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‘iii ‘A proposta sofia para criancas de Matthew Lipman é ertamente tent tiva mais signifiatvaesistematica de apreximara flosofia das criangas, Por tum lado, porque indo além de algumas ‘oncepgies romintcese idealizadas, tle foi o primeira Sldsof a levar a sétio ‘uma fundamentaco tears que permita colacar a flosofa como feramerte-chave na educagio das cians. Por auto lado, porque levou tao a sia ida, que ‘laborou nfo apenas uma fundamen ‘ago teeriea para ela, mas também dau crigem au dispositive patio & institucional para viablizla. A aplca: ‘ho do programs Flosofa para criancas traz cansgo alguns pressupastos e Iimlieagbes que, no sendo considera: dos, geri, muias vezes, um emprege técnica epouco eflaxva da propasta Este io traz algunas linhas para com preender de forme qualitatva 0 vabalho e losofia para ciancas. Como uma tentatva de contbuir para a eleio sobre esse signfatve programa, a obra tematza os principals desatios queen Frenta a pratica da flosofia com criancas na atualconjuntua educacional do Brasil Dividimos esses desaios em rs eos norteadores: trio, metodotbgico ¢ poltico-nsitucional. Os desafios tedricos fstho dados pela necessidade de pens, basicamente, ts pergurtas: "Por que Fiosofa?" "0 que € a flosofa?* “Para ‘ue Flosoia para criangas?" Os desafos ‘etodologicos propsem problematizar ‘questes ais como "O que é um born professor?" "O que significa aprenden” "Com ensinar a flosfar> Por itimo, 0s dessfvs poiicoinstitucanais questio- ‘am assuntos tals come: "Qual o papel de flosafia para ciangas no sistema ‘educacional brasieiee?" "Quais 2s esa. ‘gas mais adequadas para tal funga02" FILOSOFIA PARA CRIANCAS lop cana te. (2000 Ride ai: ne, © Lamarna tors Pron si emi cae Ferman Rodgnes Diagrao ete fe) Pl Teles ein Prods 3 reprodapo ttl ox prc por guagur melo oa pres, see ‘epic, lpia, pf, micaagen ce Eas pe spear Se umbem is craters ges eo edotas. Awol ds arte Sas pune como crime (Cédigo Pel ari eff Le 6895/80) com ‘apn ns deta 90/8 or Dt sew tesss ray. tnqena do Sind Racin do tors de in as nel ok, Wate Oma Fuss prs cae Waler Omar Waban. Ride Jane: pia 2008 EG ogra ISBN sr 98arr504 "Plo ate nn Bement). 2. Cangas comme comtey Lamping edt (ep 20241190 Rod una RB FILOSOFIA PARA CRIANCAS Walter Omar Kohan at edigio SUMARIO Apesenasio 3 segunda edo 7 Introdugso " ‘As tlaie entre fone infos a lofi par rans a descbeta de Mathew Lipman 15 carirvio 1 Os fandamentos eins do programa fla par congas de Matthew Lipman 7 Ode de ls papel do profesor 2 (dal de nwa em comida odds losco 28 ea de educapte democrtica eo pensar de ondem sperior™ 9 ‘vireo 1 A metodolgi do program fila par criss de Mathew Lipman currcal navelae manuals floor Ashabildade copii dumvlidas pela las, segnds Lipman 5 om sab na ala de and rica deapuneexenpos 6 ‘oviroio 1 A instituconalizaio de fla pra criangar Linhat gras do movimento no mando 7 Insiwo pao Deenavinen de Flo par Cron (UAC Instn for the Advancement of Pilscophy {for Chie) ~ sad Uridor % Constho Internacional par a InvetigastoFsfca ‘com Chinas (ICPIC~ International Count for Pitosphical ng with hidren) 8 Os outros ates da America % Associa Norteamercons pare « Comunidade de Investigao (NACI ~ North-American Asotin forthe Community ofan) 92 ‘hofroro Desf tua para pensaraprtica 4 lesofa com eriangas no Beas Desai tesco Denis metodalgias Desf plticoinsitucionas ara saber mats sobre lesa pra criancas 3 104 195 106 109 APRESENTAGAO A SEGUNDA EDIGAO Filosofia para criancas fo escrito hé oto anos. Formava parte de uma colegio que se inttulava