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VI CAPÍTULO

PROPOSTAS BÁSICAS
PARA FAZER TEOLOGIA DO
ANTIGO TESTAMENTO

Nossa tentativa de focalizar problemas cruciais não­


resolvidos que estão no centro da crise atual na teologia do
AT revelou que há inadequações básicas nas metodologias
e abordagens do presente. A pergunta inevitável que sur­
giu é: para onde vamos a partir daqui? Nossas restrições
aos caminhos trilhados por biblistas indicaram que uma
abordagem basicamente nova precisa ser elaborada. Uma
forma produtiva de seguir em frente parece ter de se assen­
tar nas seguintes propostas básicas para fazer teologia ve­
terotestamentária:

1. A teologia bíblica precisa ser entendida como uma


disciplina histórico- teológica. Isto quer dizer que o biblista
engajado em fazer teologia do Antigo ou do Novo Testamento
deve reivindicar como sua tarefa a de descobrir e descrever
o que o texto queria dizer e também explicar o que ele quer
dizer hoje. O biblista tenta "voltar para lá"1, i.e., deseja eli­
minar o hiato temporal superando o lapso de tempo entre
sua época e a dos testemunhos bíblicos por intermédio do
estudo histórico dos documentos da Bíblia. A natureza desses

1
Essa expressão é de WRIGHT, The Theological Study of the Bible, p. 983.
236 TEOLOGIA 00 ANTIGO TFSTAMENfO PROPOSTAS BÁSICAS PARA FAZER TEOLOGIA 00 AT 237

