
feminina e a problemas de saúde mental (Almeida, 1998; Lemgruber, 1999;
Brasil, 2008; Damas, 2011; Oliveira e Guimarães, 2011), chamando atenção para
especificidades de gênero e do sofrimento mental que acomete as pessoas reclusas,
problemas que devem ser considerados na atenção por parte dos diferentes agentes
que atuam nas prisões. Todos ressaltam também que, de forma semelhante a
muitos outros sistemas no mundo, as prisões brasileiras são marcadas por um
conjunto de carências de natureza estrutural e processual que afetam diretamente
os resultados produzidos em relação à pretendida ressocialização dos reclusos.
Os estudos mostram que o ócio, a superlotação, a pouca quantidade de profissionais
dedicados à saúde, ao serviço social, à educação – além da arquitetura precária e
do ambiente insalubre – não só alimentam um poderoso estigma, como também
servem de potencializadores das mais diferentes iniquidades e enfermidades nesse
ambiente fechado. A prestação de serviços de saúde é de flagrante descumprimento
do que é prescrito na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas
Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (Pnaisp). Esses pontos assinalados na
literatura são integralmente confirmados aqui.
37
Os dados apresentados serão detalhados mais adiante na seção sobre
questões ambientais e de saúde dos presos em regime fechado do Rio de Janeiro,
baseada num inquérito por amostragem sobre a saúde, as condições sociais e
ambientais que, por meio de técnicas estatísticas, pode ser generalizado para
a população carcerária em regime fechado como um todo. Esse inquérito foi
complementado com entrevistas concedidas por presos e alguns agentes e uma
inspeção sobre a situação ambiental dos presídios.
Será o caso do Rio de Janeiro pior do que o de outros estados brasileiros?
A julgar pela “superlotação”, um dos indicadores mais significativos, é possível
que o que ocorre aqui tenha repercussão nas situações degradantes que se
repetem no país, até com menor intensidade. Uma pergunta que acompanhará
o leitor desta obra é como pode haver uma distância tão grande entre o que está
prescrito na lei e o que acontece na prática? Parece que tudo isso se justifica
e se naturaliza – de forma explícita ou implícita – pela visão preconceituosa da
sociedade e dos agentes responsáveis pelo sistema, segundo a qual os criminosos
não merecem receber cuidados, mas devem sofrer e ser castigados pelo que
fizeram, como um círculo que sempre se fecha na mentalidade pré-século XIX.
O conceito de saúde com o qual se trabalha aqui é o proposto pela
Constituição de 1988 e pela Lei Orgânica da Saúde de 1990, que a considera
como resultante de condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio
ambiente, trabalho, transporte, lazer, emprego, liberdade, acesso e posse de terra
e acesso aos serviços do setor. Na carta magna e na lei n. 8.080, o direito à saúde
significa a garantia, por parte do Estado, de dignas condições de vida e de acesso
igualitário e universal às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação
no caso de adoecimento, em todos os seus níveis e em todo o território nacional.
A Pnaisp, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), instituída pela
portaria interministerial n. 1, na sua letra segue a carta magna. Ela entrou
em vigor no dia 2 de janeiro de 2014, com o objetivo de garantir o acesso ao
cuidado integral por parte das pessoas privadas de liberdade, inseridas no
sistema prisional. Entretanto, antes de essa política ser promulgada, a Lei de
Execução Penal n. 7.210, de 11 de julho de 1984, já considerava a necessidade
de reintegração social das pessoas privadas de liberdade por meio da educação, do
trabalho e da saúde. Também a precedeu a portaria interministerial n. 1.777/MS/MJ,
de 9 de setembro de 2003, que aprovou o Plano Nacional de Saúde no Sistema
Penitenciário (PNSSP), que, certamente, foi seu inspirador.
38
No Quadro 1, a seguir, resumem-se os princípios, diretrizes e objetivos da
Pnaisp, que têm como destinatárias todas as pessoas sob custódia do Estado
nos diferentes regimes de cumprimento de pena. Nela se preveem também ações
relativas aos trabalhadores do sistema e aos familiares dos detentos.
1. Respeito aos direitos humanos e à justiça 1. Promoção da cidadania e inclusão das 1. Promover o acesso dos presos à
social; pessoas privadas de liberdade por meio Rede de Atenção à Saúde;
2. Integralidade da atenção à saúde da educação, trabalho e segurança; 2. Assegurar autonomia dos
da população privada de liberdade no 2. Atenção integral resolutiva, contínua profissionais da saúde para a
conjunto de ações de promoção, proteção, e de qualidade às necessidades de realização do cuidado integral dos
prevenção, assistência, recuperação saúde dessa população, tanto em detentos;
e vigilância em saúde, executadas nos atividades preventivas como de serviços 3. Qualificar e humanizar a atenção à
diferentes níveis de atenção; assistenciais; saúde por meio de ações conjuntas
3. Equidade, levando-se em conta 3. Controle e redução dos agravos mais com o setor de justiça;
diferenças e singularidades dos presos; frequentes que acometem os presos; 4. Promover as relações intersetoriais
4. Promoção de iniciativas de ambiência 4. Respeito à diversidade étnico-racial, com as políticas de direitos humanos,
humanizada e saudável com vistas à às limitações e às necessidades físicas afirmativas e sociais básicas e com a
garantia da proteção dos direitos dessas e mentais especiais, às condições justiça criminal.
pessoas; socioeconômicas, às práticas e
5. Corresponsabilidade interfederativa concepções culturais e religiosas, ao
na organização dos serviços, segundo a gênero, à orientação sexual e à identidade
complexidade das ações desenvolvidas; e de gênero; e
39
Quadro 2 – Responsabilidades dos ministérios da Saúde e da Justiça segundo a
Pnaisp
Órgão Responsabilidades
1. Elaborar um plano estratégico para implementação da Pnaisp, em cooperação técnica com estados,
Distrito Federal e municípios;
2. Garantir a continuidade da Pnaisp por meio da inclusão de seus componentes nos Planos
Plurianuais e nos Planos Nacionais de Saúde;
3. Assegurar fontes federais para compor o financiamento de programas e ações na rede de atenção
à saúde nas prisões;
4. Definir estratégias para inclusão das informações epidemiológicas das populações prisionais nos
Ministério da Saúde
sistemas de informação do Ministério da Saúde;
5. Avaliar e monitorar as metas nacionais de cumprimento das diretrizes da política; prestar assessoria
técnica e apoio institucional para os outros níveis de gestão do sistema;
6. Apoiar a capacitação e a educação permanente dos profissionais da saúde que atuam na atenção à
saúde dos presos;
7. Apoiar e fomentar a realização de pesquisas consideradas estratégicas no contexto desta política
em colaboração com o Ministério da Justiça.
40
Caminhos da Construção e
do Desenvolvimento da Pesquisa
Aqui, apresenta-se um estudo exploratório de autoavaliação das condições
de saúde pelo testemunho da própria população carcerária do estado do Rio de
Janeiro, por meio de uma investigação empírica e observacional. A pesquisa que
dá origem a este livro privilegiou, em primeiro lugar, a questão do território,
embora também tenhamos observado informações distribuídas por sexo, idade e
raça/cor. Trabalhou-se separadamente com os presos da Capital, do Interior do
estado e da Baixada Fluminense. Partiu-se da hipótese de que haveria distinções
e semelhanças (confirmadas ao longo da pesquisa e evidenciadas nos dados aqui
analisados) entre esses três universos, o que tornou o estudo bastante relevante
na medida em que pouco se conhecia sobre a realidade fora da cidade do Rio de
Janeiro.
A presente proposta metodológica se baseia nas teorias e técnicas da
triangulação entre abordagens quantitativas e qualitativas que vêm sendo
aprimoradas pelos pesquisadores do Claves (Minayo, 2005) e tem-se mostrado
pertinente para pesquisas sobre o impacto da violência sobre a saúde.
A triangulação busca articular perspectiva epidemiológica, das ciências sociais
e humanas e o conhecimento do senso comum, por meio da interação entre
pesquisadores e a população investigada, visando a subsidiar ações tanto dos
poderes públicos como dos movimentos da sociedade civil.
A operacionalização do estudo foi realizada por três tipos de atividades
metodológicas: a primeira, de caráter observacional, ocorreu por meio de uma
inspeção sobre as condições ambientais de saúde em 11 penitenciárias do estado
do Rio de Janeiro; a segunda se desenvolveu por meio de um inquérito sobre
saúde e qualidade de vida dos presos; e a terceira atividade, um estudo qualitativo,
foram entrevistas com presos.
41
ao Sistema Prisional (Nasp) em suas 11 visitas técnicas, conduzidas com apoio
de um instrumento que será apresentado a seguir. Todas as unidades visitadas
estavam, à época, sob Termo de Ajustamento de Conduta ajuizado pelo Ministério
Público. Cada atividade observacional ocorreu sempre por meio de uma dupla de
observadores e de agentes do Nasp, iniciada pela manhã e prolongadas até a tarde.
Algumas vezes houve dificuldade de acesso à unidade prisional, em razão
de problemas decorridos da demora de chegada de documentos de autorização
para entrar, bem como fotografar – ato que, no caso, era imprescindível para
garantia da qualidade do processo observacional. Para a superação das poucas
intercorrências, a equipe contou com a participação decisiva dos agentes do Nasp.
De modo geral, a direção das unidades e suas assessorias foram muito
cooperativas, o que contribuiu para que as visitas técnicas pudessem ser
realizadas de maneira tranquila e produtiva. Algumas informações solicitadas
nem sempre estavam disponíveis, mesmo para a diretoria. Nesses casos, os
pesquisadores tiveram que contar com o empenho dos agentes da administração
para atendimento à demanda da equipe. Em alguns casos, não se conseguiu
acesso a informações, especialmente, quanto a aspectos estruturais das unidades.
O trabalho observacional demandou bastante investimento anterior às visitas
e baseou-se num instrumento intitulado “Instrutivo sobre condições ambientais
que impactam a saúde e a qualidade de vida dos presos”. Cada inspeção gerou um
relatório baseado num questionário, utilizando-se um critério de sistematização
dos componentes estruturais das unidades, classificados em dez espaços de
convívio, como será explicado mais adiante.
Entre os elementos do roteiro estavam as informações gerais: nome do
estabelecimento; data, horário e duração da inspeção; dados do estabelecimento,
tais como o nome do diretor e características da unidade: número de detentos,
tamanho, organograma, setores, número de funcionários, dinâmica de
funcionamento (visitas, fluxogramas, turnos, características gerais).
Em seguida, se descrevia a inspeção: equipe e pessoas acompanhantes;
interlocutores da unidade (nome e cargo); diálogo com esses encarregados para
conhecer seus pontos de vista sobre os problemas gerais; tempo despendido na
observação de cada unidade; dinâmica da inspeção; obstáculos, intercorrências
e outros.
A avaliação ambiental das unidades indicadas no projeto foi realizada com
base em um critério estabelecido pela equipe, de modo a organizar a observação e
42
facilitar a leitura dos resultados da análise. Assim, a sistematização foi planejada
para dar ênfase ao que na pesquisa se denominou de espaços de convívio. Para
isso, considerou-se que espaço de convívio poderia estar direta ou indiretamente
vinculado ao detento. Foram considerados espaços de vinculação direta as
áreas ocupadas por ele; e se classificou como caso de vinculação indireta os
espaços de convívio em que sua presença era esporádica. Com tais categorias,
buscou-se simplificar a inspeção, preservar a autonomia de observação do local
de per si, facilitar o registro observacional e a quantificação dos diferentes
ambientes, permitindo sua comparabilidade, a reprodutibilidade da pesquisa, sua
inteligibilidade e clareza explicativa na exposição dos resultados.
Foram sistematizadas e classificadas dez áreas específicas, também chamadas
de unidades espaciais ou unidades setoriais, onde ao preso é facultado, ou não,
conviver com o outro, na perspectiva de um processo social de construção de
alteridades. A seguir os espaços de convívio: (1) celular (cela); (2) de convívio
interno (pátios, salas); (3) de convívio externo (sala íntima, parlatório, sala
de visita); (4) laboral (oficinas, biblioteca, salas de aula); (5) de alimentação
(restaurante, cantina, cozinha); (6) de assistência (consultórios, enfermarias);
(7) de higiene (banheiros coletivos, barbearia); (8) privativo dos servidores
e trabalhadores (gabinetes, salas, almoxarifado, repouso, vestiário); (9) de
circulação interna (corredores, galerias); (10) externo (circulação, recepção,
estacionamentos, guaritas, acessos em geral).
O instrumento de observação foi construído visando a maximizar a
objetividade na coleta e na análise dos resultados, com o menor grau de
envolvimento subjetivo possível por parte dos pesquisadores. Eventualmente, em
alguns ambientes, houve necessidade de se abordar os detentos, os servidores e
outros trabalhadores para melhor compreensão da situação. Em todos os casos,
garantiu-se o anonimato do interlocutor.
Cada espaço de convívio foi observado por características (aspectos
observáveis) presentes em cada um dos quatro elementos: (1) estrutura e
infraestrutura, (2) equipamentos, (3) mobiliário e (4) componente humano.
Considerando que cada item engloba diversas características, foram estabelecidos
critérios para a classificação do componente segundo sua adequação ou
inadequação.
A adequação foi considerada automática quando a característica observada
do item estava em acordo com a legislação vigente, nos casos em que esta existia.
43
Se não houvesse legislação para alguma característica do elemento em questão,
esta era considerada adequada quando todos os critérios estabelecidos para a
avaliação eram atendidos. No caso de inadequação, esta era classificada como
“pouca” ou “muita”. Tendo-se em vista que determinado item engloba diversas
características observáveis, foram estabelecidos critérios para a classificação da
adequação e da inadequação de cada uma delas do ponto de vista qualitativo e
quantitativo. Sempre que o número de critérios inadequados ultrapassou 50% do
total, o item analisado foi considerado pouco inadequado ou muito inadequado.
Visando a evitar dúvidas na classificação, os parâmetros estabelecidos para cada
item totalizaram obrigatoriamente um número ímpar.
Além da avaliação que teve como base critérios previamente estabelecidos,
sempre que necessário, foram registradas observações sobre aspectos variados
que pudessem auxiliar na análise final. No item estrutura foram considerados
elementos físicos (dimensão/lotação, paredes, piso, teto, grades, circulação,
deposição de lixo e resíduos etc.), e no infraestrutura foram levados em conta
os elementos necessários para o funcionamento da unidade (fornecimento de
energia, caldeiras, compressores, tratamento de resíduos, lavanderias, centrais
de água, esgoto, iluminação, ventilação, temperatura e umidade e outros). No
tópico equipamentos, incluíram-se, entre outros, circuito de TV/vídeo, materiais
de ginástica, de limpeza, utensílios, ferramentas, telefones, material médico etc.
No quesito mobiliário, foram avaliados elementos como camas, mesas, cadeiras,
estantes, armários, entre outros. A categoria componente humano englobou
observação sobre higiene pessoal, utensílios pessoais, uniforme e vestes em geral,
inclusive roupas de cama, travesseiros, toalhas etc.
Vários documentos legais apoiaram tanto o desenho dos instrumentos como
o conteúdo das inspeções. Dentre eles destacam-se: Diretrizes Básicas para
Arquitetura Prisional do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
(2011); Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, elaborado pela
Secretaria de Atenção à Saúde do Departamento de Ações Programáticas
Estratégicas (2005); Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
(2007); Plano Diretor do Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro,
elaborado pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (sem data)
e determinado pela portaria n. 3.214/78 – NR9 do Ministério do Trabalho, que
instituiu o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais.
Para cada visita de inspeção foi produzido um relatório assinado pelos
consultores e pela coordenadora da pesquisa, sendo imediatamente repassado
44
aos promotores do Centro de Apoio (CAO8) do Ministério Público, para
que pudessem fundamentar suas ações quanto aos termos de ajustamento de
conduta (TAC). Esses documentos assinalaram os problemas mais sérios e
emergenciais que merecem intervenção institucional inequívoca e têm um caráter
eminentemente operacional.
45
No dimensionamento amostral para obtenção de estimativas de proporção,
empregou-se um erro absoluto de 7%, nível de confiança de 95% e prevalência
de cada um dos eventos de interesse de 50%. Tal valor foi empregado em
virtude da ausência de referências sobre essa proporção na literatura. Trata-
se de uma escolha mais rígida e que leva a uma maximização do tamanho
amostral necessário. Dentro de cada unidade, os detentos foram selecionados
por amostragem aleatória simples. Para seleção dos indivíduos que iriam compor
a amostra, utilizaram-se como base as listagens fornecidas pela Secretaria de
Estado de Administração Penitenciária, as quais indicavam a existência de 24.232
detentos no estado do Rio de Janeiro.
A amostra inicialmente calculada era composta por 1.607 indivíduos,
dos quais 801 deles da Capital, 530 no Interior e 276 na Baixada Fluminense,
que se dividiam em 1.148 homens e 459 mulheres (Amostra 1). Contudo,
quando da realização do trabalho de campo não foi possível, por questões de
logística, verificar o regime ao qual o preso estava submetido (preso provisório
ou sentenciado). Assim, foi preciso recalcular o tamanho amostral para cada
unidade prisional, desconsiderando-se o regime do preso (Amostra 2). Dessa
forma, a amostra final era composta de 637 homens e 297 mulheres, perfazendo
934 indivíduos. A amostra planejada não foi atingida apenas em uma unidade
prisional, a Cadeia Pública Paulo Roberto Rocha, em virtude da recusa dos
presos em participar da pesquisa (Quadro 3). Na realização das análises foram
incorporados o peso e o plano amostral.
46
Quadro 3 – Plano amostral para realização da pesquisa
Amostra
Unidade Local N Amostra 1 Amostra 2
obtida
Homens
Mulheres
47
O instrumento de coleta de dados utilizado no inquérito foi um questionário
aplicado aos presos por um pesquisador devidamente preparado. Esse questionário,
cujo informante não era identificado, foi construído com base em inquéritos
nacionais realizados que usam dispositivos validados, como a Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios (Pnad) (Barros et al., 2006); o Inquérito do Instituto
Nacional do Câncer (Inca) (Inca, 2004); o Inquérito de Saúde do Município de
São Paulo (São Paulo, 2010); o Programa Pró-Saúde da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (Pro-Saúde/Uerj) (Faerstein et al., 2005); e pesquisas anteriores
desenvolvidas pelo Claves (Minayo & Souza, 2003; Minayo, Souza & Constantino,
2008); bem como o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (Brasil,
2003). O questionário foi organizado em blocos de questões majoritariamente
fechadas, assim constituídos:
Bloco I – Dados socioeconômicos e demográficos – idade, sexo, etnia/
cor, estado conjugal, religião, naturalidade, tempo de permanência em regime
fechado, escolaridade, profissão/ocupação, renda.
Bloco II – Condições e qualidade de vida dentro da instituição – questões
que avaliavam qualidade de vida por meio de parâmetros objetivos (indicadores
de infraestrutura física e de direitos) e subjetivos (o que os sujeitos percebem,
sentem e valorizam em relação a vários aspectos de sua vida). O bloco inclui
também alguns itens da escala World Health Organization Instrument to Evaluate
Quality of Life/WHOQOL-Bref, elaborada pela Organização Mundial da Saúde
e validada no Brasil (Fleck et al., 2000), que abrange quatro domínios: físico
(dor e desconforto; energia e fadiga; sono e repouso; atividades da vida cotidiana;
dependência de medicação ou de tratamentos e capacidade de trabalho);
psicológico (sentimentos positivos; pensar, aprender, memória e concentração;
autoestima; imagem corporal e aparência; sentimentos negativos; espiritualidade,
religiosidade e crenças pessoais); relações sociais (interações pessoais; suporte/
apoio social; atividade sexual); e meio ambiente (segurança física e proteção;
recursos financeiros; cuidados de saúde e sociais: disponibilidade e qualidade;
oportunidade de adquirir novas informações e habilidades; oportunidades de
recreação/lazer e ambiente físico: poluição, ruído, trânsito, clima; e transporte).
Bloco III – Condições de saúde – avalia deficiência física; doenças
crônicas (hipertensão e diabetes); doenças infectocontagiosas como DST/Aids,
tuberculose, pneumonia, dermatoses, hepatites, diarreias; traumas; transtorno
mental comum; autoavaliação de saúde (antes e após a institucionalização). Para
identificar as prevalências de transtorno mental comum e de estresse, foram
48
usadas: a escala Self-Reported Questionnaire – SRQ20, desenvolvida por Harding
e colaboradores (1980) e validada no Brasil por Mari e Williams (1986), e o
Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos/ISSL, padronizado e validado
para o Brasil por Lipp (2000). Além das escalas usadas foram estudados hábitos
alimentares, atividades físicas, tabagismo, consumo e dependência de álcool e
outras drogas, uso de preservativos e de contraceptivos; ocorrência de acidentes
ou violências nos últimos doze meses; e informações sobre o tipo de acidente ou
violência, da lesão provocada, o local do evento e as limitações causadas.
Bloco IV – Usos de serviços de saúde – Acesso; ações de promoção; prevenção
de doenças crônicas, como câncer de mama, útero e próstata; hanseníase,
tuberculose, imunizações (hepatite B, rubéola, gripe, pneumonia, tétano); saúde
bucal; saúde mental; assistência pré-natal; distribuição de preservativos; ações
de redução de danos associados ao uso de drogas; hospitalizações e consumo de
medicamentos.
O preenchimento do questionário aconteceu durante as várias visitas da
equipe de pesquisa às instituições selecionadas de acordo com o plano amostral.
Com o apoio do Nasp, as atividades de campo ocorreram com relativa
tranquilidade, fora intercorrências esperadas tanto por causa do ambiente em que
o estudo foi realizado quanto pela complexidade de movimentos institucionais
que requerem licenças e permissões para qualquer atividade fora da rotina
prisional.
O trabalho de campo para aplicação do instrumento quantitativo aconteceu
entre os meses de maio e dezembro de 2013. Algumas etapas antecederam esse
processo em cada unidade: (1) recebimento da lista nominal de todos os presos
enviada pelo Ministério Público; (2) sorteio dos detentos que deveriam fazer parte
da pesquisa dentro dos critérios citados, com base em uma lista dos possíveis
participantes e uma lista nominal complementar para providenciar substitutos,
caso fosse necessário; (3) envio de ofício ao diretor de cada unidade prisional
com agendamento da pesquisa e nomes dos pesquisadores responsáveis.
Todo o trabalho realizado nas unidades foi acompanhado por uma
dupla de inspetores que trabalha no Ministério Público, o que contribuiu de
maneira significativa para o acesso às dependências das unidades prisionais
e para o entendimento da dinâmica institucional. Em cada unidade, a equipe
de pesquisadores apresentava a pesquisa ao diretor e este o direcionava a um
espaço para aplicação coletiva dos questionários. E, como os diretores haviam
49
recebido previamente um ofício do Ministério Público intitulado “Fiscalização
do Ministério Público e pesquisadores da Fiocruz”, em nenhuma unidade houve
recusa da pesquisa. Os termos do ofício (bastante incisivos e determinativos)
foram inicialmente questionados pelos pesquisadores, mas se constatou que essa
forma de entrada nas prisões foi a que viabilizou o trabalho. Quando o grupo de
pesquisadores chegava à penitenciária, havia uma conversa inicial com a direção
do presídio, deixando claro que se tratava de um estudo e não de uma fiscalização.
Em quase todas as penitenciárias, a aplicação do instrumento aconteceu
no espaço escolar. Nas que esse local não existia, foi utilizado o refeitório. Em
uma delas a aplicação aconteceu na igreja. A circulação dos pesquisadores,
nessa etapa do estudo, era limitada ao trajeto até onde se daria a aplicação do
instrumento. Em algumas prisões o local determinado pela direção era bastante
propício; em outras, os espaços oferecidos eram desconfortáveis e muito quentes.
No desenvolvimento das atividades, a lista nominal dos presos que deveriam
compor a amostra era entregue ao chefe de segurança que, num primeiro momento,
localizava em que galeria, cela ou pavilhão cada uma das pessoas selecionadas
estava. Essa etapa consumia bastante tempo. Muitas vezes, a listagem recebida do
Ministério Público já estava desatualizada quando da aplicação do questionário,
o que exigia a substituição de nomes. Essa situação foi mais comum nas casas
de custódia onde a rotatividade é maior. Depois de localizados, os presos eram
trazidos para o espaço destinado à aplicação do questionário. A equipe então
destinava bastante tempo para explicação do estudo, uma vez que os detentos
não tinham sido informados anteriormente, sobre o porquê de serem chamados.
O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido era lido cuidadosamente em voz
alta e todas as dúvidas, expressas pelos respondentes, eram sanadas. Também
se explicava aos presos que aqueles que tivessem interesse em participar, mas
apresentassem alguma dificuldade para ler e escrever, poderiam contar com
o apoio de um dos pesquisadores. Em muitos casos essa ajuda foi solicitada e
fornecida.
Após a explicação de todo o conteúdo, o questionário era distribuído com
uma caneta. Os pesquisadores ficavam atentos a qualquer dúvida ou dificuldade
de entendimento dos termos utilizados nas perguntas. Os presos levavam
aproximadamente uma hora para o preenchimento do questionário. Chamou
atenção dos pesquisadores a seriedade com que os detentos responderam. Foram
poucos os casos em que a pesquisa foi considerada de pouca importância ou que
tenha havido algum conflito na aplicação. Apenas em uma unidade, identificada
50
por custodiar membros do Comando Vermelho, a aplicação só pôde acontecer após
a autorização da liderança da facção, o que não deixa de ser um dado importante
para análise, na medida em que evidencia o poder dos grupos criminosos dentro
da prisão e sobre os detentos. Em outra situação, em uma das chamadas dos
presos para participar da pesquisa, houve certa confusão porque lhes foi dito que
haveria uma reunião com a Defensoria Pública e quando souberam o motivo da
convocação eles se exaltaram, sendo necessária uma intervenção mais enfática
da escolta do Ministério Público e uma boa argumentação dos pesquisadores.
Relativamente, o estudo ocorreu com tranquilidade.
O processamento das informações envolveu as etapas de digitação e crítica.
Máscaras para a entrada de dados foram elaboradas no programa Epidata 3.1,
sendo visualmente semelhantes aos questionários e restringindo a entrada das
informações aos valores definidos como válidos em cada questão. Trabalharam
na etapa de processamento dois digitadores e houve dupla digitação dos
questionários.
A fase de crítica consistiu em duas etapas: (1) seleção de uma amostra
aleatória simples de 10% do número total dos questionários aplicados, buscando-
se encontrar erros de digitação; (2) crítica da consistência de dados, por meio de
programação no software SPSS 20.0, com cruzamento de questões, a fim de se
encontrarem inconsistências entre as respostas.
Após a fase de crítica e correção de erros, os dados foram transferidos
para o software SPSS 20.0 e se deu início à fase de análise. Essa etapa consistiu
inicialmente na construção da variável peso amostral e realização da expansão
dos dados por meio da função weight. Assim, todas as análises apresentadas no
presente relatório utilizaram os dados expandidos, permitindo inferências para o
conjunto da população prisional estudada.
As análises compreenderam a construção da distribuição de frequências
absolutas e relativas para todas as variáveis, o cálculo de medidas de resumo
para as variáveis quantitativas (média, mediana, desvio padrão e outras
separatrizes), a construção de tabelas de contingência (análises bivariadas) e a
aplicação dos testes qui-quadrado e exato de Fisher (para verificar a associação
entre variáveis qualitativas), do teste de Kolmogorov-Smirnov (para verificação
da normalidade das variáveis quantitativas), dos testes de Kruskal-Wallis e de
Mann-Whitney (para comparação das medianas) e do teste de McNemar (para
comparar proporções de duas amostras relacionadas). Na realização desses testes
empregou-se um p-valor ≤ 0,05 para atribuir significância estatística.
51
Estudo qualitativo sobre os detentos
Além da análise ambiental e do inquérito de saúde, foram realizadas
entrevistas semiestruturadas com uma amostra da população carcerária
considerando-se as diferenciações de sexo, de localização da unidade prisional
(Capital, Interior e Baixada Fluminense) e natureza da instituição. Foram ouvidos
25 presos, distribuídos da seguinte forma (Quadro 4):
52
etapas: transcrição e digitação das gravações das conversas; atribuição de códigos
aos entrevistados e às pessoas por eles mencionadas; leitura compreensiva dos
textos transcritos; construção de estruturas de análise, agrupando trechos de
depoimentos mais ilustrativos nos eixos temáticos; identificação das ideias centrais
presentes em cada um dos eixos; aprofundamento dos sentidos atribuídos às
ideias; elaboração de sínteses compreensivas, interpretativas e contextualizadas
dos problemas assinalados; e comparação entre as falas, considerando as
diferenças de gênero e de locais que abrigam os presos.
Ao fim do questionário se abriu uma possibilidade para os presos se
expressarem livremente sobre suas crenças, valores, opiniões sobre o sistema
prisional e sobre suas expectativas. No conjunto, 518 homens e 325 mulheres
se manifestaram. Esse material de grande riqueza de conteúdo foi classificado
e integrado à análise, ora confirmando o que haviam expressado nos outros
instrumentos, ora trazendo novas informações para estudo.
53
Entre os homens, 64% dos detentos encontram-se na Capital, 13,8%, na
Baixada Fluminense (Magé, Japeri e Niterói) e 22,2%, em cidades do Interior
do estado (Volta Redonda, Campos dos Goytacazes e Itaperuna). Das mulheres,
85,1% estão reclusas na Capital e 14,9%, no Interior. No Gráfico 1, constata-se
que a maior parte dos presos têm até 39 anos de idade; um percentual pequeno
(2,5%) tem 60 ou mais.
Idade
Vê-se na Tabela 2 que a idade média dos homens é 30,7 anos, sendo um
pouco mais alta na Capital (32 anos) que nas cidades do Interior e da Baixada
(29 anos). Essa mesma distribuição ocorre entre as mulheres que apresentam
média de idade de 32,2 anos, sendo na Capital de 33 anos e no Interior de 30. Os
homens presos são, em média, mais novos que as mulheres (p<0,001). Apesar
das pequenas diferenças entre os sexos, a população carcerária do Rio de Janeiro
é jovem: 82,3% dos homens têm entre 20 a 39 anos e 78,5% das mulheres estão
dentro dessa mesma faixa etária. O grupo de maior expressão para ambos os
sexos é o de 20 a 29 anos. Os homens presos na Capital são, em média, mais
velhos que os da Baixada e do Interior; assim como as detentas da Capital são em
média mais velhas que as do Interior (p<0,001).
54
Esses dados coincidem com o que se constata no Brasil, em que o percentual
de presos de 19 a 35 anos é de 74%. Também na maioria dos países do mundo,
os reclusos são homens e jovens. Ou seja, os detentos são homens e mulheres em
idade produtiva que desperdiçam seu tempo na ociosidade ou em atividades sem
nenhuma importância para sua vida futura. Há alguns estudiosos que mencionam
o fato de que se não estivessem encarcerados, muitos jovens, sobretudo os que
se envolvem no tráfico ilegal de armas e drogas, já estariam mortos; o que é
verdade, tendo em vista os constantes confrontos entre eles próprios e entre eles
e polícia. Portanto, a prisão cumpriria, nesses casos, um papel protetivo.
Homens Mulheres
Idade (anos)
% Total Capital Baixada Interior Total Capital Interior
(N=20772) (N=13209) (N=2952) (N=4610) (N=1310) (N=1111) (N=197)
Cor da pele
Com as cores preta ou parda se identificaram 67% dos homens e 70,5% das
mulheres, com predomínio de pessoas pardas entre as mulheres (p<0,001). Há
menos pessoas brancas e mais pardas entre os presos da Baixada, conforme se
constata na Tabela 3 e Gráfico 2.
55
Gráfico 2 – Distribuição proporcional dos presos do estado do Rio de Janeiro,
segundo sexo e cor da pele
Diante dos dados citados, é possível afirmar que os presos do estado do Rio
de Janeiro são, em sua maioria, adultos jovens cuja cor da pele é preta ou parda
e que, principalmente fora da Capital, esse último grupo é ainda mais expressivo.
56
Tal achado é corroborado pelos dados do Depen (2015) e por Walmsley (2008)
que apontam o caráter excludente e racista do sistema penitenciário brasileiro,
pois a maioria da população que o conforma é parda e negra.
Escolaridade
Chama a atenção nas respostas ao questionário o percentual de homens
(7,5%) e de mulheres (8,2%) analfabetos, assim como a baixa escolaridade:
mais da metade das pessoas não tem ensino fundamental completo, conforme se
constata no Gráfico 3.
57
Tabela 4 – Distribuição proporcional dos presos do estado do Rio de Janeiro,
segundo sexo e escolaridade
Homens Mulheres
Escolaridade Total Capital Baixada Interior Total Capital Interior
N=21.835 N=14.000 N=3.083 N=4.751 N=1.324 N=1.127 N=199
Analfabeto 7,5 7,2 7,8 8,3 8,2 8,4 7,3
Ensino fundamental
25,0 23,7 24,5 29,1 24,9 25,0 24,5
incompleto (até a 4ª série)
Ensino fundamental
25,8 26,0 27,5 23,8 25,6 25,6 24,5
incompleto (até a 7ª série)
Ensino fundamental
14,5 14,6 15,7 13,7 11,8 11,9 10,9
completo
Ensino médio incompleto 12,2 13,5 12,1 8,4 15,4 15,1 17,4
Ensino médio completo 10,1 10,0 10,2 10,5 11,0 10,6 13,6
58
Estudei o primeiro grau completo, quando ia terminar o 2º grau, parei. Gostava
de estudar, mas depois parei porque fui pai aos 21 anos. Fui pai e comecei a
trabalhar. Eu assinei minha carteira com 16 anos. Trabalhei numa fábrica de
biscoito, depois como office boy, entregando folha de Diário Oficial. Quando a
minha primeira esposa engravidou cheguei a trabalhar em obra. Trabalhei em
posto de gasolina, depois de autônomo, eu ia a São Paulo, buscava roupa e trazia
e revendia. (Homem, Capital)
Fiz curso técnico na Escola Técnica Federal, de mecânico. Minha família tem
oficina. Trabalhei com meu pai. Também trabalhei embarcado um pouco.
Todo mundo saía formado e ia para a Petrobras ou para as empreiteiras. Mas
eu estou no tráfico, trafico de drogas. Eu já tenho essa vida faz um tempo. A
minha primeira prisão ocorreu em 1998. Desse tempo para cá atribuíram a minha
família fama muito grande. Muitas coisas que aconteceram atribuíram a mim.
(Homem, Interior)
Estudei até a sétima série. Já trabalhei também. Meu primeiro emprego foi com 16
anos de idade, mas eu não fiquei muito tempo. Só cumpri o período de experiência
e fui preso. Após isso, meu segundo emprego foi com 20 anos, na concessionária
de carros Gatão Veículos. Aí lá eu fiquei como emplacador e depois dali eu tive
que certificar, entrar em concordância com o certificado militar, porque eu não
fui me alistar na época. Trabalhei na C&A Modas, na Tijuca. E aí fui indo, fui
trabalhando, pegando mais bicos do que um emprego fixo de carteira assinada.
Trabalhei de estoquista, trabalhei de camelô, trabalhei como marceneiro. Mas
devido à dificuldade financeira eu me lancei no crime. E isso automaticamente foi
me levando cada vez mais, tipo bola de neve. (Homem, Capital)
Estudei até os 22. Quando eu terminei os estudos, pensei em fazer faculdade.
Cheguei a fazer o primeiro ano de direito. Aí parei. E comecei a fazer radiologia.
Fiz o curso, terminei e tenho diploma de radiologista, mas já com o tempo, eu estou
seis anos preso, já perdeu a validade. Mas pretendo se eu tiver uma oportunidade,
atualizar o meu curso. Eu trabalhava de motorista. Comecei com 18 anos. Eu
servi o quartel, quando eu saí, eu trabalhei dos 16 aos 18. Ajudava o meu pai
em pintura. E mexia muito com turismo devido ao carro dele, eu levava turista
para passear, para conhecer o Rio, para o aeroporto. Eu tive muita facilidade de
emprego. (Homem, Capital)
Já cheguei a trabalhar. Uma vez eu trabalhei no McDonald’s em São Paulo, na
Paulista. Fui para lá sozinho também, que eu queria parar, eu consegui serviço,
mas aí depois eu voltei de novo para o crime. Cheguei a trabalhar uma vez.
(Homem, Baixada)
59
Eu era lavadeira. Porque minha mãe tinha uma lavanderia. Aí depois o meu
namorado queria tomar muito do meu tempo, de estar sempre comigo. Aí lavava
só as roupas da minha prima e pegava alguma coisa para fazer. E ele me dava
o restante mais a pensão das minhas filhas. E o Bolsa Família que eu tenho.
(Mulher, Interior)
Eu trabalhava de costureira. Trabalhei por sete anos numa confecção de carteira
assinada. Meu marido por necessidade, até então eu não sabia, se envolveu com
o tráfico. Só porque eu fui levar os documentos dele na delegacia, porque eu era
mulher dele, fiquei presa. (Mulher, Interior)
Eu tinha uma vida normal, eu trabalhava, fazia curso. Trabalhava no salão com
uma tia minha, o salão é dela. Trabalhava para ela como manicure. (Mulher,
Capital)
Nem terminei o segundo grau. Mas eu ensinava assim para as crianças, eu já devia
estar na oitava série, penso eu. Trabalhei no ramo de vendas até os meus 40 anos
de idade. (Mulher, Capital)
No caso dos homens, qualquer jovem que não tivesse o desejo de entrar em
atividades criminosas, teria aproveitado as oportunidades citadas pelos presos
em seus depoimentos, em prol de sua carreira profissional. Embora em nenhuma
das falas se mencione alguma inserção no mundo do trabalho considerada
qualificada, as histórias de cada um tomaram rumos que os indivíduos mesmos
lhes deram, eles foram seus responsáveis. Essa responsabilidade pessoal persiste,
ainda quando o leque do “possível social” (Sartre, 1961) não lhes tenha sido tão
amplo e variado. No caso das mulheres presas, também há um envolvimento
consentido com o crime, seja se envolvendo diretamente, por um desejo pessoal,
seja seguindo seus companheiros.
