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Os lugares do conhecimento

Eduardo Donizeti Girotto1

Introdução
Há um pressuposto nesta análise e o apresentaremos sem rodeios: as
desigualdades sócio-espaciais são também reproduzidas no momento atual, a
partir das desigualdades de acesso e produção do conhecimento. Tais
desigualdades se acentuam cada vez mais em decorrência da estruturação de
uma hierarquia do saber. Nela, diferentes saberes são valorizados e
desvalorizados em decorrência daquilo que significam na estrutura da
reprodução social que, é antes, reprodução do capital. Colocado o pressuposto
nestes termos, faz-se necessário entender os elementos históricos e
geográficos responsáveis pela construção da realidade conforme a
conhecemos, bem como os limites e as possibilidades de superação da
mesma.
Comecemos pelo ponto mais amplo. Por mais que alguns autores
contemporâneos insistam em denominar o momento atual como “Sociedade do
conhecimento” (HARGREAVES, 2004; TEDESCO, 2006), a razão e o bom
senso nos leva a perguntar: qual sociedade não foi do conhecimento? Será que
a Atenas do século V a.C. não pode ser pensada como uma sociedade do
conhecimento? O que dizer, então, da Itália Renascentista ou da França
Iluminista, ou dos Maias, Astecas, Incas e as diferentes sociedades espalhadas
pelo mundo? De fato, um olhar um pouco mais atento sobre a história da
humanidade nos permitirá compreender que o conhecimento, concebido aqui
como uma forma de mediação entre o homem, a sociedade e a natureza,
sempre esteve presente. Mas o que leva tais autores a repetirem a máxima de
que apenas esta sociedade pode ser pensada como do “conhecimento”? Não é
possível responder a esta questão sem que compreendamos o sentido do
conhecimento a que estes autores se referem.

1
Mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo. Professor Assistente do Colegiado de
Geografia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, campus Francisco Beltrão. Líder do Grupo de
Pesquisa de Ensino de Geografia (GPEG) Email: egirotto@usp.br
1
De maneira geral, o conhecimento pode ser concebido como um
conjunto de saberes, técnicas, habilidades, resultantes da necessidade das
diferentes sociedades humanas de compreenderem a si mesmas e o meio em
que vivem. Não é a toa que as questões fundamentais que movem o
pensamento humano deste a antiguidade são quem somos? De onde viemos?
Qual o sentido de tudo? Esta necessidade humana de encontrar / construir
explicações está presente em diferentes momentos, fomentando discussões,
debates, avanços e retrocessos no pensamento humano.
A partir do século XV, com o surgimento da idéia de ciência e dos
princípios que a deveriam reger, o conhecimento humano busca não só mais
explicações acerca da realidade, mas formas de controle dos processos
naturais e sociais que a configuravam. Neste sentido, não bastava mais
explicar como a natureza funcionava, construindo teorias e mais teorias ou
esquemas de interpretações lógicos. Era preciso controlá-la, fazer com que a
mesma obedecesse aos desígnios humanos. Esta busca pelo controle, esta
necessidade de domínio está no fundamento da obra de Francis Bacon e de
muitos outros autores como Descartes e Newton. O que há de comum nestas
obras é a busca do entendimento de como funciona a natureza e do como este
saber pode ser utilizado ao desenvolvimento de toda a humanidade.
Neste sentido, a construção do método científico busca apontar o
caminho exato para a descoberta e o controle dos fenômenos naturais. O
método científico, calcado no desenvolvimento da linguagem matemática, no
racionalismo, visa reordenar a distribuição do poder acerca dos conhecimentos
neste momento de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna. O
racionalismo matemático e o experimentalismo, bases do método científico
proposto por Bacon busca romper com a forma de conhecimento defendido
pela Igreja e que, em certa medida, era uma das bases de sustentação de seu
poder. Aparece, neste momento, de forma bastante clara a relação entre
conhecimento e poder, relação esta que vai se aprofundar até o momento
atual.
A grande ruptura em relação ao significado e ao lugar do conhecimento
no interior da sociedade ocidental ocorre a partir da Revolução Industrial e o
surgimento do capitalismo como modo de produção dominante. Não cabe aqui
2
uma discussão acerca dos fundamentos do capitalismo, mas vale ressaltar que
o conhecimento, a partir deste ponto, se torna um elemento fundamental no
processo de competição entre as diferentes indústrias nascentes. É a partir da
incorporação cada vez mais intensa do conhecimento no processo produtivo
que uma determinada indústria pode diminuir o tempo de trabalho necessário
para a produção de uma mercadoria, diminuindo o preço e elevando a taxa de
apropriação de trabalho não pago.
No entanto, para que pudesse ocorrer esta aplicação do conhecimento
diretamente no processo industrial, era preciso que o seu sentido e significado
fossem alterados. Dois conceitos ganham força e precisam ser levados em
consideração: os conhecimentos passaram a ser sinônimo de ciência e,
principalmente, de técnica. A “ciência do capital”, se assim podemos denominá-
la, tem como uma de suas bases de sustentação o Positivismo. E aqui vale
uma discussão mais demorada acerca do lugar que este paradigma científico
representou e ainda representa na estrutura do conhecimento. O Positivismo
representa um aprofundamento dos princípios, métodos e teorias que definiram
a ciência ainda no século XVI, como principal forma de compreensão da
relação dos homens entre si e com a natureza. Sua origem deve ser procurada
na construção do método científico. Em certa medida, o positivismo é o
aprofundamento deste método, no sentido em que passa a definir o que é e o
que não é um conhecimento válido na estrutura de uma determinada
sociedade. O paradigma positivista é antes um paradigma de seleção,
classificação daquilo que pode ou não ser definido como saber. Para tanto,
entre os critérios construídos para a elaboração desta classificação está a
quantificação. Só é válido enquanto conhecimento aquilo que pode ser medido,
quantificado, expresso em linguagem matemática. Qualquer conhecimento que
não pudesse ser expresso desta maneira seria considerado de menor
importância na hierarquia do saber científico.
A partir desta análise do que representou o Positivismo enquanto
Paradigma científico dominante a partir dos séculos XIX e XX, podemos
compreender o lugar privilegiado que as ciências exatas assumem na
hierarquia do saber. Além da linguagem matemática, adotada como forma
principal de expressão destes conhecimentos, há ainda a aplicabilidades dos
3
mesmos nos processos produtivos industriais. Muitos dos ramos da física e da
química tiveram um amplo desenvolvimento na virada do século XIX-XX não
nos laboratórios das principais Universidades Européias e Estadunidenses,
mas no chão de muitas empresas, diretamente relacionadas ao processo
produtivo, como é o caso da termodinâmica e da química. Esta relação
intrínseca entre ciência e capital aparece na criação, por muitas empresas, de
setores de pesquisa e desenvolvimento com o recrutamento de jovens
pesquisadores.
Nesta hierarquia do saber científico pelo Positivismo e pela incorporação
da ciência pelo capital, altera-se o lugar das chamadas humanidades. De
conhecimento acadêmico central durante os primeiros 400 anos de
estruturação das Universidades Européias, do fim da Idade Média até o século
XIX, agora são vistos como conhecimentos eruditos, pouco importantes. Já não
há espaço para a reflexão quando a ciência e a técnica buscam totalizar as
formas de conhecimento e construir uma hierarquia de produção e acesso ao
mesmo. Esta hierarquia se acentua em um momento no qual o conhecimento
produzido se transforma em uma mercadoria como qualquer outra, como
representa o sistema de patentes. Como meio de produção, o conhecimento
representado pela ciência e pela técnica deixa de ser uma forma de
compreensão dos homens de si mesmos e do lugar em que vivem, para se
tornar mais um elemento de alienação e de reafirmação das desigualdades
sócio-espaciais.

O surgimento das primeiras críticas e o lugar da reflexão no século


XX.
Durante algumas décadas no início do século XX, a ciência totalizada
pelo capital parecia ser de fato reconhecida como a única forma de
conhecimento verdadeiro. Os princípios da quantificação e da aplicabilidade se
tornaram tão aceitos que passaram a ser o objetivo de toda forma de
conhecimento que almejasse o reconhecimento no interior desta hierarquia do
saber. Porém, a partir da 2º Guerra Mundial os questionamentos acerca desta
forma de conhecimento começaram a surgir, pondo em discussão os

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significados de termos como progresso e técnica. Destacaremos aqui a
contribuição de dois importantes autores nesta discussão: Adorno e Foucault.
Em Conferência publicada no livro “Educação e Emancipação”, Theodor
Adorno aponta quais seriam as tarefas da educação após a terrível experiência
de Auschwitz. Sua resposta, dada de forma direta, é simples: a educação tem
por tarefa criar as condições para que Auschwitz não se repita. Algumas
décadas se passaram e aos poucos esta idéia proposta por Adorno foi sendo
esquecida. Mas qual a importância desta tarefa? O que de fato ela nos revela?
Auschwitz representa um intenso processo de desumanização, a força dos
homens e mulheres transformadas em coisas, desprovidos da fala, das
memórias e de todos aqueles elementos que lhes permitiam identificarem-se
como pertencentes à espécie humana. A violência brutal daquele e de tantos
outros campos de concentração afeta o olhar dos que hoje retomam suas
imagens, mas não pode expressar todas as sensações, dores, sofrimentos que
trouxe aos que diretamente foram alvos desta experiência de desumanização,
muito bem descritas por Primo Levi. Sem nomes, roupas, palavras, os homens
e mulheres amontoados nos campos de concentração, sem passado, presente,
futuro, são alvo de uma das mais brutais experiências científicas da
humanidade. Nela, todos os limites foram ultrapassados. Nada ou ninguém
poderia se colocar contra o avanço e o progresso representado pela ciência. E
foi assim que ocorreu. O que mais assusta na experiência de Auschwitz, o que
mais incomoda é o fato de que foi realizada por outros homens e mulheres,
educados nas melhores escolas e Universidade européias. Não eram
monstros2. Ao contrário, representavam aquilo que o mundo considerava de
mais elevado em termos culturais. O depoimento abaixo revela esta
perplexidade:

Caro professor,
Sou sobrevivente de um campo de concentração.
Meus olhos viram o que nenhum homem deveria testemunhar.
Câmaras de gás construídas por engenheiros ilustres.
Crianças envenenadas por médicos altamente especializados.
Recém-nascidos mortos por enfermeiras diplomadas.