pomposamente "O que voc® pre+ cisa saber sobre..”, de modo que ele tinha a pretenszo, também, pomposa, de oferecer ao lito tudo o que é necessio saber sobre {filosfia para criangas (fpe). Embora a pretensio fosse realmente ‘exagerada, o livro, em sua primeira edicio, dava conta razoavel- mente do recado. Sua estrutura era bastante simples: estava este turado em torno do programa pioneiro de flsofia para criancas de Matthew Lipman. Considerava que, para um ne6fitona matéria, a tentativa de Lipman constituiria uma introducao excelente. Como o livzo pretendia manter um carter flos6fico, essa introdugao pro- ‘lematizava diferentes aspectos da propesta de Lipman. Assim, 0 texto estruturava-se em cinco partes. A primeira apresentava os fundamentos teGricos de fpe, em torno de trés questoes princi- pais: a) 0 papel do professor; b) a filosofia entendida como forma dialopica de investigacao;c) a relagio entre o pensar de order superior e a educagio democritica. Uma segunda parte apresen: tava a metodologia de fpc, seu curriculo, composto de novelas e manuals, para trabalhar nas escolas, Unna terceira parte analisava 2s linhas gerais do movimento no Brasil e no mundo, desde sua ‘riagdo a fins dos anos 1960 nos Estados Unidos e sua intvodu- ‘0 no Brasil nos anos 190. A quarta parte apresentava desafios, para pensar a prtica da ilosofia com criancas no Brasil, segundo ‘ns eixos: um eixo teérco, outro metodolégico e, finalmente, ou- ‘to politco-nsttucional. Finalmente, a sltima parte apresentava, subsidios ~ recomendagies bibliografcas, sites de consult, lstas de discussio etc. ~ para saber mais sobre flosofa para criangas ‘Talvezessailtima parte sejaa mais desatualizada pelo passo| dos cito anos, porque além do feroz desenvalvimento da internet, rea tomou novos impulsos e muitos trabalhos publicaram-se [FILOSOFLA PARA CRIANGAS ‘no Brasil eno exterior. Também se desenvolveram muttas pesqui sas que tiveram como resultado dissertaes de mestrado ou teses ‘dedoutorado, surgiram novas instituiges e,enfim, o movimento, ‘continuow ampliando-se. A tarefa de atualizarexaustivamente as, referéncias comporta 0 rico de afastar o bom por causa do ideal. De modo que citarei apenas alguns dos exemplos mais préximos fe fornecereialgumas ferramentas que podem auxiliar a busca do leitor interessado sem pretender um completo aggiornamento das referéncias. Para comesar, hi uma ferramenta bastante til dispo: nivel na internet, de acess livre, usm banco de dados bibiogrético em vewwsfiloeduc.orgybase. Tratase de uma base ligada a projeto de pesquisa respaldado pelo CNPq com quase trés mil trabalhos entre livros, artigos, teses, dissertagbes etc. accessvel em quatro Tinguas: portugues, espanhol, francés e inglés. Sao textos sobre censino de filosofia em geral, mas boa parte dees diz respeito es. pecificamente ao trabalho de flosofia com criancas. A base aceita ‘buseas por autor, titulo, tema e também palavras-chave. Entze 0s muitos livos escritos e publicados nos tltimos anos no Brasil, estaco apenas alguns. Muitos dees sio produto de es: ‘tudes de doutorado, Por exemplo, A crianga ea educapdoflostfica, de Claudine! Liz Chitolina (Maringa: Dental Press, 2003) €uma_ sla apresentagio dos fundamentosflosdficos e pedagégicos do, programa de Lipman bem como uma reflexdo sobre os impasses, fe perspectivas de sa introdugio no Brasil; por sua vez, Filosofia, para a formasao da crianga, de Paula Ramos de Olivera (Sto Pau- lo: Thomson, 2004) apresenta um jeito particular de pratcar a filosofia com criangas na experiéncia do Grupo de Estudos e Pes {quisas Filosofia