Por isso, não é verdade que existe um determinismo que leve os pobres,
negros, pardos e favelados às prisões. É claro que o ambiente social e comunitário
e os colegas (sobretudo na etapa da juventude) têm um papel fundamental.
Contudo, acreditar que eles não teriam outras opções seria primeiro negar o
papel dos sujeitos em sua própria vida, segundo, menosprezar os tantos outros
moradores das áreas mais pobres do estado que, nas mesmas condições sociais,
levam a vida dentro da legalidade, trabalhando e se adequando às regras da
cidadania.
60
2
A Vida Antes da Institucionalização
Vida Familiar
Tanto entre as mulheres quanto entre os homens presos, prevalece o
percentual de solteiros: 46,5% e 58,8%, respectivamente. Se esse dado é
comparado à média nacional, 55,3%, segundo dados do IBGE referentes
ao censo de 2010, observa-se que os homens têm mais apoio familiar que as
mulheres. Todavia, no perfil dos homens são mais frequentes “ter sido casado” e
“separado”; no das mulheres, “solteiras” e “viúvas” (p<0,01) (Gráfico 4).
61
Há mais homens casados no Interior que nas demais áreas (p<0,01) e mais
mulheres viúvas e separadas na Capital (p<0,05). Enquanto dados do Depen
(2015) revelam que 24% dos homens presos no país cumprem pena por tráfico de
drogas, entre as mulheres esse percentual chega a 39%, observando-se acelerado
crescimento do número de detentas por essa causa nos últimos dez anos (Tabela 5).
Segundo Oliveira (2014), o envolvimento de mulheres no comércio das drogas
ocorre na maioria das vezes pela via dos filhos e parceiros. Há inúmeros casos
em que a polícia entra na casa atrás dos homens e encontra apenas a mulher e
a droga. Nessas situações, é comum que mães e esposas sejam presas, embora o
delito não tenha sido cometido por elas.
A exploração das mulheres pelo tráfico de drogas não é um fato
descontextualizado e não diz respeito apenas às experiências vinculadas à vida
familiar e amorosa. Reflete, sim, a cultura de opressão e dominação patriarcal
que se acirra com as exigências dos homens de que elas se envolvam. A teoria
feminista há alguns anos problematiza esses tipos de situação de subordinação.
Nesse sentido, algumas estudiosas cunharam o termo interseccionalidade, com
o objetivo de explicitar as maneiras de capturar as consequências da interação
entre duas ou mais formas de subordinação, como o sexismo, o racismo e o
patriarcalismo. Piscitelli (2008) desenvolve a seguinte reflexão:
O que possibilitaria superar a noção de superposição de opressões. Por exemplo,
a ideia de que uma mulher negra é duplamente oprimida, à opressão por ser
mulher deve ser adicionada a opressão por ser negra. Interseccionalidade trataria
da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo
de tais eixos, confluindo e, nessas confluências, constituiriam aspectos ativos do
desempoderamento. (Piscitelli, 2008: 264)
62
Tabela 5 – Distribuição proporcional dos presos do estado do Rio de Janeiro,
segundo sexo, área e situação conjugal atual
Homens Mulheres
Situação conjugal (%) Total Capital Baixada Interior Total Capital Interior
(N=21.684) (N=13.971) (N=2.987) (N=4.726) (N=1.332) (N=1.140) (N=193)
Solteiro(a) 46,5 47,2 48,7 42,8 58,8 58,4 61,7
Casado/companheiro(a) 44,5 44,2 39,1 48,9 30,7 30,2 33,6
Viúvo(a) 0,7 0,4 1,2 1,3 4,8 5,1 2,8
Separado(a) 7,9 8,2 11 7,0 5,7 6,3 1,9
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
A grande maioria dos detentos tem filhos: 72,9% dos homens e 82,8% das
mulheres, com média de 2,4 para eles e 2,7 para elas (p<0,01). Os detentos com
percentuais menores de filhos se encontram na Baixada e no Interior (p<0,01).
As presas da Capital têm, em média, mais filhos que as do Interior (p<0,05)
(Tabela 6).
Relativo elevado número de filhos, tanto por parte dos homens como das
mulheres, numa população que majoritariamente é solteira, suscita a pergunta
sobre o tipo de suporte familiar que é oferecido às crianças na ausência dos
genitores. A importância da família no desenvolvimento saudável de seus
membros, ao exercer a função básica de apoio e proteção, é abordada por diversos
autores (Minayo, Assis & Njaine, 2011), enfatizando-se o debate sobre as formas
de relacionamento familiar e seus efeitos nos processos de socialização.
Patterson, Reid e Dishion (1992) sugerem que o maior interesse pelas
rotinas de vida dos filhos atua como uma estratégia importante de proteção e
diminuição dos riscos entre adolescentes. Esses autores também indicam que
fatores estressores no ambiente familiar, como desemprego ou divórcio, e
outras variáveis, como número de irmãos e monoparentalidade, drogadição
ou psicopatologias nos membros da família, parecem influenciar as estratégias
adotadas pelos pais e estão mais associadas a negligências e ao emprego de
63
punição física severa. Ou seja, diante da situação adversa causada pela prisão
de um membro da família, é fundamental a atuação de uma rede de apoio social
sensível às necessidades das crianças e dos outros parentes, como pais e avós.
Ao longo da última década, o Brasil desenvolveu algumas políticas de
seguridade social como o Renda Mínima e o Programa Bolsa Família, que visam
ao enfrentamento do problema da fome; a ampliação da atenção básica de saúde,
com a criação da Estratégia Saúde da Família e a ampliação da rede de escolas
com vistas ao cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
No entanto, essas políticas ainda não foram capazes de suprir o conjunto de
necessidades das famílias dos presos, analisadas indiretamente nesta pesquisa.
Há um benefício concedido pela previdência social aos dependentes do
segurado, denominado auxílio-reclusão, destinado aos presos de baixa renda,
caso esses não recebam remuneração da empresa em que trabalham, nem auxílio-
doença ou aposentadoria. Esse benefício somente é concedido a segurados,
isto é, a pessoas que contribuíram para o INSS antes da prisão, o que abrange
atualmente menos de 10% da população carcerária brasileira (Longo, 2015).
Como já apresentado, o perfil dos presos do país é formado majoritariamente
por pessoas que viviam na economia informal e, principalmente, tinham o tráfico
de drogas como principal fonte de renda. Consequentemente, não têm direito
ao apoio formal da previdência. Mais de 90% dos detentos e suas famílias não
recebem qualquer auxílio governamental.
A regulamentação do mercado das drogas ilegais e a consequente legalização
de todo o processo de produção, comercialização e consumo das drogas constituem
uma das pautas prioritárias do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial e
compõem a agenda de parlamentares mais progressistas que veem na legalização
uma forma de enfrentar a exploração do trabalho escravo (Moreira, 2007) a que
são submetidos todos os envolvidos na cadeia produtiva das drogas. Além de
ampliar a possibilidade de arrecadação de impostos, inclusive os relacionados
aos direitos trabalhistas que poderiam vir de fato atender as necessidades das
famílias dos presos, a legalização do processo produtivo das drogas em sua
integralidade teria a função principal de interromper o ciclo de violência que
acompanha, sobretudo, o uso de armas de fogo e a corrupção de agentes da
segurança pública, gestores do Executivo, Legislativo e Judiciário.
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Experiências exitosas nesse sentido têm sido desenvolvidas em diversos
países, como Uruguai, Espanha, Portugal e Holanda. O objetivo do auxílio-
reclusão é justamente ajudar os dependentes do detento (esposa, esposo e filhos)
a manter uma renda básica para se sustentarem. Essa ajuda, que não ultrapassa
um salário mínimo, não visa a apoiar o preso, uma vez que por mais dura que
seja sua vida recluso, ele está ao abrigo das necessidades fundamentais e vive
às expensas do Estado. Ao contrário, porém, seus dependentes se veem, de um
momento para o outro, sem o arrimo que os mantinha e, não raro, sem perspectiva
de subsistência. Além do fato de os filhos serem abalados emocionalmente pela
ausência de um dos genitores.
Na realidade a grande maioria das famílias dos presos permanece totalmente
desamparada e sem qualquer apoio financeiro por parte do governo, mesmo
no caso das mulheres que têm maior média de filhos. Como demonstrado na
Tabela 6, muitas mesmo já em liberdade são aliciadas novamente pelo tráfico
de drogas para participar em outros mercados ilegais, uma vez que precisam
sobreviver e não têm a quem recorrer. A situação do crescente encarceramento de
mulheres revela esse complexo modo de exploração. Suas famílias permanecem à
deriva e são alvo fácil de cooptação pelo tráfico.
Pesquisas abordando os efeitos do Programa Bolsa Família sobre a qualidade
de vida e saúde dos beneficiados ampliam o olhar sobre a necessidade de se
promover mais políticas de seguridade social (Laboissière, 2015). Foi observado
que esse programa contribuiu principalmente para a garantia do direito das
mulheres sobre o próprio corpo, como a escolha de quantos filhos desejam ter
e a possibilidade de serem acompanhadas pelos serviços da atenção básica de
saúde. Nesse sentido, a ampliação do auxílio-reclusão a todas as famílias dos
presos poderia ser apresentada como uma pauta de interesse social, visando,
sobretudo, a superar o ciclo de violência que tende a se perpetuar por sucessivas
gerações parentais.
Nos depoimentos dos detentos e das detentas, a família continua uma
referência primordial e um estímulo inquestionável. Quando pensam no futuro,
os presos falam desse núcleo primário como uma espécie de talismã que os ajuda
a aguentar as dificuldades do presente. As falas sobre esse ponto são indiscutíveis:
“eu só penso em voltar para casa e cuidar de meus filhos” (Mulher); “eu só quero
ser um homem melhor, reconstruir a vida com a família e ter oportunidade na
sociedade”; “só desejo ir embora e ser feliz com minha família” (Homem).
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A família surge como o único ponto de estabilidade na vida dos presos e
parece constituir o principal norte das expectativas em relação ao futuro. Essa
constatação novamente reafirma a necessidade de se promoverem políticas
públicas capazes de apoiar os familiares dos reclusos mais pobres, garantindo-lhes
segurança alimentar e financeira, acesso à saúde e à educação para as crianças.
De modo geral, também nas respostas aos questionários, os reclusos
mostraram uma relação positiva com as famílias, o que vem expresso nos graus de
satisfação assinalados na Tabela 7, em que esse núcleo de relações primárias está
em primeiro lugar. A nota média para avaliá-lo foi 9, mas há respostas individuais
entre 0 a 10. A visão positiva também se manteve em relação à educação que
receberam. Os homens pontuaram 8,3 e as mulheres, 8,7. Os primeiros avaliaram
melhor o empenho dos pais na sua “realização profissional”, embora esse tenha
sido o quesito pior alcançado, tanto pelos homens (6,5) como pelas mulheres
(6,0). Elas (0<0,01) e os homens da Baixada (p<0,05) ponderaram melhor a
educação que receberam (0<0,01) do que os detentos da Capital e do Interior.
Observa-se também que as notas médias atribuídas pelos homens sobre
a influência das famílias em suas vidas são mais elevadas em todos os itens,
com exceção para a “educação que receberam”. Aí a média conferida pelas
mulheres foi discretamente maior, e atingiu o valor máximo dado pelas que estão
cumprindo pena no Interior (9,1). É possível relacionar essa melhor avaliação ao
papel libertador da educação, principalmente por parte das mulheres que estão
presas no Interior ao pouco acesso que têm à informação e à cultura.
Tabela 7 – Notas médias atribuídas pelos presos do estado do Rio de Janeiro para
o grau de satisfação com alguns aspectos da vida, segundo sexo e área
Homens Mulheres
Grau de
satisfação Total Capital Baixada Interior Total Capital Interior
Família 9,0 2,4 8,9 2,4 9,2 2,1 8,9 2,5 9,0 4,5 8,8 2,5 8,5 2,8
Educação que
8,3 2,8 8,2 2,9 8,7 2,4 8,4 2,7 8,7 2,5 8,6 2,6 9,1 1,9
recebeu
É importante ressaltar que, apesar de ser a instituição social que mais prezam,
muitos relatos sobre as famílias estão repletos de contradições. Os depoimentos
evidenciam histórias de perdas, rupturas, mortes, abandono e violência. Como se
pode constatar na literatura, a fragilidade dos vínculos familiares, assim como o
66
histórico de maus-tratos no âmbito doméstico surgem como um prenúncio dos
percalços futuros na vida (Cavalcante & Schenker, 2013; Deslandes, Assis &
Silva, 2004).
Minayo, Assis e Njaine (2011) desenvolvem a temática sobre o papel do
ambiente familiar na socialização de jovens, ressaltando o fato de que os que
vivenciam ambiente familiar agressivo e abusivo apresentam maior probabilidade
de desenvolverem comportamentos violentos no futuro ou de serem vítimas de
violência. As autoras assinalam o papel cultural da socialização pela violência,
realçando que a proximidade com o fenômeno pode naturalizá-lo no conjunto
das práticas cotidianas.
Nos relatos a seguir, entre muitos casos recorrentes, é mencionada a falta de
apoio social das famílias, destacando-se os impactos sobre a vida afetiva, escolar
e a saúde das pessoas.
Eu fui criado por outra família devido à carência do meu pai e da minha mãe, pela
pouca idade, eles me tiveram quando eles tinham 17 para 18 anos. Sem condição
nenhuma, nem de trabalho nem de estudo. Uma família se ofereceu para me criar.
Essa família é católica, é de índole excelente, que infelizmente veio a falecer pela
idade, mas eu tive uma boa criação. (Homem, Capital)
Eu fui criada pelos meus avós e pelos meus tios. Na época, em 1967, não se sabia se
a hanseníase era ou não contagiosa. Eu era bebê, engatinhava. Então, na ocasião,
o médico pediu que, se tivesse criança nessa faixa etária de engatinhar, que fosse
afastada dessa minha tia, irmã do meu pai que faleceu. Acho que na época, como
meus avós eram do interior, eu fui para a companhia deles. Quando eu estava
maior um pouco, meus avós decidiram e fui de volta morar com meus pais. E aí
eu caí doente, o médico falou que era paixão, então eu vim para a companhia dos
meus avós. Meu avô morreu de câncer de pele, e minha avó morreu atropelada na
avenida Brasil. (Mulher, Capital)
Minha infância sempre foi turbulenta devido à separação do meu pai e da minha
mãe. Eu tinha 10 anos, quando minha mãe brigava comigo, pegava as minhas
coisas e jogava para fora e me mandava ir para a casa do meu pai. Aí eu ficava
um tempo na casa do meu pai. E aí meu pai brigava com a mulher e me jogava
para a casa da minha mãe. Então, eu ficava naquele pingue-pongue. Até que um
dia minha avó viu essa covardia que estavam fazendo comigo, então ela me pegou
e passou a me criar. (Homem, Capital)
Silva, Valadares e Souza (2013) destacam que entre jovens, tanto no caso
dos autores como das vítimas de homicídios, é possível identificar um perfil
familiar marcado por rupturas, abusos, negligências. Essa reflexão confirma os
relatos apresentados pelos detentos, em que revelam uma fraca rede de suporte
67
social a eles e a suas famílias durante a infância, o que parece novamente se
atualizar na experiência de seus filhos.
As autoras também destacam o papel das políticas públicas e do controle
social na prevenção do abandono, uma vez que, em estudo comparativo,
observaram que localidades em que a segurança social é mais desenvolvida e
exercida – em que as condições de trabalho são melhores, as escolas, creches
e equipamentos de saúde funcionam – as taxas de homicídios são menores e
tendem a cair. Essa questão foi tratada também por Minayo e Constantino (2012),
ampliando o debate para a situação do envolvimento da comunidade local e das
autoridades públicas, dentro de uma visão ecossistêmica da criminalidade.
As situações retratadas nas falas, em que as crianças sofreram penúrias para
sua sobrevivência ou foram objeto de disputa ou de abandono por parte dos
pais, mostram como era tratada a infância antes da criação do ECA. Segundo o
estatuto, a falta de recursos financeiros da família não deve ser considerada uma
justificativa para a destituição do pátrio poder, assim como uma criança não deve
ser objeto de disputa e omissão por parte dos pais. Quando há impossibilidade
de a família se responsabilizar pela criança, os cuidados com esse grupo primário
devem ser priorizados pelos serviços de assistência social. Infelizmente no estado
do Rio de Janeiro ainda existe uma precária cobertura da atenção básica em
saúde em todos os municípios, que não ultrapassa 45%; é insuficiente a presença
de creches que poderiam apoiar as famílias durante a primeira infância; e muitas
escolas são omissas quanto a uma ação mais efetiva na vida cotidiana das famílias.
Outro ponto importante é a efetivação de um programa de garantia da
renda mínima, segundo estratégias já previstas em lei. Sobre a atenção em saúde,
o depoimento que assinala a precariedade da atenção médica no tratamento da
hanseníase deveria ser considerado página virada. Atualmente, o desenvolvimento
e a efetividade nas formas de atenção dentro de uma rede estruturada asseguram
o cuidado com a doença e evitam a separação e o abandono da criança.
Foram muito frequentes os relatos de problemas mentais, depressão,
drogadição e suicídios de familiares, considerados pontos-chave para a ruptura
de vínculos de parentesco e sociais. A maioria dos depoimentos que critica a
família também ressalta a ausência de uma rede de serviços públicos – estruturada
e efetiva – para acolher, atender e acompanhar as pessoas que precisam dos
diferentes tipos de atenção, sobretudo nos bairros mais pobres. Situações
adversas são citadas pelos entrevistados:
68
Eu saí de casa muito cedo, com 14 anos. Nunca tive muita proximidade com a
minha família. Meu pai bebia, passei sete anos sem vê-lo e ele morreu tem cinco
meses. Eu fui morar com a minha avó, mas não deu muito certo, eu fui morar
sozinho. Aí foi que eu comecei, com 14 anos. (Homem, Baixada)
Eu fui preso em 1988 e desde então eu fiquei 20 anos na prisão. Aí saí em 2008.
Aí eu era um pouco feliz. Mas eu perdi a minha mãe e fiquei desesperado. Minha
mãe era tudo para mim. Do nada ela passou mal, arrebentou uma veia na cabeça
dela, minha mãe morreu. Aí a única coisa que me ofereceram foi crack, e eu me
apaixonei por aquele troço. (Homem, Interior)
Minha mãe tem problema de cabeça e meu pai se matou quando eu tinha 8 anos.
Aí eu saí de casa com 13 anos de idade. Fui morar na rua porque não tinha nada
para nós comermos. Aí eu comecei a roubar para sustentar a casa, para comprar
as coisas para nós comermos. Nós passávamos muita fome. Eu não achava bonito
ficar pedindo os outros. Não cheguei a estudar. (Homem, Capital)
Eu comecei a beber com 13 anos. Logo assim que meu pai morreu. E minha mãe
era muito ausente. Eu comecei a sentir falta de carinho e de apoio e comecei a me
entregar à bebida. (Mulher, Interior)
69
No caso da entrega das crianças aos avós, a terapeuta familiar Schencker
(2008) faz uma reflexão importante em consonância com a fala de Giddens:
a presença dos avós na educação dos netos expressa um rearranjo familiar
necessário para que os filhos possam trabalhar. Porém, ao abrir mão de suas
responsabilidades, os genitores estabelecem uma confusão de papéis acerca de
quem é o responsável pela educação das crianças. Os conflitos estabelecidos
entre avós e pais se reeditam nas relações com os netos, desqualificando o papel
dos genitores e, frequentemente, deslocando o desempenho de funções sociais
cruciais na instituição familiar.
As entrevistas também apontaram traços culturais associados ao machismo
e à homofobia como disparadores de momentos de ruptura familiar, questões
culturais que têm um peso muito grande no exercício cotidiano do poder e da
dominação. Os dados quantitativos e qualitativos, aqui apresentados, reforçam
a importância dos vínculos primários que, quando faltam ou são autoritários,
podem contribuir para confusão de referências e problemas de identidade,
sobretudo, na adolescência.
Eu saí de casa muito cedo. Não por problemas familiares, mas por gostar dele
mesmo [do namorado]. Ele era um pouco mais velho e minha mãe não aceitava.
Eu fugi de casa. Fugi e não voltei. Pai eu não conheci. (Mulher, Capital)
Eu era filho de militar e tinha uma pensão. Meu pai morreu eu tinha 6 anos.
Aí fiquei com a minha mãe. Foi complicado, que minha mãe casou, mas minha
mãe resolveu seguir outro tipo de vida, ela optou por outra orientação sexual. Foi
complicado, aos 20 anos de idade eu já saí de casa. Já aconteceu da gente ficar
dois anos sem se falar. (Homem, Capital)
Em resumo, com base nas informações até aqui levantadas quanto à situação
familiar dos presos no estado do Rio de Janeiro, é possível afirmar que, em sua
maioria, são pessoas que vivenciaram momentos de ruptura dentro de seus
lares e encontraram pouco apoio das redes de proteção social. Apresentam,
no momento, fragilidade de vínculos familiares e conjugais. O uso e o tráfico
de substâncias psicoativas foram para eles um fator desencadeador da prisão.
Grande parte dos detentos tem filhos que podem estar repetindo sua história,
pois crescem e se desenvolvem sem o apoio e a orientação paterna ou materna,
reeditando os problemas vivenciados por muitos na prisão.
70
Uso Abusivo de Drogas
e Participação no Tráfico
Os presos foram perguntados sobre o uso de substâncias tóxicas em três
momentos de sua existência: ao longo da vida, nos últimos trinta dias antes de
serem presos e no tempo de reclusão.
71
emagrecer ou ficar acordadas, tranquilizantes e drogas injetáveis (p<0,05). Para
as demais substâncias não há diferenças significativas.
Em uma pesquisa de base populacional sobre uso de drogas na vida,
realizada pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas
(Cebrid), Galduróz e colaboradores (2002) mostraram a prevalência de 68,7%
para álcool, 41,1% para tabaco e 6,9% para maconha. É possível compreender
que as três substâncias mais usadas sejam as mesmas, independentemente da
situação de encarceramento. Mas, a prevalência é de uso de substâncias lícitas
como tabaco, álcool e alguns tipos de medicamentos. Conclui-se, portanto, que a
situação de encarceramento e a maior proximidade com a cultura que naturaliza
a venda e o uso de drogas ilícitas – uma vez que a maior parte dos presos cumpre
pena por comércio ilegal de substâncias psicoativas – influenciam tanto sua vida
fora como dentro das penitenciárias.
72
Observa-se que no Interior, para ambos os sexos (p<0,05), os percentuais
são mais elevados em relação ao uso de várias substâncias ao longo da vida, o que
sugere a presença de fatores contextuais que podem fomentar o consumo. Entre
os homens, os do Interior sobressaem por fazerem mais uso de álcool, maconha,
cocaína, mesclado, crack, oxi, heroína e remédios para emagrecer. Entre as
mulheres é maior o consumo de álcool, tabaco e tranquilizante (Tabela 8).
73
74
Tabela 8 – Número e proporção de presos do estado do Rio de Janeiro, segundo sexo, área e uso de substâncias
tóxicas ao longo da vida
Homens Mulheres
Total Capital Baixada Interior Total Capital Interior
N % N % N % N % N % N % N %
Álcool 16.643 79,6 10.625 79,3 2.364 77,6 3.655 81,6 962 77,0 800 74,9 162 89,1
Tabaco (cigarro) 13.563 65,5 8.719 65,2 1.941 65,1 2.903 66,8 863 68,1 719 66,5 144 77,7
Maconha 12.462 60,3 7.792 59,0 1764 59,2 2.906 65,1 636 50,6 529 49,8 106 54,6
Cocaína 8.730 42,8 5.277 40,4 1.236 41,1 2.217 51,3 606 47,7 514 47,4 92 50,0
Mesclado, merla, bazuca ou
3.262 16,2 2.113 16,3 417 14,5 733 17,0 204 16,3 173 16,2 31 17,0
pasta de coca
Crack 3.628 17,7 2.248 17,0 587 20,2 794 18,3 253 20,2 222 20,8 31 16,7
Oxi 685 3,4 393 3,1 127 4,3 164 3,9 41 3,4 38 3,6 4 2,0
Produtos para “sentir barato” 6.475 31,4 4.117 31,1 957 32,4 1.401 31,6 362 28,7 306 28,5 56 29,5
Heroína, morfina ou ópio 492 2,5 262 2,1 98 3,4 132 3,2 32 2,7 28 2,8 4 2,1
Tranquilizante, ansiolítico,
calmante ou antidistônico sem 6.368 30,8 4.509 34,0 696 23,1 1.164 26,3 652 50,8 544 49,6 108 57,7
receita médica
Droga injetável 605 3,0 314 2,4 134 4,5 157 3,6 53 4,2 51 4,8 2 1,0
Tabela 9 – Número médio de dias de uso de substâncias psicoativas na vida (desvio padrão) pelos presos do estado
do Rio de Janeiro, segundo sexo e área, antes da prisão
Homens Mulheres
Número de dias de uso antes
Total Capital Baixada Interior Total Capital Interior
de ser preso
Média DP Média DP Média DP Média DP Média DP Média DP Média DP
Álcool 10,2 9,35 10,2 9,17 9,30 8,70 11,0 10,2 11,8 11,2 12,0 11,2 10,6 11,0
Tabaco (cigarro) 21,0 12,8 20,1 13,1 21,8 11,8 22,8 12,1 23,2 11,8 22,8 12,0 24,8 10,7
Maconha 18,2 13,2 17,5 13,7 18,0 12,4 20,0 12,4 18,4 13,1 18,9 13,0 15,5 13,4
Cocaína 11,1 10,9 12,1 11,5 9,7 9,9 10,2 10,0 14,0 12,3 14,5 12,4 10,8 11,3
Crack 11,3 11,2 10,9 10,6 11,1 11,4 12,4 12,3 14,6 13,9 14,6 13,9 14,8 14,4
Oxi 4,7 7,8 2,7 1,2 3,5 6,4 8,6 12,0 5,1 10,5 5,4 10,8 1,0 0,0
Produtos para “sentir barato” 6,1 7,8 6,1 7,3 7,6 8,9 5,2 8,2 9,3 10,9 10,1 11,3 3,4 4,1
Heroína, morfina ou ópio 2,7 3,3 3,0 3,2 3,6 4,0 0,5 0,9 20,0 11,3 20,0 11,3 - -
Droga injetável 1,7 3,9 0,3 0,5 1,6 2,1 5,5 7,0 8,0 12,0 8,0 12,0 - -
75
O lado negativo dessa prática que se inicia como experimentação é o risco
que os adolescentes e jovens correm de se tornar dependentes e comprometer a
realização de tarefas importantes para seu desenvolvimento:
o cumprimento dos papéis sociais esperados; a aquisição de habilidades essenciais;
a realização de um sentido de adequação e competência; e a preparação apropriada
para a transição ao próximo estágio na trajetória da vida: a de adulto jovem.
O “termo comportamento de risco” aqui utilizado, portanto, se refere às ameaças
ao desenvolvimento bem-sucedido dos adolescentes e jovens. (Schenker & Minayo,
2005: 709)
76
autores, como Oetting e colaboradores (1998) e Schenker e Minayo (2005),
encontraram forte influência dos colegas na iniciação às drogas e na adesão
a grupos de delinquência. Porém, esses investigadores ressalvam que os
adolescentes e jovens não são simplesmente cooptados por amigos antissociais,
como se isso fosse uma fatalidade. Na verdade, tornam-se atraídos pelo fato de o
meio familiar apresentar abundância de conflitos e desengajamento interpessoal.
A compreensão do comportamento adicto e delinquente, portanto,
baseia-se em três pressupostos: 1) o sintoma do uso abusivo de substâncias
e do comportamento delinquencial irrompe quando os contextos familiar e
sociocultural oferecem condições para o seu surgimento e desenvolvimento; 2) o
comportamento de um indivíduo afeta e é afetado pelo comportamento do outro,
numa relação de circularidade e não de linearidade, pois esse comportamento é
construído em coparticipação entre os indivíduos implicados na relação; 3) as
interações entre o indivíduo, a família e o ambiente sociocultural dão suporte aos
padrões tanto para abuso de drogas como para a adesão à delinquência (Schenker
& Minayo, 2005).
77
Grande parte dos entrevistados afirmou ter sido presa por tráfico de drogas
e, dessa forma, cumpre pena por esse delito. Nos relatos, os detentos contaram
como se envolveram com o crime e enumeraram caminhos percorridos. Para a
maioria, a aproximação se deu por intermédio de amigos, conhecidos ou líderes
nesse tipo de atividade. Destacam-se em suas falas expressões criadas num
ambiente cultural em que o envolvimento com o comércio de substâncias ilícitas
e com o uso de armas passa a ser considerado algo comum e rotineiro: “quando
fui ver, já estava envolvido na vida errada”; “então eu entrei para essa vida,
vivo a vida errada fazendo o certo”. Essa última expressão, “fazendo o certo”,
sugere, por parte de quem a utilizou, que a entrada no tráfico teve a função de
lhe permitir a sobrevivência num contexto de insegurança alimentar e que, tendo
consciência do poder que exercia ao portar armas de fogo, “buscava não abusar”.
Até então eu fui lá fazer uma barganha de um oitão. Apanhei uma televisão velha.
Aí eu gostei da safadeza e fiquei indo lá toda a vida.Porque tinha pó para cheirar,
tinha mulher, baseado na boca, cerveja. Aí eu gostei da sem-vergonhice e fiquei lá
um tempão. (Homem, Interior)
Foi ali com as amizades. Era na comunidade. Eu servi o quartel, fui cabo armeiro.
Aí saí do quartel e os amigos que me conheciam sabiam que eu mexia com arma
de fogo. E tinha uma movimentação de tráfico que era na porta da minha casa.
Então, uma vez que eu estava subindo, eles estavam com uma arma de fogo com
defeito e me pediram: “Você pode consertar?”. Eu fui e consertei. Dali para frente
aquela amizade começou a mexer muito comigo. Eu fui muito pela mente, pela
cabeça dos outros. E quando fui ver, já estava envolvido na vida errada. (Homem,
Capital)
Eu tinha amigos, muitos amigos que eram muito envolvidos! Porque eu sou assim,
desde que não me afete em nada, estou nem aí. Eu vim me envolver porque eu
não gostava de ver atitude de pessoas sofrendo por causa de pessoas outras que
não têm nada a ver. Então eu entrei para essa vida, vivo a vida errada fazendo o
certo. (Homem, Capital)
78
não consegui. Aí minha amiga me ensinou um jeito e eu fiz. Mas fiquei muito
nervosa, muito apavorada. Aí, fui chamada para o scanner e descobriam! Meu
nervosismo era visível. (Mulher, Capital)
Eu era cobradora de ônibus, aí quando fiquei desempregada, passei a vender
roupa, sex shop, fazer unha, fazer cabelo, só que eu me envolvi com um cara e ele
infelizmente fazia essa porcaria de tráfico e quando ele veio preso eu vim presa
juntinha com ele, e já é a terceira cadeia dele. (Mulher, Capital)
O poder dos traficantes de drogas e armas nas favelas e nas áreas periféricas
do estado do Rio de Janeiro, segundo os entrevistados, inspira um ideal de vida
que relativiza a consciência do que é permitido ou não. As expressões “mexeu
comigo”, “virou minha cabeça” sugerem esse entendimento de que a satisfação
rápida, por mais que seja incerta e perigosa, vale o risco. Alguns dos entrevistados
chegaram a expressar orgulho pela escolha feita, apresentando identificação com
a figura do traficante como aquele que personifica o poder e a ordem. Apesar
de mais frequente entre os homens, uma mulher também expressou, em seu
discurso, essa irmanação:
Quando eu vivia na vida do crime eu gostava. Ostentação, poder, respeito e
dinheiro. Naquela época eu adorava, gostava muito! Cheguei a ir para São Paulo,
numa facção. Eu nunca levei a criminalidade para dentro da minha casa, ficava
no portão, tanto é que meu filho hoje em dia é bombeiro, minha filha estuda,
trabalha, minha família toda é cristã. Fui presa na operação no morro. Mas lá fora
as regras são piores que as daqui, se você não as seguir, o preço que você paga é
muito mais alto do que você paga aqui. (Mulher, Capital)
79
Perguntados por que entraram para a vida na ilegalidade, alguns entrevistados
relataram que, para eles, a opção pelo trabalho no tráfico foi a única possível
diante de problemas financeiros ou de subsistência imediata. No entanto, essa
é uma saída mais buscada pelos homens do que pelas mulheres. Os primeiros
fogem de ocupações menos valorizadas ou precarizadas. O tráfico de drogas e
armas, em locais em que essa atividade faz parte do cotidiano, aparece, portanto,
como uma dupla tentação: a do poder, para quem não o tem, e a do dinheiro
rápido, para quem é despossuído:
Tenho três filhos para criar e não estava conseguindo trabalho. Aí comecei a
traficar. Comecei a roubar também. (Homem, Capital)
Sempre tive problemas, nunca me dei bem na escola. Com 14 anos eu fui morar
sozinho. Aí foi que comecei a me envolver com o crime. Tráfico, homicídio, tudo,
tudo, tudo. Quando eu comecei, foi pelos amigos. Entrei na boca, aí foi que
começou meu envolvimento com as pessoas. (Homem, Baixada)
80
Vivências de Agressões e Maus-Tratos
Na investigação sobre os vários tipos de agressões, abusos e maus-tratos
sofridos pelos presos em sua vida pregressa considerou-se o tema dentro de
um conceito amplo definido pela Organização Mundial da Saúde (2002) e pelo
Ministério da Saúde (Brasil, 2001). Esse conceito pode ser assim resumido:
prática de ações ou omissões cometidas uma vez ou muitas vezes, prejudicando
a integridade física e emocional da pessoa, impedindo seu desempenho social
e frustrando sua expectativa em relação aos que a cercam, sobretudo filhos,
cônjuges, parentes e comunidade.
Violência não é sinônimo de crime, embora a maioria dos crimes sejam
expressões de violências. Para caracterizar as diferentes formas de manifestação
da violência, o Ministério da Saúde (Brasil, 2001) e a Organização Mundial da
Saúde (2002) estabeleceram uma classificação hoje considerada universal que
inclui os seguintes tipos: 1) abuso físico: uso da força que pode resultar em
dano, dor, lesão ou morte; 2) abuso sexual: ato ou o jogo em relações hétero ou
homossexuais que estimulem ou utilizem a vítima para obter excitação sexual
e práticas eróticas e pornográficas, por meio de aliciamento, violência física e
ameaças; 3) abuso psicológico: atitudes de menosprezo, desprezo, preconceito,
discriminação e humilhação; 4) exploração financeira ou material: uso da pessoa
para ganhos financeiros ou uso ilegal de seus bens; 5) abandono: deixar a pessoa
à sua própria sorte quando ela não é capaz de se cuidar; 6) negligência: recusa
a cumprir obrigações de cuidar e de proteger a pessoa que necessita de amparo;
7) violência autoinfligida: negligência em se cuidar ou tentar tirar a própria vida.
Como se observa, nas informações sobre a vida antes da prisão, em todos
os aspectos analisados anteriormente, algum tipo de violência esteve sempre
presente na vida dos detentos. No entanto, quando instados a falar sobre o
tema, em geral, os homens se referiram à dinâmica de sua vida criminosa. Essa
concepção que reduz o conceito de violência ao de crime é também a mais comum
na sociedade. As mulheres presas mostraram uma visão um pouco mais ampliada
sobre o assunto, pois se referiram à violência doméstica, conjugal e sexual que
sofreram durante a vida. Porém, todos os entrevistados e entrevistadas foram
bastante econômicos ao falar sobre o assunto.
A Tabela 10 se refere às lesões e traumas sofridos pelos detentos antes de
irem para a prisão. Destaca-se que mais mulheres (28,9%) que homens (21,7%)
apresentam algum tipo de lesão permanente (p<0,01). Lesões nos rins e pulmão,
81
deformidades permanentes em dedo, mão ou braço são mais comuns entre eles
(p<0,05). Entre elas, predominam deformidades de seio, pé, perna ou coluna,
incapacidade de reter fezes ou urina e outras (p<0,05). Os homens reclusos no
Interior relataram mais lesões permanentes em dedo ou membro amputado,
paralisia permanente e outras incapacidades. Presos da Baixada informaram
mais incapacidade para reter fezes ou urina (p<0,01). Entre as mulheres,
particularmente as do Interior, predomina a incapacidade para reter fezes ou
urina (p=0,04).