documentos, contudo, exige, na medida em que eles próprios ompetem entre si; suas funções são complementares. Am­
são testemunhos do propósito eterno de Deus para Israel e o bos precisam trabalhar lado a lado, beneficiando-se mutua­
mundo manifesto por atos divinos e palavras de juízo e sal­ mente de seu trabalho. O biblista deve expor as categorias,
vação na história, a passagem do nível da investigação his­ t mas, tópicos e conceitos bíblicos, que, em contraposição às
tórica da Bíblia para o da investigação teológica. Os teste­ "idéias claras e precisas" do teólogo sistemático, muitas ve­
munhos bíblicos não são apenas testemunhos históricos no zes não são tão claros e precisos. Com muita freqüência, as
sentido de terem se originado em épocas e lugares específi­ categorias bíblicas são mais sugestivas e dinâmicas para ex­
cos; são, ao mesmo tempo, testemunhos teológicos no senti­ pressar a rica revelação do mistério profundo de Deus. Con­
do de testificarem como palavra de Deus a realidade e atua­ seqüentemente, a teologia bíblica tem condições de dizer ao
ção divinas na medida em que dizem respeito à historicidade ser humano moderno algo que a teologia sistemática não pode
do ser humano. A tarefa do biblista é, portanto, interpretar dizer e vice-versa.
as Escrituras de maneira que faça sentido, com o uso cuida­
doso das ferramentas da pesquisa histórica e filológica, pro­ 2. Se se entende a teologia bíblica como uma disciplina
curando entender e descrever, ao "voltar para lá", o que o histórico-teológica, segue-se que seu método apropriado pre­
testemunho bíblico queria dizer, além de explicar o sentido cisa ser histórico e teológico desde o início. Uma teologia do
do testemunho bíblico para o ser humano moderno em sua AT pressupõe uma exegese fundamentada em princípios e
própria situação histórica específica. procedimentos corretos. A exegese, por sua vez, necessita
O biblista não substitui nem compete com o teólogo sis­ da teologia veterotestamentária. Sem a teologia do AT, o tra­
temático ou o especialista em dogmática. Este último tem e balho de interpretação exegética pode facilmente correr o
sempre terá de cumprir sua tarefa empenhando-se para usar perigo de isolar textos avulsos do todo. Por exemplo, se se
filosofias atuais como base para suas categorias ou temas está familiarizado, com base na teologia veterotestamentá­
primordiais. É de fato apropriado que o teólogo sistemático ria, com o tema do "resto" na época anterior e contemporâ­
opere com categorias filosóficas, porque seus fundamentos nea aos profetas literários, não se deixará de notar que o
diferem dos do teólogo da Bíblia. Este extrai suas categorias, emprego que Amós faz do tema do resto é, até certo ponto,
temas, tópicos e conceitos do próprio texto bíblico. Ele corre unilateral entre os profetas pré-exílicos. E se se conhece a
o perigo de introduzir sub-reyticiamente a filosofia contem­ teologia de Amós a respeito do "resto", provavelmente não
porânea em sua disciplina2 • E preciso que se resguarde cui­ se entenderá erroneamente tal teologia em seu todo como
dadosamente dessa tentação. E necessário, portanto, enfati­ uma mera expressão do aspecto positivo de um "resto san­
zar que o teólogo da Bíblia e o teólogo sistemático não to" salvo do juízo escatológico ou como uma expressão de
um remanescente insignificante e sem sentido do povo eleito
2
DULLES, The Bible in Modem Scholarship, p. 215, afirmou, não sem razão, de Deus3 • Por outro lado, uma exegese cuidadosa, perspicaz
que "muitas teologias supostamente bíblicas hoje em dia estão tão acen­ e sólida sempre terá condições de checar criticamente a teo­
tuadamente infectadas com o pensamento contemporâneo individualis­ logia veterotestamentária.
ta, existencial ou histórico que sua base bíblica se torna altamente suspei­
ta". Neste sentido, KARL BARTH e RuooLF BuLTMANN foram muitas vezes
acusados de encontrar um número demasiadamente grande de suas pró­ 3
Veja HASEL, The Remnant: The History and Theology of the Remnant Idea from
prias idéias filosóficas favoritas na Escritura. Genesis to Isaiah, pp. 173-371.
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Neste ponto temos de fazer uma pausa para registrar o tínua de causas e efeitos em que não há lugar para a trans­
lembrete de H.-J. KRA.us de que "uma das questões mais difí­ cendência7. "O historiador não pode pressupor uma inter­
ceis com que a teologia bíblica se confronta atualmente é a venção supranatural no nexo causal como base para seu tra­