para Crlancas (GEPFC) da Universidade Estadual Paulista de Araraquara. Embora com os limites de seu proprio dogmatism, A flsofia vai a escola? Contribuigses para a critica do programa de flosofia para criangas de Matthew Lipman, de René José Trentin Silveira (Campinas, SP: Autores Associados, 2o0t) é uma ferramenta ttl para os interessados numa critica sociopolitica do programa de Lipman. Para os inteessados nos mais pequeninos, Filosofia na educagto infantil (José Auri Cunha, ‘Campinas: Alinea, 2005, 2. ed, € altamente recomendavel. Por Altimo, merece destaque um livropublicado por uma das pessoas ‘mais sapientes e rigorosas na rea da fllosofia para criangas no Brasil, Flosfa: fandamentos e métodos de Marcos Antinio Lo- rier (Sto Paulo: Cortez, 2002) Olivo condensa uma experiencia teéricae pritica de quase trinta anos formando professores em. {ilesefia para criancas no Bras ‘Com relacio aos recursos metodol6gicos para trabalhar com ‘xiangas, também a publicacio de novos materials tem sido muito, ‘ampla. Dau, apenas como exemplo,a série “Textos para comecar ‘a filosofar", sob minha coordenasi0 na Editora Vozes com textos, de diversos autores e para distinta faxas etrias. ‘Com relacio aos periddicos, merece destaque Childhood & Philosophy, jornal eleténico do scr (International Council for Philosophical Inquiry with Children), com periodicidade semes- tral, disponivel no site www filoeducorg/childphilo e que publica trabalhos em portugués, espanbol, francés, inglés italiano, grego, alemao erusso. Se esta apertada atualizacio da quintae dltima parte do livro apenas mascara o que precisaria um trabalho de revisto muito, ‘mais profundo, nlo considero que a situagao seja semelhante no caso das quatro primeiras partes do ivr, Ao contrive, julgo que, ‘embora a producio tenka sido importante e as “novas priticas” crescentes nos tltimos anos, a base oferecida naquelas primei- as quatro partes do liv ainda mantém sua atualidade. Conti> ‘nuo pensando que o programa jilosfia para criancas de Matthew Lipman, apresentado de forma critica e problematizadora, uma ‘excelente introducto ao campo. E ainda considero que 0s desafios, teéricos, metodolégicos e politico-nsttucionais ali expressados ‘mantém seu valor para pensar 0 movimento flsofa para crianeas no Brasil hoje, Porque afinal, bem entendido,flosoia para crian- ‘as € um movimento floséfico-educacional, o que significa que Sera, sempre, mais pergunta que resposta Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 2007 INTRODUGAO As relagSes entre flosofiaeinfancia [As relagdes entre filosofi ¢infincia vém de longa data. Js para os antgos filsofos pregos a infancia nao passou despercebida, Nada disso, Nos testernunhos que conservamos dos primeitos fl6sofos, pré-socrticos, nos albores do século v a.., aparece uma referén cia i crianca como uuma imagem que fala do tempo-destino. "Tats se do fragmento 52 de Hericlito, um texto obscuro, compleso, Ele diz: “0 tempo & uma crianga que joga as damas:o reino de uma ‘rianga”, Hericlito esta falando do tempo-destino, do tempo-devr, do tempo da vida humana (utiliza a palavra grega aidn, em vez de chrénos), como se esse tempo fosse uma crianga que brinca um jogo que parece com nosso jogo das damas. Nesse jogo o decisivo nndo éa sorte, mas a capacidade de situarse na lta, saber bloque aro caminko do adversiio eultrapassar suas defesas (lembre-se ‘que, para oflésofo de Bfeso, a guerra € 0 comum, fragmento 80,¢ cla érainha de todas as coisas, fragmento 53). 