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Leandro Pimentel
FCS / UERJ
Sumário
Introdução
A narrativa que iniciamos a partir de agora obedece a uma certa sequência de aconteci-
mentos que, reunidos, perfazem uma linha cronológica que, para efeito de estudo, se es-
tende do início do século XIX, período que sucede a Revolução Industrial, até o início do
século XXI, quando ocorre o que poderíamos denominar de Revolução Digital. Esta data
de eclosão, apesar de ser legítima em relação `a origem da técnica propriamente dita, re-
sulta de antecedentes e de condições favoráveis `a sua maturação. O uso de aparelhos
visuais que auxiliavam os pintores e gravurista a transpor a visão do mundo tridimensional
para uma superfície bidimensional já era feita por pintores, desenhistas e gravurista muito
antes do século XIX. As técnicas de reprodução em série a partir de matrizes e de mol-
des, que tornavam possível a multiplicação infinita de cópias a partir de um original tam-
bém já era utilizada em gravura e na escultura. A máscara mortuária, por exemplo, feita a
partir da modelagem do rosto da pessoa falecida e a sua forja em metal, foi utilizada em
algumas culturas para preservar o semblante que iria se dissolver inevitavelmente com o
tempo. Sua função era, grosso modo, fazer uma ponte entre o mundo sensível e o mundo
divino. Ligação semelhante a que aparece em relíquias como o santo sudário, por exem-
plo, que foi o tecido que esteve diretamente sobe o corpo de Jesus Cristo e por esse con-
tato direto adquiriu uma sacralidade.
A fotografia inaugura, portanto, um tipo de imagem que, diferente das outras expressões
visuais, como a pintura, a gravura ou o desenho, se caracteriza pela relação direta entre o
ser fotografado e a imagem produzida, como se a luz que emana do ente diante da câme-
ra chamuscasse diretamente a superfície sensível, fazendo a imagem surgir como por
magia. Essa diferença, talvez mais do que a sua capacidade de reproduzir com precisão
os aspectos visuais do mundo, como uma espécie de espelho, talvez tenha sido aquilo
que propiciou grande popularidade `a técnica que, pouco tempo após o seu surgimento,
adquiriu um grande sucesso comercial.
Na primeira parte do texto iremos nos concentrar nas mudanças da técnica desde os pio-
neiros até a conquista do instantâneo, contextualizando esse processo com as intensas
reformas urbanas e sociais que incidiram sobre as cidades européias principalmente. Na
segunda parte, entraremos no século XX, quando a fotografia já estará relativamente bem
acomodada em diversas áreas, sendo usada no âmbito da família, na ciência, no jorna-
lismo e na publicidade, acompanhando o surgimento de uma nova sociedade que se ma-
nifesta tanto nas cidades modernas quanto na construção de uma representação desse
novo mundo. Na terceira parte do texto temos os desdobramentos da fotografia como
uma prática artística e as inflexões do seu uso como documento. Desejamos que o leitor
tenha um bom percurso por essa narrativa sobre a história da fotografia e encontre nele
ressonância para expandir sua forma de pensar a sobre o que é e para que serve a foto-
grafia.
Objetivos
Além da câmera obscura, muitos outros dispositivos óticos foram utilizados por artistas
antes do desenvolvimento da fotografia. Câmera lúcida, lunetas, o fisionotraço, assim
como a própria perspectiva linear, com a transferência do espaço tridimensional para a
bidimensionalidade matematicamente organizada, mostra que, antes do século XIX, apa-
relhos óticos já auxiliavam os artistas produção de imagens. O artista David Hockney, co-
nhecido pela sua pintura extremamente realista, realizou extensa pesquisa em que inves-
tigou as técnicas dos artistas visuais da idade clássica e sobre como vemos e tratamos a
imagem hoje na era digital. (HOCKNEY, 2001) O que pode ter parecido mais revolucioná-
rio na fotografia e diferente das tecnologias anteriores foi a aparente complexidade do
aparelho fotográfico e o descarte da mão do homem do processo. Agora bastaria tirar a
tampa de frente da objetiva e esperar o tempo necessário antes do processamento quími-
co.