Algum dedo
ou membro 620 3,1 360 2,7 95 3,4 165 4,0 26 2,2 24 2,4 2 1,1
amputado
Alguma paralisia
permanente de 673 3,4 462 3,6 61 2,2 150 3,7 29 2,5 27 2,7 2 1,1
qualquer tipo
Alguma
deformidade
permanente ou
1.774 9,0 1.195 9,3 252 9,2 328 8,1 154 13,0 127 12,4 27 16,1
rigidez constante
de pé, perna ou
coluna
Alguma
deformidade
permanente ou
1.685 8,6 1.130 8,8 236 8,6 318 7,9 70 6,1 58 5,8 13 8,1
rigidez constante
de dedo, mão ou
braço
Incapacidade para
reter fezes ou 1.191 6,0 709 5,5 223 8,0 260 6,4 190 16,4 156 15,5 34 22,1
urina
Qualquer outra
821 4,2 545 4,3 85 3,1 191 4,6 65 5,6 55 5,4 11 7,0
incapacidade
82
Embora a pergunta se referisse ao tempo anterior à prisão, constatou-se
que 26,5% dos detentos com lesões permanentes as adquiriram no presídio,
contrariando um dos princípios fundamentais do guia “Saúde nas prisões” (WHO,
2007), segundo o qual os presos não devem sair da prisão em pior situação de
saúde do que quando entraram.
As experiências de violência, anteriores à reclusão foram, predominantemente,
narradas pelos homens, dentro da visão restrita de agressões entre gangues
armadas ou de confronto com policiais. Houve relatos sobre maus-tratos sofridos
por presos por causa de sua orientação homoafetiva, mas foram mais escassos.
As mulheres falaram mais de abuso sexual e estupro na adolescência.
Com 14 anos fui estuprada. Aí fui à delegacia, fórum, essas coisas assim. [Foi] o
meu namorado. Ele colocou remédio na minha bebida e isso eu tinha 14 anos.
A minha mãe foi, fiz corpo delito e foi comprovado tudo. Ele perdeu o emprego dele.
Ele trabalhava naquela época no Bradesco. Aí depois na época tinha esse negócio de
casar. Eu não quis casar com ele de jeito nenhum. E depois eu já conhecia um rapaz
que era médico e eu fui namorar logo em seguida. (Mulher, Interior)
83
Em 1988, foi por um assalto seguido de morte, latrocínio. Eu apanhava [roubava]
coisas no Centro. Arrumava arma por causa de roubo de carro e arrumava dinheiro.
Então, um ladrão falou comigo: “quando você tiver armas – estou sabendo que
você tem armas – traz para a gente que a gente compra e te paga bem”. Até então
eu fui lá fazer uma barganha de um oitão. Apanhei uma televisão velha. Ninguém
sabe que eu assaltei, ninguém sabe que eu dei facada em alguém, só sabe que eu
ia para o Centro apanhar bicicleta e rádio. Eu roubava CD de carro, todo mundo
conhecia isso. (Homem, Interior)
Eu fui baleado três vezes já. Graças a Deus, nada de grave. Consegui sair, curar
e continuei na tranquilidade da comunidade, no convívio com meus amigos.
Amigos entre aspas. Porque o crime é severo. Enquanto você não falha, está
bem com você, tudo tranquilo. Mas a partir do momento que você comete uma
falha dentro da lógica do crime, tudo que você fez de bom, todos os amigos que
você conquistou, ou até de repente a vida que você salvou, tudo e todos vão se
voltar contra você. Então, eu acho que é um tipo de vida um pouco solitária.
Mentalmente essa é a única coisa que me abala um pouco. É falta de amparo,
mais nada. (Homem, Capital)
Porque eu entrei para o crime não é só para combater dentro da criminalidade.
Eu não tinha outra opção. Mas foi o que aconteceu. Eu fiquei sempre metendo
a mão mesmo e fazendo várias coisas que o ser humano não gosta. Eles tinham
me batido, aí eu fiquei com sequela no olho. Aí com esse olho aqui, eu não
enxergo. (Homem, Capital)
84
certa aculturação em que se considera a violência parte e ambiente de sua vida.
Talvez aqui, valesse lembrar Sartre (1961), segundo o qual a violência constitui
para muitos uma cultura social que é a imunda e cruel caricatura da sociedade
do amor e da razão.
Por isso, ao revés, é importante que, em um estudo como este, a violência
seja tratada segundo uma lógica preventiva e social e analisada no âmbito das
relações primárias (da família) e da socialização (na escola e na comunidade).
Como se observou a respeito dos vários aspectos da vida pregressa dos presos,
muitos foram vítimas de abandonos, de maus-tratos dos pais e irmãos e de muita
negligência por parte também dos programas sociais e educativos, num momento
crucial para sua formação psicossocial. Embora não se possa simplificar,
afirmando que há uma relação direta ou de determinação entre a violência sofrida
na infância e na adolescência e a entrada na criminalidade, é certo que essa
associação não pode ser negada nos casos concretos que os detentos contaram.
A literatura internacional discute esse assunto, colocando ênfase na situação
de adolescentes e jovens que, em todo o mundo, continuam o grupo social mais
vulnerável tanto para sofrer como para cometer violência. Chesnais (1981), na
obra considerada clássica em que analisa 200 anos de violência no Ocidente,
tem uma frase lapidar a respeito das relações desse fenômeno com a educação
e com as condições de vida. Afirma o autor que mais fizeram, pelo decréscimo
da violência social e dos homicídios no continente europeu, a educação formal
e a melhoria da situação social da classe trabalhadora que todos os aparatos
repressivos.
É importante ressaltar que, no início do século XIX, as taxas de criminalidade
e de mortes violentas eram muito mais elevadas na Europa do que as do Brasil
de hoje, chegando a 60 homicídios por 100.000 habitantes em alguns países.
Atualmente, essas taxas estão entre 1/100.000 a 0,5/100.000 no continente
europeu, o que mostra a possibilidade histórica de se superarem as elevadíssimas
taxas de violência no Brasil, que respondem pelo terceiro lugar na mortalidade
geral. Chesnais justifica sua afirmação sobre as possibilidades de superação,
argumentando que, quando as pessoas se sentem incluídas na cidadania e recebem
uma boa educação formal, em geral, elas têm preferência por usar a palavra em
lugar da força para se comunicar e atingir seus fins. A educação formal ensina a
dialogar, a enfrentar o contraditório, além de ser um instrumento fundamental de
inclusão social e de aumento de oportunidades no mundo do trabalho.
85
Também outros estudiosos, como Lochner e Moretti (2004), Fajnzylber
e Araujo Júnior (2001), Santos e Kassouf (2007), Becker (2013) e Minayo e
Constantino (2012), mostram uma relação negativa entre nível de educação,
violência e criminalidade. Esses autores, ainda que com objetivos de pesquisa
diferentes, ressaltam que os custos sociais são maiores quando as violências e
os crimes são cometidos por jovens porque, se capturados, eles acabam punidos
e detidos num momento da vida em que deveriam estar se preparando para
contribuir para o desenvolvimento do país. Convém voltar atrás e chamar
a atenção para o elevado percentual de detentos sem o ensino fundamental
completo (32,5% de homens e 33,1% de mulheres).
Dados do Ministério da Saúde mostram que mais de 70% dos homicídios
atualmente ocorrem na faixa de 15 a 39 anos, exatamente o grupo populacional
em plena idade produtiva. Igualmente, a maior parte dos agressores está nas
mesmas faixas etárias (Souza et al., 2012b). Carvalho e colaboradores (2007)
estimam que a perda de produtividade no Brasil por causa dos homicídios foi de
R$ 9,1 bilhões de reais no ano 2001, cálculo que provavelmente não se modificou
no cenário atual das cifras de violência no país. Pensando numa sociedade em que
a atribuição do papel de provedor ainda cabe ao sexo masculino, é importante
ressaltar que a perda do país é brutal, pois 82% das mortes violentas são de
homens (Souza et al, 2012a).
Na verdade, a violência tem uma série de motivos associados, assim,
considerar apenas a influência da educação formal ou sua ausência é bastante
temeroso. No entanto, parece apropriado tecer considerações sobre essa relação,
confirmada por alguns estudos. Grogger (2002) analisou o tema na realidade
americana, mostrando que a participação do jovem em grupos de violência ou
de delinquência reduz a probabilidade de conclusão do ensino médio em 5,1% e
diminui em 6,9% a de entrada na faculdade. Ao contrário, pesquisas indicam no
mesmo país que o aumento de 1% nas taxas de conclusão do ensino médio para
homens entre 20 e 60 anos reduz em torno de 1,4 bilhões de dólares os gastos
com a criminalidade.
É bem verdade que esses dados da sociedade americana não podem ser
transferidos ingenuamente para o Brasil, até mesmo porque a hipótese mais
plausível é que a situação aqui seja muito mais catastrófica. O Censo de Educação
Básica de 2013 mostra que o ensino médio no país continua estagnado, ou pior,
vem perdendo alunos. No ano de 2013, foram registradas 64.000 matrículas
a menos do que ano anterior, numa oscilação negativa de 0,7%. Especialistas,
86
assim como o próprio Ministério da Educação, identificam o ensino médio como o
maior gargalo do sistema educacional brasileiro (Brasil, 2014a). Considerando os
jovens de 15 a 17 anos, – grupo de risco importante para a criminalidade –, 15,8%
estavam sem estudar em 2012, segundo o IBGE (2011). Os jovens apelidados
“nem, nem, nem”, ou seja, os que não trabalham, não estudam e não procuram
trabalho são o alvo privilegiado para o aliciamento de grupos de delinquentes.
Wieviorka (1997) ressalta, em suas análises sobre a violência no mundo
contemporâneo, o quanto os jovens das periferias urbanas são empregados como
“buchas de canhão”, com ganhos que para eles são atrativos, mas, na verdade,
são irrisórios diante dos mercados de drogas e armas que ocupam o segundo e
terceiro lugares mais lucrativos dos negócios internacionais.
Quando se fala em violência do ponto de vista da saúde, o foco mais
importante é a prevenção. É possível pensar a educação como uma forma de
diminuir a violência social e a criminalidade a médio e longo prazos, pois o
indivíduo mais bem preparado e com mais qualificações consegue se inserir
melhor no mercado do trabalho, tem mais oportunidades e maiores salários, tem
mais noção de cidadania e de direitos e deveres, o que o torna menos propenso a
se inserir em grupos criminosos.
Em geral, as escolas relutam em abordar as questões de violência com a
desculpa de que seu papel é ensinar conteúdos que preparem os jovens para o
futuro. Porém, a violência social não poupa sequer as instituições de ensino e ainda
traz para dentro desses espaços todos os problemas gerados fora deles. A própria
escola pode ser um foco gerador de violência, por meio de comportamentos
antissociais de educadores, funcionários e dos próprios estudantes em relação
aos seus colegas. Essas práticas podem ser classificadas como maus-tratos físicos,
negligências, abusos sexuais e bullying, termo que sintetiza várias formas de
violência psicológica.
Em resumo, da mesma forma que a família, a escola e o ambiente comunitário
podem influenciar o comportamento agressivo dos jovens. No caso das crianças
e adolescentes vítimas de violência, uma das consequências negativas é que
eles tendem a apresentar comportamentos depressivos e baixa autoestima, ou
uma agressividade exacerbada (Santos & Kassouf, 2007). A história de vida de
pessoas criminosas ou violentas, como se constatou nesta pesquisa, mostra que
seu comportamento foi forjado nas instituições primárias e de socialização como
também foi observado por Becker (2013).
87
3
A Vida na Prisão: o cotidiano
89
com diferença estatisticamente significativa (p<0,01). Há um número pequeno
de pessoas cumprindo mais de dez anos de pena e menor ainda é o percentual dos
que têm 20 anos ou mais de reclusão.
% % % % % % %
Menos de 1 ano 42,6 36,7 70,5 42,0 47,0 48,1 41,1
1-4 anos 46,6 50,5 26,4 48,2 45,1 42,8 58,0
5-9 anos 7,5 8,8 2,0 7,5 5,5 6,3 0,9
10-19 anos 3,0 3,7 1,1 1,9 1,8 2,1 0,0
20 e mais anos 0,3 0,4 0,0 0,4 0,6 0,7 0,0
Média (DP) 2,2 (2,9) 2,4 (3,1) 1,1 (1,7) 2,1 (2,6) 1,8 (2,6) 1,8 (2,8) 1,5 (1,2)
90
os presos com período menor de privação da liberdade (até quatro anos).
Entre os homens, os presos na Baixada são os com menos tempo de detenção
(p<0,01). Entre as mulheres, as da Capital estão detidas há menos tempo que
as do Interior (p<0,01).
O estabelecimento de sentenças é uma questão que importa muito na vida
dos presos, posto que eles não deveriam ficar nos presídios indefinidamente
sem saber que pena lhes é devida pelos crimes que cometeram. Dos detentos
que responderam ao questionário, mais da metade tinha sua sentença definida
(Gráfico 7). No entanto, mais da metade é muito pouco diante dos dispositivos
da Lei de Execução Penal. Encontrou-se um percentual maior de homens
sentenciados que de mulheres (p<0,01). Entre os que receberam penas mais
elevadas – de mais de dez anos –, predominam os presos do sexo masculino, com
diferença estatisticamente significativa entre os sexos (p<0,01), evidenciada nas
médias encontradas: 15,5 anos para os homens e 10,5 para as mulheres.
91
diferença estatística significativa entre as áreas estudadas (p<0,01). Na Tabela 12
indica-se que em todos os locais pesquisados, para ambos os sexos, prevalecem
os sentenciados com cinco a nove anos de detenção, principalmente mulheres.
Na Baixada, os homens têm sentenças menores do que os da Capital, tanto em
números absolutos como na média (p<0,01). As mulheres com penas acima de
dez anos estão, geralmente, na capital (p<0,01).
Homens Mulheres
92
tempo, e com a escrita de suas memórias se transformou num grande poeta e
num dos maiores dramaturgos do século XX. Sartre analisou, por meio desse
caso, a oposição entre prisão e liberdade e fez um depoimento contundente numa
das últimas entrevistas de sua vida, para Le Nouvel Observateur:
Há uma diferença essencial entre minha relação com Marx e minha relação com
Freud. A descoberta da luta de classes foi para mim uma verdadeira descoberta:
ainda creio totalmente nela, da forma como foi descrita por Marx. Os tempos
mudaram, é sempre a mesma luta, entre as mesmas classes, como o mesmo caminho
para a vitória. Por outro lado, não creio no inconsciente tal como apresentado pela
psicanálise. A ideia que nunca deixei de desenvolver é que, finalmente, cada um é
sempre responsável pelo que fizeram dele – mesmo que ele não possa fazer nada mais
do que assumir essa responsabilidade. É a definição que eu daria hoje de liberdade:
este pequeno movimento que faz de um ser social totalmente condicionado, uma
pessoa que não constitui a totalidade do que recebeu de seu condicionamento, que
fez de Jean Genet um poeta, enquanto ele foi rigorosamente condicionado para ser
um ladrão. (Jean-Paul Sartre, entrevista em 28 jan. 1970)
93
Dentro desse cotidiano repetitivo e insípido, alguns falaram de outras
atividades nas quais podem participar: celebrações religiosas; entrevistas com
os defensores públicos; frequência à escola; consulta de atenção psicológica,
entre outras. Em geral, as mulheres, mais que os homens, são frequentadoras
dos eventos a que têm acesso, como se observa no Gráfico 8, com exceção da
inserção laboral e da frequência às visitas íntimas. A diferença é significativa
entre os sexos (p<0,01) para todos os itens pesquisados.
94
significativa com p<0,01 para todos os itens. As presas no Interior relataram
menos atividades ocupacionais, atendimento psicológico e visitas íntimas que as
da Capital (p<0,05).
Homens Mulheres
N % N % N % N % N % N % N %
Escola 4.930 21,6 3.320 22,8 526 16,7 1.084 21,4 462 33,9 378 32,5 85 42,0
Trabalho
3.155 13,9 2.226 15,3 221 7,0 707 14,0 276 20,4 236 20,5 40 19,8
classificado
Trabalho não
2.263 9,9 1.427 9,8 310 9,9 526 10,4 44 3,2 28 2,4 16 8,0
classificado
Celebrações
6.952 30,5 4.313 29,6 1.048 33,3 1.592 31,5 679 49,9 585 50,7 94 46,4
religiosas
Ambulatório
3.529 15,5 2.163 14,8 376 12,0 990 19,5 35,7 36,1 424 36,5 68 33,9
médico
Psicologia 833 3,7 506 3,5 96 3,1 230 4,5 170 12,6 134 11,6 36 17,9
Serviço social 2.560 11,2 1.846 12,6 110 3,5 604 11,9 259 18,9 216 18,5 43 21,4
Defensoria
5.027 22,1 3.145 21,5 486 15,5 1.396 27,6 514 37,7 449 38,7 65 32,1
Pública
Advogado 3.807 16,7 2.435 16,7 636 20,2 735 14,6 266 19,6 221 19,1 45 22,3
Visita íntima 2.163 9,5 1.541 10,6 136 4,3 486 9,6 48 3,5 36 3,1 13 6,2
Outras 1.739 7,6 1.294 8,9 156 5,0 289 5,7 108 7,9 100 8,7 7 3,6
95
Entre 2013 e 2015, momento em que esta pesquisa foi realizada, havia
5.161 presos matriculados em algum tipo de curso, o que corresponde a 21,29%
do total. A instrução escolar e a formação profissional dos detentos estão
previstas na atual legislação penal brasileira, mas muitos deles se queixaram de
que nem todos os que solicitam o ingresso nas atividades educativas conseguem
se inserir. Disseram também que existe descontinuidade nas propostas e rotinas
de acordo com cada gestão, o que torna muitas ações apenas pontuais e não
institucionalizadas. Essas queixas dos presos se tornam reivindicações pertinentes
de acordo com a Lei de Execução Penal, segundo a qual todos os estabelecimentos
prisionais devem ter, em suas dependências, serviços de assistência, educação,
trabalho, recreação e prática esportiva.
Ao contrário do que ocorre com o trabalho, a remissão da pena pelo ensino
não está prevista na Lei de Execução Penal, mas tem sido implementada em
alguns estados brasileiros, como é o caso do Rio Grande do Sul, do Rio de
Janeiro, do Mato Grosso do Sul, entre outros. Nessas unidades federativas foi
estabelecida a remissão de um dia de pena por 18 horas de estudo (Julião, 2006).
As atividades intelectuais poderiam ajudar em muito na ressocialização, abrindo
novos horizontes para esses indivíduos e aumentando suas expectativas de futuro.
Um número pequeno de presos fez menção a uma série de atividades não
obrigatórias, mas que não são oferecidas por muitas unidades. Em um ambiente
hostil e rotineiro, vale a reflexão sobre as iniciativas individuais e a liberdade
dos detentos de aproveitarem essas oportunidades capazes de tornar a vida
menos infeliz.
Os homens mencionaram várias iniciativas no espaço de livre expressão
nos questionários. Entre elas, há as de ordem física, manual e artística, como
fazer artesanato, confeitar salgados e doces, cortar cabelo, preparar lanches,
lavar roupa, distribuir alimentos nas celas, limpá-las, desenhar e pintar. As de
caráter intelectual, como ler, estudar, frequentar cursos em geral e em particular
de protético, oferecido pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
(Senac), e de preparação para vestibular na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (Uerj), ministrar cursos, compor música, participar de palestras e do
Projeto Vida – um curso oferecido pela Coordenação de Psicologia sobre Saúde e
Cidadania com palestras sobre diversos temas. Esse curso, atualmente, existe em
14 unidades do sistema, promovido pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Econômico e Social, uma ONG que atua nos presídios. As recreativas: jogar
baralho, cantar, correr, contar piada, fazer exercício físico, jogar futebol, tomar
96
banho de sol, ouvir rádio, usar drogas. As religiosas e espirituais: ir à igreja,
meditar, buscar a Deus, cantar louvores, orar, participar de cultos, ler a bíblia,
fazer trabalhos para a igreja. As meditativas e de expressão emocional: pensar na
vida, na liberdade, no futuro, nos filhos, sonhar e chorar.
Alguns detentos aproveitaram o espaço que lhes foi oferecido para
expressar seus sentimentos, desejos e reivindicações, para demonstrar revolta
e sentimentos depressivos, afirmando que usam seu tempo para serem inúteis,
sem recursos para fazerem o que gostariam, e para sentirem fome. Outros se
referiram também, como atividade, a prática do “ratão”, uma forma que criaram
de fazer sexo com a pessoa que veio visitá-los, quando não têm a visita íntima
autorizada. O ratão é consumado por meio da montagem de uma pequena cabana
improvisada com lençóis; ou ainda numa fila de banheiro, sob a vigilância e
cobertura de outros presos. Há agentes que fazem vista grossa, mas os detentos
apanhados nessa transgressão podem sofrer processo disciplinar e receber uma
pena que é aplicada pela comissão técnica.
As mulheres também citaram várias iniciativas, classificadas a seguir. Físicas
e manuais: fazer artesanato, costurar, lavar roupas, trabalhar. Recreativas:
dançar, cantar, escutar música, escutar rádio, brincar, fazer educação física,
tomar banho de sol. Religiosas: frequentar a igreja, ler a bíblia, orar e falar com
Deus, louvar a Deus, pregar a palavra divina. Intelectuais: estudar, ler, escrever
e realizar cursos. Interativas: namorar e conversar. Muitas delas colocaram como
atividades expressões emocionais e meditativas: chorar, pensar na família e nos
filhos, refletir sobre a vida, sonhar e sorrir.
Algumas detentas mencionaram ações que são obrigadas a realizar ou os
abusos de poder de que são vítimas: “ficar de castigo com a cara para a parede”
e “ser maltratada pela direção”. Falando, por exemplo, sobre como passam seu
dia, elevada proporção relatou que “prefere ficar sozinha”, o que foi bem menos
frequente entre os homens, que mostraram preferência pela prática de esportes,
conforme se observa no Gráfico 9. Houve diferença significativa entre homens e
mulheres para todos os itens (p<0,05), nesse particular, exceto para as atividades
de interação como ler e conversar.
97
Gráfico 9 – Distribuição proporcional dos presos do estado do Rio de Janeiro,
segundo sexo e atividades que costumam fazer
98
Dentre os entrevistados, poucos trabalhavam (4,4%) no período em que a
pesquisa foi realizada. A ociosidade foi pontuada por eles como um dos grandes
problemas do sistema prisional. Nos depoimentos, os presos manifestaram muita
vontade de trabalhar, tanto para ajudar na remissão da pena como para aprender
algum tipo de atividade que pudesse ajudar na sua reinserção social. Existe entre
eles um forte sentimento de que o tempo passado na instituição é tempo perdido,
destruído ou suprimido de sua vida; é tempo que precisa de algum modo ser
apagado; tempo que precisa ser vivido de forma mais ou menos preenchida
ou arrastada. Esse tempo é algo que pesa e que foi posto entre parênteses na
consciência dos reclusos, de uma forma que dificilmente se encontra no mundo
externo, por isso o preso tende a sentir que a permanência em reclusão o torna
totalmente exilado da vida.
Em síntese, a constante tensão entre o mundo interno e o mundo externo
ao universo da reclusão, como enfatizado por Goffman (1990), reforça o
distanciamento físico entre o espaço penitenciário e o espaço de convívio social
pleno, tornando as experiências vivenciadas no cárcere determinantes na vida
dos presos. Na maioria dos casos elas constituem empecilhos ou obstáculos nas
relações que se estabelecerão no seu retorno à liberdade.
Trabalho Classificado e
Não Classificado dos Presos
“O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade
humana, terá finalidade educativa e produtiva”, preconiza a Lei de Execução
Penal brasileira (artigo 28). No entanto, autores como Lemgruber (1999) e Julião
(2010) afirmam que, no sistema penitenciário de países ocidentais, o trabalho
objetiva preferencialmente “diminuir os custos operacionais” e “manter o preso
ocupado”, afastando-o de atividades ilícitas e reduzindo o ócio.
Como se pode observar nos depoimentos a seguir, mesmo quando os
detentos realizam alguma atividade laboral, em geral podem ser consideradas
atividades precárias e quase sempre de baixo valor de troca. Por exemplo, numa
unidade da Baixada e noutra da Capital foi mencionado pelos presos que eles
fazem “reciclagem de materiais”. Porém, ao explicarem essa atividade, disseram
que lavam as quentinhas para venderem o alumínio utilizado ou guardam restos
de alimentos, transformando-os em lavagem, comprada por criadores de porcos.
Essas ações, segundo os entrevistados, visam à garantia de recursos mínimos
99
para compra de pequenos bens de consumo como papel higiênico, por exemplo.
No entanto, a maioria declarou levar uma vida de ociosidade e de desvalorização
de qualquer atividade criativa. Alguns depoimentos corroboram as informações
dos questionários:
Eu acordo de manhã cedo. Faz o confere, aí a gente abre a galeria, fica do lado de
fora conversando com os colegas, às vezes eu fico deitado assistindo televisão até
a hora de fechar, aqui minha rotina é essa. A única atividade que a gente tem aqui
é só o banho de sol. É uma vez por semana que a gente, ali na quadra, joga bola
até a hora de retornar. (Homem, Baixada)
Vêm as quentinhas, nós nos alimentamos e os amigos lavam elas e colocam
para vender. Aí aquela venda daquele alumínio reverte em papel higiênico para
o coletivo. E tem a limpeza. Tem o pessoal que limpa o pátio de visita. (Homem,
Capital)
Tem nada, lazer aqui é ver televisão, quando passa um jogo, um filme. Trabalho
aqui, aí que não tem nada mesmo, tem uns amigos que trabalham em negócio de
lixo [para reciclar]. Mas mesmo assim é um trabalho desumano, que os caras não
pagam. (Homem, Capital)
Atividade física aqui é praticamente impossível. O espaço é muito pequeno. Nós
temos um espaço aqui que é chamado banho de sol, que é uma hora e meia, duas
horas. Nós temos um espaço mínimo que dá para jogar um futebol. Sendo que a
quantidade de presos aqui é muito grande. (Homem, Capital)
100
O autor desenvolveu ainda a ideia de “ajustamento secundário” para falar dos
participantes da organização prisional que empregam meios ilícitos ou não
autorizados para escaparem da rotina a que estão obrigados ou para obterem
certas satisfações proibidas.
Em resumo, o privilégio dos “faxinas” é apenas uma possibilidade que se abre
para alguns, o que os ajuda a atravessar com menos sofrimento a vida reclusa e
a ter algum poder perante os colegas. Entretanto, as mutilações do eu também
ocorrem entre eles, pois mesmo se estão cooperando com a direção do presídio,
têm de ser submissos e se adequar ao que lhe ordenam as chefias. Os depoimentos
de alguns se referem às atividades que realizam na rotina institucional:
Então aqui o convívio é normal, a gente trabalha, volta para nossa cela, pega
nosso almoço, de manhã acorda para trabalhar e assim o tempo passa mais
rápido. (Homem, Capital)
Acordo e tomo café. Aqui eu trabalho na zeladoria. Tem banho de sol uma vez por
semana e futebol. (Homem, Capital)
Trabalho. Comecei trabalhando aqui servindo alimentação. Agora eu trabalho no
acesso ao portão. A gente pega de 8h da manhã a 1h da tarde, no outro, pega de
1h da tarde às 6h e está tranquilo. A gente não tem contato com preso. A gente só
faz o acesso da chave, o funcionário é que é responsável pelo preso, a gente não
tem acesso nenhum ao preso. (Homem, Capital)
Eu sou faxina. Eu tenho certa liberdade. Eu fico solto o dia todo. Eu trabalho
com o segurança, com o chefe de segurança. No sábado eu fico na cela. Eu tenho
banho de sol duas vezes por semana. Duas horas de sol. (Homem, Interior)
Eu faço qualquer coisa, mas eu gosto mais do serviço mais difícil, esgoto, mexer
nesses troços aí. Eu abro esses tampões todos, eu não fico doente não. Os [guardas
dizem]: Rapaz, você vai meter a mão? O bicho cheio assim daqueles troços
boiando! Tiro o tampão lá e puxo às vezes uma garrafa que está lá. (Homem,
Interior)
101
De manhã, às 6h30 o café da manhã. Pão, leite e café. Ah, tem banho de sol às
9h que eu não desço. Eu não gosto de tumulto. O tumulto me deixa zonza. Eu não
posso tomar de sol. Eu tenho medo disso. Aí às 10h o pessoal sobe e 11h tem o
almoço. Um dia primeiro o lado A, depois o lado B. Aí passa a tarde toda a gente
vendo televisão, descansando e quando são umas 5h é o jantar. Aí depois confere
e a gente fica dentro da sala vendo televisão. (Mulher, Interior)
Eu acordo, tomo um banho e espero o café que passa às 7h. Pão sem manteiga. É
pão puro. Às vezes é pão de sal, às vezes é pão doce. Depois passa e dá o confere,
depois às 9h é banho de sol. Eu não gosto de tomar banho de sol. Muita gente
gosta de ficar na cela. (Mulher, Interior)
Os dias são todos iguais. Não tem nenhuma diferença. A gente fica na tranca o
tempo inteiro. Aí às vezes a gente tem um banho de sol que a gente fica duas horas
na quadra que não tem um banheiro, não tem um banco. Às vezes falta sol, outras
vezes [nosso nome] não está na planilha, outras vezes é outra galeria. A gente
nunca sabe. (Mulher, Capital)
102
Quadro 5 – Distribuição dos presos do estado do Rio de Janeiro que têm trabalho
classificado
Unidade Número de presos Número de presos que trabalham
Presídio Ary Franco 1.477 50
Colônia Agrícola Marco Aurélio Vergas Tavares de Mattos 86 54
Penitenciária Alfredo Trajan 1.831 53
Instituto Penal Benjamin de Moraes Filho 710 65
Cadeia Pública Bandeira Stampa 388 21
Presídio Carlos Tinoco da Fonseca 1.490 88
Instituto Penal Cândido Mendes 237 02
Cadeia Pública Cotrin Neto 1.380 11
Cadeia Pública Dalton Crespo de Castro 715 12
Penitenciária Industrial Esmeraldino Bandeira 1.115 98
Instituto Penal Edgard Costa 584 22
Presídio Evaristo de Moraes 1.724 80
Cadeia Pública Franz de Castro Holzwarth 453 11
Cadeia Pública José Frederico Marques 380 05
Penitenciária Vieira Ferreira Neto 249 31
Penitenciária Gabriel Ferreira de Castilho 672 42
Hospital Dr. Hamilton Agostinho Vieira de Castro 54 03
Instituto Penal Ismael Pereira Sirieiro 530 28
Presídio João Carlos da Silva 1.433 08
Penitenciária Joaquim Ferreira de Souza 353 27
Penitenciária Jonas Lopes de Carvalho 1.783 97
Cadeia Pública Juíza de Direito Patrícia Acioli 1.150 19
Cadeia Pública Jorge Santana 867 04
Penitenciária Lemos de Brito 627 77
Penitenciária Milton Dias Moreira 1.313 07
Penitenciária Muniz Sodré 2.711 126
Presídio Nelson Hungria 435 58
Instituto Penal Oscar Stevenson 309 20
Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho 2.906 198
Presídio Nilsa da Silva Santos 308 22
Cadeia Pública Pedro Melo da Silva 1.015 04
Cadeia Pública Pedrolino Werling de Oliveira 56 27
Hospital Penal Psiquiátrico Roberto Medeiros 109 03
Cadeia Pública Romeiro Neto 554 15
Penitenciária Serrano Neves 800 44
Sanatório Penal 59 05
Presídio Elizabeth Sá Rego 1.066 20
Penitenciária Talavera Bruce 359 46
Cadeia Pública ISAP Tiago Teles de Castro Domingues 989 27
Presídio Diomedes Vinhosa Muniz 712 23
Instituto Penal Vicente Piragibe 2.768 101
Total 37.255 1.648
103
Segundo Foucault (2009) e concordando com Goffman (1990), o modo
de vida imposto ao criminoso na prisão, caracterizado pelo isolamento e
pela realização de atividades nas quais o presidiário não visualiza utilidade,
corrobora para reforçar a criminalidade, ao desencadear sentimentos de revolta e
humilhação: “ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo
quando utiliza métodos suaves de trancar ou corrigir é sempre do corpo que
se trata – do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua
repartição e de sua submissão” (Foucault, 2009: 28).
Como ressalta Quintino (2006), a sociedade brasileira, de maneira geral,
considera que todo detento deveria trabalhar, pelos mais variados motivos. Alguns
defendem a máxima de que o trabalho dignifica o homem; outros consideram que
a mente desocupada é oficina do diabo; há os que, a partir de uma visão católica
do trabalho como suplício, defendem-no por vingança (se a vítima e sua família
trabalhavam, por que o criminoso tem o direito de ficar à toa?); muitos também
são favoráveis ao trabalho nas prisões por uma questão de ordem econômica,
para desonerar os cofres públicos dos custos com a manutenção dos detentos.
Existem, inclusive, os mais exaltados que defendem trabalhos forçados para os
prisioneiros.
O trabalho no mundo contemporâneo é compreendido como direito do ser
humano, intrinsecamente relacionado com a dignidade da pessoa, uma vez que
proporciona ao indivíduo sentir-se útil e adquirir bens para a sua subsistência. A
atividade laboral tem sido ressaltada, também, pelos estudiosos da pena privativa
de liberdade como meio eficaz para reafirmar ao preso o sentido reeducador da
pena, provendo o hábito da disciplina e preparando-o para que possa encontrar
emprego quando posto em liberdade.
O art. 6 da Constituição da República Federativa do Brasil classifica o
trabalho como um dos direitos sociais. Tendo em vista que, em razão de sua
condenação, o preso está limitado na sua possibilidade de exercê-lo livremente,
cabe ao Estado promovê-lo nos estabelecimentos prisionais. Foi muito grande o
número de presos entrevistados que se queixou de não ter uma ocupação – “assim
o tempo custa a passar” – concordando com o que escreveu Drauzio Varella em
Estação Carandiru (1999), a “mente ociosa é moradia do demônio, a própria
malandragem o reconhece”. De modo que, por seu próprio desejo, a maioria dos
detentos entrevistados gostaria de cumprir a pena trabalhando, inclusive porque
a seu ver, “o tempo passa mais depressa, e a noite, com o corpo cansado, a gente
nem tem tempo de sentir saudade”, conforme assinalou um dos reclusos.
104
Já desde os clássicos da sociologia (Weber, 1999; Marx, 1994) reconhece-se
que o ser humano transforma e se transforma pelo trabalho, tão necessário para
seu equilíbrio físico e psíquico. Na visão dos reformadores que propuseram a
substituição do suplício pela prisão no século XIX (Foucault, 2009), o sistema
prisional deveria organizar-se como uma espécie de fábrica, visando a modelar
o novo comportamento dos criminosos. Dessa forma, o ideal seria que todo
condenado trabalhasse, como forma de reeducá-lo e dar-lhe um ofício, por
meio do qual ele aprenderia regras básicas e fundamentais de convivência e de
disciplina, e, ademais, pagaria sua dívida com a sociedade. O trabalho eliminaria
a ociosidade, ocupando os detentos com obrigações sociais e custeando
suas despesas na prisão, além de garantir-lhes uma renda financeira que lhes
asseguraria sua reinserção moral e material no mundo social e da economia.
Durante a instituição da prisão, houve controvérsia sobre a questão do
trabalho. Alguns reformadores do século XIX supunham que o confinamento
solitário do preso deveria levá-lo à meditação e à reflexão sobre seu crime e sua
futura reintegração na sociedade. Mas essa foi uma idealização que não encontrou
grande ressonância entre os pensadores da época e não caberia absolutamente na
realidade brasileira, na medida em que a superlotação – quase como regra – inibe
os processos de individualização, de conscientização e de reflexão. Por isso, hoje,
em quase todo o mundo, o trabalho é visto como parte da reabilitação, embora a
Constituição de 1988, em seu art. 5, inciso XLVII, vede a imposição de trabalhos
forçados, de modo que nenhum recluso pode ser obrigado a trabalhar.
As “Regras mínimas para o tratamento de reclusos” (ONU, 1955) adotadas
pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de
Delinquentes, realizado em Genebra, em 1955, estabeleceram que o trabalho na
prisão deve estar em consonância com as aptidões físicas e mentais do apenado.
Ademais, ressalta o documento, o trabalho deve ser útil, possibilitando ao preso
exercer uma atividade que possa aumentar sua capacidade de ganhar a vida
honestamente. Segundo tais regras, o Estado deve proporcionar treinamento
profissional aos presos para que possam exercer uma atividade digna quando
postos em liberdade, permitindo-lhes, sempre que possível, escolher o tipo de
treinamento profissional que preferem realizar.
Preceitua o texto que o trabalho dentro do estabelecimento prisional deve se
assemelhar ao exercido fora, preparando o apenado para as condições normais
do mercado de trabalho. Nas “Regras mínimas”, orienta-se também que nos
estabelecimentos penitenciários sejam tomadas as mesmas precauções prescritas
105
para a proteção, segurança e saúde dos trabalhadores, entre elas, um dia de descanso
semanal e um tempo destinado à educação e a outras atividades necessárias a seu
tratamento e reabilitação. Esse documento determina ainda que os presos que
trabalham recebam uma remuneração que lhes permita utilizar uma parte para
adquirir objetos de uso pessoal, outra para enviar à família, e uma terceira para
depósito num fundo prisional criado pelo sistema. A quantia depositada nesse
fundo deveria ser entregue ao preso quando posto em liberdade (ONU, 1955).
Autores como Rosa (1995) consideram que os reclusos que exercerem atividade
laboral deveriam ser premiados, recebendo certas vantagens. E, ao contrário, os
que preferissem ficar ociosos deveriam estar sujeitos a restrições e punições.
A afirmação repetida por centenas de entrevistados na pesquisa sintetiza
a questão: “ficar trancafiado dentro das celas, contando os dias para a almejada
liberdade, não ajuda ninguém a se ressocializar”. Tanto a doutrina jurídica como
os próprios presidiários ressaltam a importância do trabalho e dos treinamentos
profissionalizantes que possam aumentar suas chances de encontrar emprego
quando forem colocados em liberdade.
106
Pinto (2005). É importante lembrar também que as atividades de assistência
religiosa estão regulamentadas pela Lei de Execuções Penais desde 1984.