do ponto de partida, do sentido e da função da pesquisa his­ balho. "8
tórico-crítica"4. VoN RAo percebeu, de modo mais perspicaz Em consonância com isso, deve ser possível explicar
do que seus predecessores que produziram teologias do AT acontecimentos históricos por causas históricas anteceden­
no século XX, que o teólogo da Bíblia não pode enveredar tes e entendê-los por analogia com outras experiências his­
pela senda de um "mínimo assegurado de forma crítica", se tóricas. O método que se orgulha de sua natureza e objetivi­
de fato procura compreender "as camadas profundas da dade científica acaba ficando sob o domínio de seus próprios
experiência histórica que a pesquisa histórico-crítica é inca­ pressupostos dogmáticos e premissas filosóficas acerca da
paz de sondar"5• A razão da incapacidade desse método de natureza da história. C. E. BRAATEN vê o problema da seguin­
sondar todas as camadas da profundidade da experiência te forma: "O historiador muitas vezes começa afirmando que
histórica - i.e., a unidade interna de acontecimento e sentido conduz sua pesquisa de maneira puramente objetiva, sem
baseada na irrupção da transcendência na história como a pressuposições, e termina introduzindo sub-repticiamente um
realidade última que o texto bíblico testifica - assenta-se em conjunto de pressupostos cujas raízes estão profundamente
sua limitação para estudar a história com base em seus pró­ fixadas numa Weltanschauung [mundivisão] anticristã." 9
prios pressupostos. Uma teologia bíblica que se assente numa concepção de his­
O método histórico-crítico, originado no iluminismo6, vê tória baseada num continuum constante de causas e efeitos
a história como um continuum fechado, como uma série con- não pode fazer justiça à concepção bíblica de história e reve­
lação nem à reivindicação de verdade feita pela Escritura10 •
4 KRAus, Biblische Theologie, p. 363; cf. p. 377. A este respeito CHILDS, Biblical
Theology in Crisis, p. 141s., escreve: "O método histórico-crítico é inade­
quado para estudar a Bíblia como a Escritura da igreja porque não opera uma defesa em "Vom theologischen Recht historisch-kritischer Exege­
a partir do contexto necessário. (...) Quando vistas a partir do contexto do se", ZTK, v. 64, pp. 259-281, 1967; id., Der Ruf der FRE1heit, 3" ed., München,
cânon, as questões do que o texto queria dizer e do que ele quer dizer 1968.
7 OTT, v. II, p. 418: "Para Israel, a história consistia apenas na auto-revela­
ficam inseparavelmente ligadas e ambas fazem parte da tarefa da inter­
pretação da Bíblia como Escritura. Na medida em que o uso do método ção de Javé por palavra e ação. Era inevitável que, mais cedo ou mais
crítico ergue uma cortina de ferro entre o passado e o presente, ele é tarde, houvesse conflito quanto a este ponto com a concepção moderna
inadequado para estudar a Bíblia como Escritura da igreja." Com relação de história, pois esta considera perfeitamente possível construir um qua­
à inadequação do método histórico-crítico para a busca do Jesus histórico, dro da história sem incluir Deus. Para ela, é muito difícil supor a existência
veja LADO, The Search for Perspectives. da atuação divina na história. Deus não tem um lugar natural nesse es­
5
TAT, v. I, p. 120; cf. OTT, v. I, p. 108. quema."
6
Isso precisa ser percebido com clareza, se não se quer confundir as ques­
8
R. W. FUNK, The Hermeneutical Problem and Historical Criticism, in: J. M.
tões. EBELING, Word and Faith, p. 42: "O método histórico-crítico se origi­ ROBINSON; J. B. CoBB, Jr. (ed.), The New Hermeneutic, New York, 1964, p. 185.
9 C. E. BRAATEN, Revelation, History, and Faith in Martin Kiihler, in: l<ÃHLER, The
nou da revolução intelectual dos tempos modernos." Sobre todo esse
aspecto, veja WILCKENS, Über die Bedeutung historischer Kritik in der moder­ So-called Historical Jesus and the Historie Biblical Christ, Philadelphia, 1964,
nen Bibe/exegese. E. REISNER propõe uma crítica da adequação do método p. 22.
histórico-crítico para a pesquisa teológica em "Hermeneutik und historis­
10
WALLACE, THZ, v. 19, p. 90, 1963; cf. BARR, Revelation through History in the
che Vernunft", ZTK, v. 49, pp. 223-238, 1952, e E. KAsEMANN propõe Old Testament and in Modern Theology, p. 201s.
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VoN RAo veio a reconhecer que "um método histórico-crítico Afirmamos que o método apropriado para a teologia