De fato, a ausência de pelo menos uma etapa em que a habilidade manual do autor fosse
importante para o processo parecia fazer da fotografia uma prática realizada prioritaria-
mente pela máquina, sem a intervenção humana. O fotógrafo serviria somente como um
técnico operador. A resistência em admitir a fotografia como arte faz parte daquilo que
1 Importante não confundir a câmera obscura com a câmara escura, que serve de sinônimo para laboratório
fotográfico, sala vedada à luz onde são processados os materiais fotossensíveis, ou, ainda, pode designar o
espaço por trás da câmera fotográfica, onde se coloca o filme.
Walter Benjamin denominou de conceito filisteu de “arte”, em que se coloca o artista como
um ser divino e que dar a uma máquina a função de produzir arte seria um sacrilégio.
(BENJAMIN, 1996, P. 92) Até mesmo o poeta Baudelaire condenou a fotografia, dizendo
que ela era um objeto produzido pela indústria e caso ela fosse em algum momento con-
siderada arte isto seria o fim.
Feita com uma placa de estanho e banho de óleo de lavanda, a imagem em tons de cinza
resultou da ação da luz no betume colocado sobre o metal, causando uma espécie de
oxidação que fixou a imagem na superfície.
Com a morte de Niépce, seu assistente Jacques Louis Mandé Daguerre continuou as
pesquisas e aprimorou a técnica, chegando a um resultado muito bom. Aos poucos sur-
gem vários outros processos fotográficos que irão se desenvolver por meio de diferentes
pesquisas, até a globalização de um padrão comum, que irá favorecer o crescimento de
empresas multinacionais fabricantes de câmeras e de materiais fotográficos. A prática fo-
tográfica nesse período, antes da industrialização dos filmes e papéis fotográfico, exigia
que o fotógrafo produzisse e processasse o seu material. Importante destacar que essa
forma de manufatura do século XIX continua sendo feita atualmente por alguns fotógrafos
e artistas contemporâneos que perceberam a necessidade deste processo de produção
para chegar a um tipo de resultado. A revalorização desses processos históricos acontece
junto com a consolidação da hegemonia do digital nos usos sociais e profissionais da fo-
tografia e a crescente desmaterialização da imagem, que vai perdendo a sua presença
física para sobreviver como um código numérico que se materializa temporariamente em
telas eletrônicas.
Uma das práticas que ganha força a partir da última década do século XX é a fotografia
com câmera de orifício, a pinhole. Uma fotografia feita com câmeras artesanais a partir de
latas e outros materiais reciclados e um pequeno orifício furado por uma agulha. A pinhole
vem sendo utilizada tanto como método pedagógico para o ensino e entendimento do
funcionamento da câmera obscura e dos fundamentos da fotografia como por artistas que
percebem a importância desse processo para a construção de seus trabalhos. Faremos
um percurso por algumas das principais técnicas desenvolvidas ao longo do século XIX a
fim de mostrar as diversas pesquisas que antecederam a consolidação de uma prática
hegemônica que atravessou todo século XX até o surgimento da fotografia digital.
2.1. Daguerreótipo
A chapa de metal com uma fina camada de prata e extremamente polida sensibilizada
com vapor de iodo e revelada com vapor de mercúrio depois de exposta na câmera obs-
cura. Após a revelação, a placa é lavada e fixada com uma solução salina e recebe uma
viragem de uma solução de ouro que é estabilizada em sua superfície pela ação de uma
vela no verso da placa. Após o aperfeiçoamento da técnica, por volta do ano de 1843, e
com o melhoramento dos sistemas óticos e das câmeras fotográficas, era possível fazer
uma fotografia com uma exposição de alguns segundos para que a imagem luminosa im-
primisse a placa mas, de qualquer forma, era exigido que, nos casos dos retratos, o mo-
delo mantivesse uma grande imobilidade para que a imagem tivesse nitidez.
Os daguerreótipo eram caros e na maioria das vezes eram acondicionados com molduras
de veludo e uma proteção de vidro mantido a uma pequena distância da superfície da
imagem para preservá-la de arranhões e das variações atmosféricas. As placas de Da-
guerre tinham 16,5 x 21,5 cm mas era mais frequente o uso de placas de 7 x 9 cm. Eram
como jóias nas quais havia guardada a presença preciosa de um ente querido. Essa sen-
sação de proximidade com o sujeito fotografado, dando a impressão que havia algo do
espírito da pessoa que havia posado na imagem, possivelmente fez com que o retrato em
estúdio se estabelecesse como um dos gêneros mais comuns na daguerriotipia.