Nos dados estatísticos, a presença e o papel da religião são muito
relevantes nos presídios do estado do Rio de Janeiro. Por isso, além de mostrar
as importantes informações colhidas com os próprios detentos, este capítulo se
desdobra em várias considerações e argumentações – hoje quase consensuais – de
que a função da religião na vida prisional é positiva. Contudo, vozes discordantes
e críticas existem e é importante ouvi-las, sobretudo porque de ambos os lados
há evidências empíricas. Em todos os casos, é bom também distinguir religião e
espiritualidade e pontuar o papel específico do grupo confessional.
Neste estudo, indagaram-se os participantes acerca de sua vivência religiosa
na situação de reclusão. Na parte quantitativa, a seguinte pergunta foi feita:
“você pratica alguma religião atualmente?” A entrevista qualitativa aprofundou
o tema. Buscou-se, assim, levantar algumas experiências relacionadas às
práticas religiosas no espaço do cárcere e compreender sua função na vida e na
ressocialização dos detentos.
Encontraram-se 79,8% dos homens e 90,2% das mulheres que praticam
algum tipo de religião (Tabela 15), evidenciando que, na situação prisional, a
busca do transcendente se aguça, sobretudo no caso das mulheres (p<0,01).
No grupo masculino, os homens da Baixada Fluminense foram os que mais
informaram práticas religiosas, exatamente o grupo mais maltratado dos três
estudados. Entre as mulheres não há diferença de crenças e práticas entre as
encarceradas da Capital e do Interior do estado.
107
reabilitação de um detento pode ser lida como um processo global e dinâmico
orientado para sua recuperação física e psicológica, o que envolve a ideia de
saúde como um conceito amplo que inclui “bem-estar físico, psíquico, espiritual
e social a que todos os indivíduos têm direito” (Brasil, 2014b). Na esfera jurídica,
a recuperação é entendida como um benefício com o objetivo de restituir ao
condenado o direito a ter sua ficha de antecedentes criminais apagada após o
cumprimento de sua pena. Já o termo reabilitação relaciona-se à ressocialização,
garantindo, em tese, o sigilo de antecedentes (Lima, 2015). Segundo Silva e
Moreira (2006), reabilitação, reeducação, ressocialização e reinserção social são
expressões que se equivalem e designam a chamada terapia penal: devolver a
pessoa presa à sociedade para que ela possa ser integrada, útil e produtiva.
Com relação ao processo de recuperação e de reabilitação, considerável
número de trabalhos vem sendo desenvolvidos dando ênfase ao papel da religião,
que acrescenta a todas as expressões citadas anteriormente a de conversão. Aqui
cabe uma distinção que permite mostrar várias diferenciações nos depoimentos
dos presos e presas sobre as opções de práticas religiosas. Em muitos estudos
citados, os termos espiritualidade e religiosidade são tratados, ora tomados
como iguais ou semelhantes, ora focalizando um ou outro aspecto. Na sua
definição mais usual, religião se relaciona a um sistema institucionalizado de
crenças, símbolos e tradições que se definem a partir de certa cosmologia. Nesse
sistema há procedimentos organizados, hierarquias, grupos de adesão ou filiação,
congregações de leigos, encontros, normas éticas e morais, entre outros aspectos.
Já espiritualidade é uma “dimensão da força interior de uma pessoa, que traduz
um modo de viver característico das relações entre o indivíduo e o transcendente
e entre o indivíduo e seus semelhantes” (Ribeiro & Minayo, 2014: 1.774).
A espiritualidade não exige a pertença a um grupo religioso ou a uma instituição
(Ribeiro & Minayo, 2014). Na observação das situações apresentadas pelas
detentas e pelos detentos, muitos privilegiam a prática religiosa em grupo. Outros
valorizam o silêncio religioso da espiritualidade, sem que os dois movimentos se
apresentem como incompatíveis.
Estudando práticas criminosas, a maioria dos autores afirma que a religião
tem papel protetor contra a violência. Esse é o caso de Pearce e colaboradores
(2003), Regnerus (2003), Johnson (2001), entre outros. Grande parte dos
estudiosos considera a religião como uma forma de apoio diante das durezas
da vida prisional e da vulnerabilidade perante estressores, para contribuir com
a elaboração de expectativas promissoras (Fernander et al., 2005; Moraes &
108
Dalgalarrondo, 2006; Guedes, 2006; Schneider & Feltey, 2009; O’Connor &
Perreyclear, 2002; Allen et al., 2008; Wahl, Cotton & Harrison-Monroe, 2008;
Huculak & McLennan, 2010; Skotnicki, 1996).
Em geral, na literatura, os aspectos positivos mais ressaltados dizem respeito
à importância da religião na mudança de hábitos de vida; no suporte social; no
enfrentamento das dificuldades; em curas de enfermidades psicossomáticas; na
recuperação de doenças e da dependência de drogas; na melhoria da saúde mental,
na qualidade de vida, no bem-estar psicológico; e na superação da depressão e
dos comportamentos suicidas (Alves & Minayo, 1994; Minayo, 1994; Rabelo,
1994; Panzini et al., 2007; Dalgalarrondo, 2007; Lessa, 2008; Rocha, 2010).
Pesquisas sobre o papel dos grupos religiosos também destacam sua
contribuição para tirar as pessoas do isolamento, promover conforto espiritual e
criar laços que, frequentemente, se estendem depois que os detentos voltam para
o convívio da sociedade (Timor, 1998; O’Connor & Perreyclear, 2002; Allen
et al., 2008; Huculak & McLennan, 2010). Dentro dos cárceres, particularmente
as conversões realizadas pelas religiões pentecostais e neopentecostais
funcionam como estratégia de pacificação das relações. A conversão pode
significar efetivamente uma salvação da vida do indivíduo, como uma base de
apoio legitimada socialmente e pelo grupo. No mesmo sentido, Scheliga (2005a)
observa, em seu estudo sobre prisões, e ouvindo diversos membros do corpo
de funcionários, três principais vantagens de ser crente: poder ocupar celas e
alas consideradas mais calmas; receber bens materiais provindos de trabalhos de
igrejas; se reaproximar das famílias por meio da intervenção delas; e, ter facilitada
a mediação nos encaminhamentos dos processos penais.
Nas entrevistas e escritos espontâneos dos detentos, a prática religiosa
foi muito citada por homens e mulheres, até mesmo como parte de sua rotina
institucional. Mencionaram adesões tanto a cultos evangélicos quanto à
pastoral católica, assim como a existência de espaços específicos para oração.
No entanto, muitos presos e presas confidenciam que preferem exercitar sua fé
dentro da própria cela, numa linha muito mais espiritualista do que de práticas
ritualísticas:“Eu prefiro orar no silêncio, em minha cela” (Mulher, Capital).
As mulheres e a religião
Várias mulheres mencionaram a importância de “frequentar a igreja, ler a
Bíblia, orar, falar com Deus e louvá-lo, pregar a palavra divina e praticar a fé”
109
como um meio de dar sentido ao seu tempo dentro da prisão, como é ressaltado
no depoimento a seguir: “Muitas gostam de ir para a igreja. Na minha cela tem
muita gente cristã. Cada mês o culto é numa galeria” (Mulher, Capital).
Acerca da religiosidade desenvolvida por mulheres detentas, Moraes e
Dalgalarrondo (2006), em suas pesquisas, encontraram um significado muito
positivo, particularmente quanto ao impacto sobre a saúde, à contribuição para
melhor ajustamento à realidade prisional e à superação de situações difíceis,
incluindo-se a do próprio aprisionamento, por meio de práticas ou de reflexão
espiritual. No mesmo sentido, por meio de pesquisa numa penitenciária feminina,
Guedes (2006) ressaltou a função da religião não apenas para as detentas, mas
também para o próprio equilíbrio institucional.
Nos depoimentos das internas, a participação em atividades religiosas as
leva a “ouvir a Deus”. Todavia, como mostra Guedes (2006), seu papel vai além:
juntar-se para rezar permite às detentas saírem de suas celas, ampliarem sua
comunicação, ouvir o outro e, muitas vezes, diminuir o uso de medicamentos
destinados a aliviar seus sintomas depressivos ou psicossomáticos.
Ao investigarem mulheres encarceradas especificamente por terem
matado seus parceiros, pais ou padrastos abusivos, Schneider e Feltey (2009)
ressaltaram o papel positivo de suas experiências espirituais durante o tempo
de encarceramento, independentemente das crenças religiosas que praticavam.
A participação em programas confessionais, associada à adesão a grupos
terapêuticos, permitiu-lhes um “ponto de virada” que os autores sintetizaram
como sendo um tipo de conforto espiritual e de abertura para se livrarem da
culpa pelo assassinato do agressor.
Os homens e a religião
Também os homens encarcerados afirmaram a prática religiosa, mesmo
que em menores proporções que as mulheres. Os dados sobre eles são muito
significativos, como podem ser constatados na Tabela 15. Seus depoimentos
deixam entrever como essa experiência desempenha papel importante no
enfrentamento das duras condições da prisão:
Religião, nós praticamos dentro da cela mesmo, juntamos uns irmãos aí e fazemos
um culto. Os irmãos da cela mesmo fazem um culto, porque se for depender deles
aí [dos funcionários] vem irmão de fora, pastores. (Homem, Capital)
110
É quase todo dia que faz na galeria. Vem também uma pessoa de fora.
(Homem, Capital)
Eu ia à igreja católica, mas devido eu vir preso, dessa vez eu fiquei com vergonha
de ir lá encarar meus amigos lá. (Homem, Interior)
Também saio em cultos. Os cultos aqui são todas as sextas-feiras. Às vezes de
manhã, às vezes à tarde, mediante aqui ser um presídio de segurança máxima.
(Homem, Capital)
Essa “economia da religião” utilizada pelos presos não significa que suas
práticas sejam mentirosas ou um engodo. Sobre programas de reabilitação,
em sua pesquisa com homens encarcerados que vivenciavam sua fé na prisão,
Timor (1998) descobriu que eles se sentiam como cidadãos seguidores da lei,
qualitativamente diferentes do que haviam sido no passado. Por meio desse
estudo, o autor pondera que meios coercitivos e punitivos não favorecem
mudanças comportamentais. Em sua avaliação, práticas religiosas são mais
eficazes. Confirmando a mesma constatação, Skotnicki (1996), ao discutir as
políticas de reabilitação desenvolvidas nos Estados Unidos, lastima que a religião
111
tenha sido substituída nas prisões pela atuação de especialistas como psicólogos,
médicos e assistentes sociais. Segundo o autor, os próprios cientistas sociais,
atualmente, vêm redescobrindo que a abertura ao transcendente pode ser uma
chave para a reabilitação, inibindo a relação entre crime e delinquência. Por sua
vez, essa é uma questão delicada, pois Rodrigues (2005: 12) encontrou em uma
penitenciária feminina brasileira “evidência de uma estratégia do poder público
repassar às instituições religiosas (...) a solução dos conflitos decorrentes de
um processo de mortificação e de deterioração de identidades que os sujeitos
enfrentam dentro de uma instituição total”.
Na situação citada, a interpretação é que os religiosos estariam atuando em
substituição das competências e responsabilidades do poder público e de seus
agentes. Com o fracasso de uma suposta proposta de ressocialização por parte
do sistema, os religiosos ocupariam a função de trabalhar com os indivíduos
uma mudança de orientação – passagem do delito e do crime para uma vida
correta e legal –, isto é, operando uma conversão e preparando-os para o
retorno à sociedade. Mais que os agentes do Estado, os religiosos encarnariam
a própria proposta de ressocialização. Quiroga (2005), a esse respeito, lembra
que em muitas outras situações as religiões e seus agentes são convocados a
atuar no espaço do cárcere, como na intermediação de rebeliões e motins. Para
a autora, é como se as igrejas estivessem garantindo ou infundindo na população
carcerária maior confiabilidade para ocupar espaços e exercer funções civis de
responsabilidade do que os órgãos técnicos ou o próprio Estado.
Assim, apesar de a maioria dos autores ser a favor das práticas religiosas na
prisão, alguns criticam uma concepção relativamente corrente no senso comum
de que pessoas que praticam atividades religiosas estariam menos propensas
a cometer crimes. É o caso de Pettersson (1991) e Fernander e colaboradores
(2005) que encontraram uma relação positiva entre religião e ocorrência de
crimes sem vítimas, ou seja, em delitos contra o patrimônio.
Fernander e colaboradores (2005) analisaram a relação entre espiritualidade
e religiosidade e diferentes condenações criminais, encontrando os seguintes
resultados: os envolvidos com tráfico de drogas apresentam menor propensão
a aceitar valores religiosos; já alguns condenados por cometerem violências e
agressões afirmaram que suas ações tiveram motivação religiosa. O mesmo se
observa atualmente em relação aos crimes e mortes por intolerância religiosa em
todo o mundo. Alguns pesquisadores como Applegate e colaboradores (2000),
Unnever, Cullen e Applegate (2005) e Leiber (2000) destacam, por meio dos
112
resultados de seus estudos, que os indivíduos que vivem em sociedades onde
impera o fundamentalismo religioso tendem a apoiar a atribuição de penas mais
duras aos que cometem crimes e que seu extremismo pode prejudicar sua própria
saúde mental. Nos casos de conversão de criminosos brasileiros, vários autores
questionam se, em muitas situações em que as pessoas se dizem reabilitadas,
ocorre uma real transformação, ou apenas as atividades religiosas constituem
uma estratégia a mais de sobrevivência em espaços violentos, como os presídios.
Novaes (2005), entre outros, destaca o empenho de muitos autores na
busca por descobrir a veracidade das conversões, ressaltando que, mesmo em
outros espaços sociais, não há como aferir essa mudança. Dias (2005) afirma
que as altas taxas de reincidência na criminalidade de presos ditos convertidos
alimentam a desconfiança da efetiva “aceitação da palavra de Jesus” para além
dos muros do cárcere. Diante do cotidiano institucional, a bíblia pode tornar-
se um amuleto de proteção, motivando o que alguns denominam de “esconder-
se atrás da bíblia” (Dias, 2005; Scheliga, 2005a, 2005b), o que garante, por
exemplo, a moradia em galerias específicas para religiosos e outros privilégios. E,
ainda, alguns pesquisadores chamam atenção para o fato de que a religião pode
também produzir sofrimento psíquico e violência, na medida em que tabus e
preconceitos religiosos a respeito de certos grupos civis produzem discriminação
e exclusão, até mesmo dentro do sistema penitenciário (Dalgalarrondo, 2006;
Stroppa & Moreira-Almeida, 2008).
113
uma nota de 0 a 10 para diversos itens, como mostra o Gráfico 10. As notas
médias foram relativamente baixas e nenhuma ultrapassou 6,5. Os homens se
mostram mais insatisfeitos que as mulheres na maioria dos itens, exceto quanto
ao relacionamento com os colegas presos, o atendimento médico, dentário e a
alimentação. As maiores notas auferidas por eles foram para o relacionamento
dos presos entre si (6,2 pelos homens e 6,0 pelas mulheres). A alimentação, o
atendimento dentário e o transporte foram os itens com pior avaliação, e, por
isso, serão abordados mais detalhadamente no próximo capítulo. Houve diferença
estatística significativa entre as notas atribuídas por homens e mulheres em todos
os itens, exceto para alimentação, em que ambos os grupos auferiram valores
semelhantes e muito baixos (p<0,05).
Gráfico 10 – Nota média atribuída pelos presos do estado do Rio de Janeiro para
o grau de satisfação com aspectos da vida e relacionamentos no
presídio, segundo sexo
114
Há diferenças substanciais que distinguem os gêneros na vida prisional. As
mulheres são frequentemente caracterizadas como esquecidas no sistema por suas
famílias. São reconhecidas por receberem menos programas e serviços do que
os presos do sexo masculino, por considerarem mais insuportável o isolamento
social da vida prisional e por terem mais dificuldades em aderir a subculturas
e códigos prisionais. As dores do aprisionamento feminino incluem estigma do
encarceramento, claustrofobia, ansiedade por não estarem cuidando dos filhos, por
apresentarem mais problemas físicos e emocionais que acompanham a abstinência
de drogas em relação aos homens. Elas se ressentem muito da insensibilidade e
abuso de poder por parte dos agentes e de outras presas, além de terem dificuldades
cognitivas e não saberem como ou quando expressar seus sentimentos (Chesney-
Lind, 2015; Greer, 2000). Tais vivências conformam a crítica visão feminina sobre
a vida prisional, expressa em notas baixas e, especialmente, no pior relacionamento
com as outras detentas e na insatisfação com a assistência à saúde, quando se
fazem comparações com os homens.
Tamanho e
3,0 3,3 3,0 3,4 2,2 2,8 3,5 3,6 4,8 3,6 4,7 3,6 4,8 3,7
condições da cela
Atividades que
desenvolve no 2,6 3,3 2,7 3,3 1,6 2,7 2,9 3,4 3,4 3,9 3,6 3,9 2,4 3,5
presídio
Alimentação 2,2 2,9 2,3 3,0 1,4 2,1 2,3 2,8 2,1 2,9 1,9 2,8 2,9 3,4
Atendimento de
2,2 3,2 2,3 3,4 1,5 2,5 2,3 3,1 2,8 3,6 2,9 3,6 2,7 3,3
psicologia
Atendimento do
2,9 3,4 3,1 3,5 2,0 2,9 3,1 3,4 3,2 3,7 3,5 3,8 1,8 2,9
serviço social
Atendimento
2,6 3,3 2,6 3,3 2,1 2,8 2,9 3,3 2,2 3,3 2,3 3,4 1,7 2,9
médico
Atendimento
1,9 3,1 2,0 3,2 1,6 2,7 1,9 3,1 1,7 3,2 1,8 3,2 1,0 2,6
dentário
Relacionamento
com outros 6,2 3,8 6,2 3,8 6,1 3,9 6,4 3,7 6,0 3,8 5,9 3,8 6,7 3,6
presos
Relacionamento
3,3 3,9 3,4 3,9 2,2 3,2 3,8 4,1 5,2 4.0 5,1 3,9 5,9 4,1
com os agentes
Relacionamento
3,1 3,8 3,3 3,9 1,9 3,2 3,5 3,9 4,5 4,2 4,3 4,2 5,5 4,2
com a direção
Transporte 1,2 2,5 1,2 2,5 0,9 2,2 1,5 2,7 1,9 3,1 1,9 3,1 1,5 2,8
115
Há também distinções significativas entre as avaliações dos cenários
prisionais da Capital, do Interior e da Baixada. Autores internacionais avaliam
que os comportamentos dos presos estão relacionados a fatores advindos: do
indivíduo, como por exemplo, violência prévia e convicções pessoais; da prisão,
como superlotação, razão entre agentes e presos, integração racial; do sistema de
custódia existente na prisão, que classifica os detentos quanto ao grau de perigo
que podem provocar, orientando assim a sua possibilidade de movimentação e
de atuação na prisão (Worrall & Morris, 2011). Devem-se acrescentar à visão
muito negativa do contexto prisional apresentada na Tabela 16 as avaliações
ainda piores quanto às situações de isolamento, de celas superlotadas ou dos
controles institucionais em que as violências são cumulativas.
Em outro polo, talvez pelas vivências menos cruéis e dolorosas, estão os
presos “faxinas” ou os que estão em unidades menores e mais distantes de
ambientes dominados pela violência interna ou a exercida por agentes da lei.
A parte aberta dos questionários, em que se deixou a cada preso a liberdade
de se expressar sobre a vida na prisão, é bastante esclarecedora sobre a
pontuação tão negativa a respeito dos vários aspectos da vida cotidiana: 518
homens e 325 mulheres se manifestaram. Houve muitas reclamações sobre
sua situação jurídico-legal, o que confere com dados de que a 40% deles ainda
não foi atribuída pena. Também sobressai o fato de que muitos, segundo seus
depoimentos, já tenham cumprido suas sentenças e continuam detidos. Em suas
falas, os homens e mulheres se manifestaram com elevado grau de insatisfação e
expuseram de forma contundente dos problemas que vivenciam, coadunando-se
com as baixas notas citadas no Gráfico 10 e na Tabela 16.
Autores têm demonstrado que a capacidade de se ajustar ao ambiente
prisional está associada a alguns aspectos individuais, como sentimento de bem-
estar psicológico, de segurança e grau de tolerância e controle pessoal; e outros
mais gerais, como a natureza das interações sociais com outros presos e com o
corpo diretivo e gerencial da instituição e a prevalência de episódios violentos
dentro da unidade (Morris, 2008). Como se poderá visualizar nas próximas
seções, nenhum dos fatores de adaptação positiva, indicados anteriormente, é
fomentado pelo ambiente prisional do estado do Rio de Janeiro, o que justifica
a insatisfação generalizada e a constatação de que esse ambiente não preza a
reintegração social dos indivíduos às suas famílias e às comunidades, ao fim do
cumprimento da pena.
116
Relacionamentos Interpessoais
Os relacionamentos dos reclusos com os familiares, entre si e com os agentes
e gestores representam um tema crucial na prisão, pois de um lado há a ruptura
do detento com o mundo externo (famílias e amigos) que continua muito menos
presente fisicamente e muito mais idealizado, de outro o preso é introduzido
numa nova comunidade de pessoas quase sempre desconhecidas, com as quais
passará as 24 horas diárias, em geral por anos. Vê-se ainda confrontado por
autoridades hierárquicas que exigem disciplina e sua involuntária colaboração
e obediência. Para cada um desses três conjuntos, ele precisa desenvolver novas
estratégias de convivência e comunicação.
117
Nos questionários, o relacionamento com a família foi considerado bom por
grande parte dos apenados de ambos os sexos (Gráfico 11). Há, porém, muitas
contradições e queixas sobre os parentes que só foram ouvidas e compreendidas
na pesquisa qualitativa. De qualquer forma, os dados a seguir ajudam a entender
diferenciações de territórios e de gêneros. Entre os homens é maior o percentual
dos que dizem ser positiva a sua interação com os familiares, quando se compara
com a opinião das mulheres, que consideram sua relação com a família ruim,
regular, ou inexistente. As diferenças entre os sexos foram significativas, com
p<0,01.
118
Tabela 17 – Distribuição proporcional dos presos do estado do Rio de Janeiro,
segundo sexo, área e vínculo/relacionamento com a família
Homens Mulheres
119
elas, as separações conjugais ocorridas por causa de sua condição de interno
no sistema prisional.
Diversas vezes, os presos mencionaram que a ausência de relação com
os familiares lhes faz muita falta, porque seria bom que tivessem uma ideia
mais clara de como os vizinhos passaram a vê-los e que expectativas poderiam
alimentar de uma vida integrada comunitariamente após o cumprimento da
pena. A comunicação com os parentes poderia mostrar-lhes alguma saída ou
esperança: “a gente não sabe como é que está lá fora. Nove meses eu não sei mais
como é que está a rua, o que está acontecendo, o que vão achar de mim quando
eu chegar lá fora” (Homem, Capital). Vários observaram que o apoio afetivo da
família é fundamental para que superem os erros do passado e enfrentem a pena
com menos sofrimento.
Alguns se alimentam de palavras positivas ditas por familiares que os
visitam. O fato de saberem que não estão abandonados e acreditarem que foram
perdoados pelas pessoas que amam é fundamental para sua perspectiva de
futuro. O preso que sabe que receberá a visita da mulher, da mãe e dos filhos
tem esperança de sobreviver ao encarceramento. Ao contrário, para muitos a
prisão pode chegar a períodos relativamente longos de 12, 14 anos ou mais, e os
contatos, como mencionado por eles, vão se escasseando, sobretudo nos casos
em que os frágeis vínculos e os afastamentos remontam ao período anterior à
reclusão. Ou seja, o aprisionamento rompe, por vezes de forma irremediável, as
relações primárias e afetivas tão importantes para qualquer ser humano, afetadas
sobremodo pelo longo tempo de detenção.
O trecho a seguir ilustra a importância de tais vínculos:
Eu estou aqui pagando, mas por eles [família] eu já fui perdoado. E isso me ajuda
muito a superar aquele erro, porque a nossa família é o apoio, o alicerce total
de tudo. Quando se está desestruturado lá fora, aqui dentro a gente também fica
muito descontrolado, muito desestruturado. As nossas famílias são intocáveis.
(Homem, Capital)
120
Existe uma preocupação, tanto dos homens quanto das mulheres em proteger
seus filhos e suas mães. Muitos preferem que eles não os visitem na prisão.
No caso dos filhos, os detentos alegam que ter uma carteirinha de visitante de
unidade prisional pode prejudicar o futuro deles, por exemplo, se quiserem fazer
um concurso público. Muitos encontros acontecem somente quando há alguma
festa como Dia das Mães e Dia das Crianças, em que as pessoas não necessitam
desse registro de visitante para entrar nas unidades.
Sobre a interação com os companheiros, as mulheres disseram que suas
relações afetivas ficaram fragilizadas, mas que não cobram nada por causa de
sua condição de presas:
De um ano pra cá ele está vindo de três em três meses, mas também são seis anos
já me visitando: ninguém aguenta. Já sei que ele está curtindo praia, pagode,
eu não esquento. Eu tenho que esquentar quando eu sair daqui. O que ele está
fazendo enquanto eu estiver aqui eu não posso cobrar. (Mulher, Capital)
Com os homens ocorre o contrário. Eles recebem muito mais visitas que as
mulheres, conforme se observa no Gráfico 12. Essa diferença foi estatisticamente
significativa (p<0,01).
121
Os detentos da Capital e as mulheres do Interior são os que mais são visitados
na unidade prisional. Os homens da Baixada e as mulheres presas na Capital
recebem menos visitas (p<0,01), conforme se constata na Tabela 18.
122
Na Tabela 19, observa-se que entre os homens, os presos na Capital recebem
menos a visita das mães que os das outras áreas. Os presos na Baixada são menos
visitados pelas companheiras que os da Capital e do Interior. Entre as mulheres,
as da Capital recebem mais a visita das mães e as do Interior, mais dos irmãos.
Houve diferença estatisticamente significativa entre todos os tipos de visitantes
dos homens; no caso das mulheres, só houve significância para pais e outros
familiares (p<0,01).
N % N % N % N % N % N % N %
Familiares 14.964 98,2 9.964 97,5 1.739 98,6 3.261 100,0 713 95,5 569 95,3 144 96,4
Mãe 7.869 51,6 5.012 49,0 1.008 57,2 1848 56,7 375 50,2 301 50,4 74 49,4
Pai 2.282 15,0 1.450 14,2 258 14,6 574 17,6 113 15,1 79 13,2 34 22,9
Irmãos 3.915 25,7 2.754 26,9 467 26,5 694 21,3 231 30,9 182 30,5 49 32,5
Companheiro(a) 7.129 46,8 4.778 46,8 766 43,4 1.585 48,6 93 12,4 80 13,4 13 8,4
Filhos 3.143 20,6 2.262 22,1 257 14,6 625 19,2 167 22,3 127 21,3 40 26,5
Avós 457 3,0 401 3,9 35 2,0 21 0,6 21 2,8 17 2,9 4 2,4
Outros familiares 1.338 8,8 893 8,7 178 10,1 267 8,2 115 15,4 75 12,6 40 26,5
Amigos 730 4,8 630 6,2 48 2,7 52 1,6 72 9,6 56 9,3 16 10,8
Outras pessoas 141 0,9 117 1,1 24 1,4 0 0,0 9 1,1 7 1,1 2 1,2
123
Gráfico 14 – Distribuição proporcional dos presos do estado do Rio de Janeiro,
segundo sexo e frequência das visitas
124
com pouca educação formal, mães solteiras, afrodescendentes e morarem com os
filhos antes da detenção – a elas sempre coube a criação e o cuidado dos filhos.
Após o encarceramento, a maioria das crianças passa a viver sob a tutela dos avós
maternos. É comum que os companheiros as abandonem e construam outras
famílias, ao contrário do que ocorre nos casos delas, em relação aos homens. Como
dito, um número significativo encontra-se em total desamparo afetivo e busca
saída nas drogas que entram nos presídios ou no uso de remédios controlados.
Grande parte das casas de detenção não lhes garante o direito à visita íntima,
procedimento assegurado aos homens há mais de vinte anos. No entanto, apesar
do abandono, várias buscam manter vínculos familiares, preferindo muitas vezes
estar em cadeias públicas – mesmo que em péssimas condições – que estejam
mais próximas de seus familiares (Brasil, 2008).
Pesquisas como a de Simões (2014) numa penitenciária feminina em
Cascavel (Paraná) também confirmam o que foi mencionado tanto no relatório
quanto nesta pesquisa. São assinalados pela autora diferentes motivos pelos
quais as mulheres cumpram sua pena em total solidão: distância do presídio em
relação ao local de moradia da família, que geralmente tem de assumir o cuidado
dos filhos delas; ter o parceiro também encarcerado; o fato de os parentes não
poderem mais contar com a ajuda da prática ilícita que elas lhes proporcionavam;
a estigmatização social da mulher que comete um delito, fator decisivo nos casos
de abandono dos parceiros e amigos; e a recusa dos familiares de aceitarem as
regras impostas e humilhantes para a visitação.
Quando casadas, os companheiros são os primeiros a abandoná-las,
ou foram seus cúmplices nos crimes e estão cumprindo pena também. Várias
mulheres se queixaram nas entrevistas e nas falas livres, dizendo que quando
seus maridos ficaram presos elas iam visitá-los, levavam-lhes alimentos e traziam
tudo que podiam introduzir na prisão, muitas vezes correndo riscos e passando
humilhações por causa deles. Mas quando a situação se inverteu, os favores não
foram retribuídos.
Simões (2014) comenta, com base nas entrevistas com presas, que muitas
delas buscam dar um jeito de suprir a carência afetiva namorando colegas
detentas ou se relacionando por meio de bilhetes e cartas com outros reclusos
ou mesmo com visitantes de companheiras de prisão. Novos relacionamentos,
homossexuais ou heterossexuais, costumam surgir no tempo de cumprimento da
pena. Alguns se consumam em casamentos, realizados por juízes que vão até as
prisões para efetivá-los.
125
Ainda sobre as vinculações entre familiares e presos, merecem especial
atenção as condições em que as visitas são efetuadas, pois não há dúvidas de
que o modo como essa ação é processada pelo sistema prisional contribui para o
isolamento social e o abandono dos presos e presas por parte de seus familiares.
Alguns homens internados em unidades da Capital citaram nas entrevistas que
recebem visitas frequentes de irmãos, sobrinhos e namoradas. No entanto, muitos
externaram seu desejo de não querer que seus familiares entrem no presídio para
visitá-los, por causa dos constrangimentos pelos quais passam nos procedimentos
de revista, principalmente suas mães, mulheres, filhas e namoradas.
Os que não recebem visitas falaram sobre isso com pesar: “cinco meses sem
visita. Não sei se a minha família até morreu, eu não sei, pois não tenho nenhuma
notícia deles” (Homem, Capital). Vários entrevistados destacaram que é comum
que parentes e amigos venham visitá-los uma ou duas vezes e se desanimem, em
razão das dificuldades burocráticas e humilhações que enfrentam para entrar nas
unidades. Como uma maneira positiva de se confortar, um dos presos afirmou
que, na realidade prisional, família são seus próprios companheiros, uma vez que
estão juntos, vivendo nas mesmas condições.
No questionário de pesquisa, 9,5% dos homens e 3,5% das mulheres presos
responderam que recebem visita íntima. Entre os da Capital, esses percentuais
chegam a 10,6% para os homens e 3,1% para as mulheres; no Interior são 9,6%
e 6,2%, respectivamente. Nenhum dos presos entrevistados recebe esse tipo de
visita. Algumas mulheres relataram que existe uma burocracia para ter direito a
essa “regalia”. É preciso apresentar a certidão de casamento, e os que não são
casados formalmente têm de passar pelo serviço de assistência social, que faz
uma avaliação da situação e ouve testemunhas para comprovar se a pessoa tem o
tal companheiro ou companheira que alega ter.
Além da burocracia exigida, um dos homens presos na Baixada relatou que
em sua unidade não são permitidas visitas íntimas. Apesar de existir espaço
reservado para esse fim, a direção não os libera. Mesmo quando todas as licenças
são concedidas, ainda é necessário que o parceiro adquira uma carteirinha de
visita, o que é exigido também para qualquer parente que vai encontrar-se com
o preso. De qualquer forma, os espaços destinados para esses encontros foram
muito mal avaliados pelos presos: “Para a visita íntima seriam preciso (sic) pelo
menos um espaço de três metros e meio por quatro. Mas é um cubículo. Uma
cama de concreto” (Homem, Capital).
126
Tem estrutura de visita íntima que é formada pelo que nós chamamos de
parlatório. Devido às regras da unidade de RDD, que significa Regime Disciplinar
Diferenciado, eles não deixam entrar nada. Têm vários cubículos lá embaixo que
estão sem colchão, sem ventilador e com fiação arrancada. (Homem, Capital)
127
produtos de higiene, roupas, comidas e, em alguns casos, drogas para sustentar
sua dependência química.
Tudo que entra no presídio vira objeto de comercialização, num mercado
paralelo e superfaturado. Às vezes, a família leva produtos não porque o preso
necessita deles, mas porque ele barganha vantagens com outros internos.
Esse é o lado perverso do encontro de quem está fora com os reclusos, pois é
responsável, frequentemente, pelo tratamento brusco dos que fazem a revista
nos visitantes, visando a não deixar passar objetos e mercadorias proibidas pelo
regulamento prisional.
Termina-se essa reflexão, sobre a situação de abandono ou de dificuldade
de encontros com os familiares vivida por grande parte dos detentos e detentas,
transcrevendo-se parte da fala de um preso sobre a espera das visitas e a
importância que os vínculos afetivos primários têm para seu equilíbrio emocional:
A gente se prepara para receber a família. Lavamos roupa, cuidamos do cabelo.
Deixamos tudo arrumado para ver se eles ficam bem aqui. Mas quando ninguém
vem dá uma tristeza! Eu já vi muito marmanjão chorar aqui dentro. Vejo homem
bravo se desmanchar quando a mãe chega. (Homem, Interior)
128
Nós temos uma doutrina. Nós trabalhamos no âmbito psicológico. Instruímos,
avisamos e preparamos a todos da forma que se tem de se proceder aqui dentro.
(Homem, Capital)
A relação entre os colegas que cumprem penas, portanto, são muito mais
complexas e ambíguas como aparece nas entrelinhas do depoimento transcrito.
Ao mesmo tempo que os relacionamentos ajudam a “tirar a cadeia”, podem ter
uma multiplicidade de repercussões. Uma delas é que muitos são aliciados dentro
das unidades carcerárias para integrar grupos de delinquentes que atuam fora e
continuam gerenciando negócios ilegais e violentos.
129
As presas na Capital também comentaram que têm, entre si, um
relacionamento solidário e amistoso. As expressões “a gente se dá bem”, “uma
ajuda a outra” e “o relacionamento é bom, ótimo” foram comuns em seus
depoimentos. As de uma unidade prisional no Interior usaram os termos “união”,
“família” e “cuidar umas das outras” quando se referiram à forma como convivem
entre si. Várias entrevistadas comentaram que emprestam umas às outras roupas,
produtos de higiene e remédios e, sobretudo, compartilham afeto. Elas acreditam
que a forma amigável e compassiva de se relacionarem ajuda a enfrentar as
dificuldades da prisão, principalmente a solidão, a ociosidade e o sentimento de
baixa autoestima.
Uma não tendo sabão a outra dá, uma não tendo lençol a outra empresta, uma
não tem um short, a outra empresta, é legal. Uma consola a outra quando está
chorando. Quando está sozinha abraça. (Mulher, Capital)
130
Tabela 21 – Número e proporção dos presos do estado do Rio de Janeiro, segundo sexo, área e formas de
discriminação por outros detentos
Total Capital Baixada Interior Total Capital Interior
N % N % N % N % N % N % N %
Condição de preso
Muitas vezes 962 4,8 609 4,7 142 5,0 211 4,8 105 8,9 88 8,8 16 9,6
Poucas vezes 1.721 8,5 1.195 9,3 244 8,5 282 6,4 154 13,1 136 13,5 18 10,6
Nunca 17.492 86,7 11.087 86,0 2.472 86,5 3.933 88,9 920 78,0 785 77,7 135 79,8
Total 20.175 100 12.891 100 2.858 100 4.426 100,1 1.179 100 1.009 100 169 100
Cor da pele
Muitas vezes 191 1,0 79 0,6 35 1,3 77 1,8 34 3,1 31 3,2 4 2,4
Poucas vezes 627 3,2 433 3,5 129 4,8 65 1,5 43 3,8 41 4,2 2 1,2
Nunca 18.545 95,8 11.882 95,9 2.540 94,0 4.123 96,7 1.042 93,1 895 92,6 147 96,5
Total 19.362 100 12.394 100 2.704 100,1 4.265 100 1.119 100 967 100 153 100,1
Condição social
Muitas vezes 623 3,2 364 3,0 71 2,6 188 4,4 103 9,0 88 9,0 14 8,7
Poucas vezes 1.768 9,2 1.230 10,0 203 7,4 335 7,9 182 16,0 159 16,3 23 14,1
Nunca 16.864 87,6 10.674 87,0 2.462 90,0 3.728 87,7 855 75,0 728 74,7 128 77,2
Total 19.254 100 12.268 100 2.736 100 4.251 100 1.140 100 975 100 165 100
Orientação sexual
Muitas vezes 366 1,9 203 1,6 35 1,3 129 3,0 46 4,1 40 4,3 5 3,3
Poucas vezes 418 2,2 274 2,2 74 2,8 70 1,6 78 7,1 62 6,6 16 10,0
Nunca 18.532 95,9 11.957 96,2 2.511 95,9 4.064 95,3 980 88,8 840 89,1 140 86,7
Total 19.316 100 12.434 100 2.620 100 4.263 99,9 1.104 100 942 100 161 100
Tipo de crime
Muitas vezes 682 3,5 516 4,1 80 2,9 85 2,0 84 7,9 77 7,9 7 4,5
Poucas vezes 1.856 9,5 1.319 10,5 265 9,7 271 6,3 119 10,0 97 10,0 22 13,5
Nunca 17.026 87,0 10.700 85,4 2.391 87,4 3.936 91,7 930 82,1 799 82,1 131 82,0
Total 19.563 100 12.535 100 2.736 100 4.292 100 1.133 100 973 100 160 100
Aparência física
Muitas vezes 457 2,3 301 2,4 80 2,9 76 1,8 74 59 59 6,1 14 8,8
Poucas vezes 1.466 7,5 972 7,8 196 7,2 298 7,0 114 98 98 10,2 16 9,9
Nunca 17.571 90,1 11.223 89,8 2.454 89,9 3.894 91,2 943 810 810 83,7 133 81,3
131
Total 19.494 100 12.496 100 2.730 100 4.268 100 1.131 967 967 100 163 100
Por causa de vários tipos de pressão que sofrem ou por temperamento,
muitos entre as mulheres e homens não gostam de se relacionar e de conversar
sobre sua vida. Algumas presas preferem manter distância das outras, pois têm
afinidade com poucas pessoas: “eu procuro o máximo não sair para lugar nenhum.