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Este sensação de assombro aparece na livro de Hannah Arendt sobre Adolf Eichman, intitulado
“Eichman em Jerusalém”.
5
Mulheres e bebês assassinados e queimados por gente formada em ginásio,
colégio e universidade.
Por isso, caro professor, eu duvido da educação.
Eu lhe formulo um pedido: Ajude seus estudantes a se tornarem humanos.
Seu esforço, professor, nunca deve produzir monstros eruditos e cultos,
psicopatas e Eichmans educados.
Ler, escrever, aritmética só são importantes se servirem para tornar nossas
crianças seres mais humanos.
(Depoimento de um sobrevivente de Auschwitz)

Neste sentido, a experiência de Auschwitz aterroriza por ter sido também


uma experiência de educação e como tal engendrou um projeto de sociedade
que pressupunha o domínio de um pequeno grupo de homens, identificados
por termos falsos como raça, em detrimento dos direitos dos demais de
existirem. Tal experiência nos traz inúmeras indagações.

Que sociedade é essa que impinge a brutal supremacia do


princípio da realidade sobre o princípio do prazer, mas que ao
mesmo tempo se fundamenta na veleidade de que todos são
livres para desfrutar de todos os prazeres imaginados
(ADORNO, 56, 2001)

A experiência de Auschwitz não pode ser reduzida a um período


histórico ou a um regime político. Funda-se em um ideal de ciência e de
produtividade que ainda é dominante. Auschwitz é, portanto, um momento
deste processo e não o seu fim. Sua origem não está no positivismo. Precede-
o. Pode ser, talvez, buscada nos textos de Bacon ou Descartes. Mas isso ainda
diz pouco. Sua origem se fundamenta em um processo intenso de
expropriação que se inicia com os primeiros estágios de consolidação do modo
de produção. Neste processo, denominado por Marx (1984) de acumulação
primitiva do capital os homens se tornam livres das amarras que os ligam a
terra e aos outros homens. Esta sensação de liberdade, um dos elementos
definidores da modernidade e tão bem descrita por Berman (1987), oculta, pela
exaltação de sua positividade, toda a negação inerente à ela. Nesta liberdade,
homens e mulheres de diferentes partes do mundo, em diferentes momentos
vão, de forma brutal, deixando de serem homens. Transmutam-se em
mercadorias, iguais a qualquer outras, medidas pelo tempo despendido para
sua fabricação. Neste intenso processo de expropriação, que coloca no centro

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da história a forma mercadoria e o trabalho abstrato como sentido e
fundamento da existência, há que se construir um discurso capaz de legitimar
tamanha violência. Como vimos, o positivismo surge deste processo de
incorporação do discurso científico pela lógica do capital.
Neste sentido, o que Auschwitz traz a tona é uma ampliação da relação
entre conhecimento e poder. Se em seu princípio, nos textos de Bacon e
Descartes, a ciência tinha como principal objetivo controlar a natureza, ela se
volta, neste momento, dominado pela lógica do capital, a desenvolver
estratégias de ampliar a exploração do homem pelo homem. Em certa medida,
esta constatação explica o surgimento de novos ramos científicos durante o
século XX, como a administração, a publicidade, a informática que tem como
principal objetivo construir condições de perpetuar a exploração do homem
pelo homem a favor do capital.
A experiência de Auschwitz, porém, não se resume ao que aconteceu na
2º Guerra Mundial. É a experiência do navio negreiro, das Colonizações dos
séculos XV e XVI, do estupro e do extermínio das populações indígenas, é a
experiência da negação do outro como sujeito bem descrita por Tzvetan
Todorov em seu livro “A conquista da América” (2010). A experiência de
Auschwitz repõe a questão da relação entre hierarquia social e hierarquia do
conhecimento e expõe os limites de uma racionalidade que tem como principal
objetivo o controle e o aniquilamento do outro, visto como não possuidor da
liberdade humana.
Neste sentido, ao olhar de forma intensa para toda esta experiência
ocorrida na Segunda Guerra Mundial, os teórico da escola de Frankfurt
produziram análises capazes de apontar os limites da racionalidade
representada pela ciência positiva. No livro “Dialética do Esclarecimento”,
Adorno e Horkheimer buscam as origem desta racionalidade na ruptura
representada pelas grandes transformações dos séculos XVIII e XIX. Segundo
os autores, o Paradigma científico surgido neste momento histórico, busca
aprofundar as diferentes formas das sociedades humanas de controlarem a si
mesmos e a natureza3. O ideal de uma racionalidade capaz de levar toda a

3
“O objetivo do esclarecimento foi o de libertar os homens do medo e transformá-los em verdadeiros
senhores, tanto da natureza interna, como da natureza externa” (96)
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sociedade ao desenvolvimento e ao progresso criou uma concepção de história
linear e que buscava, a todo o momento, a exaltação do futuro como o campo
das possibilidades infinitas. Ao mesmo tempo, esta concepção de história
humana vinha acompanhada de uma idéia sobre o espaço que o concebia de
maneira homogênea. A espacialidade deste ideal de racionalidade parte do
pressuposto de que, com o tempo, as mais altas qualidades do centro do
conhecimento no mundo (identificado na Europa e, em parte, nos EUA)
estariam difundidos nos diferentes territórios. Tal difusão, por sua vez, poderia
enfrentar resistências por parte das comunidades que, provavelmente, se
encontrariam em um estágio inferior do desenvolvimento humano. Neste
sentido, todas as práticas expansionistas verificadas no mundo, principalmente
aquelas ligadas ao Imperialismo do século XIX se pautam também nesta
concepção de racionalidade cientifica que pressupõem a existência de estágios
hierarquizados de desenvolvimento humano e que as populações distribuídas
por diversos territórios estariam em diferentes estágios. Partindo desta
concepção, caberia ao homem branco e europeu “o fardo” de levar o progresso
e a civilização para os diferentes territórios espalhados pelo mundo. Em suas
visões, não se tratava de violência ou imperialismo, mas de uma tarefa nobre
que permitiria aos povos “mais atrasados” acompanharem o desenvolvimento
como o existente na Europa.
Tal concepção, porém, começa a sofrer severas críticas a partir do
momento em que toda a racionalidade européia, que levaria os homens e
mulheres para o desenvolvimento e o progresso resultam em duas
experiências brutais, que sejam, as duas grandes Guerras. Esta dualidade
entre civilização e barbárie, entre progresso e caos, se torna mais evidente e
passa a ser o ponto principal das críticas construídas por Adorno e Horkheimer.
Segundo os autores,

Todo o progresso material e espiritual obtido mediante a


divisão social do trabalho não caminhou numa rua de mão
única, pois a humanidade cada vez mais esclarecida é forçada
a regredir a estágios mais primitivos (1985, pag. 18)

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Se a brutalidade desta racionalidade já estava presente nas
colonizações da América e na exploração do trabalho escravo africano, se
tornou evidente a partir do momento que ocorreu em seu centro territorial. Já
não era mais possível esconder as contradições inerentes a esta racionalidade,
culpando os outros por não a aceitarem. O que as duas guerras mundiais e,
especialmente, a experiência de Auschwitz trouxeram foram os limites de uma
racionalidade que, como vimos, tem como principal objetivo aumentar a
exploração do homem sobre o homem. Vale ressaltar, que os principais
artefatos usados no final da Segunda Mundial, que sejam, as bombas atômicas
despejadas contra as cidades Japonesas de Hiroshima e Nagasaki, são
resultado daquilo que havia de mais avançado na racionalidade científica
daquele momento. O que as bombas fizeram foi, em pouco tempo, aumentar a
capacidade do homem de, a partir do progresso, da civilização, produzir
barbárie e exploração.
Dessa forma, uma das principais contribuições das análises feitas por
Adorno e pelos teóricos da Escola de Frankfurt foi trazer de volta para o campo
do conhecimento a reflexão sobre a relação deste com a sociedade da qual faz
parte. Além disso, há um reposicionamento das ciências humanas que passam
a ser novamente valorizadas pela capacidade de produzirem reflexões no
sentido de apontar as contradições e os limites do modelo de ciência
dominante. Da mesma forma, a partir de tais análises, um dos princípios
fundamentais do Positivismo, que seja, a neutralidade do conhecimento
científico foi desconstruído e em seu lugar surgiu uma leitura mais ampla que
aponta as relações intrínsecas entre conhecimento, sociedade e poder.
Esta discussão aberta pela Escola de Frankfurt vai influenciar
diretamente o trabalho de Michel Foucault. No centro das preocupações deste
autor está a compreensão das relações entre saber e poder. Como vimos, a
sociedade industrial, surgida na Inglaterra nos séculos XVIII-XIX e que se
espalhou em um processo desigual e combinado pelo mundo inteiro é a
sociedade na qual a ciência e a técnica passam a serem conhecimentos
dominantes. Ditado pela ordem do capital, tais saberes se afirmam em
detrimento de outros, resultando em um processo de hierarquização do

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conhecimento4. Para que esta hierarquização ocorra, porém, é fundamental a
disciplinarização do saberes, divisão, seleção e compartimentação dos
mesmos em áreas estanques e que se unem a partir dos critérios
estabelecidos pelo paradigma positivista. O surgimento das diferentes
disciplinas científicas no final do século XIX é um exemplo deste processo.
Para Foucault, esta disciplinarização dos saberes deve ser entendida também
como uma forma de controle social, sobre as vozes daqueles que produzem os
mesmos. Dizer o que vale e o que não vale como conhecimento científico,
neste caso, significa dividir a sociedade entre aqueles que tem e os que não
tem o direito de dizer sobre si mesmos e sobre o mundo em que vivem. Torna-
se, portanto, uma forma de controle social que se sustenta a partir de uma
hierarquização do conhecimento.
Para Foucault, é a partir do século XVIII que este processo se inicia.