A preferência por cenas feitas em estúdio ou pela janela, ocorreu também devido à ne-
cessidade de processamento quase imediato das placas antes e após a realização da
tomada da imagem, sendo importante a presença de um laboratório químico ao lado do
fotógrafo durante a sessão fotográfica. Apesar disso, a daguerreotipia se tornou uma prá-
tica bem difundida em diversos países e não são raros as vistas de paisagens. Uma das
mais antigas foi feita na Praça XV, no Rio de Janeiro, pelo abade francês Louis Comte no
início de 1840, menos de 6 meses depois que a França anunciava a abertura da patente
do processo. Considerado o primeiro daguerreótipo produzido na América do Sul, a ima-
gem com o célebre chafariz de Mestre Valentim em primeiro plano estimulou o imperador
Dom Pedro II, então com 14 anos de idade, a comprar um aparelho e se tornar o primeiro
fotógrafo nascido no Brasil.
Outra fotografia célebre é a Vista do Boulevard du Temple, feita pelo próprio Daguerre da
janela de sua residência entre abril e maio de 1838. A fotografia mostra uma cena urbana
de Paris com as ruas vazias, com exceção de duas pessoas: um sujeito de pé e o engra-
xate. Foi uma das primeiras vistas2 em que podemos ver figuras humanas. Devido ao lon-
go tempo de exposição, de mais de 3 minutos no mínimo, as pessoas em movimento não
apareciam nítidas. Somente o senhor e o engraxate que lustrava o seu sapato ficaram
tempo suficiente parados para que suas imagens fossem fixadas com nitidez na chapa de
metal. Cogita-se que Daguerre tenha contratado os dois para ficarem encenando a ação
naquele lugar privilegiado para que aparecessem nítidos na imagem. Interessante pensar
que essa imagem coloca em questão, logo no início da história da fotografia, a credibili-
dade que sustentou sua força como prova e representação fidedigna da realidade. Esse
caso mostra que a fotografia foi desde suas origens uma imagem construída, colocando
abaixo a ideia de que o advento da fotografia digital e dos softwares de edição facilitaria a
manipulação da imagem. O fotógrafo, as suas escolhas técnicas e estéticas, o contexto
sócio político em que está inserido, a sua consciência e posicionamento perante o ambi-
ente em que vive, seus engajamentos e projetos pessoais e sociais, tudo isso irá constituir
a fotografia que ele produz. Da mesma forma, o modo como essa imagem irá circular,
como ela irá se articular dentro de certos discursos, será também fundamental para o
modo como ela poderá afetar quem a vê.
2.2. Calótipo
Willian Henry Fox Talbot (1800-1887) criou o processo negativo-positivo. Em 1834 fez
uma série do que ele chamou de desenhos fotogênicos, que consistiam em objetos como
rendas e folhas colocados sobre papel sensibilizado. Em 1935 já fazia as suas experiên-
cias com uma câmera obscura. Diferentemente do Daguerreótipo, que produz uma chapa
única, o calótipo é uma técnica que gera uma matriz em negativo a partir da qual pode-se
produzir quantas imagens positivas que se desejar. O papel do negativo é encerado para
que adquira uma transparência e após faz-se a transferência da imagem para outro papel
por meio da luz solar. Coloca-se o papel sensibilizado sobre uma superfície, coloca-se o
negativo sobre ele e um vidro para forçar o contato completo entre os dois papeis. Talbot,
assim que soube do anúncio do Daguerreótipo, tratou de aperfeiçoar a técnica e paten-
teá-la na Inglaterra em 1940. Diferente da técnica desenvolvida na França, o calótipo fi-
A técnica foi muito difundida, sendo utilizada por exemplo por Marc Ferrez, fotógrafo fran-
cês que se radicou no Brasil e produziu uma série enorme de vistas de diversas regiões
do país. Sua obra encontra-se atualmente com o Instituto Moreira Salles, no Rio de Janei-
ro e foi digitalizada para que as imagens possam ser facilmente acessadas e utilizadas e
os negativos fiquem preservados. Uma das dificuldades da utilização do colódio úmido
era a necessidade de transporte de um equipamento pesado. Marc Ferrez, por exemplo
chegou a fotografar com placas de vidro de 42x53 cm. Além da câmera e do tripé era ne-
cessário levar várias placas e químicas para emulsioná-las um pouco antes de utilizá-las.
