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ISSN 0000-0000  ANO I  2021

Número 1
Jan./abr. 2021

Edições GEPLAT | BITS


DIGITUS - Sociotechnological Studies in Communication and Media
GEPLAT - Grupo de Pesquisa em Lazer, Turismo e Trabalho.
GEPLAT - Research Group in Leisure, Tourism and Work.

BITS - Grupo de Pesquisa em Informação, Cultura e Práticas Sociais


BITS - Research Group in Information, Culture and Social Practices
@bitsculturais

Publicação Quadrimestral das Edições GEPLAT | BITS


Quarterly Publication of Edições GEPLAT | BITS
Vol. 1 | n° 1 – Jan./Abr., 2021 – Year I
ISSN 0000-0000

EDITORS
Prof. Dr. Raoni Borges Barbosa
Profa. Dra. Maria Cristina Rocha Barreto
Prof. Dr. Jean Henrique Costa

EDITORIAL BOARD
Raoni Borges Barbosa (UERN) Lázaro Fabrício de França Souza (UFERSA)
Maria Cristina Rocha Barreto (UERN) Lucas Rodrigo da Silva (UFSCar)
Jean Henrique Costa (UERN) Manuela Vieira Blanc (UENF)
Geilson Fernandes de Oliveira (UERN) Patrícia Oliveira S. dos Santos (UFCG)
Glício Freire de Andrade Júnior (UFPB) Pâmella R. R. Dias de Oliveira (UFERSA)
Jeanemeire Eufrásio da Silva (UERN) Priscila Tatianne Dutra (UERN)
João Pedro Borges Barbosa (UNESP) Shemilla Rossana de Oliveria Paiva (UERN)
Júnia Mara Dias Martins (UERN) Stamberg José da Silva Júnior (UERN)

GRAPHIC DESIGN AND DIAGRAMATION


Maria Cristina Rocha Barreto | Raoni Borges Barbosa

COVER PHOTO
Abstract connected dots and lines on blue background. Communication and technology network concept with
moving lines and dots. Seamless loop. 4K
DIGITUS - Sociotechnological Studies in Communications and Media é um periódico acadêmico que visa
realizar um esforço interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas, abarcando discussões epistemológicas,
teóricas e metodológicas sobre Comunicação e Mídia e a emergência e o desenvolvimento de uma cultura
digital. Procura fomentar o debate sobre a Sociedade da Informação e do Conhecimento, o Capitalismo
Informacional, as Novas Mídias, as transformações nas relações sociais, em sentido amplo, no trabalho, nos
negócios, na economia e nas relações produtivas advindas da expansão do mundo digital. Visa também
refletir sobre as novas experiências artísticas e estéticas virtualizadas. DIGITUS é um encontro entre os
interesses teóricos do GEPLAT - Grupo de Pesquisa em Lazer, Turismo e Trabalho – e do BITs – Grupo de
Pesquisa em Informação, Cultura e Práticas Sociais –, grupos formados no ambiente acadêmico, mas que
pretendem extrapolar suas atividades para uma discussão mais ampla na sociedade.

DIGITUS - Sociotechnological Studies in Communications and Media is an academic journal that aims to
make an interdisciplinary effort in Social and Human Sciences, covering epistemological, theoretical and
methodological discussions on Communication and Media and the emergence and development of a digital
culture. It seeks to foster the debate on the Information and Knowledge Society, Information Capitalism, the
New Media, the transformations in social relations, in a broad sense, in work, in business, in the economy
and in the productive relations arising from the expansion of the digital world. It also aims to reflect on new
virtualized artistic and aesthetic experiences. DIGITUS is a meeting between the theoretical interests of
GEPLAT - Research Group in Leisure, Tourism and Work – and BITs - Research Group in Information, Culture
and Social Practices –, groups formed in the academic environment, but which intend to extrapolate their
activities to a broader discussion in society.