O século XVIII foi o século do disciplinamento dos saberes, ou


seja, da organização interna de cada saber como uma
disciplina tendo, em seu campo próprio, a um só tempo critério
de seleção que permitem descartar o falso saber , o não-saber,
formas de normalização e de homogeneização dos conteúdos,
formas de hierarquização e, enfim, uma organização interna de
centralização desses saberes em torno de um tipo de
axiomatização de fato. Logo, organização de cada saber como
disciplina e, de outro lado, escalonamento desses saberes
assim disciplinados do interior, sua intercomunicação, sua
distribuição, sua hierarquização recíproca numa espécie de
campo global ou disciplina global a que chama precisamente a
“ciência”. (FOUCAULT, 2005, pags. 217-218)

Porém, este processo de disciplinarização só pode ocorrer a partir da


centralidade representada pelo saber acadêmico e universitário. Este processo
de fortalecimento das Universidades como lugares centrais do conhecimento,

4
Acerca do saber tecnológico, Foucault escreve: “Ora, à medida que se desenvolveram tanto as forças
de produção quanto as demandas econômicas, o valor desses saberes aumentou, a luta desses saberes
uns com relação aos outros, as delimitações de independência, as exigências de segredo, tornaram-se
mais fortes e, de certo modo mais tensas. Nessa mesma ocasião, desenvolveram-se processos de
anexação, de confisco, de apropriação dos saberes menores, mais particulares, mais locais, mais
artesanais, pelos maiores, eu quero dizer os mais gerais, os mais industriais, aqueles que circulavam
mais facilmente ; uma espécie de imensa luta econômico-política em torno dos saberes, a propósito
desses saberes, a propósito da dispersão e da heterogeneidade deles; imensa luta em torno das
induções econômicas e dos efeitos de poder ligados à posse exclusiva de um saber, à sua dispersão e ao
seu segredo”. (FOUCAULT, 2005, pags. 214-215).
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em detrimentos dos saberes populares e locais, vem ocorrendo desde o final
da Idade Média. As disputas entre os curandeiros e os médicos, os alquimistas
e os químicos são reveladores desta relação entre saber, poder e hierarquia
social. Como lugar do saber, as Universidades reestruturadas após o século
XVIII passam então a representar-se como território do verdadeiro saber e os
que dela fazem parte se tornam os responsáveis por guardar tais saberes. Para
o autor,

A universidade tem, sobretudo, uma função de seleção, não


tanto das pessoas (afinal de contas, isso não é muito
importante) mas dos saberes. O papel de seleção ela o exerce
com essa espécie de monopólio de fato, mas também de
direito, que faz que um saber que não nasceu, que não se
formou no interior dessa espécie de campo institucional, com
limites aliás relativamente instáveis, mas que constitui em
linhas gerais a Universidade, os organismos oficiais de
pesquisa, fora disso, o saber em estado selvagem, o saber
nascido alhures, se vê automaticamente, logo de saída, se não
totalmente excluído, pelo menos desclassificado a priori.
(FOUCAULT, 2005, pag. 219).

Neste sentido, o lugar do conhecimento se torna mais importante do que


aquilo que de fato ele significa. Esta centralidade representada pelo saber
universitário é um dos elementos fundamentais para que possamos
compreender a relação entre a hierarquia do conhecimento e a reprodução das
desigualdades sociais. Em um país como o Brasil no qual milhares de pessoas
não têm acesso à Universidade e pouquíssimos têm acesso aquilo que a
mesma produz enquanto pesquisa, faz-se necessário uma ampliação das
discussões acerca da relação entre conhecimento, sociedade e poder.
Como forma de romper com este monopólio representado pelo lugar
ocupado pela Universidade nesta hierarquia do conhecimento, faz-se
necessário um olhar sobre os outros saberes, produzidos em diversos
contextos, situações, lugares. Neste sentido, na obra de Foucault o que
interessa é um olhar sobre os “saberes de baixo”, os saberes sujeitados,
aqueles que fogem a lógica dominante e que Deleuze denominara de saberes
menores. Tais saberes representam aquilo que não é dito, o que não é
reconhecido, é o saber das pessoas comuns, do artista, do louco, do professor,
os saberes da rua que se encontram na penumbra da sociedade do
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espetáculo. Para trazer a tonas tais saberes, é preciso, segundo Foucault, um
trabalho de escavação, uma verdadeira arqueologia das camadas não lineares
sobrepostas. Tal escavação seria o ponto necessário para que uma
“insurreição dos saberes” pudesse ocorrer. Tal insurreição, segundo o autor,
seria

Não tanto contra os conteúdos, os métodos ou os conceitos de


uma ciência, mas de uma insurreição, sobretudo e acima de
tudo contra os efeitos centralizadores de poder que são
vinculados à instituição e ao funcionamento de um discurso
científico organizado no interior de uma sociedade como a
nossa (FOUCAULT, 2005, pag. 218)

A influência da obra de Foucault nesta insurreição dos saberes foi


bastante extensa: os estudos sobre a sexualidade, loucura, minorias,
ganharam força no interior das ciências humanas. Porém, há que se fazer uma
ressalva: para muitos autores, tais estudos inauguraram na ciência um novo
momento histórico que poderia ser denominado de pós-modernidade. Tais
autores sustentam esta afirmação em argumentos como o fim das metas-
narrativas, o surgimento e reconhecimento de saberes locais, o domínio da
estética sobre a ética, entre outros. Novamente, o olhar sobre a real existência
da pós-modernidade deve ser realizado. Principalmente se levarmos em
consideração que até mesmo estes saberes insurretos estão hoje ligados a
lógica do capital e aparecem mais como souvenir e modismos do que como
contestação. Continuo a afirmar que se não tivermos um olhar atento para a
função que o conhecimento cumpri nesta sociedade dominada pela lógica do
capital, correremos o risco de produzir interpretações ingênuas.
Neste sentido, tanto Adorno como Foucault buscaram dialogar
criticamente com esta forma de conhecimento representado pela ciência e pela
técnica, buscando os significados dos mesmos no interior da sociedade
industrial. Suas críticas vão no sentido de apontar os limites desta forma de
conhecimento a partir da necessidade do reconhecimento de outras formas de
saberes, de outros conhecimentos, que possibilitem a crítica e a reflexão e que
não estejam estruturados em conceitos falsos como progresso e positividade.
Em certa medida, tais críticas representaram uma crise no interior do

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Paradigma Positivista e um reposicionamento do lugar das ciências humanas
na hierarquia do saber científico.

O “novo consenso” neoliberal e o lugar do conhecimento-


mercadoria
A década de 1970 representou um intenso processo de reestruturação
do capitalismo em todo o mundo. Após quase trinta anos de expansão com o
final da segunda Guerra Mundial, o processo de reprodução do capital
encontrou novamente empecilhos para sua realização. O período de
acumulação representado pelo modelo Fordista / Taylorista havia chegado aos
seus limites, uma vez que não conseguia manter em constante funcionamento
o ciclo do capital (produção-consumo-produção). A rigidez deste modelo, com a
falta de diversidade de mercadorias a disposição do consumidor, foi apontada
como a principal responsável pela crise de acumulação capitalista. Além disso,
o Estado de Bem Estar Social (Welfare State), posto em prática nos EUA com
o New Deal (uma serie de ações realizadas durante o governo de F. D.
Roosevelt para superar a crise de 1929 e pautadas nas teorias econômicas de
John Maynard Keynes) foi também apontado como uma das causas da crise do
capital, por ser considerado caro de mais e onerar os capitalistas com taxas
elevadas de impostos. Para a resolução desta crise de acumulação, uma nova
racionalidade econômica foi defendida e colocada em prática durante os
governos de Ronald Reagan nos EUA e Margaret Thatcher na Inglaterra. Esta
nova racionalidade econômica foi denominada de neoliberalismo e preferimos,
a partir deste momento do texto, nos referirmos à ela como um novo senso
comum. A utilização deste termo designa a maneira como a população em
geral compreende as transformações representadas pelo neoliberalismo. Não
se trata de acreditar que não existem divergências sobre o termo, mas de
apontar para o fato de que o mesmo é tomado pela população como algo
natural, que sempre existiu e continuará, portanto, a definir a vida e as práticas
das pessoas. Surge, portanto, como as bases do pensamento único e da nova
racionalidade a ele atrelado. A construção do neoliberalismo enquanto um novo
senso comum é resultado da articulação de diversos setores hegemônicos do
capital, principalmente aqueles relacionados aos meios de comunicação de
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massa, que buscam legitimar a adoção de medidas favoráveis aos agentes do
capital como se elas fossem essenciais para o desenvolvimento da população
de um determinado país. O discurso em torno do neoliberalismo busca atrelar a
sobrevivência dos agentes do capital a sobrevivência da população, o que
pode ser claramente verificado na crise de 2008 nos EUA quando os diferentes
meios de comunicação empreenderam uma gigantesca campanha de
convencimento da população para que a mesma aceitasse o pacote bilionário
para o salvamento de grandes bancos estadunidenses. Enquanto isso, os
mesmos bancos continuaram a executar hipotecas e expulsar moradores de
suas casas, agravando ainda mais a desigualdade sócio-espacial naquele país.
No livro “A condição pós-moderna”, David Harvey analisa estas
transformações ocorridas no processo de acumulação capitalista no final de
década de 1970. Para o autor, a década de 1970 marcou a crise do fordismo e
de sua rigidez, que passou a ceder espaço para o desenvolvimento da
chamada acumulação flexível do capital. Tal acumulação, ainda segundo o
autor, estaria assentada no seguinte tripé: mercadoria – publicidade –
especulação e no surgimento de novos ramos de produção, principalmente
aqueles diretamente relacionados ao campo da microinformática e da
comunicação. Além disso, há uma mudança na forma de produção que resulta
em um processo de compreensão espaço-temporal. Ao mesmo tempo em que
as corporações passam a instalar unidades de produção em diferentes
territórios no globo, ampliando a ação geográfica das mesmas, há uma
sensação de maior proximidade entre os diferentes pontos do território. Tal
sensação é produto direto das transformações nos campos dos transportes e
das comunicações. Neste sentido, ao mesmo tempo em que há um processo
de mundialização, com a ampliação da percepção territorial sobre o globo,
ocorre um processo de aproximação dos lugares em decorrências das
necessidades de reprodução do capital.
Além disso, há uma transformação no que diz respeito à vida útil dos
produtos. Inaugura-se aquilo que alguns autores denominam de obsolescência
programada, ou seja, os produtos são pensados e produzidos para não
durarem. Junto à obsolescência programada, surge a obsolescência planejada,
que seja, se cria em torno do produto todo um aparato midiático que faz com
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que, apesar de continuar em condições de uso, o produto seja trocado pelo seu
usuário por um mais “moderno”, adaptado aos desígnios da moda. Neste
processo, os conhecimentos passam a ser cada vez mais incorporados a
necessidade de ser produzir novidades em um período menor de tempo. Os
avanços no campo da nanotecnologia e da biotecnologia apontam para estas
novas necessidades e mostram como o conhecimento encontra-se inserido em
uma lógica de produção industrial. Transforma-se, portanto, em mais uma
mercadoria como tantas outras presentes em um momento histórico no qual a
forma mercadoria quer se afirmar como narrativa capaz de dar sentido a vida
de milhares de homens, cada vez mais dilacerados pela (in) experiência de
habitar as metrópoles.
Aqui vale um breve comentário: a transformação da mercadoria também
em narrativa só pôde ocorrer a partir do desenvolvimento da publicidade e da
mídia de massa enquanto principais mediadores entre os homens e o mundo.
Só há narrativa quando existe algo ou alguém com autoridade suficiente para
produzi-la e legitimá-la. E foi exatamente esta a função assumida pelos donos
dos grandes meios de comunicação que, associados ao capital produtivo e
especulativo e a publicidade, legitimaram o processo de transformação da
mercadoria em narrativa.
Os valores, as escolhas, as decisões dos homens passaram a ser cada
vez mais mediadas pela forma mercadoria. Esta, por sua vez, elevada a
categoria de narrativa, perdeu seu lado negativo. Já não era mais a
responsável pelas mazelas humanas, mas sua solução. O problema não era
mais a exploração do homem pelo homem que a mercadoria continha, mas a
dificuldade de acesso a esta narrativa. Todos queriam fazer parte da mesma
história.
Neste sentido, a compreensão das transformações do saber passa
necessariamente por este processo de totalização da realidade pela forma
mercadoria. Em um mundo no qual tudo tende a ser mercadoria, o saber não
escapa deste destino. A mercantilização do saber vai além, porém, da mera
constatação de que agora se compra e vende conhecimento. O saber
mercantilizado é outro saber e, portanto, com outro significado e outra função
nesta sociedade.
15
Em vez de serem difundidos em virtude do seu valor formativo
ou de importância política (administrativa, diplomática, militar),
pode-se imaginar que os conhecimentos sejam postos em
circulação segundo as mesmas redes da moeda e que a
clivagem pertinente a seu respeito deixa de ser
saber/ignorância para se tornar como no caso da moeda,
conhecimento de pagamento / conhecimento de investimento,
ou seja, conhecimento trocado no quadro da manutenção da
vida cotidiana (reconstituição da força de trabalho,
sobrevivência) versus créditos de conhecimento com vistas a
otimizar as performances de um programa. (LYOTARD, 2002,
p. 46)