Eu não participo nem de evento quando tem algum, eu fico dentro da cela, fico
na minha” (Mulher, Interior). Além de relevar um tipo de personalidade da
entrevistada, sua fala demonstra uma estratégia utilizada por muitos detentos e
detentas para evitar os conflitos que também fazem parte dessa vida em comum.
Estudo realizado em prisão feminina indica que o tempo de aprisionamento é um
fator relevante a ser observado, pois as detentas antigas tendem a relatar mais
conflitos relacionais e a cometer mais ofensas não violentas contra outras presas
ou contra os agentes que as admitidas recentemente na instituição (Thompson &
Loper, 2005).
Observa-se que nos depoimentos e questionários os presos privilegiaram
falar sobre a solidariedade que os une (com raras exceções), mas as informações
citadas anteriormente e a literatura sobre as relações entre detentos têm
enfatizado outros aspectos, como a socialização, com o passar do tempo,
dos menos perigosos por aqueles que cometeram crimes graves, tornando-os
criminosos mais cruéis e especializados (Foucault, 2009). Isso confere com
o que muitos presos revelaram nas informações que escreveram ao fim dos
questionários: “na cadeia a gente sai pior do que entrou”; “aqui a gente convive
com muito tumulto que deixa a gente perturbado”; “aqui não socializa ninguém,
você entra uma pessoa melhor e sai pior”.
Sobre os efeitos de socialização provocados pela vida comunitária dos
presos, Vianna e Reis (2010) concordam com os achados desta pesquisa. Eles
mencionam uma espécie de pacto simbolizado na frase “todos estão num mesmo
barco”. Nesse código interno há leis importantes como “não ser dedo-duro”, “não
ficar em dívida” e “repartir o que recebem dos familiares com todos os colegas
de cela”. Nesse mundo particular, existe uma hierarquia na qual os mais antigos
e os mais perigosos têm mais influência e, dentro de seu “código de ética”, por
exemplo, os estupradores são considerados sem moral e sem respeito – têm de
estar a serviço de todos, e a eles são destinados as tarefas e os serviços mais
humilhantes como limpar a privada, beber a água suja que sai dos sanitários e
lamber o chão. Frequentemente, os estupradores são abusados sexualmente como
forma de vingança pelo crime que cometeram. Vianna e Reis (2010) concluem
sobre essa relação entre os presos:
132
O preso, inserido no universo prisional acaba sendo produto e modificador,
no sentido em que, ao interagirem uns com os outros, eles modificam seus
comportamentos. O criminoso, na maioria das vezes torna-se mais cruel, perigoso,
frio e calculista na prática de suas ações, e muito desse aspecto pode ser relacionado
com a forma e os valores que eles absorvem no sistema. É como se eles estivessem
numa grande selva, onde somente o mais forte sobreviverá. Que vença quem
puder, não importa se a vítima for um inocente. (Vianna & Reis, 2010: 571)
133
presos sobre o preconceito que sofrem ou sobre o tratamento inferiorizado que
dizem receber dos funcionários nas unidades e também de outros presos, como
exposto anteriormente.
134
condição de detento, pelo tipo de crime e pela aparência física (p<0,01). Entre
os homens da Baixada foram menos frequentes as percepções de estigmatização
pela cor da pele e pela condição social (p<0,01). Entre as mulheres, as do
Interior percebem menos as discriminações que as da Capital em todos os itens
pesquisados. Houve diferença significativa relatada pelas presas do Interior,
apenas em relação ao tipo de crime que cometeram (p<0,05).
Muitas vezes 5.381 26,3 3.552 27,0 792 27,9 1.038 23,4 339 27,6 299 28,4 40 22,9
Poucas vezes 4.987 24,4 3.263 24,8 726 25,6 998 22,5 311 25,4 265 25,1 47 27,1
Nunca 10.070 44,1 6.355 48,3 1.320 46,5 2394 54,0 577 47,0 491 46,6 86 50,0
Total 13.170 100,1 2.838 100 4.430 99,9 1.227 100 1.055 100,1 173 100 13.170 100,1
Cor da pele
Muitas vezes 1.240 6,6 795 6,6 214 8,2 231 5,7 52 4,8 49 5,2 4 2,2
Poucas vezes 1.165 6,2 690 5,7 251 9,6 224 5,6 39 3,6 34 3,6 5 3,4
Nunca 16.343 87,2 10.625 87,7 2.150 82,2 3.567 88,7 1.001 91,7 850 91,2 151 94,4
Total 18.748 100 12.110 100 2.615 100 4.022 100 1.092 100,1 933 100 160 100
Condição social
Muitas vezes 1.591 8,5 866 7,2 309 11,5 417 10,4 132 12,0 112 12,0 20 12,0
Poucas vezes 2.831 15,1 1.880 15,6 389 14,5 562 14,1 116 10,5 93 9,9 23 14,1
Nunca 14.290 76,4 9.299 77,2 1.978 73,9 3.013 75,5 853 77,5 730 78,1 122 73,9
Total 18.712 100 12.045 100 2.676 99,9 3.992 100 1.101 100 935 100 165 100
Orientação sexual
Muitas vezes 1.063 5,7 639 5,4 160 6,2 264 6,6 124 11,1 113 11,9 11 6,5
Poucas vezes 578 3,1 394 3,3 96 3,7 87 2,2 65 5,9 51 5,4 14 8,6
Nunca 16.917 91,2 10.903 91,3 2.345 90,1 3.670 91,3 926 83,1 784 82,7 142 84,9
Total 18.558 100 11.936 100 2.601 100 4.022 100 1.115 100 948 100 167 100
Tipo de crime
Muitas vezes 3.064 15,9 2.064 16,6 495 17,9 506 12,4 174 15,5 159 16,6 14 8,9
Poucas vezes 2.930 15,2 1.823 14,7 575 20,7 533 13,0 158 14,1 138 14,4 20 12,2
Nunca 13.307 68,9 8.550 68,7 1.702 61,4 3.055 74,6 790 70,4 662 69,0 128 78,9
Total 19.301 100 12.437 100 2.771 100 4.094 100 1.122 100 959 100 162 100
Aparência física
Muitas vezes 1.764 9,4 1.061 8,7 362 13,3 342 8,8 113 10,1 100 10,5 13 7,6
Poucas vezes 1.653 8,8 1.008 8,3 284 10,4 362 9,3 93 8,3 82 8,6 11 6,5
Nunca 15.403 81,8 10.122 83,0 2.079 76,3 3.202 82,0 916 81,6 774 80,9 142 85,9
Total 18.820 100 12.190 100 2.725 100 3.906 100 1.122 100 956 100 166 100
135
que os preconceitos por parte dos funcionários. Entre as mulheres prevaleceu a
percepção de que são tratadas de forma inferior pelas companheiras de cela por
causa de sua condição social e pelo tipo de crime cometido, o que revela uma
contradição com o discurso anteriormente declarado de solidariedade e de mútua
proteção. Houve diferenças significativas entre os sexos para todas as formas de
discriminação aferidas, o que se observa no Gráfico 15 (p<0,01).
As situações de discriminação racial entre detentos foram estudadas em
prisões da Inglaterra, entre outros por Joseph (2006) e pela Commission for Racial
Equality, (2003). Indicaram-se falhas das autoridades em lidar com ambientes
racistas na gestão dos cárceres; presença de atitudes discriminatórias dos
funcionários; tratamento negativamente diferenciado aos presos das consideradas
minorias; e uso do poder discricionário quanto à disciplina, aos privilégios e às
punições, tendo como base estereótipos raciais. No Brasil, há que se acrescentar
a existência de outras formas relevantes de preconceitos, especialmente as que
dizem respeito às condições sociais e orientação sexual. A discriminação pelo
poder econômico e político é flagrante. Primeiramente, poucos ricos e poderosos
permanecem nas prisões. Em segundo lugar, quando são detidos, tendem a querer
e a exigir privilégios e que sejam tratados com deferência.
Ouvindo presas e presos na parte qualitativa deste estudo, constata-se que é
muito conturbado o relacionamento dos detentos com os agentes penitenciários.
Entre eles há uma relação hierárquica em que aos presos cabe obedecer e calar,
quando qualquer processo de socialização exigiria uma atuação mais dialógica e
compreensiva. Os homens relataram, principalmente, uma grande insatisfação
com o fato de não serem ouvidos pela direção, pelos agentes e defensores sobre
sua situação em relação ao cumprimento da pena. Isso cria neles um sentimento
de abandono: “estou sem notícias do meu processo desde que cheguei aqui”.
Muitos se queixaram de que sua condenação está vencida; que têm direito a
regime semiaberto, mas continuam cumprindo pena em cárceres fechados – “só
na minha unidade, são 30 com esse direito”, referiu-se um deles; que não têm
informação sobre seus processos e nem sobre o que vai acontecer com eles, pois
ainda não foram sentenciados. Vários alegaram que estão presos injustamente
ou não sabem o porquê de estarem detidos. Alguns declararam que pedem
insistentemente revisão de suas penas, mas não são ouvidos. Um que se expressou
por escrito disse que deveria estar no manicômio judiciário, pois é inimputável;
outro mencionou que está com nome trocado e por mais que peça para corrigir
essa situação, é sempre tratado como uma pessoa que ele não é. Outro, ainda,
disse que foi condenado duas vezes pelo mesmo crime.
136
As mulheres repercutiram as falas dos homens, embora a nota que atribuíram
aos relacionamentos tenha sido um pouco mais elevada que a deles: “nós temos
aqui um tratamento humilhante”; “tudo aqui é ruim”; “é horrível, só quero
sair deste inferno”; “o sistema é péssimo”; “não temos direito a nada”; “aqui é
um depósito de gente”; “muitos morrem aqui por falta de socorro”; “se toda a
alegria é passageira, o sofrimento aqui é eterno”. Queixaram-se da desumanidade
dos agentes, sobretudo para socorrer colegas doentes; da impossibilidade de
se expressar; da falta de orientação sobre várias questões que não entendem
a respeito de seus direitos; e do medo que sentem das funcionárias quando
protestam contra alguma coisa. As reclamações sobre sua condição perante a
lei penal também foram menos contundentes que as dos homens. No entanto,
também ressaltaram que “tem muita presa com cadeia paga e sem assistência”;
“a justiça para nós é muito lenta”; e “o juiz não liga, pois ele não conhece a nossa
vida”. As expressões negativas se multiplicavam: “o presídio é uma merda”; “aqui
é um massacre”; é um verdadeiro inferno”; “a cadeia gera ódio”; “estamos pagando
pelos crimes, mas nossos direitos não são respeitados”. Massacre, inferno, ódio
descrevem o clima de insatisfação com a situação. Pelo menos 63 homens e 55
mulheres disseram abertamente que sofrem constrangimentos físicos, mentais e
ofensas pessoais por parte dos agentes, da diretoria e dos enfermeiros. Também
muitos mencionaram a arrogância de alguns diretores que, segundo eles, “tratam
os presos com covardias, provocando revoltas, ódio e adoecimento”, como se
constata nos depoimentos a seguir.
Eu sou muito ameaçado, falta socorro emergencial, fico sem colchão, fico doente,
já sofri pneumonia e infarto, estou pior do que quando cheguei. Fui agredido pelos
guardas, fui agredido por vários presos em minha cela por calúnia! Os funcionários
são agressivos, agridem os presos com gás de pimenta, tem invasão de blitz. Além
de tudo, estou longe de tudo, dos filhos, tudo é muito ruim! (Homem, Capital)
Às vezes tem discussão, estresse. Sendo que nós mantemos o respeito, mas às vezes
tem um ou outro [funcionário] que nos provoca. Provoca para o preso poder errar
com ele para ele poder levar o preso para o castigo. Aqui o estresse é muito alto.
(Homem, Capital)
Aqui é só nós na nossa mesmo e eles na deles. Às vezes, aqui, até para pedir um
remédio é muito ruim. (Homem, Capital)
Eu não falo com funcionário porque é capaz deles tirarem nós da cela para botar
para o buque [castigo]. Então, para não sofrer essa covardia na mão deles nós
preferimos ficar oprimidos lá dentro, que é a realidade que nós estamos vivendo.
(Homem, Capital)
137
Observando-se a situação de discriminação de forma diferenciada nos três
espaços estudados, é nítida a diferença das relações dos presos com os agentes
da Capital, da Baixada Fluminense e do Interior do estado. Nesses dois últimos
espaços, o tratamento parece ser mais respeitoso. Há também diferenças na
percepção de homens e mulheres. Apesar de as presas também terem verbalizado
situações conflituosas, mais mulheres do que homens relataram que são tratadas
“com humanidade” pelas funcionárias. Em retribuição, mantêm o respeito e “se
colocam em seu lugar”, acatando as ordens recebidas. Essa negociação, que pode
chegar a um bom relacionamento, evidencia-se neste depoimento: “Algumas são
humanas, não deixam a farda passar por cima da humanidade delas. Você pode
parar na grade e conversar, pedir explicação, pedir conselho” (Mulher, Capital).
As presas do Interior do estado tendem a ser mais obedientes e internalizam
o fato de que precisam seguir as regras impostas pelos funcionários da unidade:
“É a disciplina. Umas colegas acham ruim, mas vamos fazer o quê? Está presa,
tem que seguir a regra” (Mulher, Interior).
Também merece destaque, mais uma vez, a figura dos “faxinas”: o seu status
de trabalhador do presídio oculta sua condição de preso. Eles consideram que
a relação com os agentes e administradores é a de companheirismo e que não
existem preconceitos, enquanto os demais internos relataram interação tensa
e estressante com os funcionários, num clima de opressão e de dificuldade de
comunicação.
Em síntese, a respeito das relações, existem algumas continuidades como, por
exemplo, a permanência dos problemas e conflitos familiares que atravessaram
a vida de muitos reclusos e se exacerbam no cárcere, deixando um percentual
muito elevado deles no mais total abandono e isolamento. Apresentam-se
também questões novas, como a convivência com o colega desconhecido, em que
estratégias de sociabilidade e de precaução se tornam necessárias. Nesse ambiente
que exige acima de tudo uma “solidariedade mecânica” (Durkheim, 2007),
novas vivências se impõem pela proximidade de corpos, pela ressignificação da
intimidade e por hierarquias internas que exigem comportamentos submissos
dentro e fora das celas e, por vezes, até fora das prisões. Mais desafiador ainda
é o enfrentamento da disciplina e dos encarregados de mantê-la, que tendem a
massificar os diferentes, a tornar subservientes os fortes e a fazer da obediência
a principal virtude da prisão.
138
Alimentação Como Problema
Um dos pontos de maior relevância para os reclusos e que merece atenção
especial em suas considerações sobre a vida prisional é a alimentação ou
dispensação de refeições, objeto de críticas, motivo de revoltas e até de motins
nas prisões. “A comida é perigosa a ponto de matar”, disse um dos presos na
Capital, realçando um dos riscos que correm nos cárceres. No entanto, existem
vários dispositivos, leis, normas e planos que dispõem sobre o tema tentando
garantir refeições nutritivas aos reclusos.
O Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, criado pela portaria
interministerial n. 1.777, de 9 de setembro de 2003, estabeleceu como ações de
promoção da saúde o fornecimento de alimentação adequada e a realização de
atividades físicas pelos detentos. Nele se destaca que:
É preciso reforçar a premissa de que as pessoas presas, qualquer que seja a
natureza de sua transgressão, mantêm todos os direitos fundamentais a pessoas
humanas e, principalmente, o direito de gozar dos mais elevados padrões de saúde
física e mental. As pessoas estão privadas de liberdade e não dos direitos humanos
inerentes à sua cidadania. (Brasil, 2003)
139
Psiquiátrico Heitor Carrilho e Henrique Roxo). Esse setor participa das reuniões
da Câmara Técnica da Secretaria de Estado de Saúde junto com a Secretaria de
Estado de Administração Penitenciária, produz relatórios sobre problemas na
alimentação dos presos, elabora um memorial descritivo do termo de referência
para o processo licitatório de refeições das unidades hospitalares e prisionais e é
responsável pela inspeção das refeições servidas nas unidades prisionais, como
previsto na resolução (Seap n. 255/2008).
O modelo prisional de alimentação passou por mudanças gradativas ao longo
dos anos. As refeições, que antes eram produzidas e servidas por detentos com bom
comportamento dentro das próprias penitenciárias, hoje em dia são elaboradas por
empresas especializadas. Nas unidades prisionais já não há refeitório destinado aos
detentos. Eles recebem os alimentos em caixas térmicas, distribuídas por presos
encarregados dessa tarefa, o que é feito, em geral, pelos “faxinas”.
Em relação às empresas licitadas para fornecer a alimentação, está previsto
que o cardápio seja formulado por uma equipe técnica: nutricionistas que atuem
para garantir o melhor aporte calórico e nutricional; engenheiros de alimentos,
responsáveis por definir quais alimentos mantêm boa aparência após duas horas
do fechamento do marmitex (mais ou menos o tempo previsto para a refeição
chegar até o consumidor final, quando será aberta); e compradores encarregados
de pesquisar no mercado novos produtos e alternativas que se encaixem no
padrão nutricional preestabelecido.
Após a finalização do processo de preparação, a refeição é embalada numa
marmitex individual que deve pesar no mínimo 550g e ser acondicionada em
embalagens isotérmicas, identificadas e transportadas por caminhão com
tratamento térmico apropriado para o transporte de refeições. Está previsto que
os detentos devem receber quatro refeições, distribuídas em desjejum, almoço,
café da tarde e jantar, o que custava ao estado do Rio de Janeiro, em 2009,
um valor aproximado diário de R$ 10,00 por pessoa. Além do básico, ainda
se estabelece que a alimentação seja adequada para pessoas com necessidades
especiais, como as que têm alguma patologia e precisam de dieta específica.
Segundo Tardelli (2007), é na hora que as tradicionais quentinhas são
entregues ao caminhão transportador que começam os problemas, pois todo o
processo que até o momento havia sido supervisionado, passa às mãos de pessoas
que não receberam nenhum tipo de treinamento ou orientação,
o que ocasiona falta de refeição suficiente, subtração do prato principal dos
marmitex antes da distribuição e transporte inadequado. Muitas vezes os
140
recipientes viram segundo o movimento dos caminhões, se abrem e a comida se
esparrama, sujando as caixas e contaminando seu conteúdo. (Tardelli, 2007: 3)
141
Não se pode esquecer que a maioria da população encarcerada é jovem.
Várias pessoas que têm problemas de saúde se queixaram também de que suas
dietas não são obedecidas. Tudo isso leva o recluso a sentir-se dolorosamente
empobrecido e castigado no direito elementar de alimentação, como se observa
nos depoimentos a seguir:
É a mesma coisa, antes mesmo de chegar nós já sabemos o que é o almoço. Todo
dia da semana a mesma coisa, não tem uma nutricionista que faça um alimento
assim adequado. (Homem, Capital)
É uma alimentação muito viciada. Todo dia você comendo angu, todo dia você
comendo angu com salsicha. Independentemente do fato de estarmos aqui presos,
nós merecemos uma alimentação melhor. Porque a alimentação aqui tem dia que
vem azeda, não vem uma alimentação adequada. (Homem, Baixada)
142
alimentos fora do prazo de validade, confirmando os relatos dos presos ouvidos
nesta pesquisa. Denúncias de superfaturamento e falta de higiene no preparo dos
alimentos acontecem em quase todos os estados.
“O modelo adotado favorece a fraude”, afirmou também o promotor
Eduardo Nepomuceno, da Promotoria de Defesa do Patrimônio Público de Minas
Gerais, na operação Laranja com Pequi (MP denuncia, 2012). Essa investigação
mostrou que as empresas superestimam a quantidade de presos, não obedecem
aos cardápios estipulados, além de não serem fiscalizadas.
Outra investigação, dessa vez realizada pelo Conselho Administrativo
de Defesa Econômica (Cade), órgão federal antitruste, apurou a denúncia
de formação de cartel por mais uma gigante do fornecimento de marmitas a
presídios, a Companhia Indústria e Comércio de Alimentos, responsável pelas
refeições dos detentos em Goiás, Distrito Federal, Rio de Janeiro e Pará. Um
porta-voz da empresa alegou que a investigação do Cade se baseia em denúncia
anônima, “com toda a certeza patrocinada por uma empresa que não conseguiu
sucesso na concorrência”. A fornecedora também negou entregar comida de
baixa qualidade e disse que a insatisfação dos presos decorre do fato de “estarem
segregados da vida social” (Menezes, 2014).
As denúncias acontecem do Acre ao Rio Grande do Sul. No primeiro, uma
inspeção realizada em 2013 pelo Departamento Penitenciário Nacional orientou
o Estado a rever o contrato, em virtude do superfaturamento nos valores e da
utilização de produtos com validade vencida. Em março de 2014, uma equipe
da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil do
Espírito Santo fazia uma vistoria no Centro de Detenção Provisória do Complexo
Penitenciário de Viana quando a direção mandou devolver as quentinhas que
seriam servidas na ala feminina, por estarem “estragadas e fedendo”, confirmando
a queixa das presas de lá e as que foram ouvidas nesta pesquisa. Segundo a
investigação de Menezes (2014), as detentas relataram que já foram encontrados
pedaços de plástico, vidro, madeira, sacola e insetos misturados à comida. Por
não conseguirem identificar o tipo de carne que lhes é servido, as reclusas criaram
um apelido: “carne de monstro”. Muitas disseram passar mal com frequência,
têm vômitos, dores estomacais e diarreias.
No relatório Visão do Ministério Público sobre o Sistema Prisional Brasileiro,
o Conselho Nacional do Ministério Público apresentou dados oriundos de
inspeções prisionais realizadas em março de 2013 em todo o país. Mostra-se,
143
no referido documento, que o percentual de estabelecimentos cujo cardápio foi
elaborado por nutricionista variou de 39,1% no Nordeste a 70,7% no Sul. No
Sudeste, região na qual 569 instituições foram visitadas, esse percentual foi de
68,2% e, especificamente no estado do Rio de Janeiro, isso ocorre em 73,3% das
instituições visitadas (75 unidades). A qualidade dos alimentos, em média, foi
considerada regular ou ruim em 29% das unidades (CNMP, 2013).
A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), em relatório
temático publicado em 2013 sobre a progressão de regime de cumprimento
de pena no sistema prisional, apresentou dados sobre seis unidades visitadas,
como forma de exemplificar a realidade vivenciada pelos detentos. A inspeção
revelou que durante as visitas houve muitas reclamações em relação à qualidade
da comida (alimentos não cozidos adequadamente, comida fria ou estragada).
Em uma das penitenciárias, os detentos relataram que precisavam se revezar
no uso dos talheres ou mesmo fazer uso da tampa da quentinha como forma de
manusear os alimentos (Alerj, 2013).
Em São Paulo, entidades de defesa dos direitos humanos que visitaram as
cadeias da capital tiveram a oportunidade de ver a mesma “carne de monstro”
na forma de hambúrgueres tão brancos que seria impossível dizer se eram feitos
com carne de boi, de porco, de frango ou de qualquer outro animal. Em 2009, a
CPI do Sistema Carcerário realizada pela Câmara dos Deputados encontrou, pelo
Brasil afora, refeições em sacos plásticos contendo insetos e objetos estranhos na
comida e quentinhas rejeitadas, amontoadas fora das celas. “A pouca quantidade
e a má qualidade da comida servida não condizem com os preços pagos pelo
contribuinte”, segundo o relatório da CPI que confirmou os problemas citados
(Brasil, 2009: 200).
A péssima qualidade da alimentação ofertada acabou por aguçar a
criatividade dos presos. Uma das formas que encontraram foi criar um mercado
paralelo de revenda de comida e outros itens dentro dos presídios, sistema
denominado “Cobal”, atividade iniciada nas penitenciárias do Rio Grande
do Sul e socializada pelo país afora. Outra maneira de buscar alternativas foi
observada em quase todas as celas nos presídios do estado do Rio de Janeiro,
onde uma peça se tornou fundamental, o “fogareiro”: um tijolo com um sulco
esculpido pelo qual serpenteia uma resistência elétrica ligada à fiação que corre
pela parede. Muitos, ao receberem as refeições, lavam os alimentos, adicionam
outros temperos e cozinham tudo de novo, procedimento que leva o nome de
“recorte”. Outra solução, embora menos frequente, tem sido a de recorrer às
144
cantinas existentes em diversas unidades prisionais. Contudo, os preços nelas
operados, de modo geral, são superiores aos encontrados no comércio externo,
sendo acessíveis apenas a uma minoria de detentos. Tanto a “Cobal” quanto as
cantinas, ao fornecerem artigos que a instituição não provê a todos os presos,
agem no sentido de favorecer e reproduzir desigualdades, endividamentos e
corrupção interna no meio carcerário, marcando diferenças entre os que podem
se valer desses recursos e os que não podem.
A CPI encontrou ainda no Presídio Vicente Piragibe, no Complexo
Penitenciário de Gericinó (antigo Complexo de Bangu), um comércio diferente,
no qual os detentos com mais dinheiro compram os produtos na “bodega”
(mercearia), dividem-nos em pequenas porções e os vendem aos presos de menor
poder aquisitivo. Verificou-se ainda que essas mercearias ou cantinas vendem
quentinhas, de melhor qualidade e variedade que as oferecidas pelo Estado, com
valores entre cinco a sete reais (Brasil, 2009).
Em seu artigo, Menezes (2014: 16) adverte: “os interesses que mantêm o
fornecimento de comida aos presos são uma fonte de corrupção e sangria dos
cofres públicos”. Portanto, a distribuição de marmitas e seus reis são indícios de
que a simples privatização não é solução para esse problema. O sistema atual
de fornecimento de refeições demonstra que, tal como concebido, o modelo
é insustentável. Infelizmente não há uma discussão política sobre o tema e os
interesses externos e escusos prevalecem, delegando aos funcionários que cuidam
dos presos o papel de conter suas queixas, revoltas e rebeliões.
Quanto a esse tema, a CPI da Câmara dos Deputados concluiu que “a má
qualidade da alimentação, os preços exorbitantes e os esquemas existentes se
constituem em um dos graves problemas do sistema carcerário” (Brasil, 2009:
27) e afirmou ainda que parte dos alimentos poderia ser produzida pelos próprios
presos, o que acarretaria uma diminuição dos custos, melhoria da qualidade da
comida, além de lhes garantir ocupação e remuneração (Brasil, 2009).
O problema alimentar nas prisões foi tema de interesse para Buffard já nos
idos de 1973. A autora viu na alimentação um fator de punição, entendendo que
a detenção se inicia pela boca, pois, para os presos, os primeiros agravos e seus
últimos desejos se fundam nesse particular. Castigar por meio da comida foi
uma prática que ganhou relevância depois do século XVIII, quando a questão
alimentar se tornou um dos pilares da instituição penitenciária. Passar a pão e
água, morrer de inanição ou ser privado de uma refeição adequada constituíam
145
uma espécie de acréscimo às punições, dado que na maioria das vezes os desejos
e as projeções dos detentos versam acerca de prazeres orais, um dos poucos que
lhes poderiam ser acessíveis.
Em estudo observacional realizado entre março de 2000 e maio de 2001
por Nogueira e Abrahão (2009), com o intuito de verificar a associação entre o
tempo de prisão e a infecção por tuberculose, concluiu-se que fatores como as
precárias condições de higiene, a baixa qualidade da alimentação e o estresse
gerado pelo confinamento aumentam o risco de adoecimento dos presos.
Segundo Mirabete (1983 apud Paredes, 2005), a alimentação constitui um
poderoso fator que incide positiva ou negativamente no regime disciplinar dos
estabelecimentos penitenciários. Uma boa alimentação não é suficiente para o
bem-estar de um preso, mas pode evitar motins e conflitos cotidianos, além de
ser fundamental para sua saúde. Por isso, segundo tais autores, a alimentação
não deve ser descuidada, mas, ao contrário, escrupulosamente atendida.
Alguns presos têm uma opinião contrária à dos colegas, julgando que dada
a sua situação, a alimentação é boa. Seus discursos são ambíguos e, ao mesmo
tempo que criticam, agradecem pelo que recebem:
Em termos de alimentação, a meu ver, não tenho muita coisa a acrescentar e
nem a reclamar. De manhã um café com pão. Aí, logo depois, o almoço, às dez
horas, com Guaravita®. À tarde lanche com Guaravita®. Janta. Tudo direitinho.
(Homem, “faxina”, Interior)
Apesar de já estar acostumado com essa comida, esse pãozinho ruim, mas fazer o
quê? Pelo menos a gente não morre de fome. A alimentação aqui é ótima. É porque
tem preso que é acostumado às coisas fáceis na rua, aí vem para cadeia quer comer
bem. Não é assim não, ele já não trabalha e quer comer bem? (Homem, Interior)
Deixa a comida ali na frente pra ver se o parente de você não vai comer. A comida
não é boa, mas também eu não tenho o que reclamar. Fruta é bem difícil. Tem
doce às vezes. O Guaravita® que vem, é quente mesmo. (Homem, Interior)
146
alternativas de buscar outra forma de comer, a não ser nas exceções já citadas
que contemplam muitos poucos; e, em segundo lugar, a imagem-objetivo do
encarceramento é a ressocialização e não a vingança da sociedade em relação aos
criminosos. As penas previstas no ordenamento jurídico brasileiro são medidas
de segurança e de privação de liberdade, nunca a aplicação, por meios cruéis, de
castigos que impliquem tortura, como parece ser a comida habitualmente servida
aos presos.
147
das queixas principais e motivo de grande sofrimento para os presos. Quando
uma viatura sai para transportar os detentos, busca presos de várias unidades.
Cada detento tem um destino diferente, cada um é recolhido em penitenciárias
distintas e todos seguem juntos num transporte fechado e superlotado.
A maioria dos detentos da Capital e na Baixada mencionou esse tema
como um motivo de imenso descontentamento: “o transporte é um horror, tem
gente que passa mal, desmaia e passa fome”; “no transporte sofremos insultos e
pancadas e, se reclamarmos, corremos risco de sermos contidos com spray de
pimenta e choque”.
Os problemas são muitos: sofrimento pelo excesso de pessoas (locomovem-
se cerca de 400 detentos/dia), dificuldades operacionais para o transporte
dos reclusos a lugares variados e distantes e, não menos importante, precária
estrutura para realizar tantas tarefas. Presos são conduzidos todos os dias para
se apresentarem aos juízos, hospitais ou são transferidos de uma unidade para
outra. Como os agendamentos dos compromissos não obedecem aos mesmos
horários, há atrasos nos deslocamentos de um local para outro por causa do
trânsito, cancelamentos de agendas e os presos são obrigados a esperar uns
pelos outros. Em suas falas, eles comentaram que costumam ficar o dia inteiro,
e às vezes madrugada adentro, no interior desses veículos a que denominam
“verdadeiros infernos”. Alguns disseram que, por vezes, antes que saiam dos
presídios, alguns agentes mais sensíveis lhes dão um lanchinho para a viagem.
A praxe é que passem todo o tempo com fome, sede e calor, algemados e em
condições degradantes. “Muitos se sentem mal” e “já houve gente que morreu”.
Mesmo nos casos de saúde não há ambulância, os presos são conduzidos nos
camburões que transportam todos os que devem se ausentar de suas unidades.
Os agentes vivenciam grandes riscos de fuga de detentos, muitas vezes
arquitetadas por delinquentes comparsas fora das prisões. Uma operação
malsucedida pode facilitar o trabalho desses criminosos que se aproveitam de
qualquer brecha para planejarem uma operação de resgate. Os agentes também
trabalham com quantidade insuficiente de veículos em condições precárias de
conservação, o que transforma essa operação logística que deveria primar pela
segurança numa manobra arriscada. Portanto, notícias como a publicada pela
revista Veja em 13 de junho de 2013 não são incomuns:
148
Na noite do dia 13 de junho passado, um agente da Seap morreu e outras quatro
pessoas ficaram feridas durante uma tentativa de resgate de detentos que eram
transportados do Fórum de Araruama, na Região dos Lagos, para o Complexo
Penitenciário de Gericinó, na Zona Oeste do Rio – uma distância de cerca de 150
quilômetros. Vinte bandidos armados interditaram um trecho da Rodovia Niterói-
Manilha (BR-101), por volta das 20h, e interceptaram uma van com 11 presos. Na
época, um dos agentes afirmou que o local era ermo e escuro, o que dificultou a
reação. O objetivo do bando era resgatar Lindomar de Oliveira Abrantes, o Dodô,
apontado como chefe do tráfico de drogas de Reta Velha, em Itaboraí, município
vizinho a São Gonçalo, na Região Metropolitana. Casos como esse não são raros.
(Veja, 2013)
149
4
A Vida na Prisão:
saúde física, mental e ambiental
151
prioridades de ação. O Ministério da Saúde brasileiro, desde 2001, também o
adotou como uma de suas diretrizes de atuação, particularmente em relação
aos jovens e à população em idade produtiva. Pois na faixa de 5 a 49 anos a
primeira causa de morte são as violências. Entre os homens jovens (15 a 29
anos), o percentual da mortalidade por agressão chega a 82%. As ocorrências
das várias expressões de violência têm um efeito mais universal, impactando
jovens, familiares, comunidade e sociedade, do ponto de vista físico e emocional.
Também aumenta a demanda aos serviços de atenção à saúde, para onde
convergem as diferentes formas de agravos e sequelas.
A seguir, ressaltam-se algumas informações obtidas nos questionários sobre
o tema que afeta de forma relevante os reclusos e reclusas do estado do Rio
de Janeiro. Ao serem indagados sobre situações de violências de que foram
vítimas no presídio, 46,4% dos homens e 55,4% das mulheres responderam
afirmativamente em relação a pelo menos uma das formas elencadas (p<0,01).
Destacam-se a agressão psicológica e a agressão física, conforme se observa no
Gráfico 16. As mulheres relataram, em maiores proporções que os homens, terem
sido alvo de agressão verbal, sexual, quedas, tentativas de suicídio e de homicídio
e perfuração por arma branca; os homens mencionaram mais que as mulheres
terem sofrido e ainda sofrerem agressões físicas. Há diferença significativa entre
os sexos para todos os itens de vitimização (p<0,01).
Os homens detidos na Baixada são os que mais sofrem agressão verbal e física,
conforme se destaca na Tabela 23. No Interior, os detentos do sexo masculino
assinalaram, mais que os dos outros locais, terem passado por agressão sexual e
tentativa de suicídio, com diferença significativa para todo os itens pesquisados
(p<0,01). Entre as mulheres, sobressaem tanto as do Interior como as da Capital
pela vitimização por agressão verbal, física, quedas, perfuração por arma branca
e tentativas de suicídio, com diferença significativa (p<0,05). As proporções
de tentativas de morte autoinfligida na população carcerária feminina (9,4%)
são muito mais elevadas que na população geral de mulheres brasileiras (2%),
indicando, possivelmente, suas dificuldades de adaptação ao ambiente fechado
das prisões, o maior abandono que sofrem e a falta que sentem dos filhos e da
família.
152
Gráfico 16 – Distribuição proporcional dos presos do estado do Rio de Janeiro,
segundo sexo e vitimização no presídio
153
As informações apresentadas no Gráfico 16 e na Tabela 23 chamam a atenção
para as elevadas proporções de violência física, verbal e para as tentativas de
suicídio. É interessante observar que as tentativas de homicídio, cerca de 5,2%
nas prisões do Rio de Janeiro, são, proporcionalmente, quase duas vezes e meia
menores que as de tentativas de suicídio (13,9%) entre as mulheres do Interior.
E, ao contrário, as taxas de homicídio na população em geral são cerca de cinco
vezes e meia maiores que as mortes autoinfligidas. Sobre esse tema, é importante
lembrar que Freud (1980), já em 1917, ressaltava que todo suicida tem o desejo
anteriormente reprimido de matar outra pessoa. No suicídio, há o deslocamento
de impulsos destrutivos do outro, voltados para a destruição do próprio
self. Também Durkheim (2007), em seus estudos, constatou que os desejos
homicidas e suicidas vêm da mesma fonte: o mal-estar e a inconformidade social.
As tentativas de suicídio entre os presos do estado do Rio de Janeiro constituem
um forte indicador de sofrimento mental.