aplicado de maneira coerente [não] poderia realmente fazer íblica deve ser tanto histórico quanto teológico desde o iní­
justiça à reivindicação de verdade da Escritura do AT" 11• O io. Presume-se, com demasiada freqüência, que a exegese
que se precisa salientar enfaticamente é que existe uma di­ tenha a função histórico-crítica de revelar o sentido de tex­
mensão transcendente ou divina na história bíblica com que tos avulsos e que a teologia bíblica tenha a tarefa de reunir
o método histórico-crítico é incapaz de lidar. "Se todos os sses aspectos avulsos num todo teológico, a saber, num pro­
acontecimentos históricos precisam, por definição, ser expli­ cesso seqüencial. H.-J. KRAus exigiu, com razão, um "proces­
cados por causas históricas suf icientes, então não há espaço so bíblico-teológico de interpretação" em que a exegese te­
para os atos de Deus na história, pois Deus não é um perso­ nha desde o início uma orientação bíblico-teológica15 • Se
nagem histórico." 12 Se nossa concepção de história não nos acrescentarmos a esse aspecto que um método apropriado e
permite reconhecer uma intervenção divina na história atra­ adequado de pesquisa do texto bíblico necessita levar em
vés de atos e palavras, então não temos condições de lidar conta a realidade de Deus e sua irrupção na história16, por­
de maneira adequada e apropriada com o testemunho da que o texto bíblico testifica a dimensão transcendente na re­
Escritura. Somos, portanto, levados a concluir que a crise alidade histórica 17, então temos uma base sobre a qual as
referente à história na teologia bíblica não é tanto resultado interpretações histórica e teológica podem andar de mãos
do estudo científico das provas, mas, sim, da inadequação dadas desde o princípio, sem precisarem ser separadas arti­
do método histórico-crítico de lidar com o papel da trans­ ficialmente em processos seqüenciais 18• Com esta base é pos-
cendência na história devido a seus pressupostos filosóficos
acerca da natureza da história13• Se a realidade do texto bí­ 15
KRAus, Biblische Theologie, p. 377.
blico testifica uma dimensão supra-histórica que transcende 16
Esse aspecto também é destacado por Fwvo V. FrLSON, "How I Interpret
as limitações auto-impostas pelo método histórico-crítico, the Bible", Interp, v. 4, p. 186, 1950: "Trabalho com a convicção de que o
único método de estudo realmente objetivo leva em conta a realidade de
então é preciso empregar um método que possa esclarecer
Deus e sua atuação e de que qualquer outro ponto de vista está carrega­
essa dimensão e possa sondar todas as camadas da profun­ do de pressuposições que de fato, mesmo que sutilmente, contêm uma
didade da experiência histórica e lidar de modo adequado e negação implícita da fé cristã plena."
apropriado com a reivindicação de verdade feita pela Escri­ 17
Uma das pressuposições do método histórico-crítico é a aplicação consis­
tura 14. tente do princípio da analogia. Escreve E. TROELTSCH: "O meio que torna
possível a crítica [junto com o método histórico-crítico] é a aplicação da
analogia.(...) Ora, a onipotência da analogia implica que todos os aconte­
11
OTT, V. II, p. 417. cimentos históricos são idênticos em princípio"(ap. VON RAo, OTT, v. I, p.
12
LADO, Interpretation, v. 26, p. 50, 1971. 107). VON RAo afirma em TAT, v. II, p. 9, que o curso da história delineado
13
VoN RAo, TAT, v. II, p. 9: "O método histórico nos dá acesso a somente pelo método histórico-crítico também "é história interpretada com base
um aspecto do fenômeno multiestratificado da história, justamente àquele em pressupostos histórico-filosóficos, que não permitem qualquer reco­
que não pode dizer nada sobre a relação entre a história e Deus." nhecimento da ação de Deus na história porque, notoriamente, só o ser
14
VoN RAo, TAT, v. I, p. 120; OTT, v. I, p. 108. OsswALD, Wissenschaftliche humano é considerado o criador da história". MrLDENBERGER, Gottes Tat im
Zeitschrift der Universitiit Jena, v. 14, p. 711, 1965: "Com a ajuda da ciência Wort, p. 31, nota 37, concorda com VON RAo e acrescenta que a crítica
crítica certamente não se pode fazer qualquer afirmação sobre Deus, histórica "pressupõe uma relação cerrada da realidade que não admite
pois não há caminho que leve da ciência objetivante da história para uma causas 'supranaturais'".
verdadeira expressão teológica. O processo racional de conhecimento da 18 VoN RAo, TAT, v. II, p. 12, fez a seguinte observação acerca desse aspecto:

história permanece limitado à dimensão espacial e temporal(...)." "A interpretação teológica de textos do AT, na verdade, não se inicia
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sível "voltar para lá", para o mundo do autor bíblico supe­ respectivos métodos apropriados de interpretação. Mas que­
rando o hiato temporal e cultural, e procurar entender em remos dizer que a interpretação da Escritura deve passar a
termos históricos e teológicos o que o texto queria dizer. En­ fazer parte de nossa própria experiência real, como o deve­
tão torna-se possível exprimir de maneira mais adequada e ria toda interpretação20 • A interpretação histórico-teológica
abrangente o que o texto quer dizer para o ser humano no deve estar a serviço da fé, para que possa .sondar todas as
mundo moderno e sua situação histórica. camadas da profundidade da experiência histórica e pene­
Este procedimento metodológico não procura desconsi­ trar no sentido pleno do texto e da realidade que nele se ex­
derar a história em favor da teologia. O teólogo da Bíblia que pressa. Precisamos, portanto, ratificar que quando a inter­
trabalha com um método tanto histórico quanto teológico pretação procura compreender afirmações e testemunhos
reconhece plenamente a relatividade da objetividade huma­ acerca da auto-revelação de Deus como o Senhor dos tem­
na 19. Correspondentemente, ele tem consciência de que não pos e acontecimentos, que escolheu revelar-se em aconteci­
deve permitir nunca que sua fé o leve a modernizar seus mentos efetivos, datáveis, da história humana por meio de
objetos de pesquisa com base na tradição e comunidade de atos e palavras de juízo e salvação, então o processo de com­
fé em que se situa. Deve inquirir o texto bíblico nos próprios preensão de tais afirmações e testemunhos precisa ter, desde
termos deste e admitir que sua tradição e o conteúdo de sua o início, caráter histórico e teológico a fim de captar plena­
fé sejam contestados, orientados, avivados e enriquecidos por mente toda a realidade que neles se expressa.
suas descobertas. Reconhece ainda que uma abordagem pu­
ramente filológica, lingüística e histórica nunca é suficiente 3. O biblista engajado numa teologia veterotestamentá­
para desvendar o sentido completo de um texto histórico. ria tem seu objeto indicado de antemão na medida em que
Podem-se empregar todos os instrumentos exegéticos dispo­ está empenhado numa teologia do Antigo Testamento. Ela
nibilizados pela pesquisa histórica, lingüística e filológica, e baseia-se exclusivamente em elementos extraídos do AT.
nunca chegar ao âmago da questão, a não ser que haja uma O AT chega a esse biblista por meio da igreja cristã como
entrega à experiência básica a partir da qual falam os auto­ parte das Escrituras inspiradas. A introdução ao AT procu­
res da Bíblia, a saber, a fé. Sem essa entrega, nunca se chega­ ra iluminar os estágios pré-literários e literários dos livros
rá a um reconhecimento da realidade integral expressa no veterotestamentários reconstituindo a história de sua trans­
testemunho bíblico. Não queremos fazer da fé um método missão e formação, bem como as formas textuais e a canoni­
nem pretendemos desconsiderar que os livros bíblicos, como zação do AT. Estuda-se a história de Israel no contexto da
documentos do passado, precisam ser traduzidos do modo história da Antiguidade, enfatizando especialmente o anti­
mais objetivo possível através do emprego cuidadoso dos go Oriente Próximo, onde a arqueologia tem sido inestimá­
vel no sentido de proporcionar o contexto histórico, cultural