Acentua-se, portanto, uma maior divisão entre a produção e o acesso ao


saber. É interessante notar que esta maior divisão ocorre exatamente no
momento em que certos autores “pós-modernos” afirmam o surgimento de
outras narrativas capazes de possibilitar aos homens se tornarem sujeitos
novamente. O que ocorre, porém, é que uma parcela significativa da população
se encontra distante dos conhecimentos e saberes que recebem. Reproduzem
algo que pouco faz sentido. Dessa maneira, esta falsa valorização dos
diferentes sujeitos e suas narrativas se dá a partir dos interesses dos agentes
responsáveis pela transformação da mercadoria enquanto narrativa capaz de
inserir tais sujeitos na lógica de reprodução ampliada do capital. Dar
visibilidade, neste caso, significa criar uma certa imagem que é também
mercadoria, porque imagem-inclusão, imagem-vitrine, que vende o sonho dos
que, transformados em mercadoria, habitam o mundo dos vazios cheios de
mercadorias.
Em certa medida, o discurso da pós-modernidade é a mascara pela qual
o novo senso comum da sociedade capitalista aparece para uma parcela da
população. É impossível compreender as transformações recentes ocorridas
em relação ao saber sem relacioná-las diretamente aos princípios que o
movem. Segundo os princípios neoliberais, o Estado precisa diminuir sua
atuação, principalmente aquelas ligadas a investimentos sociais (que passam a
ser vistos como gastos), abrindo assim novos campos de atuação para as
corporações. Além disso, deve também o Estado desregular a economia,
diminuindo o seu papel de fiscalizador. De planejador, o Estado se torna mero
gestor dos interesses dos órgãos privados. Como conseqüência, direitos
16
essenciais como educação, saúde, cultura, entre outros passam a ser
concebidos como serviços e, portanto, alvos da atuação de empresas privadas.
Substitui-se, neste processo, o cidadão pelo consumidor, o direito pela compra.
Este modelo de organização estatal foi difundido pelo mundo como novo
senso comum de organização capitalista e ganhou mais força e destaque com
o fim da Guerra Fria. Durante toda a década de 1990, poucas foram as vozes
que se levantaram contra este modelo que chegou a ser considerado estágio
final da história (FUKUYAMA, 1992). Sua expansão se deu a partir de acordos
internacionais que privilegiavam os interesses das principais corporações do
mundo. No caso da América Latina, foi implementado por diversos países a
partir do Consenso de Washington de 1989 e resultou no aumento da miséria e
da desigualdade social em todos os países que o adotaram.
Feito este pequeno resgate histórico do neoliberalismo, o que nos
interessa agora é compreender quais as implicações da adoção de medidas
neoliberais sob a organização e produção do conhecimento, principalmente o
efeito sobre os lugares tradicionais desta produção, que seja, as Universidades
Públicas. Sem a compreensão destas transformações, não poderemos fazer
uma leitura mais ampla dos processos que posteriormente analisaremos
relacionados à formação de professores em geografia.

O saber mercantilizado e o campo científico


As transformações estruturais relacionados ao modo de produção
capitalista e sua relação com a produção do saber afetam também as formas
como no interior das universidades e centro de pesquisas a produção do
mesmo se dá. Há uma mudança no sentido e no significado das universidades
no que diz respeito aquilo que representam em relação a toda sociedade.
Segundo Marilena Chauí, uma das principais mudanças ocorridas nas
Universidades Públicas a partir da adoção de medidas neoliberais e da
inserção cada vez mais intensa do conhecimento na lógica de reprodução do
capital é a transformação das Universidades Públicas de instituições em
Organizações. O que aparece, em um primeiro momento, como uma mera
mudança de nomes, de designações oculta uma alteração profunda de sentido,

17
principalmente no que diz respeito à relação entre Universidade e Sociedade.
Segunda a autora,

Uma organização difere de uma instituição por definir-se por


uma prática social determinada de acordo com sua
instrumentalidade: está referida ao conjunto de meios
(administrativos) particulares para a obtenção de um objetivo
particular. Não está referida a ações articuladas às idéias de
reconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e
externa, mas a operações definidas como estratégias balizadas
pelas idéias de eficácia e de sucesso no emprego de
determinados meios para alcançar o objetivo particular que a
define. Por ser uma administração, é regida pelas idéias de
gestão, planejamento, previsão, controle e êxito. Não lhe
compete discutir ou questionar sua própria existência, sua
função, seu lugar no interior da luta de classe, pois isso, que
para a instituição social universitária é crucial, é, para a
organização, um dado de fato. Ela sabe (ou julga saber) por
que, para que e onde existe. (CHAUÍ, 2003: 24)

Como organização, a Universidade pública encontra o seu fim em si


mesmo, pouco importando a relação que deveria estabelecer com as
demandas sociais no sentido em que o conhecimento que produz deveria,
essencialmente, ser público. Ao contrário, a relação com a sociedade passa a
ser mediada por grupos específicos, ligados a lógica empresarial e que
compreendem o conhecimento como meio de produção. O discurso da
produtividade acadêmica é um dos elementos a provar a adoção de
mecanismos empresariais na estruturação interna das Universidades Públicas.
Além disso, demonstra a transformação da Universidade em organização.
Nesta mudança, torna-se mais distante pensar nas possibilidades existentes
entre Universidade e desenvolvimento nacional independente, como apontou
Florestan Fernandes (2008)5.
Nesta transformação apontada por Marilena Chauí, as múltiplas funções
das Universidades Públicas também se alteram. Não há nada que saia ileso

5
“Na esfera da educação escolar e, em especial, da criação de novos modelos institucionais de
universidade, isso envolveria a passagem de um estado de passividade e de imobilismo para um estado
de atividade criadora, conscientemente orientada através de interesses e de objetivos nacionais. Nessas
condições a universidade seria posta a serviço do desenvolvimento, em vez de entrar no seu passivo; e ,
contaria com meios para influenciá-lo estrutural e dinamicamente, imprimindo continuidade,
intensidade e eficácia ao seu impacto sobre a autonomia como processo histórico-cultural (FERNANDES,
2008, pags. 189-190).
18
deste processo. Mudam-se os sentidos da pesquisa, da docência, da extensão.
Produz-se outro conhecimento porque outra também é a Universidade.
Pensada agora como gasto social, a ser cortado nas diversas reformas do
Estado como aquela posta em prática durante o governo de Fernando
Henrique Cardoso no Brasil (1994-2002), a Universidade passa a ser gerida
por interesses privatistas visto que não possui mais condições de se manter
financeiramente. Como forma de sobrevivência, transforma em mercadoria
quase tudo aquilo que produz: de artigos científicos à cursos de especialização,
tudo passa a ser comprado e vendido, ratificando assim a lógica da
transformação da educação de direito em serviço.
Porém, uma das transformações mais profundas ocorridas nesta
mudança das Universidades Públicas de Instituições para Organizações diz
respeito ao abandono das mesmas em relação a busca não apenas de um
conhecimento técnico mas de um processo amplo de formação. A
universidade, aos poucos, tem deixado de lado a sua preocupação formativa,
aprofundando seus interesses técnicos, sua avaliação produtivista. E com isso,
distancia-se um pouco mais de questões fundamentais a sua própria
existência, principalmente aquelas ligadas aos conhecimentos ali produzidos e
a relação com um projeto mais amplo de sociedade. Como aponta CARVALHO

A aprendizagem indica simplesmente que alguém veio a saber


algo que não sabia: uma informação, um conceito, uma
capacidade. Mas não implica que esse 'algo novo' que se
aprendeu nos transformou em um novo 'alguém'. E essa é uma
característica forte do conceito de formação: uma
aprendizagem só é formativa na medida em que opera
transformações na constituição daquele que aprende. É como
se o conceito de formação indicasse a forma pela qual nossas
aprendizagens e experiências nos constituem como um ser
singular no mundo (CARVALHO, 2008, pag.25).