DIGITUS – Sociotechnological Studies in Communication and Media


ENDEREÇO | ADDRESS:
DIGITUS - Sociotechnological Studies in Communication and Media
[A/C | C/O - Maria Cristina Rocha Barreto; Raoni Borges Barbosa; Jean Henrique Costa]
Rua Curitiba, n° 54 - Alto do Sumaré
CEP 59.633-640 – Mossoró – RN
https://geplat.com/digitus/index.php
E-Mail: digitus.rw@gmail.com
SUMÁRIO

06 APRESENTAÇÃO

ARTIGOS
A CONVERSAÇÃO MEDIADA: APROPRIAÇÕES E RECONFIGURAÇÕES

08 Geilson Fernandes de Oliveira

SUJEITOS DA REDE: O NARRAR-SE COMO FORMA DE PRODUZIR-SE

23 Pâmella Rochelle Rochanne Dias de Oliveira

ESBOÇO PARA UMA POSSIVEL CARTOGRAFIA SUBJETIVA DE

35 MOSSORÓ - RN
Ailton Siqueira de Sousa Fonseca

O LEÃO DE SETE CABEÇAS E A ESTÉTICA DA VIOLÊNCIA EM

44 GLAUBER ROCHA
Stamberg José da Silva Júnior

“NARRO MINHA VIDA, COMEÇANDO PELO FIM, VOU CONTAR PARA

52 VOCÊS A VIDA QUE INVENTEI PRA MIM”: AS IMAGENS LÍTERO-


MUSICAIS E OS ESPAÇOS POÉTICOS DE BELCHIOR
Ângelo Felipe Castro Varela

MUROS QUE FALAM: COMUNICAÇÃO MARGINAL NA CIDADE EM

63 CONTEXTOS DE RUPTURAS DEMOCRÁTICAS


Júnia Mara Dias Martins

REFLEXÕES SOBRE A PESQUISA CIENTÍFICA FEMININA: DESAFIOS

75 EM TEMPOS DE PANDEMIA
Maria Eduarda Pereira Leite
PODER E VIOLÊNCIA EM MICHEL FOUCAULT E HANNAH

83 ARENDT: BREVES REFLEXÕES


Betânia Maria Barros Feitoza

resenhas
“ADMIRÁVEL MUNDO EM DESCONTROLE”: A POSIÇÃO DAS

92 CIÊNCIAS SOCIAIS ENQUANTO FORMULADORA DE RESPOSTAS NA


PANDEMIA DA COVID-19
Ângelo Gabriel Medeiros de Freitas Sousa
Apresentação

A
sociedade digital já é uma realidade, mesmo que ainda em franco desenvolvimento e consolidação de
uma cultura com consequentes transformações nas relações sociais e interacionais. Nas palavras de
Deborah Lupton, não podemos entender a sociedade contemporânea sem o reconhecimento de que o
software de computador e de outros dispositivos não apenas sustentam, mas constituem ativamente
a individualidade, a personificação, a vida social, as relações sociais e as instituições sociais. Por isto, a
investigação de nossas interações com as tecnologias digitais pode contribuir para o entendimento sobre a
natureza da experiência humana e, ao mesmo tempo, do mundo social.
É por este motivo, que a DIGITUS - Sociotechnological Studies in Communications and Media deseja
realizar um esforço interdisciplinar nas Ciências Sociais e Humanas, abarcando discussões amplas sobre as
mudanças sociais, culturais, políticas, econômicas e históricas advindas da nossa imersão no mundo digital, a
partir da popularização da internet nos anos 1990 até a onipresença dos dispositivos móveis nos dias atuais.
As abordagens podem ser de catáter epistemológico, teórico, empírico e/ou metodológico sobre a Sociedade
da Informação e do Conhecimento, sobre o Capitalismo Informacional, as Novas Mídias; mudanças no
trabalho, nos negócios e nas relações produtivas advindas da expansão do mundo digital, assim como sobre
as novas experiências artísticas e estéticas virtualizadas.
Em seu universo de interesses, a DIGITUS pretende promover o debate em teorias sociais e da
comunicação, da língua e da linguagem em sua relação com as tecnologias digitais. Deseja estimular a
divulgação de estudos empíricos mais pontuais sobre o público, a opinião pública, as mídias sociais, a
construção de narrativas e de contos morais cotidianos, o papel dos meios de comunicação e das redes
sociais digitais, o hipertexto virtual, a publicidade, o fluxo comunicacional informal, na produção e
transformação das línguas e das atitudes ordinárias nas sociedades complexas.
Para finalizar, a revista DIGITUS é uma publicação periódica, quadrimestral, independente das amarras
burocráticas da academia, embora seja um resultado dos interesses dos grupos de pesquisa GEPLAT (Grupo
de Pesquisa em Lazer, Turismo e Trabalho) e do BITs (Grupo de Pesquisa em Informação, Cultura e Práticas
Sociais), que pretendem extrapolar suas atividades dentro dos muros da universidade para uma discussão
mais ampla na sociedade.