Em geral as placas tinham tamanhos maiores mas ainda assim o equipamento tinha um
peso considerável e eram geralmente transportados no lombo de animais ou por assisten-
tes. Interessante observar que os fotógrafos do século XIX que realizaram trabalhos nas
Américas, na África, na Oceania e em outras colônias européias eram, pelo que se tem
registro, todos brancos europeus com situação econômica privilegiada, salvo alguma ex-
ceção desconhecida por nós. Tais fotografias foram possíveis devido a uma conquista do
território e expulsão dos seus habitantes. O vazio idílico das paisagens feitas por fotógra-
fos como Thimothy O’Sullivan nos oeste americano ou as vistas de Marc Ferrez em todo o
Brasil foram possíveis em função de muito sofrimento e sangue indígena. No caso de Fer-
rez, as suas fotografias feitas com essas câmeras pesadas, muitas delas do alto de mon-
tanhas, foram realizadas com a ajuda de trabalho escravo ou de trabalhadores precários.
A questão da crença na imagem fotográfica como representação fiel do mundo adquire
novas nuances quando pensamos nos processos que levaram `a realização de um de-
terminado trabalho fotográfico. Perceber que o desenvolvimento da fotografia e a sua prá-
tica está condicionada a um projeto colonial é fundamental para entendermos o lugar da
produção feita pelos habitantes dessas colônias e das lutas descoloniais.
Tal pensamento utópico parece ter se estendido até o final da segunda guerra mundial,
quando há o impacto da consciência do extermínio metódico do governo nazista, explici-
tado nas fotografias impactantes dos campos de concentração após o fim do conflito,
quando pôde ser visto finalmente os resultados do projeto de poder nos corpos esqueléti-
co. Junto com a ruína de um certo ideal racionalista, pseudo-científico, dissolvido junto
com a ilusão dos benefícios da sociedade industrial, a própria fotografia e seu desejo de
verdade começam a se transformar e perde-se a confiança no seu potencial de represen-
tação fidedigna do mundo. Mas se a fotografia deixa de ser o que era antes, o que ela se
torna?
As críticas `a sua pretensa superioridade em representar o real foram tão fortes quanto os
elogios. No caso dos retratos, por exemplo, para a produção de uma imagem nítida era
necessário que o modelo ficasse imóvel por vários segundos auxiliado por apoios para a
cabeça e braços. Os pintores questionavam a capacidade de representação da singulari-
dade de uma personalidade por meio desse processo tão rígido em que a pessoa parecia
virar um objeto com a fisionomia congelada. Os críticos diziam que a fotografia apenas
mostrava a superfície do retratado sem revelar a sua alma. Para eles a pintura seria supe-
rior por conseguir mostrar o espírito do sujeito.
Sem deixar de lado a pertinência dessas críticas, é rico perceber como esses discursos
são carregados também de interesses corporativos de uma categoria profissional que
perde espaço no mercado para os fotógrafos. Há também uma resistência `as mudanças
que ocorrem no modo de produção e de uso da fotografia, como ainda se dá atualmente
quando se critica, por exemplo, a produção de selfies ou a quantidade de fotos postadas
em redes sociais. Não se trata de menosprezar a legitimidade das críticas, mas indicar a
resistência que há em relação a mudanças nos modos de produzir e utilizar as fotografias
e as novas tecnologias. Cabe nesse caso lembrar as críticas ácidas que o poeta Charles
Baudelaire fez `a Daguerre e `a fotografia na ocasião do Salão de 1859 em Paris. Baude-
laire via na fotografia o desejo de verdade que contaminava o mundo de sua época e a
impossibilidade dela produzir algo possível de ser chamado de arte, pois ela seria justa-
mente a manifestação viva do pensamento técno-industrial que infestava todas as áreas,
inclusive a arte e a produção pictórica, que, com a fotografia, perderiam a riqueza da ima-
ginação em busca da exatidão descritiva. Interessante que, apesar de seu posicionamen-
to crítico em relação `a fotografia, os poucos retratos de Baudelaire têm uma intensidade
expressiva muito incomum para a época. Os retratos do poeta feitos por Felix Nadar e por
Etienne Carjat são belos exemplos da maestria com que os pioneiros conseguiram lidar
com a técnica.