Ao abdicar das preocupações relacionadas aos conhecimentos que


produz e a sociedade que os mesmos ajudam a construir, a Universidade
Pública assume não serem mais importantes questões como estas visto que a
sua atuação na sociedade é dada como um fato, como algo inquestionável e
que, portanto, não necessita de um amplo exercício de reflexão. O
conhecimento produzido pela Universidade não tem grandes pretensões. É
19
apenas conhecimento para a sociedade que aí está. Não cabe a Universidade
considerações além dessas. E com isso, o discurso da fragmentação, da não
relação entre Universidade e Sociedade torna-se cada vez mais legitimado
pelas práticas e por um intenso processo de (des) responsabilização sobre o
que produz. Como já pudemos constatar em algumas experiências nas
Universidades Públicas em que participamos de forma mais ativa, o discurso é
sempre o mesmo: “nós apenas produzimos o conhecimento, não somos
responsáveis pelo uso que dele é feito”. O que muitas vezes passa
despercebido neste falso discurso é o fato de que o projeto a que servirá
determinado conhecimento já está posto deste o princípio, no momento em que
a produção daquele conhecimento é requisitado. Quem o requisita, revela os
interesses que o constituem e, portanto, é hipócrita aquele que afirma não
saber a quem serve o que produz. Depois de Auschwitz, é impossível dizer que
não somos responsáveis.
A recusa em assumir a formação como elemento central da produção
universitária é também resultado de um processo de aceleração da produção
do conhecimento. Com o intuito de competir pelos recursos cada vez mais
escassos dos órgãos de fomento, as Universidades Públicas precisam
apresentar resultados, os quais são, estritamente, quantitativos. Com isso,
importa mais o número de mestres e doutores formados, do que aquilo que de
fato significa esta formação. E nesse processo, não há tempo para se refletir
sobre aquilo que vem ocorrendo com a Universidade, com a sua transformação
a partir da lógica do capital. Em certa medida, tais transformações passam a
ser encaradas como naturais, como necessárias a adaptação das
Universidades a esta nova realidade social. E com isso, um dos elementos
centrais que marcou a construção do conhecimento universitário desde o seu
processo de constituição vai sendo, aos poucos esquecido, que seja, a
autonomia da construção do pensamento crítico, capaz de olhar para si mesmo
e para a relação que estabelece com os outros. Não há mais tempo para
pensamento crítico. O espaço-tempo da crítica não é o mesmo do capital. Não
se produz análises sérias e comprometidas com a transformação social sem
um olhar atento e demorado sobre a realidade e a partir de diferentes autores
que a interpretaram em diversos momentos da história. Ao assumir o tempo do
20
capital como sinônimo do tempo da produção do conhecimento, as
Universidades Públicas assumem a impossibilidade de construção crítica e,
consequemente, de um processo efetivo de formação. Abdicam, portanto,
daquilo que as constituem e assim se transformam em meras organizações
que, como vimos, tem o fim apenas em si mesmo.
Todos estes processos acima analisados resultam em profundas crises
de sentido das Universidades Públicas. Segundo Boaventura de Souza Santos
(2004), são pelo menos três estas crises: de hegemonia, de legitimidade e
institucional. Cada uma destas, representam momentos de uma crise maior
diretamente relacionada à inserção das Universidades na lógica de reprodução
ampliada do capital. Para o autor, no entanto, nas últimas décadas a crise
institucional tem totalizado as outras duas crises por estar diretamente ligada
as transformações das Universidades Públicas em Organizações empresariais.
Para o autor,

No momento, porém, em que o Estado ao contrário do que se


passou com a justiça, decidiu reduzir o seu compromisso
político com as Universidades e com a educação geral,
convertendo esta num bem que, sendo público, não tem de ser
exclusivamente assegurado pelo Estado, a Universidade
pública entrou automaticamente em crise institucional. Se esta
existia antes, aprofundou-se. Pode-se dizer que nos últimos
trinta anos a crise institucional da universidade na grande
maioria dos países foi provocada ou induzida pela perda de
prioridade do bem público universitário das políticas públicas e
pela consequente secagem financeira e descapitalização das
universidades públicas. As causas e conseqüências variam de
país para país. (SANTOS, 2004, pag. 13).

Este transformação do caráter público das universidades e o avanço da


lógica empresarial vem acompanhado por pressões internacionais no sentido
de ratificar tais alterações. No âmbito da Organização Mundial do Comércio, o
GATS (Acordo Geral sobre Comércio de Serviços) é uma das tentativas de
legitimar a atuação de grupos empresarias no Ensino Superior a partir da
aceitação de existência da oferta de Serviços Universitários. Mesmo sem a
aprovação por parte de diversos países, temos visto o avanço dos chamados
serviços universitários e o processo de transnacionalização da educação
superior, principalmente com a aquisição, por parte de grandes grupos
21
internacionais do setor de ensino superior de grupos de menor porte em países
de menor destaque neste setor (no caso brasileiro, vale ressaltar o negócio
realizado entre a Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo e o grupo
internacional Laureate).
Em artigo publicado na Revista Educação e Sociedade da Universidade
de Campinas Romualdo Portela de Oliveira (2009) analisa os mecanismos
utilizados por alguns grupos do setor de educação superior para monopolizar
este mercado no Brasil, destacando a atuação de alguns destes grupos nas
bolsas de valores brasileiras, através da formação de fundos de investimentos
privados. Segundo o autor,

A ação desses fundos foi responsável pela grande


concentração de matrículas, particularmente no ensino
fundamental e médio, ao induzir a adoção de franquias das
grandes redes, chegando atualmente a representar mais do
que 30% da matrícula no setor privado nessas etapas da
educação básica. No início desta década, ao se identificar que
o setor de educação superior sofreria rápida expansão, a
atenção dos fundos de investimento voltou-se para essa área,
ocasião em que foram constituídos os primeiros fundos de
investimento exclusivamente direcionados à educação. Esses
fundos têm condições de injetar altas quantias em empresas
educacionais, ao mesmo tempo em que empreendem ou
induzem processos de reestruturação das escolas nas quais
investem, por meio da redução de custos, da racionalização
administrativa, em suma, da “profissionalização” da gestão das
instituições de ensino, numa perspectiva claramente
empresarial. Essa perspectiva racionalizadora é
fundamentalmente orientada para a maximização de lucros,
chegando ao paroxismo em algumas situações. (OLIVEIRA,
2009, pag. 743)

Neste sentido, além da transformação da educação superior em


mercadoria, há um processo de monopolização deste mercado por grupos
estrangeiros que passam a definir o sentidos e os significados daquilo que se
produz nas Universidades. Se isto já é uma realidade nas diversas
Universidades particulares internacionais e brasileiras, começa a ser também
nas Universidades publicas que, com recursos escassos tem que recorrer ao
mercado para o financiamento de suas pesquisas. Com isto, as pesquisas
passam a ser valorizadas a partir dos interesses do mercado. Além disso, com
os baixos recursos destinados às Universidades se mantém um quadro claro
22
de disputas que intensificam a busca por posições privilegiados no interior do
campo científico. Surgem, mesmo que ainda não de forma explicita, dois
modelos de Universidade: de um lado, a Universidade de Pesquisa, voltado a
produção de conhecimento cada vez mais inseridos nos interesses de grupos
empresariais; do outro lado, a Universidade de Ensino, que tem como principal
objetivo a formação de mão-de-obra qualificada, porém barata, para as
diferentes funções do mercado. A adoção desta divisão destes dois modelos
revela que o antigo tripé constituinte da Universidade, que seja, Ensino,
Pesquisa e Extensão, há muito não existe a não ser como práticas
fragmentadas.

Ampliando a discussão: o conceito de campo científico


Para que possamos compreender um pouco melhor este processo,
principalmente os impactos que o mesmo traz para a organização interna da
produção do saber, faz-se necessário uma análise da realidade a partir de
conceitos que permitam uma aproximação mais crítica desta realidade. Neste
sentido, acreditamos que o conceito de campo científico6, desenvolvido pelo
sociólogo francês Pierre Bourdieu (2004), pode nos auxiliar nas interpretações
que realizaremos.
Segundo Bourdieu, a produção do saber se dá, no interior do campo
científico, a partir de uma certa hierarquia. Nela, mais importante do que aquilo
que se fala é o lugar de onde se fala, a posição que se ocupa nesta hierarquia.
Por sua, vez esta hierarquia decorre da distribuição do que o autor denomina
de capital científico.