Raoni Barbosa Borges


Maria Cristina Rocha Barreto
Jean Henrique Costa
EDITORES

DIGITUS | Ano I, vol.1, n°.1, Jan./Abr. 2021 – ISSN 0000-0000. https://geplat.com/digitus/index.php


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presentation
he digital society is already a reality, even if it is still in full development and consolidation of a

T culture with consequent transformations in social and interactional relations. In the words of
Deborah Lupton, we cannot understand contemporary society without recognizing that computer
software and other devices not only support, but actively constitute individuality, personification,
social life, social relations and institutions. For this reason, the investigation of our interactions with digital
technologies can contribute to the understanding of the nature of the human experience and, at the same
time, of the social world.
It is for this reason that DIGITUS - Sociotechnological Studies in Communications and Media wishes
to make an interdisciplinary effort in Social and Human Sciences, encompassing wide-ranging discussions
about the social, cultural, political, economic and historical changes arising from our immersion in the digital
world, since the popularization of the internet in the 1990s to the ubiquity of mobile devices today. The
approaches can be of an epistemological, theoretical, empirical and/or methodological nature on the
Information and Knowledge Society, on Informational Capitalism, the New Media; changes in work, business
and productive relationships as a result from the expansion of the digital world, as well as new virtualized
artistic and aesthetic experiences.
In its universe of interests, DIGITUS intends to promote debates on social and communication theories,
of language and language in its relationship with digital technologies. Wishes to encourage the dissemination
of more specific empirical studies on the public, public opinion, social media, the construction of narratives
and daily moral tales, the role of the media and digital social networks, virtual hypertext, advertising, the
informal communicational flow, in the production and transformation of languages and ordinary attitudes in
complex societies.
Finally, DIGITUS journal is a quarterly publication, independent of the bureaucratic bonds of the
academy, and at the same time a result of the interests of the research groups GEPLAT (Research Group on
Leisure, Tourism and Work) and BITs (Research Group on Information, Culture and Social Practices), which
intend to bring to a broader discussion in society.

Raoni Barbosa Borges


Maria Cristina Rocha Barreto
Jean Henrique Costa
EDITORS

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ARTIGOS
A CONVERSAÇÃO MEDIADA: APROPRIAÇÕES E
RECONFIGURAÇÕES
THE MEDIATED CONVERSATION: APPROPRIATIONS AND
RECONFIGURATIONS

Geilson Fernandes de Oliveira

Recebido em: 01.11.2020


Aprovado em: 15.11.2020

RESUMO:
O presente artigo tem como objetivo analisar a formação e constituição da conversa,
identificada como fator indispensável para a produção de vínculos, sociabilidades e
para o desenvolvimento da própria vida em sociedade, diante das transformações
proporcionadas pelo contexto tecnológico e informacional. Nesse sentido, atenta-se
para as suas reconfigurações frente aos processos socioculturais em curso, quando se
verifica a emergência de novas formas de ser e estar, o que se estende para os modos
de se conversar ou manter vínculos na sociedade em rede. Observa-se, com efeito, um
movimento de busca pela transposição de elementos inerentes à conversação
tradicional para a conversação efetivada na rede, o que é feito não somente por meio
dos dispositivos tecnológicos, mas também pelos próprios atores sociais.

Palavras-Chave: Conversa; Conversação mediada; Sociabilidade.

ABSTRACT:
This article aims to analyze the formation and constitution of the conversation,
identified as an indispensable factor for the production of bonds, sociability and for
the development of one's life in society, in the face of the transformations provided
by the technological and informational context. In this sense, attention is paid to
their reconfigurations in the face of the ongoing socio-cultural processes, when there
is the emergence of new ways of being, which extends to the ways of talking or
maintaining bonds in the networked society. There is, in effect, a movement of
searching for the transposition of elements inherent in traditional conversation to the
conversation carried out on the network, which is done not only through technological
devices, but also by the social actors themselves.

Keywords: Conversation; Mediated conversation; Sociability.