0 tempo, enquanto devir, uma erlanga que jogs, diz o enigmstico Heréclito, como st alogica do devirfosse a mesma logica de um jogo e como se fo tempo tivesse a mesma relacio de poder sobre 0 nosso devir, ‘que a crianga tem sobre esse jogo. F muito ousado avangar mais na interpretagao desse texto: mas, em qualquer caso, parece uma, ‘imagem poderosa da infncia, ‘A antiga literatura grega oferece imagens com a mesma fora ‘exptessiva, Algumas delas expressam o poder atribuido & infin ‘da: Aquiles matou um java quando tinha apenas seis anos de ‘dade; Ciro foi eleito rei aos dez anos de idade; Alcibiades impediu a passagem de uma enorme careuagem sendo muito pequeno; 0 liveo Antigona de Séfocles, osibio Tirésias, cego €conduzido por uma criang Cita testemunlha que a infancia€ para os gregos tum periodo extraordindvio para o aprendizado: “é eomum dizer que 0 que se aprende sendo crianga fica de modo admirivel na smeméria" (Plato, Timeo 26). Iscrates, Plato, Aristételes, todos os grandes tericos da educasao do crédito a essa afirmagio. Na segunda metade do sécul v,Sécrats, que ensina adolescentes a filosofar na praca pablica,afirma que sua paixo maior, ter um bom amigo, esté com ele desde sua infncia (Plato, Liis 2d, Inimeros testemunhos coincidem em afirmar que a8 criangas ‘tém ainda algumas caracterstcas fisicas positivas como o chei- 10 doce da respirarao eda pele e, também, a leveza. Existe uma tendéncia na filosofiae na cultura grega de considerarainfincia ‘como uma fase privlegiada da vida humana Hi, contudo, uma forte tendéncia contréria. Com efeito, ‘embora 0 que possam sugerie aqueles testerunos, predomina entre os filésofos gregos do periodo cssico uma visio negativa da infincia, No proprio Heréclto alguns outros fragmentos 630 conta dessa visBo: © homem pode ser chamado de cranga frente a divindade; ele est frente &divindade na mesma relagio em que a crianca es frente a ee fragmento 79). No periodo clssico, a ‘ys entre outras e merece ser compreendida e problematizada nos seus fundamentos, metodologiae pritica. A importincia singular de Lipman deriva de ser ~como Freud para a Psicandise, Sansst re pata a Linglstica, ou Weber para a Sociologia ~ um iniciador, ‘um fundador e, 20 mesmo tempo, de tentarlevar pratica o cami tho por ele fundado, Mas de forma alguma sua proposta esgota as possibilidades de tal campo. Apenas as nica, Precisamente por esse caréter fundacional, e também pela {mportanciae impacto internacional de seu programa ~ hoje ele 5 se apica em mais de 30 paises do mundo, com o Brasil a frente eles, estudaremos com algum detalhe neste livro. 'Naprimeira parte, procuraremos explicitar os elementos prin- cipais da fundamentagio tebrica de sua proposta. Num segundo ‘momento, adentraremos em seus principios metodologicos. Num. terceiro momento, desenvolveremos seus aspectos institucionais, ‘Aqui apresentaremos um estado atual da desenvolvimento do cam- po filesofia para criancas em diversos paises do mundo ¢, sobret- o, no Brasil. Todos esses capitulos nao serio apenas descritivos Nels, procuraremos explicar os pontos principals da proposta de Lipman e, também, contribuir com elementos que nos permitam, problematizé-a. Por dltimo, num quarto momento, ofereceremos alguns desafio da prtica da filosofia com criangas no Brasil, nes se século que entra, repensando o camino iniiado por Lipman, Talvez seja esse um bom momento para nos determos no titula que acompanh todos os volumes desta coles0,“O que voce precisa saber sabre... © campo de flosofa par criangas pertence, ‘como tal, &filosofia. Como campo filos6fico ele € polémico, con- troverso, espagoso, inesgotivel, de final aberto, Talvez seja