Em vários estudos realizados no Brasil e em outras partes do mundo almeja-
se esclarecer a relevância dos suicídios nas prisões, no intuito de revelar que sua
incidência é mais elevada que na população em geral. A OMS (2002) salienta
que as mulheres nas prisões apresentam um índice maior de tentativas, mas os
homens são indicados como os que mais concretizam o ato. Mulheres que estão
na cadeia, segundo a OMS, tentam se matar cinco vezes mais do que a população
feminina em geral e duas vezes mais do que os homens presos, o que se confirma
nesta pesquisa.
Um estudo experimental com caso-controle, acompanhado de entrevistas
semiestruturadas, realizado por Pragosa (2012) numa prisão em Portugal, em
que também se observaram taxas elevadas de tentativas de suicídio em relação à
população em geral, analisou as principais características desse grupo de detentos:
ser solteiro, ter baixa escolaridade, apresentar histórico de abuso e de dependência
de substâncias psicoativas. Boa parte dos presos de sua amostra tinha diagnóstico
psiquiátrico de perturbação mental e tomava medicação psicotrópica. Poder-se-
ia questionar por que essas pessoas tomavam tantos remédios para diminuir
o sofrimento psíquico e se as tentativas de suicídio eram uma causa primária
ou um sintoma do mal-estar. O meio mais utilizado pelos presos para tentar
o suicídio foi o enforcamento no período da noite. Os resultados do estudo
de Pragosa (2012) revelaram que os indivíduos que tentaram se matar eram
muito introvertidos e apresentavam sintomas marcadamente depressivos. Entre
os traços de vulnerabilidade, o autor encontrou ainda ansiedade, hostilidade e
impulsividade, problemas de sociabilidade e de desconfiança em relação ao outro.
154
Em uma pesquisa realizada com a população prisional do Rio Grande do
Sul entre 1995 e 2005 (Negrelli, 2006), verificou-se que as taxas de suicídio
consumado nesse grupo foram duas vezes e meia mais elevadas que as da
população em geral, e o perfil era de homens, como referido pelo documento da
OMS (2002), com idade entre 20 e 29 anos, de cor branca, solteiros, com grau de
instrução fundamental incompleto e com baixo nível de profissionalização. Esse
perfil demográfico não difere do que apresenta a população carcerária do Rio de
Janeiro, a não ser na cor da pele, pois no Sul a população é predominantemente
branca. As tentativas de autoextermínio nos presídios do Brasil ocorrem
principalmente em dezembro, janeiro e fevereiro, meses de verão, de calor
muito forte, em que a superlotação nas celas se torna mais insuportável, além de
coincidir com datas emocionalmente importantes para as famílias como Natal,
Ano Novo e Carnaval. O estudo de Negrelli assinalou como fatores de risco o
intenso sofrimento mental e o tempo de cumprimento da pena acima de quatro
anos, com expectativa de saída da prisão em mais de cinco anos.
Folino, Marchiano e Wilde (2003), em estudo sobre as prisões da cidade
de Buenos Aires, também mostraram que a taxa anual de suicídios nesses
locais é 13 vezes a da população em geral. Blaauw e colaboradores (2002), em
investigação sobre a população carcerária dos Estados Unidos, encontraram,
como explicação para as altas taxas de tentativas e autodestruição consumada,
uso excessivo de álcool e outras drogas, perda de recursos sociais, econômicos,
falta de apoio dos familiares, excessiva culpa ou vergonha pelo delito cometido,
acometimento de transtornos mentais, doenças físicas graves ou terminais, e
presença de algum tipo de estressor, como rupturas emocionais, ameaças de
castigo ou morte, entre outros.
Há bastante coincidência entre os estudos que tratam da violência
autoinfligida – não nas proporções dos atos ou intenções, mas em relação aos
aspectos da vida do cárcere que, frequentemente, remetem a histórias pessoais
que antecederam a reclusão. Na seção a seguir, dados sobre percepção de risco
concluem as informações sobre o impacto que a violência cometida e a violência
sofrida têm na saúde física e emocional dos detentos.
155
Percepção dos riscos que correm
e as lesões que sofrem
A percepção de risco na vida de reclusão dos apenados do estado do Rio
de Janeiro constitui uma manifestação do mal-estar que eles vivenciam em
sua cotidianidade, em sua rotina, sobretudo nas relações interpessoais com os
colegas, com os agentes penitenciários e, também, com os grupos delinquentes
externos que permancem em contato com muitos deles, particularmente com
os que participavam e continuam a atuar antes no tráfico de drogas e armas.
A percepção de risco está vinculada a todos os aspectos de seu cotidiano, muitos
deles tratados anteriormente.
A noção de risco é uma das criações da modernidade industrial, mais
precisamente do século XVII, servindo ora como elemento de precaução no nível
pessoal, quando existe alguma ameaça, ora como elemento de cálculo diante das
probabilidades de que algo de ruim e indesejável possa acontecer.
Quanto à definição do conceito, duas tendências concomitantes podem ser
notadas historicamente: de um lado, risco está associado a algum evento ou fato
negativo, e correr risco significa uma escolha individual em face de algo que pode
dar certo ou errado. De outro, risco é visto como algo inerente à vida, aos desafios
do progresso universal e ao desenvolvimento pessoal e do mundo. Lembra
Heidegger (1980) que “o risco é o próprio sentido da existência” e “viver é um
risco”. Só cresce e se desenvolve na vida quem se joga no abismo das incertezas
para conquistar os seus melhores desejos. Para os reclusos entrevistados, esse
conceito é percebido apenas no seu sentido negativo, como perigo, incerteza e
medo (Giddens, 2000; Douglas & Wildavsky, 1983).
156
Tais diferenças estatísticas entre os sexos são significativas para todos os itens
pesquisados (p<0,01), menos para a probabilidade de sofrer agressões físicas e
violências sexuais.
157
Tabela 24 – Número e proporção dos presos do estado do Rio de Janeiro, segundo
sexo, área e riscos que correm no presídio
Homens Mulheres
N % N % N % N % N % N % N %
Sim 11.404 54,5 7.397 55,4 1.708 55,7 2.299 51,0 810 62,7 693 62,4 117 64,4
Sofrer agressão física 8.414 42,5 5.396 42,6 1.318 45,9 1.700 40,1 535 44,1 447 43,1 86 50,5
Sofrer violência
psicológica (ameaças, 5.857 31,1 3.703 30,5 849 31,6 1.305 32,9 603 51,8 526 52,4 77 47,8
humilhações)
Ser ferido por arma
3.652 19,2 2.662 21,4 267 9,9 723 19,0 342 31,0 302 31,7 40 26,2
branca
Ser ferido por arma
2.397 12,8 1.544 12,6 420 15,6 433 11,6 71 5,1 67 7,4 4 2,4
de fogo
Queimadura por fogo
2.073 11,1 1.344 11,0 247 9,3 482 13,0 159 14,9 148 16,0 11 7,7
ou química
Explosão (bomba,
granada, outros 2.531 13,6 1.468 12,1 428 16,2 635 16,9 64 6,0 58 6,4 5 3,8
explosivos)
Outros 2.482 18,4 1.635 19,3 399 18,3 448 15,9 138 18,8 124 19,3 14 15,1
158
Os homens também fizeram uma grande lista dos perigos que correm e dos
temores que sentem. Duas menções são emblemáticas: “medo de ser vencido pelo
descaso e pela crueldade”; “medo desse sistema falido”. Esses riscos que envolvem
todos os aspectos da vida prisional referem-se a medos de funcionários, de castigo
ou buque; de serem contaminados pela comida; de morrerem no transporte que
leva ao fórum ou aos hospitais, de serem espancados cada vez que saem da cela.
Têm receio também de serem envenenados, ameaçados e agredidos pelos agentes
por tiros, bombas, spray de pimenta ou choque; de serem alvejados em tentativas
de fuga ou feridos por bala de borracha ou pedaço de pau; de serem vítimas da
polícia ou dos próprios colegas em rebeliões; de sofrerem linchamento; passarem
mal à noite ou morrerem por falta de atendimento médico; pegarem alguma
doença pela convivência coletiva em ambiente insalubre da cela; perderem a
família. Alguns mencionaram ainda o medo de sofrerem distúrbios e convulsões
por serem dependentes químicos.
Sim 2.039 10,4 1.349 10,6 308 11,5 382 9,2 180 15,1 146 14,4 34 19,4
Não 5.730 29,2 3.609 28,3 835 31,2 1.285 30,9 403 33,7 349 34,2 54 30,6
Não tem lesões
11.821 60,3 7.788 61,1 1.536 57,3 2.497 60,0 583 51,2 524 51,4 88 50,0
permanentes
Total 10.590 85,7 12.746 100 2.679 100 4.164 100,1 1.166 100 1.019 100 176 100
159
O percentual de pessoas com lesões permanentes aumenta progressivamente
com o passar dos anos de prisão, tanto no caso dos homens como das mulheres
(p<0,001). No grupo masculino, no primeiro ano de prisão, 10,1% dos detentos
citaram que tinham algum tipo de agravo. Já os que estão há mais de vinte anos
em reclusão são vítimas de 25,8% de lesões. Entre as mulheres, essa progressão
ao longo do tempo passa de 9,4% no primeiro ano de detenção para 29,2% para
as que estão há mais de dez anos no cárcere. Não se encontrou uma bibliografia
específica sobre o tema nos estudos brasileiros. Os dados aqui apresentados
oferecem um verdadeiro testemunho dos efeitos da violência nas prisões e
justificam o que foi mencionado anteriormente, como o medo do perigo e do
risco que os reclusos sentem do que lhes possa acontecer durante o tempo de
cumprimento da pena.
Todos os aspectos mencionados são o avesso do que prescrevem o guia
“Saúde nas prisões” da OMS (WHO, 2007), a Lei de Execução Penal e a Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no
Sistema Prisional. A percepção dos riscos que os detentos e detentas declararam
está relacionada a experiências vivenciadas ou testemunhadas de ameaças e à
consumação das agressões que sofrem, num ambiente em que têm poucos
instrumentos para reagir e se defender. O difícil relacionamento com os que
estão encarregados de guardá-los e a falta total de governabilidade e de domínio
sobre as atividades mais elementares de sua vida – como a comida de péssima
qualidade, o espaço mínimo para dormir, a falta de água constante, a superlotação,
o calor exacerbado, entre tantos outros aspectos – são motivos suficientes para
tornar violento o ambiente e emocionalmente insuportável o tempo de reclusão,
como escreveu um dos presos entrevistados, “eu corro o risco de ficar louco”.
No mesmo sentido, ressoa a frase dita por um detento a Pereira (2009: 25):
“Para quem está no inferno, um minuto é uma eternidade”. No sistema prisional,
comenta essa autora, pune-se por meio da quantidade de tempo. O que mais pesa
nessa lentidão marcada pelo ócio, pela rotina e pelos maus-tratos é a mortificação
da vida nos seus mais elementares direitos de sociabilidade, repercutindo o
pensamento de Goffman (1990) e Foucault (2009).
Saúde física
A Lei de Execução Penal brasileira, no título II, capítulo II, artigo 14,
dispõe que a atenção à saúde do preso e do internado, de caráter preventivo e
curativo, deve compreender atendimento médico, farmacêutico e odontológico
160
(Brasil, 1984). E mais: quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado, a
assistência deverá ser prestada em outro local, mediante autorização da direção
da instituição. Esse ponto já foi detalhadamente tratado no capítulo 1 do livro.
Embora existam leis e tratados nacionais e internacionais com o objetivo de
contribuir para uma melhor assistência à população encarcerada, e a legislação
brasileira busque prevenir o crime e garantir o retorno à convivência social, o
sistema de gerenciamento das precárias condições de confinamento impossibilita
o acesso das pessoas presas à saúde de forma integral e efetiva. Portanto, uma
das maiores queixas dos detentos é quanto à negligência com sua saúde física e
psíquica, tema que vem seguido pelas reclamações de descaso com sua própria
existência, por parte dos operadores do sistema e dos operadores da lei.
Em âmbito mundial, como já foi mostrado no capítulo 1 deste estudo, a
OMS, com o Projeto de Saúde no Sistema Prisional de 1995, preconiza a
promoção da saúde pública e dos cuidados nas prisões e oferece consultoria
especializada para os seus Estados-membros para uma série de questões técnicas
relativas às doenças transmissíveis, especialmente tuberculose, Aids e hepatite.
Nas orientações a respeito dos adictos de drogas ilícitas, o documento inclui
propostas e orientações para ações de redução de danos e de apoio à saúde mental
(Carvalho et al., 2006). O guia “Saúde nas prisões”, também citado, baseia-se em
várias normas internacionais e define a qualidade dos cuidados de saúde a serem
providos às pessoas encarceradas.
Inicia-se esta seção pela descrição das atividades físicas, pois elas, num
ambiente confinado como a prisão, ajudam a manter o equilíbrio físico e
emocional. Observou-se que esse tópico constitui uma preocupação de 65,6%
dos homens presos, mas 34,4% deles não praticam. O percentual de mulheres
inativas é muito maior (74,6%), revelando a tendência já declarada por elas de
permanecerem nas celas e de se isolarem (Gráfico 18).
Desdobrando-se a questão sobre adesão a atividades físicas por tempo de
aprisionamento, observa-se um quadro distinto entre os sexos: 75% das mulheres
com menos de um ano de prisão não praticam exercícios e esse percentual piora
ainda mais, chegando a 87%, no grupo das que cumprem mais de dez anos
de detenção (p<0,001). Entre os homens, os que estão na prisão há um ano
ou menos realizam pouca ou nenhuma atividade (23,1%). Já os que têm dez
anos ou mais de reclusão apresentam uma frequência de atividades maior (46%),
que se estende por duas ou mais vezes por semana (p<0,001), em movimento
contrário ao das mulheres. Na Tabela 26, constata-se que os presos da Baixada e
161
as detentas da Capital são os mais inativos dentre os presos (p<0,01). E os mais
ativos são os homens da Capital e as mulheres do Interior.
4 ou + vezes por
13,9 15,3 9,0 12,7 6,0 5,6 8,7
semana
2-3 vezes por semana 14,5 14,8 11,0 15,8 6,5 6,1 8,7
1 vez por semana 25,2 26,4 29,4 19,0 9,6 9,8 8,7
2-3 vezes por mês 4,8 5,0 3,4 5,2 0,5 0,3 1,9
Poucas vezes no ano 7,2 7,0 5,4 9,0 3,3 3,6 1,0
Não pratico 34,4 31,4 41,9 38,3 74,0 74,6 70,9
Total 100,0 100 100 100 100,0 100 100
162
Em seguida, apresentam-se as informações sobre o inquérito de saúde.
O primeiro ponto a se notar é a maior frequência de queixas de problemas de
saúde por parte das mulheres, quando comparadas aos homens. Em todos os
itens – menos em relação ao aparelho reprodutor – elas apresentam taxas mais
altas no período de 12 meses antes da pesquisa. Na Tabela 27 encontram-se os
percentuais das doenças mais frequentes entre os detentos, de ambos os sexos,
nas diferentes áreas investigadas.
Podem-se observar várias diferenças significativas na Tabela 27. Há
predomínio das queixas das mulheres nos itens relativos a doenças pulmonares,
em comparação aos homens, exceto no caso “de outro problema pulmonar”
e “bronquite”. As doenças cardíacas e circulatórias são mencionadas mais
por homens, com diferença significativa (p<0,05) para todos os itens. Não há
diferença expressiva para as mulheres da Capital e do Interior. No caso das
doenças digestivas, há diferença significativa (p<0,05) para todos os itens
entre os homens das três localidades estudadas, mas não entre as mulheres. Os
agravos de músculos, ossos e pele atingem tanto homens quanto as mulheres,
e a variação entre os grupos por locais é significativa (p<0,01). Também sobre
as doenças glandulares e sanguíneas e as enfermidades do sistema nervoso,
percebe-se diferença significativa (p<0,01) somente para os homens. No caso
das doenças urinárias, há diferença significativa (p<0,01) para todos os itens,
exceto “outro problema urinário” para os homens, mas não para as mulheres.
Entre essas também não há variações expressivas quanto a doenças reprodutivas
femininas. Em relação a doenças transmissíveis, nota-se diferença significativa
entre os homens (p<0,05) e entre as mulheres (p=0,032). Nas doenças de visão,
audição e fala há diferença significativa (p<0,01) para todos os itens, exceto para
“outro problema nos olhos” entre os homens das três localidades, e em todos os
itens entre as mulheres.
163
Tabela 27 – Número e proporção de presos do estado do Rio de Janeiro, segundo
sexo, área e doenças apresentadas ou tratadas no período de 12 meses
antes da pesquisa
Homens Mulheres
N % N % N % N % N % N % N %
Respiratórias
Rinite alérgica 3.406 18,3 1.857 15,5 401 15,2 1.147 28,7 333 30,2 263 27,5 70 47,0
Sinusite 5.559 29,1 3.286 26,3 931 34,8 1.342 34,4 443 39,2 362 36,8 81 55,6
Bronquite crônica 1.950 10,8 1.375 11,5 253 10,1 322 8,9 109 10,7 91 10,1 18 15,6
Tuberculose pulmonar 1.573 8,7 1.034 8,7 205 8,3 334 8,9 26 2,5 20 2,3 5 4,7
Cardíacas e circulatórias
Hipertensão arterial
2.830 14,0 1.793 13,6 435 15,6 602 14,1 363 30,0 304 29,2 59 34,7
(pressão alta)
Digestivas
Gastrite crônica 1.918 10,3 1.247 10,1 351 13,4 320 8,8 151 14,9 131 14,8 20 15,9
Indigestão frequente 2.196 11,9 1.146 9,4 467 18,4 584 15,7 276 27,2 22,9 25,8 47, 37,1
Constipação frequente
2.733 14,8 1.628 13,3 422 16,9 684 18,3 473 44,4 403 43,7 70 48,8
(prisão de ventre)
Ciática 1.819 9,4 1.080 8,5 297 11,2 442 11,3 155 14,8 128 13,9 27 22,1
Bursite 1.725 9,1 1.121 8,9 284 10,9 320 8,3 186 18,1 157 17,4 29 22,9
Torção ou luxação de
2.066 10,8 1.182 9,4 409 15,5 475 12,2 186 17,7 150 16,2 36 28,2
articulação
Fratura óssea 1.628 8,6 953 7,6 230 9,0 446 11,5 121 11,5 101 10,9 20 15,3
164
Tabela 27 – Número e proporção de presos do estado do Rio de Janeiro, segundo
sexo, área e doenças apresentadas ou tratadas no período de 12 meses
antes da pesquisa (continuação)
Homens Mulheres
N % N % N % N % N % N % N %
Glandulares e sanguíneas
Anemia de qualquer tipo 1.807 9,1 994 7,7 333 12,2 480 11,7 361 31,7 303 30,9 58 36,8
Sistema nervoso
Urinárias
Infecções renais 920 4,7 519 4,1 127 4,7 274 6,6 161 14,6 142 14,7 20 14,3
Reprodutivas femininas
Transmissíveis
Dengue 1.340 6,8 724 5,7 265 9,7 351 8,5 129 11,4 104 10,6 25 16,7
Qualquer tipo de tuberculose 1.305 6,7 905 7,1 175 6,5 225 5,6 35 3,2 28 2,9 7 4,9
Deficiência auditiva em um ou
2.562 13,0 1486 11,7 492 17,6 584 14,0 163 14,5 130 13,2 32 23,7
ambos os ouvidos
Cegueira em um ou ambos
1.429 7,4 871 7,0 316 11,5 241 6,1 115 10,5 92 9,6 23 17,6
os olhos
Defeito da visão
(miopia, astigmatismo, vista 4.932 25,0 3146 24,6 777 27,8 1009 24,3 475 40,9 381 38,1 94 58,4
cansada etc.)
165
Notas:
a) Doenças respiratórias: diferença significativa (p<0,05) para todos os itens, exceto outro
problema pulmonar entre os homens e bronquite entre as mulheres.
b) Doenças cardíacas e circulatórias: diferença significativa (p<0,05) para todos os itens entre os
homens. Não há diferença significativa entre as mulheres.
c) Doenças digestivas: diferença significativa (p<0,05) para todos os itens entre os homens. Não
há diferença significativa entre as mulheres.
d) Doenças de músculos, ossos e pele: diferença significativa (p<0,01) para todos os itens entre
os homens.
e) Doenças glandulares e sanguíneas: diferença significativa (p<0,01) somente entre os homens.
f) Doenças do sistema nervoso: diferença significativa (p<0,01) para todos os itens somente
entre os homens.
g) Doenças urinárias: diferença significativa (p<0,01) para todos os itens, exceto outro problema
urinário entre os homens. Não há diferença significativa entre as mulheres.
h) Doenças reprodutivas femininas: não há diferença significativa.
i) Doenças transmissíveis: diferença significativa entre os homens (p<0,05) e entre as mulheres
(p=0,032).
j) Doenças de visão, audição e fala: diferença significativa (p<0,01) para todos os itens, exceto
outro problema nos olhos entre os homens e em todos os itens para as mulheres.
166
mais elevada na população prisional, pois ela é composta, sobretudo, de jovens e
de jovens adultos entre 20 e 29 anos. No mesmo grupo de idade da população em
geral, a prevalência é de 24,5% entre as mulheres e de 17,5% entre os homens.
Esses percentuais sobem para 50% no grupo de 60 anos ou mais (Schmidt et al.,
2011). Entre os fatores de risco mais conhecidos estão o tabagismo, a inatividade
física, a hipertensão arterial, o sobrepeso, a obesidade e o estresse.
Um percentual de 35,6% dos homens e 57,6% das mulheres (p<0,01)
relatou sofrer de pelo menos um problema do aparelho digestivo. As principais
queixas são de gastrite (15,9%), dificuldades digestivas (37,1%) e prisão de
ventre (48,8%). Tais problemas, sem dúvida, estão fortemente vinculados à
péssima dieta com que são alimentados os presos e com a falta do equilíbrio
necessário entre os grupos alimentares, como foi exaustivamente discutido
anteriormente. Tais agravos estão muitíssimo acima da prevalência encontrada
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no censo de 2010
(15%). Também são mais elevados do que os dados provenientes da Federação
Brasileira de Gastroenterologia que mostram cerca de 20% de prevalência de
problemas no trato digestivo na população brasileira.
Ter pelo menos um problema osteomuscular foi citado por 57,3% dos
homens e 70,3% das mulheres presas (p<0,01), no período de 12 meses antes
da pesquisa. Os principais sintomas assinalados foram de artrite ou reumatismo
(15,9%), dor ciática (22,1%), bursite (22,9%), dores no pescoço, costas e coluna
(76,7%), torção ou luxação de articulação (28,2%), fratura óssea (15,3%),
agravos nos ossos ou cartilagens (12,5%), e músculos ou tendões (15,7%). As
frequentes dores no pescoço, costas e coluna foram as queixas mais citadas, com
percentuais expressivos para ambos os sexos, embora com predominância nas
mulheres (43,1% dos homens e 58,3% das mulheres).
Esse tipo de agravo à saúde está relacionado com a falta de exercícios físicos,
com a superlotação das celas, com as dificuldades dos homens e das mulheres
de se acomodarem nos lugares que lhes são reservados, com o pequeno espaço
de locomoção e com noites maldormidas em colchões inadequados ou no chão.
Mas se sabe que os problemas osteomusculares também têm um componente
emocional que não deve ser descartado. Comparando-se as prevalências
encontradas entre trabalhadores brasileiros, os achados são inferiores, embora
ainda muito elevados. Num inquérito de saúde, 75,2% dos trabalhadores
relataram algum tipo de sintoma osteomuscular, quando perguntados por esse
agravo no período de 12 meses antes da pesquisa (Picoloto & Silveira, 2008).
167
As doenças de pele são temidas pela maioria dos presos, particularmente
pelas mulheres. Elas têm prevalência mais elevada que na população brasileira,
como se pode constatar a seguir. Esses problemas estão associados à falta de água,
às condições precárias de higiene, assim como aos contatos intensos no ambiente
insalubre das celas e do presídio como um todo. Na população carcerária, as úlceras,
eczemas e psoríases foram citadas por 15,9% dos participantes. E 43,4% dessa
população se queixaram de alergias, dermatites de contato e urticárias. Segundo
censo de 2006 da Sociedade Brasileira de Dermatologia (2006), as doenças de
pele mais comuns no Brasil são as sexualmente transmissíveis (25,12%), as
dermatoses alérgicas (14,03%), as dermatoses não especificadas (13,01%), a
hanseníase (6,34%), a acne, a seborreia e outras (5,05%). A frequência maior
dos sintomas se observa na faixa etária de 20 a 29 anos. Estudos ambulatoriais
mostram que as prevalências mais elevadas são de psoríase (11,72%), eczemas
(8,68%), micoses superficiais (8,60%). Os percentuais mais baixos são para
acne, tumores cutâneos e verrugas (Alves, Nunes & Ramos, 2007). Em todos
esses estudos, os dados mencionados sobre incidência de doenças de pele é
menor que na população carcerária do estado do Rio de Janeiro.
Cerca de 15,9% dos homens e 39,6% das mulheres (p<0,01) declararam ter
pelo menos um problema glandular ou sanguíneo. A anemia foi menos frequente
entre os homens (9,1%) e mais frequente entre as mulheres, nelas apresentou-se
um percentual bem elevado (31,7%). Chama-se a atenção para as referências
a problemas de próstata e de mama. Os tumores de mama, citados como
preocupação por 13,3% das detentas, são de elevada incidência na população
feminina brasileira, com prevalência de 50 por 100.000 mulheres e com uma
média de 22% de casos novos por ano (Inca, 2004).
Os problemas de próstata estão associados ao aparelho reprodutor masculino.
Dos presos, 6,5% referiram agravos a sua saúde reprodutiva no período de 12
meses antes da pesquisa. Entre esses, 3,8% relataram sintomas na próstata (4%
dos presos na Capital, 3,9% na Baixada e 3,2% no Interior) e 4,5% disseram
padecer de outras doenças. Os cuidados são muito importantes, pois o câncer
nessa região do corpo masculino é o segundo em incidência no país, com uma
taxa de 70,42 por 100.000, embora atinja particularmente a população mais
idosa. Um percentual de 20,5% das mulheres revelou também ter tido problemas
do aparelho reprodutivo no último ano: tumores e cistos no útero ou no ovário
são os mais frequentes. Em suas falas livres, alguns detentos e detentas afirmaram
que estão diagnosticados com essas doenças ou já vieram para a prisão com esses
168
problemas, no entanto não são devidamente acompanhados e cuidados. Outros
se queixaram de que não têm oportunidade de se prevenirem dos vários tipos de
doenças, uma vez que não existe essa prática nas prisões.
Ter um ou mais problemas do aparelho urinário foi relatado por 17,2%
dos homens e 50,2% das mulheres presas (p<0,01). Cistite e uretrite foram
mencionadas por 45,9% dos entrevistados, infecções renais, por 14,3% e
outras, por 15,9% deles. O sintoma mais comum é o de infeccção urinária, que
acomete mais da metade das mulheres. Os especialistas explicam que essa maior
incidência na população feminina se deve às suas condições anatômicas: uretra
mais curta e sua maior proximidade com a vagina e com o ânus, possibilitando
assim que microrganismos comensais da microbiota intestinal penetrem pela
uretra e causem infecção no trato urinário. O estudo de Ramos e colaboradores
(2010) relata que numa amostra encontraram 20% de indivíduos com esse tipo
de infecção, 90% deles, mulheres. Heilberg e Schor (2003) detectaram uma
prevalência de 18,87% na população masculina, quase sempre vinculada à
insuficiência renal ou a doenças na próstata. Os percentuais de presos e presas
que se queixam de tais sintomas estão dentro da média do país, no entanto,
eles precisam de acompanhamento médico adequado, pois tanto os problemas
femininos quanto os masculinos podem evoluir para enfermidades mais graves
como o câncer, por exemplo.
A incidência de doenças infecciosas foi relatada por 17,0% dos homens
e 19,2% das mulheres presos (p=0,054). Os problemas mais citados foram
dengue (16,7%) e tuberculose (4,9%). Em queda no país, essas enfermidades
transmissíveis estão associadas à falta ou à precariedade de cuidados higiênicos
e ambientais. Com percentuais menores que a incidência da dengue, mas muito
preocupante pela gravidade e por ser uma doença infectocontagiosa, destaca-se a
tuberculose, mencionada por 8,7% dos presos e 2,5% das presas.Vários estudos
têm sido feitos sobre o assunto, como o de Sanchez e colaboradores (2007), que
atribuem à superpopulação, às celas mal ventiladas e sem iluminação solar e à
prevalência de HIV nas prisões do estado do Rio de Janeiro a manutenção e a
disseminação da tuberculose na população carcerária. As taxas de incidência e
prevalência são muito mais elevadas que na população em geral. Esses autores
enfatizam também o precário cuidado que recebem os presos doentes, em
virtude da falta ou escassez de profissionais da saúde que, por sua vez, são mal
remunerados ou têm contratos de trabalho precários, o que contribui para sua
grande rotatividade e para a descontinuidade nos tratamentos dos detentos.
169
Os presos foram perguntados também se consideravam ter deficiências de
visão, audição e fala, o que foi confirmado por 37,3% dos homens e 47,3% das
mulheres (p<0,01). Entre os problemas mais citados, estão a deficiência auditiva
(23,7%), mais presente entre os homens; cegueira em um ou em ambos os olhos
(17,6%); miopia, astigmatismo e vista cansada (58,4%). Essa última deficiência
foi mais citada pelas mulheres. Na população brasileira, a prevalência da miopia
varia de 11% a 36%, a hipermetropia, 34% e a cegueira atinge 3% (Sociedade
Brasileira de Oftalmologia, 2014). Quanto à audição, segundo autores como
Gondim e colaboradores (2012), baseados no censo demográfico do IBGE (2010),
3,4% dos brasileiros declararam alguma incapacidade ou grande dificuldade em
ouvir. De acordo com a declaração dos detentos, tanto os problemas de visão
quanto de audição estão muito acima do estimado para a população brasileira
em geral, o que é grave, levando-se em conta que os detentos, em sua maioria,
são muito jovens.
Houve quem afirmasse que sua situação de saúde tinha melhorado na
prisão, embora a maioria dos reclusos tenha declarado que ela era perfeita antes
da entrada no sistema prisional. Entre os que consideraram apresentar melhores
condições de saúde no momento da pesquisa do que no passado, o argumento é
de que na “rua” estavam muito mais expostos ao adoecimento por causa do uso
abusivo de substâncias psicoativas. Nesse aspecto, a prisão serviu de freio ao
consumo deletério e se tornou um fator de proteção para a saúde. Esse discurso
foi proferido principalmente por alguns homens; um deles comentou que na sua
unidade foi diagnosticado de hipertensão e diabetes e pôde assim cuidar melhor
desses problemas. Outro avaliou que seus hábitos alimentares e de sono estavam
mais regrados, contribuindo sobremaneira para a melhora de seu quadro de saúde.
Esses argumentos, no entanto, foram apresentados por uma minoria de presos.
A maioria reitera as queixas:
Nós temos muitas doenças que são transmitidas por vírus tuberculose. Muita
gente aglomerada, doença de pele tem muito. (Homem, Interior)
As coceiras que a gente atrai aqui, porque por mais que você lave a sua roupa de
cama, que você tenha a sua higiene, mas o lugar é úmido, é fechado. Sei lá, tenho
umas bolinhas no corpo. Como a cela é pequena todo mundo tem muito contato,
vai passando para o colega, quando vê está todo mundo com coceira. (Mulher,
Capital)
170
infectocontagiosas. A tuberculose e os problemas de pele foram recorrentemente
citados como vivências ou como possibilidades concretas de se contaminarem.
Alguns entrevistados disseram ter contraído essas doenças depois de encarcerados,
e outros comentam que convivem com presos que sofrem doenças contagiosas.
Saúde mental
Termina-se o diagnóstico de saúde aprofundando uma questão que poderia
soar como indicador dos agravos a que estão expostos os presos do estado do Rio
de Janeiro: um percentual de 52,2% dos detentos e 73,1% das detentas (p<0,01)
relatou ter sofrido pelo menos um problema do sistema nervoso, no período de12
meses antes da pesquisa. A dor de cabeça ou enxaqueca frequente foi o sintoma
mais comum entre os homens (46,8%), e predominante entre as mulheres
(71,2%). Esse tema se vincula às questões suscitadas sobre as percepções dos
presos a respeito da sua saúde mental.
Os homens, de maneira geral, se referiram ao estresse e ao aumento da
agressividade como efeito do encarceramento: perda da liberdade, falta de
acesso a informações sobre o “mundo lá fora” e condições insalubres e cruéis
de confinamento. O problema mental mais assinalado foi a depressão. Esse
sintoma, em presos do sexo masculino, pode estar associado ao uso de drogas, de
acordo com pesquisa realizada na cidade de Porto Alegre por Tavares, Scheffer e
Almeida (2012: 91). Segundo as autoras “quanto maior o uso de drogas maior o
sentimento de raiva, agressividade, nível dos sintomas depressivos e reincidência
de crimes ou vice-versa”.
O uso de medicamentos controlados foi mencionado por alguns entrevistados,
mas poucos procuram atendimento psicológico. As estratégias para lidar com os
sintomas de sofrimento mental, em geral, são “a religião na busca a ajuda de
Deus”, “tentar se isolar”, “não se misturar”, “não entrar em confusões” ou, ao
contrário, “participar ao máximo de atividades permitidas”.
Os problemas mentais afetam particularmente as mulheres. Cerca de 77%
delas se queixaram de uma sensação contínua de mal-estar emocional. Boa
parte tem diagnósticos fechados de transtornos e usa medicação psiquiátrica
controlada. Pesquisas realizadas por Trestman e colaboradores (2007) descrevem
que as presas têm um elevado grau de comorbidade psicopatológica, dependência
de substâncias, transtorno de estresse pós-traumático e depressão maior. Elas
também são mais propensas a apresentar distúrbios psiquiátricos que os homens,
171
exceto quando se trata de transtorno de personalidade antissocial.
São inúmeras as falas sobre crises emocionais vividas e presenciadas. Algumas
entrevistadas se referiram até à prática de automutilação, principalmente cortes
no antebraço. Os sintomas mais comuns de seu sofrimento mental são insônia,
irritabilidade, ansiedade, somatização e depressão, o que também foi encontrado
na pesquisa de Almeida (1998) numa penitenciária feminina de São Paulo.
O uso de medicamentos para dormir, quando é ofertado, aparece como uma das
estratégias utilizadas para lidar com os problemas: “Eu tomo o meu calmante, meu
antidepressivo e fico na minha cama quietinha” (Mulher, Interior). Os depoimentos
se repetem no mesmo sentido:
Tomo remédio quando estou muito estressada assim, quando eu estou a ponto de
explodir, de perder a minha sanidade, aí eu tomo. (Mulher, Capital)
Tem gente aqui que surta. A falta da família, a falta de notícia. A pessoa não
dorme, a pessoa não come, a pessoa só chora. Gruda na grade fica gritando que
quer ir embora, que quer ir embora, quer ir embora. Tem coleguinhas que se
cortam todinhas. Surtando, querendo notícias da família. (Mulher, Capital)
É muita loucura, tem mulher que se corta, que corta os pulsos, corta os braço,
aparece toda retalhada. (Mulher, Interior)
172
inventário de depressão (Beck, Ward & Mendelson, 1961) consiste num
questionário de autorrelato e contem 21 itens de múltipla escolha. Trata-se de
um dos instrumentos internacionalmente mais utilizados para medir a severidade
de episódios depressivos. Seu desenvolvimento marcou uma mudança na
compreensão e nos cuidados oferecidos pelos profissionais da saúde mental, que
até então entendiam a depressão em uma perspectiva psicodinâmica, em vez de
cognitiva, ou seja, enraizada nos próprios pensamentos dos pacientes.
173
Tabela 28 – Sintomas de depressão em detentos do estado do Rio de Janeiro,
segundo sexo e área
Homens Mulheres
N % N % N % N % N % N % N %
Ausência 3.415 28,8 2.280 29,9 394 22,9 741 29,4 131 17,6 127 19,7 4 3,7
Leve a moderada 4.497 37,9 2.982 39,1 600 34,8 915 36,3 238 32,1 208 32,2 31 31,5
Moderada a grave 2.718 22,9 1.722 22,6 502 29,1 494 19,6 246 33,1 197 30,6 49 50,0
Grave 1.242 10,5 646 8,5 226 13,1 370 14,7 128 17,2 113 17,6 14 14,8
Total 11.872 100,0 7.630 100 1.723 100 2.519 100 743 100,0 646 100 97 100
174
Apesar das observações de Araújo, Nakano e Gouveia (2009) que, de certa
forma, atenuam a análise da depressão entre presos, considera-se muito preocupante
que 22,9% dos homens e 33,1% das mulheres detidos no estado do Rio de Janeiro
apresentem sintomas moderados e que 10,5% dos homens e 17,2% das mulheres
estejam no estágio grave. Na sua forma mais severa, a depressão é uma doença que
precisa ser tratada (Cavalcante, Minayo & Mangas, 2013).
Saber que existe um percentual tão elevado de homens e mulheres presos
com essa síndrome significa que as pessoas atingidas por tal enfermidade
mental precisam, urgentemente, de tratamento especializado e contínuo, o
que aparentemente não acontece. A depressão grave é desencadeadora de
comportamentos suicidas e de mortes autoinfligidas. Já como sintoma, ela deve
ser compreendida como parte das injunções e estilo de vida prisional. Os esforços
dos profissionais da saúde deveriam ser orientados no sentido de colaborar para
melhorar as condições adversas da população reclusa.