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INTRODUÇÃO somente entre os diferentes, acreditando que não é
a concórdia que conduz o diálogo, mas a diver-
1
conversa (ou conversação , entendida gência e a possibilidade de conflitos (DURANT,

A
imaginar
como o ato de conversar) pode ser vista
como uma das práticas mais recorrentes da
vida cotidiana, de modo que seria difícil
a formação e desenvolvimento
sociedades sem a sua presença. A partir dela, as
das
1996).
Para Marcuschi (2003, p. 5), a conversa é ―[...]
a prática social mais comum no dia-a-dia do ser
humano‖, perspectiva semelhante à de Sacks,
Schegloff e Jefferson (2003) que também a definem
pessoas interagem e se relacionam, momento no como o gênero mais básico dos processos de
qual podem ser expostas e compartilhadas opiniões interação humana, posição compartilhada por
e ideias. Também considerada como a primeira Simmel (2000), que a considera como o
forma de comunicação verbal a que os indivíduos instrumento mais utilizado na constituição das
são expostos, a conversa é tida como uma ―matriz interações e base das sociabilidades que se
para a aquisição da linguagem‖ (LEVINSON, 1983, produzem na vida em comum, possuindo, segundo o
p. 284), haja vista as trocas que se estabelecem autor, um fim em si mesma, de modo que os
desde a formação da criança, de tal modo que conteúdos que carrega, por sua vez, são os fios
durante o curso da vida nunca é abandonada, mas condutores que atuam na sua estimulação e
reestruturada. produção de sentidos que vão demarcar as trocas e
Em A Retórica, Aristóteles (2007) toma a possibilitar a vivacidade das relações, sendo de
conversa (no sentido de debate ou uma discussão) fundamental importância, nessa direção, a
a partir da perspectiva da persuasão, indicando presença de um outro.
que os envolvidos sempre exercem, um sobre os De modo similar, Goffman (1981) estuda a
outros, influências mútuas, havendo casos em que conversação como o equivalente a um encontro
o principal interesse da conversa é de fato falado, dando atenção ao seu caráter ritualístico,
persuadir ou convencer o outro a partir de técnicas considerando-a como um processo atravessado
específicas (como no caso dos discursos ou debates pela dimensão cultural. Enquanto um ritual, o autor
mais formais). Na Grécia antiga, a dialética foi assinala que nos processos conversacionais podem
entendida como a arte do diálogo, isto é, a arte de ser observadas formas determinadas de agir para
conversar, sendo esta concepção uma das bases da se iniciar, manter ou terminar uma conversa, as
filosofia desenvolvida por Platão. Para este, a quais por serem rituais e se apresentarem em
verdade tem como uma de suas bases ou princípios determinado contexto, são reciprocamente enten-
o diálogo, no sentido de que a partir da troca de didas. Outro ponto destacado pelo autor é que
ideias, o sujeito se aproxima da concepção do durante as conversas, os atores constroem e
verdadeiro. Esse posicionamento, porém, pressu- fornecem voluntária ou involuntariamente, meca-
põe que o diálogo acontece sobre um princípio de nismos que produzem modos de expressão de si
identidade, ou seja, entre iguais, que possuem mesmos, o que pode contribuir para influenciar os
objetivos semelhantes. No entanto, outro filósofo, sujeitos envolvidos.
Heráclito, já apontava que a conversa existe Por sua vez, Flusser (2007, p. 58) destaca que
aquilo ―[...] que transforma o caos em cosmos é a
1
Apesar do reconhecimento das diferenças lexicais entre
possibilidade de conversação, é o vai e vem da
conversa, diálogo e conversação, esses termos serão
utilizados como sinônimos no decorrer deste trabalho. língua [...]‖, apontando que o intelecto e o