bom. deixar claro desde o inci, portanto, que aqui estamos longe de ‘qualquer pretensio de oferecer a flosofa para criangas, como se esta fosse a tinica forma de entendé-la. Neste pequeno livro, proc raremos oferecer apenas alguns elementos bisicos para que oleitor, compreenda e pense eriticamente essa nova irea da filosofia. Na verdade, mais do que “o que & necessrio saber’, esperamos que 0 leitor encontre aqui “algo com o qual épossivel pensar” esta extracr- diniria chance da educagio que chamamos filosfa para criangas. Para facta altura do texto, no incluiremos em seu corpo notas nem referéncias bibliogréficas, Esperamos que o leitor sea ‘compreensivo com essa opyio. Procuramos, antes de mais nada, tornar a leitura do texto mais amigivel. Para reparar, pelo menos fem parte, essa falta, a0 final inchuiremos uma seqlo intitulada “Para saber mais sobre filesofia para criancas. Nela ofereceremos as fontes principals que sustentam cada capitulo e referencias para os interessados em amplia os temas apresentados neste texto. Finalmente, agradego a Bernardina Leal, pela correcio atenta ce carinhosa a primeira versio dest texto {He io ft orignalente publica em 200 cro vole da cals “O que sek preci sher ae” dnedirs DPWA, 6 (0 FUNDAMENTOS TEORICOS DO PROGRAMA FILOSOFIA PARA CRIANCAS DE MATTHEW LIPMAN ‘A fundamentagio que Lipman oferece para sua proposta & ela- ramente normativa. Isto significa que, nela, Lipman diz como deveria ser uma educagto filoséfica das crianeas. Para isso, pro- oe uma argumentacso na qual alguns ideais desempenham um ‘papel-chave. No intuit de apresentar a linhas prineipais de sua ‘proposta, nos concentraremos em trés categorias que nela pos- suem papéis centrais: losofia, investigacao e educacio demacri tica. Vamos apresenti-las enfatizando as inluéncias mais signif- ‘ativas na historia da filosofia que contribuiram para a proposta, de Lipman, 0 ideal de filosofia eo papel do professor © propésito central da proposta de Lipman €levar a flosofia is clang. Mas, que flosofa€ essa? Como compreendé a? Como reconheca? Quais sto as principals caracersticas de sua nor rmatividade lossfia? Fm muitos dos seus trabalho (19903, 19932, 1995, 19998) Lipman enfatiza a dstingio entre Blosofia eBlosofar,ente a So sofia como sistema ou tora ela como priica, como fazer Bessa ‘ikima que Lipman tentalevar is eriangas. Testa de fzer com que cas pratiquem a filosfia, a faeam, a exezzam, a vvenciem, Claro que, nessa pritic, a flsofa come teoia, como conjunto de pensamentos, est presente Por isso, Lipman fez uma cons trucao da histria da losfia para que ela pudese ser experien- clada peas criangas, Porque, segundo Lipman, nfo se pode pro priamente losofr sem filosoia, nfo €possvel fazer boa filosfia Sem contato com aquiloquea filosfia tem produzido de melhor, pelo menos nos vinte e cinco séculos de historia no Ocidente sta distngdo vem, pelo menos, desde Kant, para quem n0 € possivelensnarfilosola, mas se pode ensinar a filosofar 1983, 407-9 ~ B 865-9} Na opinto de Kant, a dstineao estéatrlada 2 uma concepso da flosofae de um sujeito transcendental que {fundamenta, Em sentido Kantano, filosoia nfo pode ser ensi- rnada porgue ela, enquantoideia de uma cineiapossivel, sempre ‘ inacabadae, portant, nko pode ser aprendida nem apreendida E possivel, no emant,exerer talento da azHo na observancia dos seus principosuniversisem cerastentativas existentes’. Por isso, para Kant 6 posse aprender ilosofar, reservando-se sem pre arazio"e dirt de investiga esses principios ns as préprias Fontes confirms ou rejeitos”. Kant afrma, desse modo, a pos siilidade do exercicio autonome de uma raz osofanteacima da castncia de um sistema acabado de conhecimento filosico. Mesto que ndo sea de forma explicta, a distincio pode remontar alguns séculos aris, até 0 velho Socrates. 