Estudo de Blaauw, Roesch e Kerkhof (2000) assinalam que tanto nas
prisões americanas quanto nas europeias os sistemas prisionais enfrentam um
grande número de ocorrência de problemas mentais graves, numa proporção
duas vezes maior que na população que acorre aos hospitais com sérios distúrbios
psicológicos. Diferentemente do caso brasileiro, numa pesquisa em 13 capitais
europeias, esses autores encontraram serviços organizados e atenção permanente
aos que padecem de tais agravos.
Na Tabela 29, observa-se a presença de estresse entre os presos, utilizando-
se a escala proposta por Lipp (2000). Conclui-se que 35,8% dos homens e 57,9%
das mulheres estavam em situação de estresse no momento da pesquisa (p<0,001).
As mulheres apresentavam indícios de maior severidade (fases de resistência e
quase exaustão) e agravamento dos sintomas. No entanto, a predominância das
manifestações físicas e psicológicas ocorre para ambos os sexos.
Homens da Baixada apresentaram os mais elevados índices de estresse
em todos os graus e com maior agravamento (p<0,01), quando sua situação
foi comparada com as outras áreas pesquisadas. Sintomas físicos predominam
entre os presos do Interior e sintomas psicológicos nos da Capital e Baixada.
Entre as mulheres da Capital e as do Interior não há diferença significativa
para todos os itens analisados, a não ser o fato de se mostrarem muito mais
estressadas que os homens.
175
Tabela 29 – Estresse em presos do estado do Rio de Janeiro, segundo sexo e área
(Inventário de Sintomas de Stress Lipp)
Homens Mulheres
N % N % N % N % N % N % N %
Não 1.4457 64,2 9.701 67,5 1.537 49,0 3.220 64,5 574 42,1 498 42,9 76 37,5
Sim 8.051 35,8 4.673 32,5 1.602 51,0 1.775 35,5 789 57,9 664 57,1 126 62,5
Fases do estresse
Alerta 862 3,8 491 3,4 190 6,1 181 3,6 55 4,0 44 3,8 11 5,4
Resistência 5.735 25,5 3.421 23,8 1.057 33,7 1257 25,2 571 41,9 484 41,7 86 42,9
Quase exaustão 955 4,2 462 3,2 211 6,7 283 5,7 135 9,9 111 9,6 23 11,6
Exaustão 499 2,2 299 2,1 145 4,6 55 1,1 29 2,1 24 2,0 5 2,7
Agravamento do estresse
Não 14.457 64,2 9.701 67,5 1.537 49,0 3.220 64,5 574 42,1 498 42,9 76 37,5
Sim 8.051 35,8 4.673 32,5 1.602 51,0 1.775 35,5 789 57,9 664 57,1 126 62,5
Sintomas predominantes
Físicos e psicológicos 753 10,8 449 11,5 167 10,9 136 9,0 70 9,5 60 9,7 11 9,0
Psicológicos 3.620 52,0 2.181 55,7 784 51,0 655 43,5 374 50,7 304 49,3 70 58,2
Físicos 2.588 37,2 1.286 32,8 585 38,1 716 47,5 292 39,7 253 41,1 40 32,8
176
médio de dias que elas usam (2,4) é superior ao mencionado por eles (0,5). É de
se ressaltar que para todos os tipos de drogas utilizadas na prisão, as mulheres
têm preeminência sobre os homens, a não ser no caso das drogas injetáveis.
Trata-se de uma situação que necessitaria ser melhor estudada, pois enquanto a
adicção se agrava no grupo feminino confinado, diminui na população masculina
nas mesmas condições (Tabela 30).
177
Tabela 30 – Número médio de dias de uso de substâncias nos últimos 30 dias (na
prisão) por detentos do estado do Rio de Janeiro, segundo sexo e área
Homens Mulheres
Substâncias Total Capital Baixada Interior Total Capital Interior
Média DP Média DP Média DP Média DP Média DP Média DP Média DP
Álcool 0,7 3,5 0,5 2,7 1,2 4,4 1,0 4,8 0,8 4,1 0,85 4,4 0,5 2,1
Tabaco (cigarro) 18,2 13,9 17,9 13,8 18,7 14,0 18,7 14,0 20,8 13,5 20,78 13,4 20,7 13,9
Maconha 3,1 8,6 1,9 6,7 3,0 7,8 6,0 11,6 4,5 9,7 4,52 10,0 4,3 8,7
Cocaína 1,7 6,1 1,6 6,1 2,7 8,0 1,3 4,8 2,1 6,6 2,12 6,9 1,9 4,8
Mesclado, merla, bazuca
0,4 3,0 0,03 0,2 1,9 7,4 0,2 1,2 2,5 7,8 2,80 8,2 0,4 0,5
ou pasta de coca
Crack 0,5 3,5 0,03 0,2 2,4 7,8 0,03 0,2 2,4 7,4 2,68 7,8 0,3 0,7
Oxi 1,6 4,8 1,2 1,8 5,3 9,5 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0
Produtos para
0,3 2,3 0,0 0,0 1,7 5,7 0,08 0,5 0,8 3,3 0,9 3,5 0,0 0,0
“sentir barato”
LSD (ácido), chá de
cogumelo, mescalina, 0,2 1,2 0,0 0,0 1,1 2,8 0,4 1,6 1,0 0,2 0,1 0,2 0,0 0,0
êxtase, ketamina.
Heroína, morfina ou ópio 0,5 2,2 0,0 0,0 2,7 4,5 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0 0,0
178
em geral e também na que trata das encarceradas (Quitete et al., 2012; Damas,
2011). Ao contrário, nenhum dos homens mencionou problemas dessa ordem,
apenas um deles se referiu a sofrer de uma doença neurológica (não psiquiátrica)
que lhe exige o uso de anticonvulsivante.
Numa pesquisa com presas no estado do Rio de Janeiro, Quitete e
colaboradores (2012) mostraram, de um lado, o uso diário de drogas ilícitas
na prisão por 53% das entrevistadas, confirmando a preeminência já observada
neste estudo. De outro lado, as autoras evidenciaram a relação entre o elevado
consumo de substâncias psicoativas com o sofrimento mental, particularmente
com o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e com a depressão na
população feminina, confirmando os dados primários aqui apresentados. De
134 mulheres avaliadas, 40,3% apresentaram TEPT. Houve maior uso diário
de cocaína entre as positivas para o transtorno (p<0,01). Todas as usuárias de
drogas apresentavam algum grau de depressão. As autoras comentaram que o
elevado uso de cocaína entre as detentas com TEPT indica sua preferência por
drogas estimulantes.
Também o fato de o crime de tráfico de drogas ser o mais frequente entre
as mulheres reclusas já foi descrito em pesquisa conduzida no sistema penal do
estado do Rio de Janeiro (Carvalho et al., 2006) e confirmado neste estudo.
O elevado consumo de drogas ilícitas, em especial de maconha e cocaína,
encontrado aqui, é uma evidência inconteste do comércio que o tráfico mantém
dentro das prisões. Essa constatação é paradoxal (Quitete et al., 2012), posto
que o crime pelo qual as mulheres mais foram condenadas – envolvimento com
drogas – faz parte do seu dia a dia no local onde cumprem sua pena.
Em resumo, fica evidente que o sofrimento psíquico dos presos e das presas
está relacionado ao conjunto de fatores vivenciados na sua vida reclusa. Os
sintomas e enfermidades mentais costumam ser reações ao encarceramento e à
forma de levar a vida, em que os presos enfrentam regras rígidas de comportamento,
de privação da liberdade e hostilidade do ambiente. Esse conjunto de problemas
concorre para o aparecimento de sintomas nervosos inespecíficos e para o
acirramento ou desencadeamento de transtornos mentais severos.
Há vários estudos que sinalizam a relação entre condições e situações da
vida reclusa, particularmente, as queixas de “nervosismo”, associadas aos
distúrbios mentais mais comuns como depressão, estresse (em seus diferentes
graus) e consumo abusivo de drogas. Entre tais pesquisas cita-se a obra clássica
179
do antropólogo Luiz Fernando Duarte (1988), Da Vida Nervosa nas Classes
Trabalhadoras Urbanas. Nessa obra, o autor ressalta o “nervoso” como um
sinal de mal-estar e das dificuldades existenciais na cultura popular brasileira.
A doença nervosa estudada por Duarte, de tão difícil diagnóstico médico por
sua imprecisão, foi também comentada pelo psiquiatra Damas (2011) em sua
dissertação de mestrado sobre a população prisional de Santa Catarina. O autor
vincula os sintomas não a transtornos mentais específicos – a não ser no caso da
adição às drogas – mas, principamente, ao ambiente insalubre; à superlotação
que obriga os presos a dormirem juntos numa mesma cama ou no chão; às celas
escuras onde não entra a luz solar, há pouca ventilação e odor fétido; à má
alimentação; ao sedentarismo; à convivência com pessoas violentas e agressivas,
entre as quais se destacam os agentes penitenciários; ao confinamento em
solitárias em que o espaço físico é mínimo; e aos contatos humanos indesejados.
Confirmando a constância da articulação entre o sofrimento na vida
prisional e a insalubridade mental, assinalada por Damas, algumas falas de
homens e mulheres ouvidos na pesquisa são contundentes. Da parte das
mulheres, eis algumas frases emblemáticas: “tratamento humilhante não
transforma, revolta!”; “aqui não somos ressocializadas, somos humilhadas!”; “o
presídio nos traz problemas psicoemocionais!”; “ninguém se acostuma com o
sofrimento!”; “precisamos ser tratadas com respeito e dignidade!”. A fala dos
homens repercute os mesmos sentimentos: “aqui é um massacre!”; “aqui dentro
nada pode melhorar lá fora”; “nessas condições é impossível socializar-se”; “é
uma vergonha tratar assim o ser humano”; “sofremos constrangimentos físicos,
mentais e ofensas pessoais por parte dos agentes”; “isso aqui é um inferno!”.
Todos os fatores negativos, tratados pelos estudiosos e reverberados pela
fala sentida dos detentos, são estruturais, organizacionais e relacionais. Portanto,
há pouca expectativa de mudanças a não ser mediante uma determinação clara
de se repensar o estatuto da ressocialização, buscando-se novas formas de
cumprimento de penas, em respeito à Lei de Execução Penal e à política de saúde
específica para essa população. Nesse particular, um grande entrave é a opinião
pública que, em geral, considera que a população carcerária não é composta por
sujeito de direitos.
180
Serviços de Atenção à Saúde
Os serviços de saúde ofertados à população prisional do estado do Rio de
Janeiro serão aqui analisados sob dois ângulos: do ponto de vista do sistema
e de sua organização que, teoricamente, cumprem os preceitos do SUS e têm
uma estrutura lógica de atenção; e do ponto de vista dos presos, cujas queixas
são muito relevantes quanto às fragilidades e deficiências dos serviços que lhes
são prestados.
181
Regulador da Assistência à Saúde no estado, da rede básica à internação.
A partir desse agendamento para um detento, o fluxo de atendimento transcorre
normalmente, da mesma forma como seria para qualquer usuário do SUS.
Há apenas uma UPA instalada dentro do Complexo Penitenciário de
Gericinó. Ela tem capacidade para receber até 300 pacientes/dia. A unidade
atende casos de urgência e de internações clínicas mais básicas que não exijam
o deslocamento dos apenados para hospitais da rede pública do estado e da
cidade do Rio de Janeiro. Essa UPA ocupa uma área de 827m², tem sala de
emergência e de observação com 20 leitos para homens e seis para mulheres;
dispõe de unidade intermediária com cinco leitos, cinco consultórios clínicos e
um odontológico, salas de gesso, raios X, ultrassonografia e duas de hemodiálise,
uma delas específica para tratamento de pacientes com hepatite C. É também
responsável pelo atendimento de emergência psiquiátrica, direcionando o
paciente para a unidade específica do sistema, o Hospital Psiquiátrico Roberto de
Medeiros, nos casos que exigem internação. Essa unidade atende presos de todo
o estado, produzindo uma média de 150 procedimentos diários, ou seja, atuando
com 50% de sua capacidade.
À divisão médico-ambulatorial compete a supervisão e coordenação das
atividades exercidas pelos médicos nas unidades prisionais de todo o sistema
penitenciário. Esse trabalho consiste na marcação de exames extramuros e
encaminhamento dos doentes aos hospitais públicos, a partir dos pedidos
feitos pelos médicos e agendados no SisReg; encaminhamento dos internos
aos ambulatórios das unidades nos casos de queixas específicas feitas a seus
representantes legais (Defensoria Pública, varas civis e Vara de Execução
Penal); gerenciamento do pessoal vinculado à divisão (como concessão de férias,
licenças e remanejamentos); aquisição dos medicamentos que não constam
dos estoques; apoio às unidades que não têm médicos ou que estão com falta
de pessoal; disponibilização de transporte para locais longe da sede. A divisão
médico-ambulatorial passa por inspeções periódicas da Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) quanto aos gastos dos recursos do SUS e quanto
à adequação da área física para funcionamento dos equipamentos de saúde, do
material médico e do funcionamento dos serviços.
A Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) tem uma
considerável estrutura para atendimento psiquiátrico. Compõem a divisão de
prevenção e tratamento de dependência química e saúde mental o Hospital
de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Henrique Roxo (HR), o Instituto de
182
Perícias Heitor Carrilho (HH) e o Instituto Penal Psiquiátrico Roberto Medeiros
(RM). Essa divisão planeja, implementa e monitora as ações de atenção voltadas
para os problemas psiquiátricos, dando especial atenção ao acompanhamento
dos portadores de transtornos psíquicos que cumprem medida de segurança
nos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico, e atuando em favor da
desinstitucionalização e reinserção social dos pacientes. Apesar do nome, nesse
subsistema não existe nenhum programa específico para prevenir a dependência
química ou para atender pacientes adictos.
O Hospital Penal Psiquiátrico Roberto Medeiros fica no Complexo
Penitenciário de Gericinó, tem 141 leitos, dos quais 115 masculinos e 26
femininos e é referência para as internações que ocorrem por determinação
judicial de detentos com insanidade mental ou com diagnóstico psiquiátrico
impreciso. Nesse último caso, o juiz instaura o “incidente de sanidade mental” e
o envia ao médico perito. Dependendo do resultado do diagnóstico, é aplicada
“medida de segurança” ou “pena privativa de liberdade”. A medida de segurança
pode ser de tratamento ambulatorial ou de internação. Esta última é cumprida
no Hospital Henrique Roxo.
Segundo o diretor do Hospital Roberto Medeiros, a maioria dos pacientes
tem instaurado o “incidente de sanidade mental”, mas a unidade é responsável
também pelas emergências psiquiátricas de todos os internos do estado, após
uma avaliação clínica feita pela UPA. O hospital conta ainda com o atendimento
psiquiátrico ambulatorial. Qualquer preso que apresente necessidade de consulta
psiquiátrica deve ser encaminhado para essa unidade. Às sextas-feiras são
atendidos em média 60 presos/dia, provenientes de todo o estado. Nele também
são internadas as pacientes inimputáveis do sexo feminino para cumprimento de
medida de segurança. Essa particularidade se dá porque o Hospital Psiquiátrico
Henrique Roxo não conta com ala feminina.
Na visão do diretor do Hospital Roberto Medeiros, por receber presos
condenados por todos os crimes – incluindo-se mulheres que precisam de
medida de segurança e presos provisórios –, sua unidade vive sempre um grande
desafio. Um deles é o de fazer um planejamento terapêutico individualizado
para cada paciente, sem saber o destino jurídico dele, que pode ter sua prisão
relaxada, voltar para a sua unidade prisional de origem ou ainda seguir para o
cumprimento de medida de segurança. O número de profissionais que trabalha
nesse hospital não é suficiente para atender a demanda existente: são apenas três
médicos psiquiatras para cuidar dos pacientes internados e outros quatro para
183
realizar os exames criminológicos, conforme a solicitação do juiz ou de qualquer
unidade prisional.
No hospital, prescreve-se e libera-se a medicação controlada para um número
determinado de dias e depois o diretor da unidade insere aquela prescrição no
mapa de psicotrópicos que são distribuídos pelo almoxarifado da Seap. Esse
médico considerou que há uso abusivo desses medicamentos, principalmente
entre as mulheres.
O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Henrique Roxo dispõe de
155 leitos de internação, três de intercorrência clínica e dois de crise. Está situado
em Niterói e fica responsável pelo atendimento dos pacientes em cumprimento de
medida de segurança e pela prestação de cuidados nas intercorrências psiquiátricas
que acontecem nas unidades prisionais da cidade e unidades próximas.
O Instituto de Perícias Heitor Carrilho é o responsável pela produção de laudos
periciais. Foi criado para responder à alta demanda de exames de insanidade mental
e de dependência de drogas nos processos criminais, visando ao atendimento de
todas as varas criminais do estado, além das federais da Auditoria da Justiça Militar
e da de Execuções Penais. Os exames consistem na análise do processo criminal
pelo médico e na verificação de nexo causal entre a doença mental ou dependência
e o delito praticado. Sua meta é tornar-se uma referência nacional em assuntos
criminais envolvendo portadores de sofrimento mental.
Em espaço anexo ao Instituto de Perícia, a Seap mantém uma unidade de
acolhimento para os pacientes desinternados do Hospital Heitor Carrilho que
ainda mantém presos doentes mentais e, gradualmente, vem sendo desativado,
atendendo as adequações da Lei da Reforma Psiquiátrica (lei n. 10.216/2001),
as recomendações do Conselho Nacional de Justiça e às determinações do
Ministério Público. Os pacientes que lá vivem têm um histórico de longa
permanência em instituições psiquiátricas e perderam seus vínculos familiares
e sociais. Atualmente as equipes técnicas estão tentando realizar um trabalho
de reinserção seguindo os dispositivos da rede socioassistencial, para concluir
a desinstitucionalização dos pacientes que ainda se encontram abrigados nesse
espaço. Há ainda 48 moradores e, em 2014, foram reinseridos socialmente 12
pacientes.
Em resumo, estruturalmente existe uma organização consistente do
processo de cuidados em saúde. O problema é o seu funcionamento, a falta ou o
absenteísmo de profissionais e as difíceis relações entre profissionais da saúde-
184
pacientes e agentes penitenciários, dentro do sistema. Em visita às unidades de
saúde, chama atenção a coexistência desses dois modelos de poder e de gestão:
um de repressão e outro de cuidados. Ou seja, funciona como uma unidade
de saúde que tenta obedecer a todos os protocolos da área, mas, ao mesmo
tempo, é uma unidade prisional com todo o aparato de segurança e controle.
O próprio discurso dos gestores se confunde: ora os diretores das unidades de
saúde se referem aos usuários como pacientes, ora como presos. Andando pelos
corredores desses hospitais e aproximando-se das enfermarias, o duplo vínculo se
concretiza: as salas de atendimento são gradeadas. Alguns entrevistados falaram
das dificuldades que sentem por serem atendidos por profissionais da saúde
sob a vigilância de agentes penitenciários. Lógicas distintas que se refletem no
tratamento oferecido aos presos, como se verá a seguir.
185
Muitos morrem aqui por falta de socorro! A UPA e o hospital em Bangu são uma
carnificina; tratam presos como animais; não temos médicos depois das 16 horas e
nenhum sábado e domingo, só há atendimento para curativos; há falta de médico
24 horas como previsto na lei. (Homem da Capital)
186
Os presos do Interior, mais que os da Capital e da Baixada, procuraram
atendimento médico, de psicologia, de assistência social e de odontologia, no
último ano (Tabela 31). A média de consultas realizadas pelos primeiros foi
maior que a dos demais (p<0,05). Entre as mulheres, as do Interior também
tiveram mais acesso a todos os tipos de atendimento, exceto a dentistas, em que
as da Capital referiram utilizar mais (p=0,002).
Indagados sobre sua saúde bucal e sobre a perda de algum dente durante a
prisão, 31,6% dos homens e 31,3% das mulheres responderam afirmativamente.
Homens perderam mais dentes (2,5 em média) que as mulheres (2,1; p<0,01).
Nota-se maior quantidade de perda dentária entre os detentos da Capital (p<0,05)
em relação aos das demais áreas. Das mulheres, as que mais extraíram dentes
foram as presas do Interior (p<0,01) como se constata na Tabela 32.
Sim 7.232 31,6 4.911 39,3 890 30,1 1.431 31,9 397 31,3 323 29,8 74 39,8
Média (DP) 2,5 (2,9) 2,6 (3,1) 2,2 (2,2) 2,5 (2,2) 2,1 (1,5) 2,0 (1,6) 2,3 (1,2)
187
Os serviços dentários foram particularmente criticados pelos presos. A falta
de dentistas e a baixa qualidade da atenção à saúde bucal foram mencionadas por
homens e mulheres de todos os três territórios pesquisados. Pelos depoimentos
se observa que o tratamento se restringe, quando existente, à prática de extração.
As mulheres da Capital se referiram à ausência dos profissionais de
odontologia nas unidades e às restrições no atendimento. Uma delas comentou
que “os dentistas do sistema só fazem arrancar os dentes das pessoas”. Elas
esperavam que houvesse outros tipos de tratamentos, como limpeza de tártaro,
aplicação de flúor, restauração, mas isso não ocorre. Algumas comentaram que,
pela falta de atendimento na unidade, muitas internas sofrem com dores. E até
para conseguirem um analgésico é difícil. Para sintetizar a precariedade dos
serviços, uma presa afirmou que: “o dentista daqui manda você colar um pivô
com Super Bonder®, é louco!” (Mulher, Capital).
Um dos presos da Capital comentou o seguinte sobre os serviços hospitalares:
“não nos tratam, só vão vir aqui buscar nosso cadáver”! Um percentual pequeno
de detendos foi internado durante o tempo de prisão: 11,2% dos homens e
11,1% das mulheres (Gráfico 22).
188
Os detentos e detentas da Capital, quando necessário, foram internados, em
maioria, no Hospital de Custódia, enquanto os do Interior usaram principalmente
a rede pública (p<0,05). O número médio de internações foi maior entre os
homens nas três áreas estudadas, tanto no Hospital de Custódia como nos
hospitais da rede pública (Tabela 33).
189
garantida a continuidade do cuidado de que necessita. As queixas dos reclusos se
estendem à falta de ações de prevenção e de atenção primária: “para ir ao médico
só se estivermos morrendo, inclusive essa omissão acontece igualmente no caso
dos idosos presos”.
A inexistência de clínico geral, de ginecologista, de dentista foi o ponto
mais ressaltado pelas mulheres. Mais de duzentas delas mencionaram essas
deficiências e em seguida se queixarem das falhas no atendimento oftalmológico,
psicológico e psiquiátrico, da falta de medicamentos e da omissão do sistema
quanto aos exames de HPV, de DST e de preventivo de câncer, e da pouca
atenção às grávidas e aos diabéticos. Também a ineficácia do atendimento de
socorro foi muito realçada na maioria das falas.
Demasiadamente precário, muito precário, aqui eu acho que falta tudo, falta o
ginecologista, partindo do princípio que é uma penitenciária feminina, então eu
acho que tinha que ter ginecologista, porque tem muita gente aqui que não faz
preventivo. Também tem muita gente com problema de vista. (Mulher, Capital)
190
presos, como mencionado. Todos os presos que precisam desse transporte se
queixam de que são muito maltratados e têm medo de morrer durante a viagem.
Algumas vezes, eles nem chegam a ser atendidos nos serviços públicos, retornam
para a prisão e continuam com os mesmos sintomas. No trecho a seguir, um
preso relata essa dificuldade:
Quando tem que ir para o médico, tem que ir para Bangu, para o hospital. Aí,
às vezes, a gente nem sai do carro da SOE, às vezes nem chega lá. Eu acho que
lá, na SOE, tem alguns funcionários que são tranquilos, mas tem vezes que
são dez presos algemados, e a gente vai igual a caranguejo. É um massacre!
(Homem, Baixada)
191
profissionais só aparecem quando são requisitados para fazer uma notificação
ou realizar algum parecer solicitado pela unidade, ou seja, para cumprir alguma
função burocrática. Para as detentas, essa experiência é diferente, pois contam
com psicólogas que, na opinião de muitas, oferecem um bom atendimento e
estão disponíveis quando precisam. Na verdade, são elas que mais necessitam
de cuidados, na medida em que há um elevado número de mulheres com vários
níveis de depressão e outros transtornos.
A relação dos homens presos na Capital com a assistência social às vezes
parece ser bem próxima e atenciosa e, outras vezes, ameaçadora ou indiferente.
Alguns detentos nem sabem qual é a função desse profissional e acreditam que
seu papel é providenciar documentos oficiais e se comunicar com suas famílias.
Os homens da Baixada Fluminense informaram que não há assistentes sociais
nas suas unidades. As mulheres presas na Capital, em geral, ao contrário, foram
muito elogiosas em relação a esse profissional.
O estudo quantitativo confirma muitas das representações trazidas
nas entrevistas. Nos trechos de depoimentos a seguir, é possível identificar
sentimentos opostos em relação aos que prestam esse tipo de assistência. Muitos
têm uma visão positiva sobre esse serviço: “A assistente social atende por galeria,
conversa com a gente, nos dá atenção, ela é legal” (Homem, Capital). Outros
avaliam de forma negativa:
A assistente social aqui quando cisma de não atender, ela não atende. E se ela
estiver irritada e você for conversar, ela te coloca até de castigo. É horrível. Ela
debate com o funcionário, ela debate conosco. Aí você tem que dar seu nome e ela
vai pensar se vai tirar você ou não. (Homem, Capital)
Nós sentimos na pele o tratamento diferenciado para as famílias e para os
internos. Eu não sei se de repente é porque muitos não têm uma educação, uma
educação formada em si, que saibam se portar ou falar, esclarecer o seu problema
de fato para tal pessoa, porque vira e mexe nós somos sempre maltratados.
(Homem, Capital)
192
Eu sempre tive que mandar a receita para minha família e minha família comprar
o remédio” (Mulher, Capital).
A precariedade dos serviços evidencia a imensa distância que existe entre as
legislações, as propostas políticas e o funcionamento dos serviços de atendimento
à população carcerária. Há uma carência enorme de profissionais da saúde –
médicos, psicólogos, dentistas e técnicos de enfermagem – e, a se guiar pelas
falas dos presos, a situação, que é ruim na Capital, parece muito pior na Baixada
e no Interior. A grande maioria das unidades não conta com a equipe mínima
para atender a demanda de cuidados. Também aos agentes prisionais e aos
demais funcionários o ambiente insalubre e contaminado oferece riscos maiores
de adoecimento que para a população em geral. O contexto de precariedade, a
falta de respeito à dignidade dos reclusos e o elevado número de pessoas com
problemas de saúde convivendo com os companheiros em celas superlotadas têm
repercussões sobre a saúde mental de todos – presos e funcionários.
193
elaborado e aplicado pela equipe de pesquisa guarda uma conformação que, por
não ser encontrada na base legal e bibliográfica, confere-lhe características de
originalidade.
A categoria central para análise das condições ambientais foram os “espaços
de convívio” em que o inter-relacionamento humano ocorre. Essa escolha difere,
portanto, da terminologia corrente das avaliações ambientais clássicas que ora
se referem ao ambiente de caráter ecológico, ora aos ambientes de trabalho,
domiciliar e escolar. No caso dos presídios, há um convívio e um uso compulsório,
dia e noite, dos mesmos espaços que caracterizam a privação de liberdade.
194
Gráfico 23 – Dados consolidados dos presídios inspecionados segundo os espaços
de convívio considerados como adequados ou inadequados
195
Gráfico 25 – Condições dos equipamentos no ambiente das celas
196
A observação das condições de infraestrutura das celas seguiu os seguintes
critérios: em primeiro lugar, a iluminação: luz necessária para uma leitura
confortável; lâmpadas sempre piscantes; reposição automática das lâmpadas
queimadas; utilização da luz como instrumento intimidativo. Em segundo
lugar foi analisada a ventilação: ausência ou adequação de ventilação natural;
dificuldade de renovação do ar ambiente; adequação de ventilação artificial. Em
terceiro lugar, a umidade e o calor: sensação, na maior parte do tempo, de calor
ou frio extremo; mecanismos de controle sobre calor ou frio e sinais aparentes de
umidade excessiva do ambiente. Em quarto lugar, o destino do lixo: presença ou
ausência de coletores de lixo e resíduos; coletores de lixo e resíduos inadequados ao
espaço e número de detentos e seu estado de conservação; limpeza e manutenção
precárias e de forma casual (não sistemática e permanente); localização e acesso
inadequados; sujidade visível, acúmulo de dejetos e lixo.
Como se pode verificar no Gráfico 24, apenas 32% das celas estavam com
a infraestrutura adequada, e, por ser, entre os observados, o ambiente em pior
estado, as considerações vão se ater mais profundamente a ele.
Em relação à conservação das celas, constataram-se infiltração em
várias, mofo, paredes e tetos descascando, sem tinta, sem emboço; ausência
de revestimento lavável; presença de buracos ou saliências que dificultam
a locomoção; irregularidades, inclinação ou inadequações que dificultam o
escoamento de água e material de limpeza.
No que se refere à adequação para a convivência humana, a ocupação é
inadequada para o distanciamento corporal na maioria das unidades prisionais:
espaço insuficiente para mobilizar totalmente o corpo quando deitado; para dar
alguns passos; para praticar algum exercício físico (como flexão e abdominal); e
insuficiente ou inadequado para ler ou exercer práticas religiosas.
Percebe-se que não existe conforto para o descanso: na maioria dos
presídios, há mais de um indivíduo por cama; ausência ou inadequação de
colchão (rasgado, furado, sujo); dimensão mínima dos espaços para dormir
e falta de conservação desses espaços. Há poucos móveis, geralmente em
deplorável estado de deterioração. As condições dos banheiros são lastimáveis,
o que faz com que todos, numa cela, compartilhem o mau cheiro e a falta de
privacidade – uma situação particularmente cruel com as altas temperaturas do
Rio de Janeiro. Um dos maiores problemas de infraestrutura dentro das celas é
a falta ou insuficiência de água para mantê-las limpas e para consumo humano.
197
Também não há água para a higiene dos detentos, principalmente, para o banho
diário. Um ponto reiterativo das queixas e causa do mal-estar dos presos são as
condições inadequadas para fazerem suas necessidades fisiológicas.
Nos gráficos em geral (em barras e em forma de pizza) está representada a
evidente inadequação do ambiente celular. De todos os espaços de convívio dos
presídios inspecionados, a cela é o pior, contendo sempre, em cada uma delas,
acima de 30 apenados.
As celas de menor porte que abrigam em geral quatro apenados, por seu
turno, estão situadas em galerias onde os presos em seu conjunto dormem, fazem
sua higiene e circulam. Todos convivem entre si.
É evidente que, sendo o coração do sistema, a cela represente o imaginário
simbólico da crueldade da prisão como um todo, seja na modalidade de menor
porte ou como galeria, por exibir o maior grau de inadequação ambiental. Esse
fato constitui um indicativo de que o investimento fundamental de reestruturação
e reorganização tem que passar pela profunda revisão desse espaço, pensando-se
na situação humanitária e na possibilidade de ressocialização do apenado. Suas
condições precárias, ora mais ora menos, mas sempre inadequadas, refletem as
situações de violação de direitos a que os próprios apenados fazem menção.
Nos questionários e entrevistas (que tiveram uma abrangência geral do
sistema, enquanto a pesquisa observacional foi mais restrita), os presos também
puderam avaliar os espaços em que vivem. De forma geral, todos os aspectos
relativos ao ambiente de confinamento foram mal avaliados. As unidades
masculinas – do Interior, da Baixada e da Capital – registraram o maior número
de queixas.
Em relação às condições da cela e limpeza do espaço, os homens mencionaram,
com maior frequência, a superlotação e a falta de camas, travesseiros, lençóis e
cobertores. O chão nesses casos é frequentemente usado como leito, mas vários
deles disseram que existe colchão para todos. Nas unidades femininas, a queixa
maior foi em relação ao tamanho das celas e ao número de pessoas que ali estão.
Contudo, as mulheres foram menos críticas que os homens. A seguir trechos de
depoimentos que tratam do assunto:
Então, dentro dos cubículos moram sete. Cubículo apertado. São 16 em cada
galeria. Cabem só quatro, mas eles colocam duas comarcas. As duas comarcas
são as camas de concreto. Não tem cama para todos. O risco que [a pessoa] corre
ali é de uma barata passar por cima dela ou de um rato. Porque em cada galeria a
198
capacidade é de 96. Sendo que hoje, cada galeria está com 109, 104, 119. Então,
existe esse sofrimento. (Homem, Capital)
É horrível! Ficar o dia inteiro trancado numa cela em que [se você] der cinco
passos acabou, não tem como continuar. São seis, sete e oito pessoas. Na minha,
ao todo são 14 celas, e só têm duas televisões. (Mulher, Capital)
As condições são desumanas, mas também não é pela unidade, acho que é o
sistema carcerário que está superlotado, então está cheia a cadeia. O espaço em
uma cela que foi feita pra oito, mas que não tem condições de oito habitarem, às
vezes tem 12 e 13 pessoas. Dorme gente no chão, tem colchão. (Homem, Baixada)
É grande, a cela é grande. Cabem praticamente 65 pessoas. Mas aí, às vezes,
eles colocam 120, 180 lá dentro. Não tem onde dormir. Aí, às vezes, colocam
dois numa comarca. Aí tem amigo que dorme no chão, no colchão precário.
(Homem, Capital)
199
agachar. Pequenininho. Um metro quadrado ali. Tanto na parte para fazer a sua
necessidade como na parte que você toma banho. São duas partes de um metro
quadrado. Só isso. Você faz a sua necessidade, pega a canequinha joga e vai tomar
banho de caneca. (Homem, Capital)
200
é ofertada apenas uma vez ao dia, torna a rotina ainda mais cruel, levando-se em
consideração as altas temperaturas do Rio de Janeiro durante quase o ano inteiro.
Espera o café, espera a água cair, é uma luta para cair uma água! Para conseguir
tomar um banho é uma luta! Todo o dia é a mesma coisa, o almoço sempre a
mesma coisa. (Homem, Capital)
A água é controlada. Nós estamos há dois dias sem água. Sai uma água de 20
minutos. Só amanhã. O sofrimento que nós passamos! (Homem, Capital)
Muitas coisas precárias. A água cai cinco minutos depois para, não cai mais. Ah,
temos que jogar dois canecos de água só sobre as necessidades feitas no banheiro.
(Homem, Capital)
Acordo. Quero tomar um banho, não tem água para tomar banho, escovar os
dentes, a água não cai aqui, a água já caía apenas meia hora, agora cai 15 minuto
e a cadeia está superlotada. (Homem, Capital)
201
Gráfico 29 – Equipamentos no ambiente de convívio interno
202
É possível perceber, observando-se os gráficos, que o segundo espaço mais
inadequado é o de circulação interna, em consonância com o ambiente cela; eles
se complementam.
Em terceiro lugar, em pior situação está o ambiente laboral e escolar.
Entende-se, para fins deste estudo, como ambiente laboral e escolar, as oficinas,
bibliotecas, salas de aula e outros locais com a mesma função. Como pode ser
observado no Gráfico 23, em que se apresentam os dados consolidados, e nos
Gráficos 32, 33, 34 e 35, esse espaço de convívio está adequado apenas em
30% dos casos. No caso do ambiente de trabalho, a inadequação é quase total,
uma vez que, como foi assinalado, apenas 4,4% dos presos trabalham. Portanto,
nas unidades há um imenso déficit tanto da prática de atividades como de
infraestrutura para que elas ocorram.
203
Gráfico 34 – Condições dos equipamentos do ambiente laboral e escolar das prisões
204
aqui representado nos Gráficos 36, 37, 38, 39 e, resumidamente, no Gráfico 23.
Diante das condições gerais encontradas, junto com os locais destinados aos
funcionários, os espaços externos são os que estão em melhor situação nos
presídios.
205
Gráfico 38 – Situação do mobiliário do ambiente externo de convívio dos presídios
206
Gráfico 40 – Condições de estrutura e infraestrutura do ambiente assistencial de
saúde
207
Gráfico 43 – Condições dos recursos humanos para a assistência à saúde nos
presídios
208
O ambiente cotidiano prisional é insalubre e nele se encontram elementos que
colaboram para a proliferação de doenças, como a tuberculose, em que a taxa de
incidência é 35 vezes maior que na população em geral e tem relação intrínseca com
as condições de reclusão, como lembram Sanchez e colaboradores (2007: 550):
A gravidade da situação da tuberculose nas prisões do Rio de Janeiro e provavelmente
de outras prisões brasileiras implica a melhoria das condições de encarceramento
e a definição de estratégias coerentes e eficazes que devem ser adaptadas para a
população carcerária em função das especificidades de cada unidade prisional.
Porém, não é apenas a tuberculose que grassa nesse ambiente hostil e cruel,
e sim uma série de enfermidades, como o HIV e outras transmissíveis chamadas
“doenças ligadas à sujeira”, como leptospirose, micoses, sarna, parasitoses e
infecções bacterianas. De acordo com Diuana e colaboradores (2008), o sujo
e o tóxico aparecem como algo imposto, interiorizado, contaminando não apenas
o ambiente em que vivem, mas também as identidades dos presos e dos agentes.
209
5
A Vida após a Prisão
Este é o capítulo mais curto do estudo, pois ele é mais etéreo que real, é
feito de esperanças e sonhos. Pode-se considerá-lo sob dois aspectos: o que
é possível projetar de “ressocialização” num ambiente tão hostil ou o que a prisão
cristalizou como uma espécie de carreira dentro do crime.