3. Lembranças do bota-abaixo
O século XIX e o XX foram muito intensos na velocidade e na intensidade das mudanças
que se manifestaram diretamente no modo de vida sobretudo dos habitantes das cidades.
Essas mudanças se concretizaram nas grandes reformas urbanas que buscaram adequar
as cidades a um novo estilo de vida. Entre elas, se destaca o projeto do Barão Haussman
da grande reforma de Paris, que ocorreu entre 1853 e 1870, inicialmente. O projeto serviu
de referência para a reforma da cidade do Rio de Janeiro, capital federal na época, co-
mandada por Pereira Passos. Na França, alguns projetos oficiais financiados pelo próprio
governo se voltaram para usar a fotografia para documentar prédios e monumentos anti-
gos, tanto aqueles que precisariam de restauração ou aqueles que seriam demolidos.
Uma desses projetos, a Mission Héliographique ficou conhecida pelo pioneirismo e pela
qualidade do material produzido pelos excelentes fotógrafos comissionados. Outro que
trabalhou sistematicamente para a prefeitura de Paris, registrando a velha Paris, o pro-
cesso da reforma e o espaço urbano renovado foi Charles Marville (1813-1879). Outros
fotógrafos realizaram um importante trabalho de registro das ruas de Paris e de seus per-
sonagens sem serem contratados diretamente pela prefeitura. Entre eles se destaca Eu-
géne Atget (1857-1927), que, quando já estava idoso ofereceu seu arquivo pessoal `a Bi-
blioteca Nacional Francesa em uma carta onde dizia que tinha fotografado toda a velha
Paris. De fato, Atget fotografou sistematicamente a cidade com ênfase na arquitetura do
século XV.
No Rio de Janeiro do início do século XX, a prefeitura teve um fotógrafo contratado res-
ponsável pelos registros das reformas de Pereira Passos. Natural do estado de Alagoas,
Augusto Malta (1864-1957) mudou-se para o Rio de Janeiro e se tornou fotógrafo depois
de trabalhar em outros empregos. As fotografias de Malta, além dos elementos arquitetô-
nicos, tinham registros da vida cotidiana da cidade. Como uma espécie de cronista da ci-
dade, o fotógrafo, mostrou com empatia o cotidiano da cidade. Malta fotografava também
casas que seriam demolidas não exatamente com o objetivo de preservar a memória,
mas para mostrar para os técnicos da prefeitura seu estado precário para provar aos mo-
radores que mereciam um valor mais baixo de indenização pela desapropriação. De todo
modo, essas fotos, mesmo que não tenham sido feitas com o objetivo de salvá-las do es-
quecimento, acabaram se tornando uma abertura para que essas pessoas excluídas da
história, invisibilizadas pelo poder instituído, tenham um vestígio de suas existência pre-
servados. Tais fotos aguardam algum pesquisador retornar a elas para contarem as histó-
rias desses excluídos a fim de compreendermos as injustiças e os traumas que a ocupa-
ção do tecido urbano institui ao favorecer a especulação imobiliária sem buscar preservar
a tradição arquitetônica e os moradores mais antigos, que, em geral, dão identidade e in-
tegração entre a cidade e a natureza. As fotografias de Malta do Morro do Castelo, marco
da fundação da cidade do Rio de Janeiro, e da sua demolição são um dos documentos
mais melancólicos de um dos maiores crimes contra o patrimônio público. O processo de
urbanização da cidade do Rio e de tantas outras cidades, justificado por critérios técnicos
duvidosos, teve o objetivo de favorecer a ocupação do centro da cidade por prédios co-
merciais e a retirada da população pobre para a periferia. As fotografias de Marc Ferrez,
como já foi apontado anteriormente, também integram o repertório de fotografias precio-
sas que preservam a memória de um pais que saía de um sistema colonial escravocrata e
tentava se constituir como nação. As injustiças e os anseios dessas transformações não
estão imediatamente visíveis nas imagens. Os historiadores aprendem que as informa-
ções não estão prontas. É preciso que se façam as perguntas certas para que a memória
seja ativada para além de uma simples descrição da cena.