0 proprio Lipman faz inmerasreferéncias a Socrates nos seus trabalhos tebricos fem especial 1990b, € 1993, p 437-476). Asepuit anal saremos em que medida hi uma coerespondénci entre o ideal de filosofia proposto por Lipman eaquelepraticado por Socrates. 1H outra azo que torna necessirio falar sobre Socrates neste livto, Aqui estamos ocupados com filoaa para cranes e como jf atecipames na introduso, nenkum dos nomesilustres da flosofia chegou to proximo do didlog filosofico com as rian ‘as quanto Socrates. Para falar de Scrates, devemos primeito fazer alguns escl- recimentos. Em muitos sentido, Sderates €0 pai da filosoiae dos filbsofos. Fuse o que oleitor pode estar pensando neste momen- to: "Sécrates outa vez?" *Serd que nto se pode falar de filosfia sem falar de rates?” Compreendo essa inquietagio. Pole pare cer que sobre Sécrates i tenha sido dito tudo. Como se isto fosse Posse. Masque isso. histra da losofia mostra que falar de Scrates,além de necesito, tora-se imprescindiel quando se far filosofia,Talver por causa de sua vida e sua more; talvez pelo fato de ele ter inventado flosofia, pelo menos uma forma de flosofia ainda significatva at os dias de hoje. Tarsbém por isso, teros que falar de Sécraes. ey Mas falar de Sécrates nto s6 € necessitio, como também muito diffcll Séerates néo escreveu nada, Escolheu no fazé-lo. Sabia que a palavraescrita & mais limitada do que a palavrafalada Quando falamos, excolhemos o interlocutor, quando escrevemos, 6 leitor nos escolhe. Sécrates escolheu ndo ser escolhido por lito res. Preferiu escolher seus interlocutoes. Esse silencio escrito de ‘Socrates nio tem sido fcil de digerie para os filsafos. Amando-o ou odiando-o, todas querem falar com Sderates. Como se, nesse didlogo, os fildsofos encontrassem um ato fundacional. Como se Socrates tvesse instaurada ndo 86 a filsofia, mas a prépria con- digho de filosofar. Sorte para nés que Plstio no fez muito caso do seu mestre 0 descreveu prolficamente. Dessa forma, o didlogo com Sécra tes acaba sendo sempre indireto, mas, pelo menos, possvel. Dos testemunhos que falam de Sécrates, 0 de Patio 6, sem davida, 0 ‘mais importante para afilosofia. Sendo Platto um notéve filéso fo, 0 prego que pagamos para falar com Sécrates nlo € baixo. Na verdade, quando falamos com Sécrates, estamos falando com um, Socrates platénico. Nao podemos ter muitas pretensoes de falar ‘com 0 S6crates histrico. Pelo menos para a flosofa, o encontro centre Sécrates Plato € indissociave Sécrates foi personagem de quase todos os didlogos plat nicos. $6 nto aparece no tiltim, Is. Como se Plato se tivesse apartado gradativamente de Sécrates. Nos primeiros dilogos, sua presenga € fundamental ele € 0 condutor de todos eles. Nesses didlogos, ele coloca em prética uma certa forma de entender a filosfia. Como sabemos, Sécrates fi acusado de introduzir novas divindades e de corromper os ovens de Atenas. Foi julgado e con: denado, Ts dislogos de Plato narram 0 processo: a Apologia de Sécratesdescreve o julgamento; o Criton, uma tentatva de alguns amigos de Sécrates para que ele fugisse da cadeia antes de ser fexecutada a sentengs; 0 Fédon, as itimas conversas de Sécrates atéo momenta de bebera cicuta e morrer. Na Apologia, como estratégia de defesa, Socrates se identifica com a flosofia. Considera a acusaglo contra ele uma acusacio contra a propria