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território da realidade são expandidos por meio da Metodologicamente, parte-se de uma revisão
conversação, fenômeno identificado pelo autor teórica, ao mesmo tempo em se ancora nas
como o alicerce da ciência. Ou seja, é a partir das abordagens e análises promovidas pela Etnome-
trocas, discussões e debates que os diferentes todologia e Análise da Conversa (GARFINKEL, 2018;
pontos de vista ganham organicidade e possibilitam WATSON, GASTALDO, 2015), tomando como base
o surgimento de uma nova compreensão, a qual uma perspectiva micro sociológica, entendendo que
nunca é estanque. os elementos da vida cotidiana, muitas vezes
Como fator unificador entre esses autores, se relegados a um segundo plano, são, efetivamente,
observam concepções sobre a conversa que se responsáveis diretos pela sua construção.
mostram direcionadas principalmente para as A CONVERSA COMO PONTO DE PARTIDA
interações orais que ocorrem através de encontros
O sentido de encontro, no qual são partilhadas
presenciais ou, em alguns casos, nas conversas
informações, anseios, emoções, etc. também é
mediadas pelo aparelho telefônico. Além disso, é
comumente associado ao ato de conversar - troca
partilhada a visão de que a conversa não é um
simbólica básica e indispensável para a manu-
fenômeno anárquico, aleatório e desorganizado. Ao
tenção da vida em sociedade. Com a conversa, as
contrário, trata-se de prática social negociada e
pessoas se relacionam e tomam conhecimento de
organizada, passível de ser estudada cientifica-
mundos distintos dos seus, ampliando seus
mente, seja pela sua estrutura, organização,
conhecimentos e constituindo uma rede de laços
significados, trocas sociais, constituição de social-
sociais. Enquanto uma forma de comunicação, a
bilidades, fenômeno a partir do qual as emoções se
conversa também só se efetiva quando se chega ao
expressam, etc.
pressuposto do comum, ou seja, quando as mensa-
Diante dessas observações, as quais explicitam gens trocadas são reciprocamente entendidas e
a importância e o valor da conversa para a vida em abrem caminhos para outras formas de socialbi-
sociedade, torna-se necessário se discutir sobre lidade.
como a mesma têm se reconfigurado frente as
Em sua análise elementar, Marcuschi (2003, p.
transformações proporcionadas perante o contexto
15), aponta cinco características básicas da
tecnológico e informacional da contemporaneidade
organização da conversa: (a) interação entre pelo
(CASTELLS, 1999), quando há um crescimento
menos dois falantes; (b) ocorrência de pelo menos
vertiginoso das trocas e contatos estabelecidos via
uma troca de falantes; (c) presença de uma
aplicativos e redes sociais da internet, isto é,
sequência de ações coordenadas; (d) execução em
efetivadas por meio de uma diversidade de
uma identidade temporal; (e) envolvimento numa
mediações tecnológicas.
interação ‗centrada‘ (MARCUSCHI, 2003, p. 15).
Quais marcas das conversações face-a-face
Tais aspectos indicam a conversação como uma
perduram? O que a conversação mediada traz de
interação verbal com estrutura e organização
novo? Como estudar e compreender essa
particulares. Nela, é indispensável a participação
reconfiguração? Tais indagações são de suma
de pelo menos dois falantes que devem estabelecer
importância para se entender as práticas
entre si trocas a partir de ações coordenadas (a
conversacionais do tempo presente, permeado por
pergunta e a resposta, por exemplo), em um
uma multiplicidade de mídias e formas de se
contexto de identidade temporal partilhado e com
conversar. São sobre essas questões que se
interesses mútuos ou centrados em determinado
centram as discussões promovidas neste artigo.
tema, pois para produzir e sustentar uma conversa,