Segue-se que os campos são lugar de duas formas de poder


que correspondem a duas espécies de capital científico: de um
lado, um poder que se pode chamar temporal (ou político),
poder institucional e institucionalizado que está ligado a
ocupação de posições importantes nas instituições científicas,
direção de laboratórios ou departamentos, pertencimentos a
comissões de avaliação, etc., e ao poder sobre os meios de

6
“Os campos são lugares de relações de forças que implicam tendências imanentes e probabilidades
objetivas. Um campo não se orienta totalmente ao acaso. Nem tudo nele é igualmente possível e
impossível em cada momento. Entre as vantagens sociais daqueles que nasceram está precisamente o
fato de ter o que se chama em rugby, mas também na Bolsa, o sentido do jogo” (BOURDIEU, 2004, pag.
27).
23
produção (contratos, créditos, postos, etc.) e de reprodução
(poder de nomear e fazer as carreiras) que ela assegura. De
outro, um poder específico, “prestígio” pessoal que é mais ou
menos independente do precedente, segundo os campos e as
instituições, e que repousa quase exclusivamente sobre o
reconhecimento, pouco ou mal objetivado e institucionalizado,
do conjunto de pares ou da fração consagrada dentre eles (por
exemplo, com os “colégios invisíveis” de eruditos unidos por
relações de estima mútua). (BOURDIEU, 2004. 35)

É a partir da distribuição destes dois capitais científicos que se estrutura


a hierarquia de um determinado campo científico. Com o aumento daquilo que
Kurz (2004) denomina de racionalização burocrática na organização das
Universidades Públicas, a primeira forma de capital científico tende a totalizar a
segunda, no sentido em que o reconhecimento pelo trabalho de determinado
pesquisador passa necessariamente pelas publicações de suas pesquisas que,
por sua vez, dependem dos recursos que estão no poder daqueles que
ocupam as “posições mais importantes nas instituições científicas”. Se em
determinado momento da história da ciência, era o prestígio intelectual um pré-
requisito para a ocupação de determinados lugares nas instituições científicas,
hoje uma nova figura surge nas Universidades, que seja, a do administrador da
ciência, do burocrata que age conforme a lógica empresarial de produção7.
Mesmo não sendo portador do capital científico do segundo tipo (conforme
descrito por Bourdieu), sua ascensão na carreira está diretamente relacionada
à inserção na lógica da Universidade transformada em organização. Porém, a
sua ação vai além do mero trabalho burocrático. É através das políticas que
realiza que define também o que passa a ser valorizado e desvalorizado no
interior do campo científico. E com isso, o que deve ou não deve ser financiado
e apoiado.
Neste sentido, a imposição de práticas neoliberais na forma de
organização do Ensino superior tem aumentado as disputas no interior do
campo científico pois agora estar em uma determinada posição significa ter
acesso aos recursos tão escassos de financiamento. Porém, para alcançar tais

7
“Os administradores estão roubando o poder dos cientistas e construindo uma cultura de
contabilidades que visa a um controle administrativo ainda mais perfeito da vida institucional e
profissional. O resultado é uma sociedade de auditores, na qual cada indicador é investido de uma
exatidão ilusória e se torna um fim em si mesmo”. (LAWRENCE, 2003).
24
posições é preciso abrir mão da crítica e da reflexão enquanto práxis, mesmo
que tais permaneçam em discurso. Nunca se produziu tanta análise acerca da
produção científica como no momento presente. Ao mesmo tempo, nunca a
ciência esteve mais atrelada à lógica do capital, como se a crítica não fosse
capaz de engendrar práxis alternativas ao processo que por ora se quer
dominante8. O que temos visto, com clareza cada vez maior é o fato de que as
disputas por posições nesta hierarquia do saber resultam em produções
intelectuais inócuas no sentido em que se referem apenas a própria reprodução
das condições específicas da produção do saber. Para além de uma leitura
crítica da sociedade e de suas contradições que resulte em uma práxis
transformadora, o que se tem é uma busca constante pela reprodução dos
privilégios daqueles que se dizem produtores do saber, em uma tentativa de
permanecerem nas posições mais valorizadas nesta “hierarquia”.
Estas disputas no interior do campo científico resultam em estratégias
específicas para se alcançar as posições mais valorizadas que permitem ao
pesquisador adquirir privilégios (leiam-se, neste momento, bolsas e incentivos
a pesquisa). Desaparece o intelectual engajado como forma dominante no
interior das Universidades Públicas e em seu lugar surge o especialista,
detentor de um conhecimento técnico, parcelar, não-reflexivo. O conhecimento
especializado se torna a mercadoria predileta da sociedade que se
autodenomina “do conhecimento”, mas que apenas oculta o fato de que
continua a ser a sociedade que tem a forma mercadoria como sua principal
mediação. E se ousamos chamá-la de sociedade do conhecimento é
simplesmente pela alienação de não compreender que também o
conhecimento, no interior desta sociedade, se torna uma mercadoria, acessível
a uma parcela cada vez menor que por ela pode pagar. Para que este
conhecimento se torne cada vez mais inserido na lógica do capital é preciso
fragmentá-lo, fazê-lo desconexo, desligado de uma possível interpretação
global da sociedade. Tem que ser conhecimento aplicado, inserido de forma
direta nos processos e produtos, materiais e imateriais. É a partir desta nova

8
Aqui vale reafirmar o questionamento de Boaventura de Souza Santos, em seu livro “A crítica da razão
indolente”: Por que, em um momento como este, no qual a crise parece permear toda a sociedade, é
tão difícil construir uma teoria crítica?
25
lógica de produção do conhecimento que o discurso do especialista ganha
força e passa a dominar as práticas no interior das Universidades Públicas. E
este discurso do especialista reforça a estrutura atual da produção do saber
que separa produção e acesso, ensino e pesquisa. Como aponta Marilena
Chauí,

Essas múltiplas falas de especialista competentes geram o


sentimento individual e coletivo da incompetência, arma
poderosa de dominação. Essas falas científicas ou técnicas
têm a finalidade de tornar a realidade absolutamente
transparente, dominável, controlável, previsível, determinando
de antemão o que cada um de nós deve ser para,
simplesmente, poder ser. Interpostas entre nós e nossas
experiências, esses discursos competentes têm a finalidade de
fazer-me considerar minha própria vida como desprovida de
sentido enquanto não for obediente aos cânones do progresso
científico que me dirá como ver, tocar, sentir, falar, ouvir,
escrever, ler, pensar e viver (CHAUÍ, 2007, p. 59).

O discurso do especialista competente reproduz uma ordem hierárquica


pela qual esta falsa sociedade do conhecimento pode se reproduzir. Nele, está
explícito o fato de que apenas alguns homens podem dizer algo sobre a vida. E
a própria vida cotidiana das diferentes pessoas é mediada agora por
fragmentos deste discurso.

Em uma palavra: o homem passa a relacionar-se com a vida,


com o seu corpo, com a natureza e com os demais seres
humanos através de mil pequenos modelos científicos nos
quais a dimensão propriamente humana da experiência
desapareceu. (CHAUÍ, 2007, p. 24).

Neste sentido, o campo do saber, na atualidade, está organizado de


maneira a reproduzir as seguintes situações: impede-se que um sujeito tenha o
direito à produção da cultura, impede-se que um sujeito tenha o direito de
acesso aos produtos da cultura e do saber, reduzem-se os homens a
executantes de uma saber cuja origem, sentido e finalidade lhe escapa
inteiramente. Além disso, se estrutura a partir do desenvolvimento do chamado
discurso competente: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro
qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância (CHAUÍ, 2007,
p. 19). Na construção do chamado discurso competente, as posições
26
hierárquicas no interior do campo científico são afirmadas em detrimento de
toda a sociedade que passa a ter suas experiências pessoais mediadas por
fragmentos deste discurso competente. Além disso, para se afirmar o discurso
competente precisa que se negue o direito a todos os outros homens de serem
sujeitos do processo histórico.
Novamente há que se analisar uma profunda transformação no campo
do conhecimento resultado deste novo senso comum e do lugar ocupado
atualmente pelos novos agentes econômicos do capital, principalmente as
corporações do setor de comunicação e mídia. Se durante a revolução
industrial os saberes técnicos foram elevados ao campo científico, em um
processo de seleção e normalização conforme descrito por Foucault, no
momento atual a informação aparece como um saber reconhecido. Tal saber é
marcado pelo espectro da quantidade. Difundido de forma veloz e com o intuito
de se espalhar geograficamente por diversos territórios de forma quase
simultânea, a informação se tornou, em uma inversão do sentido, sinônimo de
conhecimento. Em certa medida, aqueles autores que afirmam ser esta a
sociedade do conhecimento tomam como idênticos os dois termos.
Mas o que significa, de fato, a informação? Muito se tem afirmado que a
geração atual teria muito mais acesso as informações do que as gerações
precedentes. Mas o que isso significa? Em nossa perspectiva, a informação é o
campo da ideologia transmutada em neutralidade. Sua produção e difusão
estão diretamente relacionadas aos interesses hegemônicos do novo senso
comum. Além disso, configura-se enquanto o reino da superficialidade. Um
breve olhar em qualquer telejornal e logo perceberemos que ao final daqueles
30 minutos, quase nada foi alterado sobre aquilo que sabíamos sobre a
realidade. Além disso, a informação é tirânica, autoritária, rua de mão única.
Não há espaço para o diálogo, para a contestação, para a crítica. A aceitação é
o fundamento para que a informação se realize enquanto ideologia. Para tanto,
porém, é preciso que se reconheça o privilégio de que apenas alguns podem
produzir informações. Os agentes hegemônicos do capital transfiguram seus
interesses a partir do discurso que sustenta a imparcialidade jornalística. Tal
discurso busca construir, inclusive, o jornalismo como campo científico, como
saber neutro, dotado de regras e procedimentos indiscutíveis. Porém, enquanto
27
arma fundamental para a construção de consensos é o jornalismo mais um
ramo no interior desta racionalidade científica que tem como principal objetivo
reproduzir as condições de exploração do homem pelo homem.
Além disso, a informação se difunde também enquanto imagem e com
ela guarda estreita relações. O império da informação e da imagem estão na
base daquilo DEBORD ( 2001) denomina sociedade do espetáculo, na qual as
relações sociais passam a ser mediadas por imagens e pelas narrativas que
elas guardam9. O novo senso comum eleva a campo do conhecimento
científico também a publicidade e a propaganda, essenciais a reprodução do
modo de produção capitalista. Todo o funcionamento da publicidade e da
propaganda tem sua atuação no nível do desejo do imediato e atua no nível do
inconsciente. A publicidade e a propaganda têm por objetivo instigar o
consumo imediato, criando assim o consumidor incapaz de refletir sobre suas
ações porque incapaz de perceber que age. Não é mais a racionalidade e a
sensatez que comanda as ações do consumidor, mas o desejo não reprimido
da realização imediata do prazer. É neste contexto que o modo de produção
capitalista produz o fenômeno da aceleração contemporânea: não é apenas um
fenômeno ligado a aceleração da movimentação, do trânsito, mas um
fenômeno diretamente ligado a aceleração do tempo de giro da mercadoria, da
realização dos desejos no nível do inconsciente. Analisando este processo
da atuação da publicidade no inconsciente e, portanto, na promessa de
realização imediata dos desejos, Pignatari afirma:

Vincular a mais marcante, senão a mais profunda satisfação


física, tal como a propiciada pelo relacionamento erótico-
sexual, ao prazer proporcionado pela compra de bens materiais
é uma opção sempre vitoriosa, pois suas raízes se abeberam
no lençol freático que irriga os mitos arquétipos do amor, do
prazer, da riqueza, do sucesso, da felicidade e da realização do
ego ou da tribo. (PIGNATARI, 1991: 141).