Expectativas Vinculadas ao
Trabalho e à Escolarização
Pra aguentar aqui, tem que estar com uma esperança
muito grande lá fora. (Homem, Capital)
211
Gráfico 44 – Distribuição proporcional dos presos do estado do Rio de Janeiro,
segundo sexo e boas expectativas de vida ao sair do presídio
Nota: Diferença estatística significativa (p<0,05) para todos os itens, exceto vida familiar.
212
excluídos sobre si mesmos e da população sobre eles. O presídio se configura,
assim, como um espaço de reprodução dessa situação, o que levou Wacquant
(2001) a denominá-lo “fábrica de exclusão”.
Apesar das considerações feitas anteriormente sobre os vários aspectos da
vida dos presos antes e durante o tempo de reclusão, observa-se que em torno
de seis de cada dez presos alimentam boas expectativas em relação ao futuro,
até mesmo quanto à vida profissional (Tabela 35). Os homens se destacam em
relação às mulheres (p<0,05).
As mulheres fazem piores projeções em relação à reinserção no mundo do
trabalho. Elas carregam um histórico de atividades laborais precárias e socialmente
desvalorizadas anterior ao aprisionamento. Suas vidas também têm sido marcadas
por relações desiguais de gênero, o que acaba por se refletir tanto no tempo de
reclusão como nas expectativas para o momento após a saída da cadeia.
Ireland e Lucena (2013), em estudo sobre o presídio feminino como espaço
de aprendizagem em João Pessoa (PB), mostram que entre as experiências de
trabalho das detentas, dentro e fora da prisão, prevalecem as efetuadas sem
proteção social, com carga horária elevada e baixa remuneração, o que repete o
ciclo de desvalorização de suas mães e avós. Guimarães e colaboradores (2006)
destacam que, especialmente no grupo das mais pobres, no qual se inclui a
quase totalidade das presidiárias, acrescenta-se o ônus da ideologia patriarcal, da
baixa escolaridade e das escassas oportunidades de trabalho, o que lhes dificulta
identificar condições de autonomia no momento pós-prisão.
213
Mais homens (56,9%) que mulheres (50,4%) (p<0,01), como já dito,
relataram ter boas expectativas de condições de trabalho quando deixarem o
cárcere (Tabela 36). Os que apresentam uma visão mais positiva são os homens
da Baixada e do Interior do estado (p<0,01). É relevante, no entanto, o percentual
de presos (15,2%) que refere uma perspectiva ruim de conseguir emprego e de
se integrar socialmente. Os índices mais elevados dos que têm expectativa
negativa se encontram na Capital (16,15%). A situação das mulheres é pior
(16%) e se assemelha à dos homens da Capital (16,2%).
Para os que têm boa expectativa, o trabalho faz parte dos planos de reconstrução
da vida e se apresenta como uma forma concreta de reinserção social.
Quero ter o meu trabalho. Trabalhar honestamente para eu poder andar na rua
com a cabeça erguida. E o passado ficará para trás. Eu quero viver um presente e
um futuro completamente diferente. É essa vida que eu quero. (Homem, Capital)
214
Não tem como eu fazer nada aqui dentro, não tem curso, não tem nada. Não
tem como estudar, não tem profissionalização. E aí posso voltar para o crime.
(Homem, Capital)
215
Há exceções positivas no sistema que são dignas de nota, mas que
precisariam ser multiplicadas e tornadas como regras. Em algumas unidades
prisionais desenvolvem-se atividades profissionalizantes, a exemplo de cursos de
panificação e de fábrica de tijolos. Duas experiências bem-sucedidas, mas que
não têm o alcance nem a abrangência necessária.
No caso da escolarização ofertada pelo sistema, há muitos problemas. Em
algumas unidades foi possível visitar os locais destinados a essa função. Na
visita aos ambientes das prisões, os pesquisadores observaram que, em geral,
os espaços destinados para estudo são melhores, por exemplo, que o das celas,
embora muitas transformações tecnológicas e estruturais precisem ser feitas. Já
na observação participante, notou-se que há uma infantilização na organização
dos equipamentos e meios educativos, fazendo-os se assemelharem a escolas
para crianças. Essa é uma crítica importante, pois existe uma tendência de
se tratar os presos como crianças, com intenção de torná-los mais dóceis e
obedientes. E o ensino é um lugar privilegiado para tal: esse fato foi notado nas
unidades prisionais femininas, onde as relações das internas entre si e com as
agentes apresentam tais características. Não foi possível verificar a forma como
a infantilização do ambiente repercute na formação escolar dos detentos que
frequentam os cursos. Porém, esse é um tema que merece aprofundamento, pois
a literatura (Guimarães, Meneghel & Oliveira, 2006) mostra que a segregação e
o tratamento infantilizado dos presos produzem seu isolamento social e reduzem
sua capacidade de falar em causa própria.
Laffin e Nakayama (2013), em estudo acerca do trabalho de professores em
espaço de privação de liberdade, destacam que a aprendizagem que os apenados
precisam para sobreviver à prisão deve ser emancipatória e proporcionar ajuda
para desenvolver a criatividade e a autonomia. Na falta de um processo de
socialização que promova seu desenvolvimento intelectual e social, a maioria dos
detentos, mesmo expressando grandes esperanças, falou sobre as dificuldades
que vislumbram para sua reintegração na comunidade e na sociedade em geral.
Eles consideram que carregarão o estigma de ex-presidiários, e isso influenciará
negativamente em sua reinserção em atividades laborais:
Vou ser visto pela sociedade como um ex-presidiário. As coisas vão ser mais
difíceis! Eu vou querer reconstruir minha vida, mas vai se tornar mais difícil.
A dificuldade maior vai ser arrumar um emprego por esse motivo e porque tenho
pouco estudo. (Homem, Capital)
216
De forma geral, as características que conformam o mundo atual do trabalho
na sociedade livre constituem um desafio para os egressos do sistema. Sobre esse
fato, Santos, Maciel e Matos (2013) reforçam que a precarização das condições de
vida e a necessidade imediata de sobrevivência que, em vários casos, foram fatores
importantes no envolvimento em delitos e na reclusão dos detentos, costumam
permanecer na vida após a prisão, tornando problemática sua reinserção social.
Vários entrevistados mencionaram que a vida pregressa e o estigma que um ex-
prisioneiro carrega contribuem para a reincidência na vida criminal.
Vários homens e mulheres revelaram que têm como objetivo na vida pós-
prisão a retomada dos estudos, para que sua inserção da vida laboral se dê num
patamar mais elevado. Nesse sentido, entre outros depoimentos, uma detenta
relatou que pretende “terminar o terceiro ano do ensino médio e fazer faculdade
de estética”.
Nos espaços livres de expressão houve outras manifestações de esperança
tanto em relação ao estudo como ao trabalho, particularmente, entre as
mulheres: “sair, ser alguém”; “trabalhar, estudar e ser feliz”; “sair desta vida e
ter oportunidades”. E entre os homens, mais de cem deles se manifestaram com
expressões de que a vida reclusa foi um hiato em sua existência e que sonham
com um futuro melhor: “ir embora e ser feliz, sair com pensamentos positivos,
ser um homem melhor, reconstruir a vida”; “ter nova oportunidade na sociedade
com fé no futuro”; “trabalhar, se ocupar e ganhar melhor”; “trabalhar, ter uma
atividade e estudar”.
Assim, existe uma ambiguidade nas expectativas de futuro por parte dos
detentos e das detentas. Grande parte se arrepende dos crimes que cometeu e
gostaria de melhor se integrar socialmente. Na verdade, se houvesse um processo
realmente direcionado para a ressocialização, muitos retomariam a vida de
forma qualitativamente melhor. Outros não querem mudar o rumo de suas
atividades futuras, nesse caso se incluem alguns presos por tráfico de drogas e
armas. Alguns, ainda, têm medo do futuro, de não serem bem recebidos em suas
comunidades de origem nem conseguirem conduzir sua vida livremente, sendo
coagidos a continuar em atividades ilegais.
217
A Família como Estímulo para
a Retomada da Vida Pós-Prisão
A família foi realçada pelos presos como o apoio e a motivação mais
importantes para a retomada da vida fora do cárcere: isso foi mostrado nas
entrevistas, nas respostas aos questionários e pode ser constatado na Tabela 37.
Cerca de 85% dos entrevistados, independentemente do sexo e da localização
geográfica da penitenciária, disseram que contam com seus familiares para
reatarem relações na comunidade e para conseguir emprego.
218
ligação com a comunidade e o mundo exterior, em contraposição ao fechamento
em que vivem. Tais sentimentos e expectativas se manifestam em expressões
como: “sair e estar com a família” e “voltar para a família e cuidar dos filhos”,
ditas por boa parte dos presos, com pequenas variantes. Pinto e Hirdes (2006)
também constataram esse encaminhamento emocional dos presos de valorização
de suas famílias e de suas casas, como um ambiente de proteção e afeto. Esses
autores reforçam que a família se estabelece como o elo mais forte de conexão
do apenado com a vida extramuros e o apoio mais confiável para que sua
desinstitucionalização ocorra com menos problemas.
No entanto, em vários aspectos, as expectativas dos presos em relação à
família são muito idealizadas porque existem inúmeras alterações na dinâmica
familiar quando uma pessoa é presa. Há uma modificação nos papéis sociais,
uns parentes assumem mais responsabilidades, outros apenas se desiludem e
se afastam, outros literalmente se eximem dos novos problemas que a situação
do aprisionamento de um de seus membros gera. Todas essas questões exigem
rearranjos de toda a família, pois geram novos encargos financeiros, demandam
apoio ao detento e cuidados de crianças cujos pais estão reclusos. Não menos
importante, requer uma reinterpretação emocional da nova situação vivida. Por
isso, apesar de haver uma esperança quase absoluta dos presos nesses laços
primários, frequentemente os parentes não estão preparados para responder a
todas as expectativas neles depositadas, particularmente quanto à sua reintegração
na comunidade e na sociedade mais ampla.
É necessário que o sistema penitenciário facilite e reforce os vínculos familiares
dos internos, ajudando-os a evitar o abandono que costumam sofrer e auxiliando-
os a promover, da melhor forma possível, o processo de desinstitucionalização.
Os parentes dos detentos também sofrem com o processo de reclusão e igualmente
carregam o estigma por ter um de seus membros cumprindo pena de privação de
liberdade. Para Guimarães e colaboradores (2006), a família também se encontra
submetida às situações explícitas ou implícitas de controle. Os autores afirmam
que o estigma que os parentes também sofrem começa no choque que lhes causa
a estrutura física pauperizada e malcuidada da instituição prisional, manifesta-
se no silêncio que guardam sobre o local no qual se encontram seus familiares e
termina nos discursos dos gestores prisionais que os responsabilizam pela vida
criminosa de seu membro. Em especial, as mulheres dos apenados, além de todos
esses problemas de ordem cultural e moral, são sobrecarregadas pelas múltiplas
tarefas que desempenham, entre elas, a manutenção econômica da família e o
acompanhamento da execução penal do companheiro.
219
As Expectativas em Relação à História
Pessoal e Outros Aspectos Subjetivos
Os presos e presas sonham com o dia da libertação e, nesse sentido, todas
as suas expectativas pessoais, de saúde e de reinserção são mais positivas que
negativas. Essa visão, mais idealizada do que real, pode ser constatada nas
Tabelas 38, 39 e 40, que resumem as respostas dadas às perguntas do questionário.
Na Tabela 38 observa-se que a visão dos presos e das presas sobre sua vida
pessoal em liberdade é positiva. Porém, mais homens (79,9%) que mulheres
(76,4%) apresentam uma perspectiva otimista. Os presos da Baixada Fluminense
são os que têm expectativa pior em relação à sua vida pessoal, quando comparados
aos da Capital e aos do Interior (p<0,01).
Em relação ao padrão de vida que projetam para depois da prisão, boa parte
dos homens (64,5%), mais que das mulheres (59,4%, p<0,01), também tem uma
220
perspectiva positiva, como se pode observar na Tabela 40. Os detentos do Interior
são mais pessimistas nesse quesito que os da Capital e os da Baixada (p<0,01).
Situação inversa observa-se entre as mulheres do Interior, que demonstram mais
esperanças quanto ao futuro que as da Capital (p=0,005).
Uma parte substancial dos homens e mulheres está detida por envolvimento
com o tráfico de drogas, pela disputa por territórios de vendas de substâncias
ilegais e pela violência armada. Nas entrevistas, alguns detentos e detentas presos
por esse tipo de crime e que cumprem pena na Capital mencionaram que, para
recomeçar a vida, terão que mudar de bairro ou mesmo de local de moradia se
não quiserem voltar para o crime: “Meu marido já está me esperando para a
gente poder abrir um novo comércio, eu não pretendo mais voltar para a minha
cidade por causa do tráfico” (Mulher, Capital). “Começar do zero para viver com
a minha família em paz. Longe dali, do local que me trouxe problema” (Homem,
Capital). Ir para um lugar onde não são conhecidos, na visão de vários presos, os
ajudará a tomar um novo rumo.
Nas instituições femininas localizadas na Capital foram muito marcantes as
falas acerca da participação das mulheres no tráfico de drogas e dos planos que
fazem para a vida após sair do presídio. É importante ressaltar o crescimento do
encarceramento feminino no Brasil por esse tipo de envolvimento. Em estudo
sobre a visibilidade da mulher brasileira nesse particular, Souza (2009) esclarece
que, mesmo com uma taxa de encarceramento muito inferior a dos homens,
chama atenção a velocidade do crescimento da população carcerária feminina
nos últimos anos, superior à dos homens. Sobre o que as levou a prisão e sobre
as expectativas, eis o depoimento de uma das presas:
O que me trouxe para cadeia, por exemplo, as drogas, o tráfico, isso aí para mim
é fundamental, nunca mais! Se possível, eu quero ser um grande instrumento
para falar com as outras pessoas para não se envolverem mais com isso! É o mal,
noventa por cento das mulheres presas estão envolvidas por questões relacionadas
221
à droga. Eu, o objetivo da minha vida, uma meta, o meu foco é falar sobre a droga,
levar para frente isso, que as pessoas digam não à droga, não se envolvam com
droga. A droga é um mal, é um mal terrível, ela só nos causa dor, não só a nós,
mas também para quem está à nossa volta. Meu objetivo de vida é esse: eu quero
ser uma arma contra a droga. (Mulher, Capital)
222
de moradia que frequentemente tem que ser trocado para o ex-preso evitar ser
visto e olhado com desconfiança; com a ausência e falta de apoio de antigos
amigos que não querem ser associados com alguém que esteve na cadeia; para
conseguir qualquer emprego, particularmente no mercado formal, quando
é preciso mencionar a condição de ex-detento; com os preconceitos sociais,
particularmente quando o ex-preso é bastante conhecido ou seu crime repercutiu
muito na mídia e chocou a sociedade.
Apenas como um exemplo do que espera um ex-detento, é relevante o
depoimento de uma mulher que cumpriu 12 anos de pena por homicídio, e foi
entrevistada pela jornalista Elizabeth Misciasci (2014). Nesse relato, a maioria
dos elementos citados está presente:
Bem, na hora em que meu nome foi gritado na galeria, já fiquei com medo,
não sabia por que me requisitavam naquele horário, porque as trancas que se
fecham às 18 horas já tinham batido havia muito tempo. (...) Na verdade, era
para arrumar minhas coisas, porque meu alvará de soltura havia sido expedido.
(...) Fiquei em estado de choque e os meus pertences, que não passavam de
cartas e uma bolsa velha, foi o que peguei com a maior rapidez. (...) Não dá
tempo de se despedir das amigas que fazemos, mas no meu caso, por ser antiga
na unidade, as meninas gritavam felizes e puderam acenar pela boca da cela.
(...) Na prisão, eles permitem um único telefonema para que alguém que a gente
indique possa nos buscar. Como não pode ser número de telefone celular, dei o
telefone da minha cunhada. Ela nunca me visitou, mas eu sabia que meu irmão
receberia o recado. Saí com o uniforme da cadeia, um passe de ônibus que um
agente penitenciário me deu e com meus estimativos pertences. Já no portão da
cadeia, fiquei perdida entre o lado de dentro e a rua. Tinha perdido a noção das
horas, porque na cadeia o tempo não passa. E imaginava que seriam muitas
as que eu teria que esperar. Olhava com vontade de andar, mas não conseguia
sair do lugar, o pânico das luzes que ofuscavam minha vista, tão acostumada
com o amarelão do cárcere, deixava a sensação estranha de que eu não estava
vivendo nada daquilo. (...) Quando meu irmão chegou com a minha cunhada, me
abraçou e choramos. Mas não é assim com todas. Muitas não conseguem avisar
ninguém e saem vagando pelas ruas, perdidas. Meu irmão foi sensacional! (...)
Mas, assim mesmo, tive receio do que me esperava, achava que estava escrito na
minha testa “ex-presidiária”. Particularmente, eu acreditava que teria que dar
explicações a cada um que cruzasse meu caminho, afinal, 12 anos são 12 anos.
(...) Tanto tempo presa, perdi minhas referências como ser humano, tinha pressa
em resgatar o tempo perdido, precisava regularizar meus documentos, fazer um
curso, arrumar trabalho, recomeçar. Como se fosse fácil! (...) Não fui atrás das
velhas amizades, porque essas nunca me escreveram e no fundo a gente sabe que a
discriminação acontece e não podemos obrigar as pessoas a nos entenderem. (...)
223
Das pessoas novas que me cercam e entraram na minha vida, nunca revelei meu
passado, não tenho coragem. Pode ser que daqui a uns anos eu resolva mostrar a
minha cara e a minha história de vida, sem receio, por enquanto não posso. Nem
todos compreenderiam. (...) Recomeçar é difícil sim, quero frisar, eu sou uma
das pouquíssimas exceções das que saem dos presídios depois de cumprirem suas
penas e conseguem uma oportunidade de resgate social. Ainda não me encontrei
completamente, faço terapia e espero conquistar muitas coisas sonhadas desde
a infância. Com minha experiência gostaria de deixar uma mensagem, para as
mulheres, principalmente, as meninas, que estão envolvidas com gente errada:
nada vale mais do que nossa liberdade de ir e vir.
1
Disponível em: <www.google.com.br/?gws_rd=ssl#q=Incubadora+de+Empreendimentos+para+
Egressos>. Acesso: maio 2015.
224
Estado para reinserir ex-detentos no mercado é prevista na Lei de Execução
Penal, mas normas que determinam ou incentivam a contratação de ex-presos
são recentes. Desde 2009 vários governos estaduais e prefeituras, seguindo
orientações do Conselho Nacional de Justiça, aprovaram leis que obrigam ou
estimulam empresas contratadas pelo poder público a ter uma cota de 2% a 10%
de ex-detentos entre seus funcionários.
Em funcionamento há pouco tempo, o Portal de Oportunidades do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) passou também a anunciar vagas de
cursos e empregos para presos e egressos do sistema carcerário. O sistema,
disponível no site do CNJ (<www.cnj.jus.br>), oferece a empresas, órgãos
públicos e outras entidades, um espaço para ofertar vagas em suas atividades,
no intuito de contribuir para a reintegração social de ex-detentos, o que já vem
ocorrendo em vários estados brasileiros, como em São Paulo, Santa Catarina,
Goiás, Distrito Federal, Ceará, entre outros. Segundo o responsável por esse
portal, serão instituídos grupos gestores do programa nos tribunais de Justiça
de todas as unidades da federação, que terão a atribuição de fazer a seleção dos
candidatos e encaminhá-los ao trabalho.
No entanto, apesar do todos os esforços, a sociedade continua a repudiar os
ex-presos, tem medo deles e reage com discriminação. Uma pesquisa da Fundação
Perseu Abramo (2010), revelou que, para 21% dos brasileiros, os ex-presidiários
são pessoas que menos gostariam de encontrar ou ver; eles despertam repulsa ou
ódio em 5%, antipatia em 16% e indiferença em 56% dos cidadãos. Por isso,
“a liberdade virou tormenta”, realçou um jovem que deixou a prisão e foi despedido
do trabalho pela sua condição de ex-preso. E os exemplos se multiplicam.
Sem oportunidades no mercado de trabalho, o ex-presidiário fica sem opções
de subsistência e vê no crime uma das poucas alternativas para continuar a
sobreviver. Como mencionado por vários presos, seu medo é que o preconceito
de que são vítimas acabe os empurrando outra vez para a criminalidade.
225
Conclusões
227
mulheres, essa média é mais elevada. Quase todos os reclusos têm algum tipo de
religião, e as mulheres são mais praticantes que os homens.
Boa parte dos presos cumpre pena por envolvimento com drogas, e os que as
consomem dentro dos presídios, em geral, já o faziam anteriormente à reclusão.
Os entorpecentes mais utilizados na cadeia são álcool, maconha, cocaína e crack,
sendo este último o mais consumido pelos reclusos do Interior. É também muito
relevante o consumo de substâncias tóxicas e de medicamentos psicoativos pelas
mulheres presas.
Os homens estão presos, em média, há mais tempo que as mulheres.
Os homens da Baixada são os que cumprem penas menores e têm menos
tempo de reclusão. Os serviços idealmente previstos pelo sistema são muito
pouco utilizados, tanto pelos homens como pelas mulheres, e a pior situação
é a dos detentos da Baixada. Aliás, estes últimos estão em piores condições de
encarceramento em todos os aspectos. Quando entrevistados, os reclusos das
três áreas ressaltaram a revolta que sentem pelo estado de ócio e desocupação em
que vivem, sendo suas principais atividades: conversar, dormir, ver televisão e
ler. Uma parte muito pequena consegue vencer o estado de inação, aproveitando
as oportunidades que o presídio oferece, estudando, realizando alguns tipos de
trabalho, meditando e se preparando para a saída da cadeia. Estes são os mais
resilientes e capazes de vislumbrar oportunidades mesmo nas piores situações.
Os vínculos familiares são uma espécie de seguro e bálsamo para uma
pessoa presa e atuam como um ambiente de projeção positiva em relação a sua
situação futura. Boa parte dos detentos e detentas mantêm os laços de afeto
por meio de correspondências e de visitas. Porém, um número considerável
deles – particularmente das mulheres e dos presos da Baixada – parece que
foram esquecidos pelas famílias, seja pelas responsabilidades que assumiram
ao cuidar dos filhos dos presos, seja pelas distâncias que precisam percorrer
para chegar às unidades de detenção, seja pelo medo e vergonha que muitos
sentem das “revistas” invasivas, exigidas para adentrarem nos presídios. Nesse
aspecto particular, existe uma clara distinção de gênero: no caso das mulheres,
grande parte dos companheiros as abandona e constitui outros lares; no caso dos
homens, suas esposas ou companheiras costumam acompanhá-los assiduamente,
tomam providências para que tenham algum conforto na prisão e até se arriscam
a entrar nas cadeias com objetos proibidos pedidos ou exigidos por eles.
228
Existe uma solidariedade problemática entre os colegas de prisão. Isso
significa que, por um lado, o ambiente é de ajuda pessoal, apoio emocional e de
compartilhamento dos escassos bens materiais; por outro, qualquer episódio
de descontentamento pode transformar a precária paz em expressões de irritação,
ódio e agressão, sentimentos agravados pela proximidade dos corpos, pela quase
inexistente intimidade, pelo medo dos que se impõem e comandam as celas, pela
falta de água, de higiene e, sobretudo, pela superlotação.
A insatisfação dos presos e das presas é com a forma como são tratados
pelos agentes que os vigiam cotidianamente, quem consideram insensíveis,
grosseiros e inacessíveis e surdos a suas demandas; com os vigilantes que os
conduzem para fora da prisão para os fóruns e para as unidades de saúde, num
regime autoritário, desumano e cruel; com o atendimento recebido ou negado
pelos profissionais médicos, dentistas e enfermeiros e alguns assistentes sociais e
psicólogos. Nos depoimentos sempre foram citadas algumas honrosas exceções.
No entanto, as queixas são contundentes. As mulheres e os homens presos na
Baixada Fluminense são os mais críticos e sob todos os aspectos, são os que
recebem menos atenção do sistema.
A violência, que fazia parte dos relacionamentos criminosos antes de serem
detidos, acompanha homens e mulheres dentro da prisão: mais da metade deles
se considera em risco de lesões e morte. As mulheres e os homens presos na
Baixada são os que se sentem mais vulneráveis e também os que mais se queixam
de agressões físicas, verbais e emocionais.
Há elevados percentuais de pessoas em sofrimento mental dentro dos
presídios. As escalas de avaliação aplicadas neste estudo revelaram que os níveis
de depressão, inclusive os mais graves, assim como os de estresse, são muito mais
elevados que na população brasileira como um todo. Como nos outros casos,
os grupos mais vulneráveis são as mulheres de todas as unidades e os presos da
Baixada Fluminense. No entanto, não se observam cuidados preventivos nem
serviços de atenção nas proporções e com a especialização que a situação exige.
Embora tenha havido uma redução do consumo de substâncias –
particularmente entre os homens – ainda há muitos relatos do uso de variadas
drogas por pessoas de ambos os sexos. Entre as mulheres, é muito relevante o uso
de substâncias tóxicas com predomínio dos medicamentos legais e psicoativos.
Os homens presos na Baixada se destacam por apresentar um número médio de
dias de uso maior de substâncias tóxicas quando comparados aos reclusos das
outras áreas.
229
São inúmeros os problemas de qualidade de vida (mesmo se levando em
conta critérios mínimos) e de saúde mencionados pelos detentos e detentas, o
que reflete um total desacordo com a Lei de Execução Penal e a Política Nacional
de Atenção à Saúde da População Prisional (Pnaisp). As mulheres assinalaram
principalmente: a superlotação, que torna as celas “depósito de gente”; os
banheiros sujos e fétidos; a falta de lençóis e cobertores, mesmo em tempo de
frio; a péssima qualidade da alimentação, em que faltam frutas, legumes e leite;
as dietas especiais não oferecidas às pessoas doentes; as agressões físicas, verbais
e psicológicas; o constante medo de se expressarem; o ócio em que vivem; o
abandono de que são vítimas; e a demora de socorro quando precisam.
Sobre questões médicas, as mulheres referiram problemas ginecológicos,
cardiológicos – particularmente hipertensão –, respiratórios, dermatológicos,
psiquiátricos, neurológicos, ortopédicos, gastroenterológicos, de dependência
química, diabetes, de dentes, e houve pelo menos duas citações de colegas com
tuberculose e uma com Aids. Foram unânimes as queixas contra a falta de atenção
por parte dos serviços que compõem o sistema e contra os problemas que passam
para serem atendidas quando precisam de hospital extramuros, demonstrando
sentimentos de impotência e revolta.
Quanto à qualidade de vida, os homens foram até mais veementes que as
mulheres em seu detalhamento das situações que vivenciam: alimentação, pela
qual o estado paga caro, mas é ruim, sem frutas, verduras e legumes, às vezes,
azeda, estragada, com bichos mortos, moscas, baratas e cabelo. A última refeição
é servida às três horas da tarde, o que os deixa com fome (a maioria é jovem).
Queixam-se também da péssima condição das celas superlotadas, em que muitos
dormem no chão; roupa de cama e colchões imundos onde convivem com
ácaros, ratos, baratas e percevejos; colchões e camas inadequados que causam
problemas de coluna; banheiros constantemente entupidos; falta de privacidade
para fazerem suas necessidades; falta de água; sujeira da água, quando é servida;
e do esgoto que corre a céu aberto em algumas galerias, levando os presos ao
contato com fezes e urina.
Os homens se queixaram muito também da violência dos funcionários.
Alguns disseram que são tratados como bichos e sofrem constrangimentos físicos,
mentais e ofensas pessoais por parte dos agentes. Foi marcante a reclamação
sobre o serviço de escolta para as idas aos fóruns e hospitais extramuros.
Os detentos consideram esse serviço um massacre, na medida em que passam
fome trancafiados o dia todo, algumas pessoas se sentem mal e chegam a
230
desmaiar. Disseram ainda que adoecem pelo pouco sol que tomam e que lhes
falta um serviço social atuante, particularmente ruim em algumas unidades.
Reclamaram muito do sedentarismo, da inatividade, da falta de trabalho, da falta
de comunicação com a direção das prisões e da falta de cursos profissionalizantes.
Em algumas penitenciárias, os presos mencionaram a falta de biblioteca, bem
como se queixaram das condições inadequadas para receber visitas íntimas ou
da sua proibição.
Quanto às questões médicas, muitos homens falaram particularmente
de agravos dermatológicos; cardiovasculares, especialmente da hipertensão; de
diabetes, de problemas respiratórios associados a dores de cabeça e sinusite;
de sintomas psicossomáticos; gastroenterológicos; de dores musculares e de
problemas de coluna pela baixa qualidade das camas ou pelas lesões anteriores
ao aprisionamento ocasionadas por tiros ou agressões. Muitos referiram que
sofrem com dependência química, insônia, ansiedade, vários têm Aids ou são
soropositivos, têm ou tiveram tuberculose, muitos sentem fraqueza, cansaço
e têm hérnia inguinal, problemas urinários, de próstata e múltiplos tipos de
doenças contagiosas.
Para se referirem ao tratamento médico, homens e mulheres usam expressões
como: “é horrível”; “estamos largados”; “é uma piada, é muito triste, é uma merda”
“a UPA e o HC em Bangu são uma carnificina”, “tratam presos como animais”;
“perdemos companheiros por falta de assistência médica de emergência”; “para
ir ao médico só se estivermos morrendo, inclusive no caso dos idosos”. A falta
de profissionais médicos, psicólogos, psiquiatras e dentistas é uma queixa geral
entre os detentos. Além de todas as reclamações sobre a ausência e a qualidade
dos atendimentos, os presos acrescentam que não há médicos depois das 16h, aos
sábados e domingos, nem “atendimento 24 horas como previsto na lei”. Faltam
também ambulâncias para os socorros e emergências.
Diante de condições tão duras, cruéis e revoltantes, as expectativas dos
detentos se voltam para os sonhos de liberdade. O planejamento da vida após
o cumprimento da pena faz parte do processo de “resistência” ao cotidiano do
encarceramento. Ao vislumbrar a vida fora da cadeia e ao alimentar expectativas
quanto ao futuro, muitos detentos, especialmente os homens, costumam adotar
um comportamento mais colaborativo e buscam a inserção em atividades das
unidades prisionais que ajudem a passar o tempo ou mesmo a reduzir a pena.
231
De forma geral, os reclusos se mostram otimistas quanto à vida extramuros.
A família é seu maior estímulo para uma vida distante do ambiente criminoso
em que viviam. No entanto, com razão, preveem dificuldades de reinserção
no mundo do trabalho formal por causa da sua baixa educação formal e quase
nenhuma profissionalização – problemas que, em geral, o sistema prisional
do estado do Rio de Janeiro está longe de resolver. Não tendo sido sanadas as
lacunas de escolaridade e de profissionalização durante o tempo de reclusão, a
reinserção social por meio do trabalho certamente será feita de forma precária
no mercado informal. Boa parte dos que foram detidos por envolvimento com o
tráfico de drogas e armas considera que a saída desse mercado ilícito, inclusive
dos locais onde atuavam, será primordial para a reconstrução de sua vida, numa
nova perspectiva.
Não foi objetivo desta pesquisa analisar o lado da gestão do sistema, dos
funcionários e das autoridades responsáveis pelo cumprimento adequado da Lei
de Execução Penal e da Pnaisp. Existe um estudo em andamento desenvolvido
pelo mesmo grupo responsável por esta pesquisa que poderá trazer elementos
importantes no pareamento das questões suscitadas aqui acerca dos presos.
Ainda que mais pesquisas precisem ser desenvolvidas, já se pode afirmar que
tanto os relatórios de inspeção ambiental como as observações realizadas em
campo e as falas reiteradas dos presos corroboram o quanto a prisão é um lugar
inadequado para a ressocialização.
Inicialmente quatro aspectos poderiam ser imediatamente melhorados
para que o tempo do encarceramento pelo menos fizesse sentido e não fosse
uma mera etapa de castigo físico, mental e moral no estado do Rio de Janeiro:
o investimento na melhoria das celas e a adequação do número de presos ao
tamanho delas; a implementação de uma nova lógica nos meios de transporte
para os atendimentos dos presos extramuros; o fortalecimento e o incremento
de atividades de ensino formal e profissional para que abrangessem um número
maior de detentos; e acesso ao trabalho para todos os reclusos de forma que
os ajudasse na remissão da pena e tornasse mais fácil sua reintegração social e
promovesse a diminuição da reincidência criminal.
No caso da saúde – setor cujos problemas, em quase todos os aspectos,
têm uma magnitude muito maior que na população em geral –, o investimento
na gestão e nas relações entre detentos e profissionais é fundamental. Embora
algumas atividades sejam conduzidas de forma adequada, falta efetivar programas
de promoção da qualidade de vida e de prevenção de doenças, a maioria passível
232
de realização. A UPA do Complexo Penitenciário de Gericinó, por exemplo, exige
atenção especial, na medida em que ela está subutilizada, enquanto as queixas
dos presos contra a falta de assistência se multiplicam.
Os problemas aqui descritos, claramente, pedem consideração e atuação
mais presente da direção dos presídios, da Defensoria, do Ministério Público e
do Sistema Judiciário. Pela pouca efetividade ou mesmo inutilidade do sistema
penitenciário atual é importante encontrar formas alternativas de punição e
atuar na melhoria das condições ambientais e vivenciais dos que estão detidos.
É fundamental também ouvir e dar voz às pessoas encarceradas: 40% delas estão
sem a pena atribuída, muitos consideram que já deveriam estar em progressão para
o regime semiaberto e há diversos casos em que os presos se dizem injustiçados e
não têm a quem recorrer a não ser às instâncias públicas. Infelizmente, por serem
pobres, não podem constituir advogados e vocalizar de forma adequada seus
interesses. É lastimável que a acessibilidade tanto à Defensoria Pública como a
todas as outras instâncias seja tão complicada, difícil e lenta, levando os detentos
a se sentirem abandonados pela Justiça.
Alguns entrevistados e vários estudiosos referidos na pesquisa não acreditam
no instituto da prisão. Entre frases dos presos, duas são eloquentes “a partir
daqui de dentro, nada pode melhorar nossa vida lá fora”; “nessas condições é
impossível socializar”. Entre os estudiosos, o pensamento de Coelho (1987)
é contundente. Esse autor considera que a prisão sobrevive exatamente porque é
ineficaz. Torna-se indispensável porque fracassa em sua missão específica, pois
quanto menos cumpre seu papel ressocializador, mais recursos ela consome na
busca de melhorar algo que já nasceu condenado. Na sua visão, a prisão foi um
equívoco histórico com resultados sinistros que ninguém ainda teve coragem
de assumir. No mesmo sentido, Quintino (2006: 6) afirma que “descobrimos
até com certo desapontamento que não há como melhorar a prisão, porque ela
traz desde sua raiz o peso de uma enorme contradição: tentar punir e tratar ao
mesmo tempo”. O próprio Foucault (2009) lastima que apesar da luta pelo fim
da pena de prisão ter-se iniciado junto com seu próprio surgimento, o Estado
continue a investir cada vez mais para tornar os cárceres um lugar capaz de
vigiar, punir e corrigir os que infringem as normas e as leis, apostando nessa
forma de disciplinamento e de coerção social. Infelizmente, os resultados desta
pesquisa não aliviam esse sentimento de ineficácia e de tempo perdido que marca
a vida de tantos homens e mulheres presos. Como se pode esperar ressocialização
se os cárceres são apenas punição?
233
Considerando que a população encarcerada é constituída predominantemente
de jovens negros e pardos das periferias dos grandes centros urbanos e que esses
jovens sairão um dia dessas instituições, é imperativo investir em políticas que
não somente sejam capazes de ressocializá-los e reintegrá-los socialmente, mas
que sejam capazes de principalmente garantir seus direitos fundamentais.
Entretanto, na forma como está constituído, o sistema prisional,
frequentemente, contribui para o aprofundamento das múltiplas exclusões
vivenciadas pelos reclusos antes do encarceramento. As deficiências identificadas
pelos presos em relação ao pouco acesso à escolarização e à profissionalização nas
unidades prisionais suscitam modificações não somente para ampliar esse acesso,
mas também para estabelecer um sistema educacional que valorize e possibilite
o desenvolvimento de potencialidades, habilidades e competências e que ajude
os presos a enfrentar as dificuldades das relações sociais que encontrarão na
vida extramuros.
A prisão é uma instituição da sociedade e para a sociedade: suas mazelas
afetam direta ou indiretamente todos os cidadãos. Alguns estudiosos, como
Norbert Elias (1994), afirmam que a situação das penitenciárias em qualquer
lugar do mundo é um indicador do grau civilizatório de seu povo. Por exemplo,
a reincidência no crime por parte dos ex-detentos é uma prova de que o sistema
carcerário não cumpre sua função de ressocialização, ao contrário, ela permanece
como uma imagem-objetivo desacreditada. Entretanto, a questão é muito mais
profunda: a integração dos ex-presos numa sociedade não é apenas uma ação
setorial do sistema carcerário, mas é parte da construção de um processo
democrático em que os direitos econômicos, sociais, culturais e educacionais
dos jovens pobres, negros e pardos são, na prática, os mesmos dos filhos de
pais abastados e poderosos. Nesse sentido, o Brasil e, no caso específico, o Rio
de Janeiro têm um longo e pedregoso caminho a percorrer. Quem acredita na
ação política e institucional do ser humano na história dá os primeiros passos
e conta com todos que, juntos, seguem a mesma estrada do humanismo contra
a barbárie.
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Formato: 16 x 23 cm
Tipologia: Candara | Elision
Papel: Polen bold 70g/m2 (miolo) e Cartão Supremo 250g/m2 (capa)
CTP, impressão e acabamento: Imos Gráfica e Editora Ltda.
Rio de Janeiro, novembro de 2015