quando o exegeta, formado em crítica literária e história (ou numa ou na 20


Restringir-se à filologia, lingüística e história no estudo da Epopéia de
outra!) concluiu sua tarefa, como se tivéssemos dois processos exegéti­ Gilgamés ou dos anais assírios, sem ao menos considerar os autores
cos, primeiramente um histórico-crítico e depois um 'teológico'. Uma desses documentos, sem sequer tentar partilhar das experiências deles
interpretação teológica que procure apreender uma afirmação sobre Deus que se expressam em tais documentos, significaria não atinar nunca com
no texto atua desde o início no processo de compreensão." o conceito de realidade que essas pessoas alcançaram e que constituiu
19
Veja também STENDAHL, IDB, v. I, p. 422. suas próprias vidas e idéias.
244 TEOLOGIA 00 ANTIGO TESTAMENTO PROPOSTAS BÁSICAS PARA FAZER TEOLOCIA 00 AT 245

e social para a Bíblia. A exegese tem a tarefa de revelar o da transmissão da tradição" ou "história da revelação" 24 nem
sentido integral de cada texto. numa "teologia da crítica da redação" ou coisa do gênero.
A teologia veterotestamentária pergunta a respeito da Uma teologia veterotestamentária é, antes de mais nada, uma
teologia dos diversos livros ou blocos de escritos do AT2 1, interpretação e explicação resumida dos escritos ou blocos
pois este se compõe de escritos cuja origem, conteúdo, for­ de escritos do AT. Isto não quer dizer que.não seja valioso
mas, intenções e sentido são muito distintos. A natureza des­ captar a teologia de tradições particulares; entende-se sim­
sas questões torna imperativo o exame do material à mão à plesmente que isto faz parte de outra tarefa. O processo de
luz do contexto que, para nós, é primordial, a saber, a forma explicação da teologia dos livros ou blocos de escritos do AT
como ele se apresenta a nós pela primeira vez, como uma em sua forma final25 como estruturas verbais de conjuntos
estrutura verbal que é parte integrante de um conjunto lite­ literários tem a clara vantagem de identificar as semelhan­
rário22. Assim encarada, uma teologia do AT não se trans­ ças e diferenças existentes entre os diversos livros ou blocos
formará numa "história da religião" 23, nem numa "história de escritos. Isto significa, por exemplo, que as teologias de
cada um dos escritos proféticos poderão permanecer, inde­
pendentemente, uma ao lado da outra. Cada voz pode ser
21
Essa ênfase foi aplicada à teologia do NT especialmente por ScttLIER, The ouvida em seu testemunho da atuação de Deus e da auto­
Meaning and Function of a Theology of the New Testament, e à teologia
do AT por .KRAus, Biblísche Theologie, p. 364, D. J. McCARTHY "The Theology
revelação divina. Outra vantagem dessa abordagem, crucial
of Leadership in Joshua 1-9", Bíblica, v. 52, p. 166, 1971, e CHILDS, Biblical para todo o empreendimento da teologia do AT, é que ne­
Theology in Crisis, pp. 99-107, com ênfase própria. nhum esquema sistemático, padrão de pensamento ou abs­
22
Os críticos literários contemporâneos (não-bíblicos) acentuam especial­ tração extrapolada é sobreposta ao material bíblico. Como
mente a "nova crítica", que os alemães chamam de Werkinterpretation.
Cf. W. KAISER, Das sprachliche Kunstwerk, 10. ed., Bern-München, 1964;
EMIL STAIGER, Die Kunst der Interpretation, 4ª ed., Zürich, 1963; Horst En­ afirma que "o leitor não encontrará neste livro uma teologia do Antigo
ders (ed.), Die Werkinterpretation, Darmstadt, 1967. A preocupação pri­ Testamento, mas, sim, uma história da religião israelita.(...) Os teólogos
mordial, de acordo com os profissionais da "nova crítica", é ocupar-se também sentirão falta de pontos de vista baseados na Heilsgeschichte
com o estudo de uma obra literária concluída. A "nova crítica" insiste na [história da salvação]; esses pontos de vista têm seu lugar, mas só dentro
integridade formal do documento literário como obra de arte, como de uma exposição teológica"(p. v).
Kunstwerk. Tal obra deve ser apreciada em sua totalidade; olhar atrás 24
.KRAus, Biblische Theologie, p. 365: "A 'teologia bíblica' deveria ser teologia
dela para tentar descobrir a história de sua origem é irrelevante. A ênfase bíblica por aceitar o cânon nas conexões textuais dadas como a verdade
é colocada no produto literário acabado na qualidade de obra de arte. histórica que necessita de explicação, cuja forma final necessita ser apre­
Um número crescente de estudiosos do AT vem assumindo a ênfase da sentada por meio de interpretação e síntese. Esta deveria ser a tarefa
"nova crítica". Entre eles estão: Z. AoAR, The Biblical Narrative, Jerusalem, efetiva da teologia bíblica. Toda tentativa de adotar um procedimento
1959; S. TALMON, "'Wisdom' in the Book of Esther", VT, v. 13, pp. 419-455, diferente não seria teologia bíblica, mas 'história da revelação', 'história
1963; M. WEiss, "Wege der neueren Dichtungswissenschaft in ihrer Anwen­ da religião' ou mesmo 'história da tradição'."
dung auf die Psalmenforschung", Bíblica, v. 42, pp. 225-302, 1961; id., 25
A ênfase na "forma final" mesmo para a tarefa da exegese é defendida
"Einiges über die Bauformen des Erzahlens in der Bibel", VT, v. 13, pp. por M. Norn, Exodus: A Commentary, Philadelphia, 1962, p. 18; LANDES,
455-475, 1963; id., "Weiteres über die Bauformen des Erzahlens in der Union Seminary Quarterly Review, v. 26, p. 273ss., 1971. BARR, The Bible in
Bibel", Bíblica, v. 46, pp. 181-206, 1965; id., The Bible from Within: The the Modern World, p. 163ss., salienta bem corretamente que a "forma final
Method of Total Interpretation, Jerusalem, 1984. do texto tem importância primária, o que, provavelmente, deverá ser
23
Dever-se-ia evitar classificar um livro como Israelite Religion, Philadel­ aceito mais amplamente ainda com a influência tanto da 'crítica da reda-
phia, 1966, de H. RiNGGREN, como teologia do AT. O próprio RINGGREN ção' quanto do estruturalismo."
246 TEOLOGIA 00 ANnGO TESTAMENTO PROPOSTAS BÁSICAS PARA FAZER TEOLOGIA 00 AT 247