flosofia. Ninguém antes de Sécrates, pelo menos. com testemunhos que tenham chegado até nds, chegou to perto da filosofia. Por isso, Sécrates & ofundador da cidade dafilosofia, isthe um nome, desenha seus caminhos. Fa isso nada menos que frente a um tribunal host, liderado pelos representantes da 9 El IIIS politica instituida, Mostra que a filosofa e a politica institida de seu tempo slo incompativeis. A politica instiuida sabe tudo, sscraliza o banal, descua do mais importante. Ao contro ds 5, a flosfia pergunta,reconhece limites, pergunta, desconstéi © aparente eo falso, pergunta, dessacalza 0s valores afirmados socalmente, pergunta,cuida de sie dos outros, pergunta, re sist 8 ordem instituida, pergunts, outa vez pergum', sempre pergunta ‘Nessecontexto,acondenacao de Sécrates (a flosofia) 3 mor teélogica. Inclusive, ele no parece incomodarse muita com ese resulao. Ele ri dos politicos, mostrathes que valoram o menos importante e desprezam o mais signifcativ, Tém os valores ‘ransmudados. Cuidam de tudo, menos dees mesmos. Em ne rnhum momento Sécrates pretende mostar a flosofia como pres- cindivel ou inocente frente & politica. Na verdade, sto dus pol ticas que se enfrentam: a dos politicos e a dos flsofos. A cuas parecem incompatives. Na arena da jstgainstituids, a filosoia tem melhores argumentos, masa politica tem muito mais fora Por ss, Sécrates (filo) €condenado a morte No julgamento, Socrates rejeta a posibldade de gunkar a Iiberdade se 0 prego for deixar de flosofar: “urna vida sem ex 1me nio€ digna dese vivda por um ser humano" (Apologia 38), como sea pritica da ilosofia, ofilosoar, no pudese falta numa Vida propriamente humana; como se, para um sex humane, Vver sem perguntas nio fosse vver de verdade, Sérates mostra que rio 26 necesita da filosofia para viver, mas que necesita dela também para morter, para terminar Sua vids, para morrer de verdade, para humanizar sua morte, para actla como parte da ‘ida. Assim so as vidas e morts filosbficas, que convidam iver morte naflosoia,na pergunta, na busca, na esisténca, Nos primeiros dslogos de Plato, Sécratescaloca esse oso farem pratca. Sto conversa curtas, A maori delas acontece em locas piblios, sobre quests intrigantes da vida humana como acoragem, a amizade,austica, a prudéncia, a piedade. No come: Ge das conversas os interlocutor acreditam saber o que significa Seterminado eoneto, No final 0 didlogo mostra que aquele aps rente saber nio era tale pergunta fica em aber, + © Buffon € um bom exemplo desses primeitosdilogos. Sé- crates se encontr, por acaso, com este especialista em questes religiosas, Ped a cle que le ensine o que € 0 sagrado, Quer me Ihor para isso que o sacerdote Eulifron? Este acita prontamente, [Nao sabe com quem se mete. Suas respostas nao satisfizem a SO: ‘rates, Eutifion dé exemplos,caracteristicas,instincias do sagrado, ‘mas nto consegue defini, mostrar a “esséncia" do sagrado, aquilo due faz com que todas as coisas que chamamos “sagradas”sejam cfetivamente sagradas, aquela nica caracteristica pela qual algo ‘que chamamos "sagrado” & sagrado. O lenchossocrtico€ implaci- vel, Nio perdoa nenlhuma falta logico-concetual na argumentagio do outro. Ao final do dislog, Eutifron sai correndo ante sua propria impoténcia de responder as perguntas socritias. A pergunta “o ‘que €0 sagrado?” fica de pé, ea busca floséfica deve continuar. Em que sentido essa concepcao de filosofiaexpressa e pra ‘cada por Sécrates &compartilhads por Lipman? Quais si os seus ppontos de contato, suas semelhancas ¢ dferengas? Vejamos. Hi ‘uma primeira similitude muito