A sociedade do consumo de imagens é, portanto a sociedade do


imediato. Não é uma sociedade do presente; pelo contrário, nela não pode

9
“De fato, paradoxalmente, o mundo da imagem é dominado pelas palavras. A foto não é nada sem a
legenda – legendum -, isto é, com muita freqüência, lendas, que fazem ver qualquer coisas. Nomear,
como se sabe, é fazer ver, é criar, levar a existência”. (BORDIEU, 1992: 26).
28
haver presente, porque não há passado e nem futuro. O que resta apenas é
um incessante repetição que tem por base a lógica da produção-consumo de
imagens-mercadoria. Se não há história e nem memória, não pode haver
passado, nem presente, nem futuro. O ontem foi igual ao hoje, e o que os
diferencia do agora? E do depois? A tirania do momento que se encerra em si
mesmo e que tem por lógica a repetição ad infinitum, define a temporalidade
atual do modo de produção capitalista. É neste sentido que a sociedade do
espetáculo é também a sociedade do vazio. Do vazio, no sentido em que as
formas não têm mais necessidade de conteúdos e os conteúdos possuem
prazo de validade. Duram o tempo de um instante; precisam se reproduzir
apenas como formas e é neste processo que se tornam imagens. A forma carro
carrega consigo, na atualidade, a imagem do que é a liberdade. Não há
liberdade senão no consumo; talvez seja esta a frase que a imagem do
automóvel quer ocultar. Todos os conteúdos então são resumidos a suas
formas, ou melhor, a suas imagens, e passam a definir o imaginário coletivo, a
partir de sua função de mediação. Se a mercadoria destruiu as relações
humanas, transformando-as em relações entre coisas, a imagem redefiniu esta
relação a partir de si mesma. Cada homem não se relaciona mais entre si, mas
entre imagens, a partir da construção de seu imaginário, construção esta que
se realiza como determinação externa.
Neste sentido, aos poucos os meios de comunicação tem substituído, no
nível do senso comum, o lugar da Universidade enquanto produtora do
conhecimento válido. A relação que os meios de comunicação estabelecem
com a Universidade passa pela reafirmação do discurso competente e pela
subordinação da mesma aos interesses hegemônicos que tais meios
representam. Quando um professor universitário é chamado para realizar
algum comentário na TV10 ou em um jornal escrito, sua linguagem deve se
adequar aos critérios das informações, seus pensamentos aos interesses da
redação que, em última instância, respondem aos desígnios do capital. O

10
“E, insensivelmente, a televisão que se pretende um instrumento de registro torna-se um
instrumento de criação da realidade. Caminha-se cada vez mais rumo a universos em que o
mundo social é descrito-prescrito pela televisão. A televisão se torna o arbitro do acesso à
existência social”. (BORDIEU, 1992:29).

29
império da informação e da imagem, sustentáculos da sociedade do
espetáculo, como no livro “1984” de George Orwell, realiza o desejo de controle
total da sociedade por parte dos agentes do capital a partir do momento em
que se estrutura em uma dualidade marcada pela difusão-concentração. Em
um primeiro momento, a sensação que temos é de que a informação e a
imagem estão presentes, de forma igualitária, em todos os lugares,
principalmente com o avanço dos diferentes meios de comunicação. Porém, a
partir de um olhar mais atento, compreende-se que esta difusão só pode
ocorrer a partir de um intenso processo de concentração. Tal processo resulta
na seguinte situação: três ou quatro grandes corporações de mídia e
comunicação são responsáveis pela produção das informações e das imagens
que vão percorrer o mundo todo. Se observarmos as capas dos jornais, as
fotos que ali estão são idênticas, compradas das mesmas agências de notícias.
É com este Império que a opinião pública pode ser, rapidamente, transmutada
em interesse privado. O império da informação e da imagem é a realização do
poder simbólico na sua forma mais plena. É a transformação da ideologia em
habitus, em Poder Simbólico (Bourdieu, 2006).
Mais um ponto precisa ser analisado nesta discussão: o que significa
este império da informação e da imagem na hierarquia do conhecimento, na
produção e reprodução das desigualdades sócio-espaciais? A principal
mudança refere-se a uma inversão acerca da relação entre sujeito e
conhecimento. Enquanto a Universidade foi reconhecida como lugar central da
produção do conhecimento, a luta pelo acesso à ela se tornou o elemento
central nestas disputas relacionadas ao enfrentamentos das desigualdades
sócio-espaciais. Com o Império da informação e da imagem, a discussão se
altera. A informação e imagem, tomadas como sinônimos de conhecimento,
encontram-se difundida em toda parte. Não estão, pelo menos em discurso,
concentradas ou restritas a um grupo. Neste sentido, a questão não está mais
em ter acesso a Universidade, mas passa por inclusão digital, acesso aos
meios de comunicação e as técnicas hegemônicas de difusão deste Império.
Além disso, já não há mais porque culpabilizar esta hierarquia do conhecimento
pelos problemas sociais vigentes. Se há informações suficientes para todos, o
fracasso é agora individual e não social. Este discurso é complementado pelo
30
da universalização da educação. Com educação e informações disponíveis, os
homens e mulheres se tornam os únicos responsáveis pelos seus destinos é o
que sustenta o discurso que está por trás do Império da Informação e da
Imagem.
Com isso, a pressão social em torno das principais Universidades
diminui, possibilitando assim que as mesmas continuem a atender aos
desígnios do capital. Se por um lado o acesso ao Ensino Superior aumentou,
como apontam os dados, isso não significa real acesso a produção do
conhecimento. Este continua restrito e ligado diretamente aos interesses dos
agentes hegemônicos do capital. E assim, a hierarquia do conhecimento se
mantém intacta e com ela a reprodução das desigualdades sócio-espaciais.

Limites e possibilidades
Mas quais são os limites existentes à este processo? Neste parte do
texto procuraremos ampliar o debate, discutindo a partir de uma percepção
geográfica o advento de outras formas de pensar o conhecimento e as práticas
sócio-espaciais para além da racionalidade dominante. Em nossa perspectiva,
os limites a esta racionalidade podem ser encontrados nas condições que ela
mesma criou. O discurso que busca sustentar este novo senso comum e esta
hierarquia do conhecimento está cada vez mais distante da realidade vivida por
diferentes populações em diversas partes do mundo. Já não é possível falar
em progresso do conhecimento quando verificarmos um aumento da pobreza e
da miséria, quando as imagens da TV se chocam com o cotidiano. As
desigualdades sócio-espaciais acentuam-se e o discurso global é obrigado a
confrontar-se com as condições locais de reprodução. Neste sentido, a
contestação a este novo senso comum tem surgido nas áreas de fronteira, de
limites entre o discurso e a realidade. Como aponta SANTOS (2010),

Essa incapacidade mistura, no processo de vida, práticas e


teorias herdadas e inovadas, religiões tradicionais e novas
comunicações. E nesse caldo de cultura que numerosas
frações da sociedade passam da situação anterior de
conformidade associada ao conformismo a uma etapa superior
de produção da consciência, isto é, a conformidade sem o
conformismo. Produz-se dessa maneira a redescoberta pelos
homens da verdadeira razão e não é espantoso que tal
31
descobrimento se dê exatamente nos espaços sociais,
econômicos e geográficos também não conformes a
racionalidade dominante (pág. 120)

Esta contradição entre a realidade e o discurso sobre ela apontam para


o fato de que vivemos um momento de transição paradigmática. Segundo
Boaventura de Souza Santos (2008) estes momento de transição podem ser
identificados quando da existência de perguntas fortes e respostas fracas. O
discurso da produtividade, do tecnicismo, da quantificação produziu um
situação impar que ampliou a capacidade humana de, ao mesmo tempo,
explorar a natureza e explorar os outros homens. Toda esta exploração, porém,
só pode ser lida, a partir da construção de um pensamento único, hegemônico,
capaz de ocultar pelo discurso os interesses dos grandes agentes do capital. A
revolução das técnicas permitiu que este pensamento único se espalhasse por
diversos territórios, produzindo, por meio dos seus diferentes agentes, um novo
consenso. Tal consenso, como vimos, fortemente assentado nos princípios
neoliberais, se oculta na imagem da globalização, construída aos olhos de
todos os povos como fábula, como narrativa carregada de positividade, pelo
Império da Informação e da Imagem. Tal Império tem como principal objetivo
ocultar, como aponta Milton Santos (2010), a globalização como de fato ela é,
um movimento de perversidade, de expropriação.
Nesta narrativa da globalização como fábula, que se sustenta também
na construção da ideologia da técnica, como se ela fosse a responsável por
todos os processos sociais, o que se afirma é o fato de que o nível de
desenvolvimento ou atraso de um país está diretamente relacionado a inserção
do mesmo nesta narrativa. Quanto mais rápido um país se adequar as normas
desta globalização, vista como único caminho, única trajetória, mais rápido
entrará no grupo das nações desenvolvidas. Porém, a história recente
demonstrou a falácia desta afirmação. A crise do México de 1997 e da
Argentina de 2001 expuseram as mentiras presentes no discurso. Seguidores a
risca deste modelo de globalização, inseridos na narrativa do pensamento
único, tais países não conseguiram transmutar o discurso em realidade. E foi a
partir desta e de outras contradições que a globalização do pensamento único

32
pode ser vista como ela realmente é. E com isso, fortaleceram-se os
questionamentos à racionalidade dominante.
Mas de onde vieram tais questionamentos? Surgiram dos limites da
racionalidade. Configuram-se como saberes de fronteiras. Surgem da hibridez
de serem e não serem totalizados pela racionalidade dominante. Segundo
Milton Santos (2010), neste novo momento histórico, surge uma nova geografia
dos saberes que aponta para a centralidade da periferia. São saberes que
emergem do lugar, que nascem dos problemas reais dos homens e mulheres
reais pois é no lugar que a norma pode ou não se realizar.