nenhum tema, esquema ou tópico é suficientemente abran­ tada com toda a variedade e todas as limitações que o pró-
gente para englobar todas as variedades contidas nos pon­ prio A T lhes impõe. Por exemplo, os temas da eleição
refletidos no chamado dirigido por Deus a Abraão e nas
tos de vista veterotestamentários, é preciso abster-se de usar
promessas feitas a ele e aos patriarcas de Israel, a libertação
um determinado conceito, fórmula, idéia básica, etc. como o
divina do Israel escravizado, na experiência do êxodo, e o
centro do AT, através do qual se alcance uma sistematiza­
estabelecimento do povo na Terra Prometida, e a escolha de
ção dos testemunhos múltiplos e variegados do AT. Por ou­
Davi por Deus e as promesas que Ele lhe fez, sendo Sião/
tro lado, precisamos ratificar que Deus é o centro do AT como
Jerusalém o monte santo e lugar de habitação divina,
seu tema central. Ao dizermos que Deus é o centro do AT,
necessitam ser apresentados, numa teologia do AT, na
afirmamos que a Escritura do AT possui um conteúdo cen­
variedade de suas manifestações e em­pregos em cada
tral, sem cairmos na armadilha de organizar num sistema o
livro ou bloco de escritos. Isto também se aplicaria a um
caráter centrado em acontecimentos da revelação pela qual
conceito tão central como a aliança mosaica. A ação
Deus se manifesta. Evita-se, assim, sistematizar o que não
inteiramente graciosa do Deus que deu a aliança fez com
pode ser sistematizado, mas não se deixa de captar sua na­ que as pessoas que a receberam respondessem e criou o
tureza essencial. relacionamento especial e singular entre elas e seu Peus.
O conceito de aliança fornece elementos importantes para a
4. De preferência, a apresentação das teologias dos li­ adoração e o culto, bem como para a proclamação dos pro­
vros ou grupos de escritos do AT não seguirá a ordem dos fetas e para a teologia dos livros históricos. Nestes conceitos,
livros na seqüência canônica, pois esta ordem, seja no cânon tópicos e temas do AT, bem como em outros, há uma expec­
hebraico, seja na LXX, etc. teve, aparentemente, motivos que tativa básica em relação ao futuro, a saber, a bênção futura
não foram teológicos. Embora seja reconhecidamente difícil para todas as nações, o novo êxodo, o segundo Davi, a nova
determinar a data de origem dos livros, grupos de escritos Jerusalém, a nova aliança - o que revela que é necessário
ou blocos de material dentro desses escritos, ela pode servir perceber que a fé israelita está intensamente direcionada
de guia para se estabelecer a ordem de exposição das diver­ para o futuro. Tópicos especiais da teologia sapiencial sali­
sas teologias. entam a vida e a responsabilidade do ser humano no aqui e
agora. Foge a nosso propósito enumerar a variedade de con­
5. Uma teologia veterotestamentária procura não ape­ ceitos, temas e tópicos principais.
nas conhecer a teologia dos vários livros ou grupos de escri­ A apresentação dessas perspectivas longitudinais dos
tos, mas também tenta reunir e apresentar os principais testemunhos veterotestamentários só pode ser feita com base
temas do AT. Para fazer jus ao nome, a teologia veterotesta­ num tratamento diversificado. A riqueza de seus testemu­
mentária precisa permitir que seus próprios temas, tópicos e nhos pode ser apreendida por tal abordagem multíplice que
conceitos sejam determinados pelo próprio AT. O âmbito dos corresponde à natureza do AT. Essa abordagem multíplice,
temas, tópicos e conceitos do AT sempre se imporá ao teólo­ junto com o tratamento diversificado de temas longitudinais,
go na medida em que silenciarem os dele próprio, depois que liberta o biblista da noção de uma abordagem unilinear arti­
as perspectivas teológicas do AT sejam realmente compre­ ficial e forçada, determinada por um único conceito
endidas. Em princípio, uma teologia veterotestamentária deve estrutu­rante, seja ele a aliança, a comunhão, o reino de
tender a usar temas, tópicos e conceitos, e deve ser apresen- Deus ou
PROPOSTAS BÁSICAS PARA FAZER TEOLOCIA 00 AT 249
248 TEOLOCIA 00 ANTIGO TF.STAMENTO