expressiva. Tanto Lipman quan to Socrates enfatizam a dimensto priticae dialogica da filosofa, Um e outto dio prioridade a filosfia como atvidade dialégica, Para ambos, a ilosofia€ algo que se exer, se cultiva, se vive em idlogo com outros. Alm disso, para ambos a pritica de flosofia tem implicagies ‘educacionais de grande importincia em uma unidade de sentido sociopolitica. Isto significe que tanto um como outro consideram (quea pritica da flosofa ésubstancialmente educativa, na medida em que contribui para formar espritoseriticos, pessoas dispostas a deixar de ter certeza sobre seus saberes © ase colocar atentas ‘para questionar os valores e as idéias que formam suas vidas € as vidas dos seus semelhantes. Para os dois, uma verdadeira ed ‘ago ndo pode deixar de ser flosofca e uma verdadeiraflosoia, ‘lo pode deixar de ser educativa Pois bem, as proximidades entre Lipman e Sécrates nio se fencerram aqui. Além de terem dado uma importancia singulae A pritica dialogica da filosofia na educagio das pessoas, os dois acreditam numa certa popularizagio dessa prétca. Nao existem, limites cronolgics ou de qualquer outro tipo que possam minat tal importincia, Nao & necessiria uma preparacao previa ~ como © extenso curriculo que Plato ideou na Replica vin ~ para ter acesso 2 filosofia. Os dois consideram que no hi requisites pré- vios para participar dessa busca, a nio ser 0 reconecimento de sua necessidade e do nio-saber sobre o assunto a ser investigado, assim como o desejo de querer aprender Pois bem, hé alguns pontos de contato ainda mais signif: cativos, no que diz respeite a forma em que ambos concebern tal pritica. Lipman segue Sécrates em manter a ligago e o compro ‘isso da filsofia com a vida, projetando a pergunta € 0 exame ‘muito além das salas de aula onde se trabalha msjortariamente seu programa, A investgacio flsofica nao, de acordo com Lipman, apenas um exercicio retrico sobre questdes externas aos que a praticam. Fla “oloca em questo" os dogmatismos que habitamn a vida individual ecoleti Nos dois cass, a filosofia é compreendida como uma bus: «a, como uum exame, como um caminho que os partcipantes do didlogo dever percorrer juntos. Para Lipman e para Socrates, a linguagem ¢ 0 riciocinio desempenham um papel central no crescimento do dialogo. Ambos sio cuidadasos no uso e no exe ‘me da linguagem e na andlise das razdes que fundamentam 3s, tessituras que vio sendo apresentadas no didlogo, Esse caminho ‘omega para ambos numa certa confusto conceitual,projeta-se ‘no questionamenta e continua num didlogo aberto que mostrard ser ainda preciso manter e pensar aquelas perguntasoriginériss eoutras que se iro incorporando durante o dislogo. ‘Nessa busca tanto para Sécrates como para Lipman o exame sacional dos temas tem uma importinciadecisiva. Ocuidado com, a logica do pensar e com a honestidade intelectual dos partcipan tes do didlogo ¢ considerado igualmente decisivo. Os dois consi Qual é 0 pape da logica, 1 dialogo filosstico? Qual & 0 papel de um professor de flosota? (Qual a sua formacio necesséria? Em que medida a pitica da filoso fia de Sécrates se relaciona com aaplicardo do programa de Lipman? Seria Socrates um bom professor de loofia para criancas> Para Sécrates, um professor que ensinasse flosoia a la Lipman seria ‘um bom filésofo (professor de flosofia)? Um bom edacador? Un om cidadao? (ideal de investigagao em comunidadee o dslog filessfico 0 ideal de investgnsao proposto por Lipman (1993b: 1998) & cr cial para a compreensio dos idesis de flosfiae educagto demo,

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