O mundo, como um conjunto de essências e de possibilidades,


não existe para ele próprio, e apenas o faz para os outros. É o
espaço, isto é, os lugares, que realizam e revelam o mundo,
tornando-o historicizado e geograficizado, isto é, empiricizado
(SANTOS, 2003, pág. 112).

Os saberes locais emergem como resistência à norma global que a tudo


quer subordinar. Porém, tais saberes não se configuram como localismos. A
excepcionalidade da condição geográfica atual está no fato de que o avanço
das técnicas essenciais a estruturação do pensamento único permitiu a
emergência de uma outra sociabilidade entre os povos do mundo e com isso a
possibilidade de construção efetiva de uma consciência universal. Esta
consciência surge da existência, portanto, de uma universalidade empírica11.
As mesmas forças que constroem o processo de globalização perversa
expõem os limites de sua atuação e com isso criam as possibilidades de
construção de outra narrativa. Surge, neste sentido, a possibilidade de construir
não apenas em discurso, um outro mundo, que tenha como princípio a
solidariedade humana.

11
“Ousamos, desse modo, pensar que a história do homem sobre a Terra dispõe afinal das condições
objetivas, materiais e intelectuais, para superar o endeusamento do dinheiro e dos objetos técnicos e de
enfrentar o começo de uma nova trajetória. Aqui, não se trata de estabelecer datas, nem de fixar
momentos da folhinha, marcos num calendário. Como o relógio, a folinha e o calendários são
convencionais, repetitivos e historicamente vazios. O que conta mesmo é o tempo das possibilidades
efetivamente criadas, o que, à sua época, cada geração encontra disponível, isso a que chamaremos
tempo empírico, cujas mudanças são marcadas pela irrupção de novos objetos, de novas ações e
relações e de novas idéias” (SANTOS, 2010, pag. 173)
33
Porém, para que esta nova narrativa se afirme e tenha condições de se
realizar enquanto novo senso comum, não naturalizado, mas realizado
enquanto diálogo crítico e criativo, faz-se necessário uma mudança
paradigmática. Há que se levar em consideração a multiplicidade dos saberes
frente a tentativa da hegemonia do pensamento único. Há que se compreender
o direito de cada homem e mulher de construírem narrativas comuns, pautadas
em seus anseios e necessidades e na consciência universal que também
nasce no lugar.
Denominarei este novo senso comum de Direito ao Lugar, apropriando-
me do conceito de Direito à Cidade, desenvolvido por Henri Lefebvre (2004). O
direito à cidade está diretamente relacionado ao significado da mesma naquilo
que se refere à sociabilidade humana. Na Grécia Antiga e no Renascimento
Europeu a cidade era, antes, lugar do encontro entre os homens. No discurso,
configurava-se como lugar do exercício da liberdade humana. Na prática,
porém, era o lugar apenas dos homens livres. Neste sentido, quando Lefebvre
se refere a cidade, o que está em discussão é o direito dos homens e mulheres
de pensarem e construírem de forma coletiva o lugar em que vivem, de
construírem, inclusive, narrativas sobre o mesmo. Neste sentido, o direito à
cidade se torna, antes de tudo, direito ao lugar. É a partir deste direito que um
novo paradigma do conhecimento pode emergir. Em toda a sua história, a
filosofia buscou construir os “universais”, conceitos, valores, princípios que
pudessem ser levados em consideração em qualquer lugar. Tais universais,
porém, estavam assentados em uma configuração geográfica, em uma
hierarquia do conhecimento. Constituíam-se como leituras de mundo situadas.
Eram tentativas de impor ao resto do mundo um discurso de universalidade
que se apresentava, na prática, como doutrina e controle ideológico
transmutado em ação civilizacional. Como aponta Doreen Massey (2008), tais
tentativas estavam assentadas em um política de espacialidade que
pressupunha uma difusão dos conhecimentos de forma homogênea.
O direito ao lugar repõe, em outros termos, uma discussão essencial
para a compreensão da sociedade atual. Um dos elementos fundadores da
modernidade, tão bem analisado por Marx, diz respeito a alienação do
trabalhador em relação ao trabalho. Ao tentarmos fazer a crítica a este
34
fenômeno, muitas vezes assumimos a categoria trabalho como uma mera
abstração e de dessa maneira reproduzimos a alienação do trabalho que o
entende como igual e, portanto, abstrato, independentemente do homem que o
realize ou do lugar no qual é realizado. Porém, é necessário que analisemos a
categoria trabalho em sua perspectiva ontológica na definição da própria
humanidade, na definição do homem como ser social. Ao pensarmos o
trabalho a partir desta perspectiva, perceberemos que em sua essência ele é
formador de sentido. É por meio do trabalho que o homem se relaciona com
seu meio, transformando-o e transformando a si mesmo. E é nesta relação-
transformação que o homem se apropria do lugar e ao se apropriar cria sua
territorialidade e sentido. O trabalho não produz apenas materialidades, mas se
expande também para o campo da subjetividade. Ao me apropriar pelo trabalho
de um determinado meio, é um pouco de minha história que começo a
escrever, é minha espaço-temporalidade que construo, minha história que é
também história do meu lugar, de minha territorialidade.
Dessa maneira, quando pensamos na alienação do trabalho criada pela
modernidade, com o desenvolvimento da expropriação em massa, causa e
conseqüência do modo de produção capitalista, pensamos também que esta
alienação é base de uma outra, essencial para se compreender a crise atual do
homem moderno. A alienação fundamental da modernidade, a partir desta
perspectiva, é a alienação espacial, a alienação do homem retirado do seu
lugar, daquilo que lhe dá sentido, que lhe permite compreender e narrar sua
história, descrever sua geografia. O processo de surgimento da modernidade
cria, então está alienação fundamental que está na base de todo o processo de
mundialização, visto que, os homens desterritorializados no sentido em que
não mais se identificam com o lugar, são arremessados num mundo recém
criado que promete aventuras e desafios. O homem já não se sente mais em
casa. Neste mundo, não há mais lugar, porque seus lugares foram deixados
para trás. Daí o surgimento de um dos principais elementos que compõem a
modernidade, que seja, o romantismo, um sentimento de fragmentação, do
sentir-se perder em meio a um mundo que não lhe pertence mais, um mundo
que é antes de tudo discurso e imagem.

35
O movimento da construção de uma consciência universal, pautado no
Direito ao Lugar, vai em outro sentido. Se o pensamento único produz
expropriação, a consciência universal possibilita aos homens e mulheres
retomarem o lugar e os seus múltiplos significados. Não são o global e nem o
local os pontos de partida. Tal consciência só pode existir em movimento, no
contato entre estes diferentes saberes. Surge do reconhecimento de que cada
homem e mulher é capaz de construir suas próprias narrativas e com elas,
como aponta Benjamim (2008), partilhar experiências12. Neste novo senso
comum, situado, localizado, empiricizado pelo lugar, surge uma nova política
de espacialidade que concebe o mundo como a coexistência simultânea de
narrativas se fazendo. A consciência universal se realiza da apropriação que
em cada lugar fazemos das condições técnicas da racionalidade dominante,
condições estas que passam a ser utilizadas conforme as necessidades reais
dos homens e mulheres no lugar. Como aponta Milton SANTOS (2010),

Na sua forma material, unicamente corpórea, as técnicas talvez


sejam irreversíveis, porque aderem ao território e ao cotidiano.
De um ponto de vista existencial, elas podem obter um outro
uso e uma outra significação. A globalização atual não é
irreversível (pág. 174)

E com isso, as técnicas ganham outros usos e o conhecimento novos


lugares. Já não é mais monopólio das Universidades, dos especialistas, do
mercado. Transmuta-se em direito. Situa-se, localiza-se, geografiza-se. E com
isso retoma o seu fundamento, que seja, o de produzir sentido e significados a
partir da relação dos homens entre si e com a natureza.
Tal análise pode parecer ao leitor uma utopia. Como professores-
pesquisadores, aceitamos este rótulo. Para nos, a utopia não se configura
como o não lugar. Trata-se, antes, do lugar como possibilidade, que ainda
existe apenas em pensamento e que pode se concretizar pela ação coletiva

12
A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar, na
cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está
interessada em transmitir o “puro-em-si” da coisa narrada como uma informação ou um
relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se
imprime a narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (BEJNAMIN,
2008, pag. 205).

36
dos homens e mulheres em diversas partes do mundo. Tais ações trazem em
si toda a potência da multiplicidade humana, da força revolucionária que
conduz a humanidade a caminhos nunca pré-definidos. É esta a belezura de
estar no mundo. Como aponta Paulo Freire,

Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado


como certo, inequívoco, irrevogável que sou ou serei decente,
que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei
justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o
seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me
incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente,
porque sei que a minha passagem pelo mundo não é
predeterminada, preestabelecida. Que o meu “destino” não é
um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja
responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente
porque a História em que me faço com os outros e de cuja
feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de
determinismo (FREIRE, 2002:58-59)

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