O modelo simplesmente mudava a pose a cada clique. O resultado final eram os vários
retratos em negativo em uma chapa de vidro que era colocada sobre o papel sensibiliza-
do para onde era transferida a imagem por contato. Recortavam-se os vários retratos que
eram entregues ao cliente em um envelope. O número de fotos variava conforme o núme-
ro de objetivas da câmera. Havia câmeras com 4, 6 ou oito objetivas. Passava-se a ven-
der fotografia `a dúzia. Tal técnica barateou muito o preço do retrato fotográfico e atendeu
uma demanda que já existia estimulada pelo sucesso do daguerreótipo, cujo preço e uni-
cidade fizeram que ele caísse em desuso. O carte-de-visite possibilitava que o cliente vol-
tasse no estúdio e pedisse a impressão de uma nova série da mesma chapa.
Se antes os retratos feitos com daguerreótipo ou com chapas únicas de grande formato
eram exclusividade de que tivesse dinheiro para pagar o seu alto preço, o carte-de-visite
possibilita que o retrato fotográfico seja acessível a grande parte da população. O formato
pequeno, praticamente do tamanho de um “cartão de visita” que você entrega para um
cliente ou amigo, servia também para dar a imagem de presente para alguém em um ges-
to de afeto. Também era comum escrever algo no verso da fotografia, como uma dedica-
tória, direcionando de forma exclusiva a imagem para aquela pessoa. O carte-de-visite se
tornou uma febre e Disdéri ficou milionário. Todos queria ter um retrato. Multiplicaram-se
os estúdios de fotógrafos fazendo retratos de modo industrial. Muita gente viu a oportuni-
dade de ganhar dinheiro e investiu na compra do equipamento e na instalação do espaço
de trabalho.
Os estúdios seguiam um padrão que criava um ambiente para envolver o personagem in-
dependente de quem fosse. Mudavam-se alguns acessórios mas em geral todos os estú-
dios tinham `a disposição cortinas, tapetes, fundos pintados com paisagens, balaustradas
e móveis leves, fáceis de serem incluídos ou retirados da cena. As poses eram também
escolhidas dentro de um repertório já definido, com referência a gestualidade utilizada pe-
los pintores retratistas clássicos. O cliente ía se acomodando em cada uma das posições
orientado de forma precisa pelo fotógrafo. Este, não tinha disponibilidade para construir
uma cena exclusiva para cada cliente, sendo que a exclusividade aparecia em função do
tipo de pose e dos acessórios disponíveis no cardápio de cada estúdio.
O modo como o modelo se deixava envolver pelo dispositivo para se tornar imagem e se-
guir dali por diante sem controle devia ser angustiante. As poses eram, de uma certa ma-
neira, uma proteção para que a imagem não fosse capturada em uma situação indígna. A
segunda fotografia de Militão mostra um casal com roupas européias, sugerindo o desejo
de inserção social e de aceitação. Há, certamente, um movimento de negação das raízes
africanas para se conquistar um espaço e ser aceito como parte dessa nova sociedade
que os violentou. Há uma dimensão performática nessas fotografias, que visa construir
uma relação com o outro que olha para essa imagem e o reconhece como parte da co-
munidade. Mais do que representar um indivíduo singular ou o tipo social, o carte-de-visite
parece ter tido a função de criar uma comunidade global européia. Processo que não
ocorre sem violência, negando a potência do outro, estereotipando o diferente e amplian-
do o eurocentrismo.
Esse esquema de produção de retratos estandardizados sofreu várias críticas por refletir
a própria massificação da população transformada em sujeitos consumidores prontos
para assimilar a produção dos objetos que íam sendo cuspidos das linhas de montagem
das fábricas. André Disdéri, ao defender sua invenção das acusações de estarem igua-
lando todo mundo, sem destacar a singularidade de cada indivíduo, afirma que o carte-
de-visite não busca representar o indivíduo, mas o “tipo social”. Agora, mais de um século
após a febre do carte-de-visite, podemos nos indagar se, mais do que simplesmente re-
presentar algo, os usos sociais do retrato serviriam ainda como uma espécie de orienta-
ção para seguirmos determinados tipos de comportamento, ou poderíamos pensá-lo atu-
almente como um modo de libertação e reinvenção de si.
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