gentes e multiformes do AT. Pode-se de fato falar de uma


alguma outra coisa, a que todos os testemunhos, pensamen­
unidade na qual, em última análise, as expressões e os
tos e conceitos do AT sejam levados a fazer referência ou em
testemunhos teológicos divergentes são mutuamente
que sejam forçados a se enquadrar.
relacionados de modo intrínseco, a partir do ponto de vista
teológico, com base num pressuposto derivado da inspiração
6. À medida que o AT é interrogado em relação à sua
e canonicidade do AT como Escritura.
teologia, ele responde revelando primeiramente diversas te­
ologias, a saber, aquelas de cada livro e grupo de escritos e, Um método aparentemente bem-sucedido de lidar com
em seguida, revelando as teologias dos diversos temas lon­ a questão da unidade consiste em tomar os principais temas
gitudinais. Mas nossa disciplina, por se chamar teologia do e conceitos longitudinais e explicar se e como as diversas te­
AT, não se preocupa apenas em apresentar e explicar a va­ ologias estão intrinsecamente relacionadas entre si. Desta
riedade de teologias diferentes. O conceito prenunciado pelo forma, pode-se iluminar o vínculo subjacente da única teo­
nome da disciplina visa a uma teologia, a saber, a teologia logia do AT. Na tentativa de buscar e explicar a unidade
do AT. interna, é preciso abster-se de fazer da teologia de um único
A meta última da teologia veterotestamentária é demons­ livro ou grupo de livros a norma do que seja teologia do AT.
trar se há ou não uma unidade interna que vincule as diver­ Não se deve, por exemplo, fazer de uma determinada teolo­
sas teologias e temas, conceitos e tópicos longitudinais. Este gia da história a norma da teologia veterotestamentária26 •
é um empreendimento extremamente difícil que contém Deve-se permitir que as teologias freqüentemente negligen­
muitos perigos. Se por trás da experiência das pessoas que ciadas, em especial aquelas dos textos sapienciais do AT, si­
nos deixaram as Escrituras do AT existe uma realidade divi­ tuem-se lado a lado com outras teologias. Elas dão sua con­
na singular, então parece que por trás de toda a variedade e tribuição especial à teologia veterotestamentária, em pé de
diversidade da reflexão teológica há uma unidade interna igualdade com as mais reconhecidas, porque também elas
oculta que também reuniu os escritos do AT. O objetivo últi­ expressam realidades do AT. A questão da unidade acarreta
mo de uma teologia é, portanto, tirar, tanto quanto possível, tensão, atrito, mas isto não implica, necessariamente, con­
essa unidade interna de sua ocultação e torná-la transpa­ tradição. Parece que onde a unidade conceituai não é possí­
rente. vel, a tensão criativa daí decorrente acabará sendo extrema­
A tarefa de alcançar essa meta não pode ser executada mente frutífera para a teologia do AT.
com pressa excessiva. Deve-se evitar a tentação de encon­
trar a unidade num único tema ou conceito estruturante. 7. O teólogo da Bíblia entende que a teologia do AT é
Nesse ponto deveriam surgir receios, não apenas porque a mais do que a "teologia da Bíblia hebraica". O nome "teolo­
teologia do AT seria reduzida a um desenvolvimento - de gia do Antigo Testamento" implica o contexto mais amplo
seção transversal ou de outra natureza - de um único tema da Bíblia da qual o Novo Testamento constitui a outra parte.
ou conceito, mas também porque se perderia de vista a ver­
dadeira tarefa, que é justamente não deixar de perceber ou 26 Este é o caso inclusive da abordagem de VON RAo. Ele escolheu uma
passar ao largo das variegadas e diversas teologias, buscan­ determinada teologia da história, a do Deuteronomista, como a norma
do e articulando, ao mesmo tempo, a unidade interna que principal para sua exposição da teologia do AT. Desta forma, as tradições
parece vincular, de maneira oculta, os testemunhos diver- sapienciais são forçadas a passar para o segundo plano.
250 TEOLOGIA DO ANTIGO TF.SrAMENTO

Uma teologia integral do AT precisa demonstrar sua relação


básica com o NT ou com a teologia do NT. Para o teólogo
cristão, o AT tem caráter de Escritura com base em sua rela­
ção com o outro Testamento.
Como observamos anteriormente, a questão multíplice
e a natureza complexa da relação entre os Testamentos e
sua implicação para a teologia do AT tornam necessária a
opção por uma abordagem multíplice27 • Esta permite indi­
car a variedade de conexões entre os Testamentos e evita
uma explicação dos multiformes testemunhos por meio de
uma única estrutura ou um ponto de vista unilinear. A abor­
dagem multíplice tem a vantagem de permanecer fiel tanto
à semelhança quanto à dessemelhança, ao velho e ao novo,
sem distorcer nem um pouco o testemunho histórico origi­
nal do texto em seu sentido literal e sua intenção querigmá­
tica nem ficar aquém do reconhecimento do contexto mais
amplo do qual o AT faz parte. Assim, os dois Testamentos,
em última análise, iluminarão um ao outro e ajudarão um
ao outro numa compreensão mais abrangente de suas teo­
logias.
***

Com base nessas propostas que esboçam uma nova abor­


dagem da teologia do AT, tem-se condições de elaborar-se
uma teologia veterotestamentária que evite as armadilhas e
becos sem saída que provocaram sua crise atual. Ao mesmo
tempo, pode-se estar mais perto de produzir uma teologia
bíblica, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, tão
esperada e discutida.

27
Veja capítulo V acima.

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