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os envolvidos devem partilhar de um mínimo de versa sempre está situada e engajada em alguma
conhecimentos, como a aptidão linguística ou sobre circunstância ou contexto interpretativo. Assim,
determinados símbolos. Essas trocas, vale salientar, possui importância imprescindível tanto para
não possuem como condição básica a interação aqueles que estabelecem as trocas conversacionais
face-a-face, aspecto já indicado por Marcuschi – no sentido de saber o que deverá ser dito,
(2003, p. 15) ao apontar o caso das conversas considerando a contextura em que se está
telefônicas, o que se aplica e se estende também às envolvido –, quanto para a interpretação dessas
conversações contemporâneas que ocorrem nos conversas, haja vista que uma vez descoladas de
sites de redes sociais 2 , quando há uma suas condições de produção, podem levar a leituras
reconfiguração de alguns desses elementos. equivocadas.
Afora os elementos já citados, Marcuschi (2003, Outra questão indispensável referente à
p. 16) também divide os diálogos estabelecidos nas conversação é a sua organização no que concerne
conversações de duas formas: a) diálogos assi- aos turnos que a compõem. Os turnos
métricos e, b) diálogos simétricos. O primeiro diz correspondem ―[...] aquilo que um falante faz ou
respeito à quando determinado participante inicia, diz enquanto tem a palavra, incluindo aí a
orienta, dirige e conclui a interação, exercendo possibilidade do silêncio‖ (MARCUSCHI, 2003, p.
domínio e pressão sobre os demais participantes, 18). Relacionado a esse conceito, se tem a
como acontece em entrevistas de emprego, concepção de par adjacente ou par conversacional,
inquéritos policiais ou algumas formas de interação termo introduzido por Schegloff (1972) correspon-
em sala de aula. Já os diálogos simétricos se dente a sequência de turnos entre duas ou mais
caracterizam pelo tipo de conversação em que os pessoas que dialogam e correspondem entre si o
diversos participantes possuem o mesmo direito à exercício da conversa. Em se tratando dos turnos,
palavra, podendo discutir o tema tratado a este ponto foi refletido minuciosamente no estudo
qualquer tempo, tal qual ocorre nas conversações seminal de Sacks, Schegloff e Jefferson (2003)
diárias que não possuem maiores formalidades ou sobre a organização da tomada de turnos. Nele, os
não estão relacionadas a formas conversacionais autores desenvolvem um modelo para essa
mais institucionalizadas. organização, percebendo as trocas de turnos como
Frente a isto, se tem um fator essencial para se fatores gerenciados e administrados pelos indiví-
situar e compreender as conversações e seus duos envolvidos na conversa.
modos de estruturação e organização: o contexto Para chegar a esta constatação, os autores
(MARCUSCHI, 2003, p. 17). Toda e qualquer con- realizaram em sua pesquisa gravações em áudio de
conversas de ocorrência natural – ou seja, aquelas
que se dão cotidianamente. Como resultado, foi
2
Conforme Recuero (2009), as redes sociais têm a sua observado que em qualquer conversa: 1) a troca de
existência antes e independente dos sites de redes sociais.
A diferença entre as redes sociais convencionais (que falantes pode se repetir; 2) fala um de cada vez; 3)
estruturam comunidades, tribos ou outros agrupamentos a ocorrência de mais de um falante por vez é
tradicionais) e as redes sociais da internet está no fato de comum; 4) transições entre os turnos podem
que nessas últimas os laços e interações existentes nas
ocorrem sem intervalos ou sobrepostas; 5) não há
redes sociais tradicionais (com base nas relações face a
face) são transpostos para outra ambiência, a da internet. uma ordem fixa para os turnos; 6) o tamanho dos
Melhor dizendo, “sites de redes sociais são os espaços turnos também não é fixo; 7) não há uma
utilizados para a expressão das redes sociais na Internet”
especificação prévia sobre o tamanho da conversa;
(RECUERO, 2009, p. 102).

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8) o que será dito também não é previamente daí passe por reconfigurações, as quais tem seu
especificado; 9) a distribuição dos turno, de igual início mais representativo a partir das ligações
modo, não é determinado antes da conversação; 10) telefônicas e posteriormente com o advento da
a quantidade dos participantes pode variar; 11) a chamada Comunicação Mediada pelo Computador
fala durante os diálogos pode ser contínua ou (CMC).
descontínua; 12) um falante corrente pode Não sendo um campo de estudo inteiramente
selecionar um falante seguinte ou auto selecionar- novo, a Comunicação Mediada pelo Computador
se; 13) os turnos podem ser projetados em uma (CMC), segundo Recuero (2014, p. 23) ―[...] foi
palavra ou podem ter a extensão de uma sentença consolidada como a área de estudo dos processos
e; 14) existem mecanismos de reparo para lidar de comunicação humanos realizados através da
com erros e violações durante a tomada de turnos3 mediação das tecnologias digitais‖. De modo amplo,
(SACKS, SCHEGLOFF, JEFFERSON, 2003, p. 13-14). a CMC pode ser definida como qualquer mensagem
É fato que as suas regras podem variar e transmitida e/ou recebida entre os seres humanos
modificar as estruturas conversacionais, porém, através do computador. Neste sentido, trata-se de
isso não é tido como um aspecto que pormenoriza um novo uso feito pelos sujeitos em relação às
as trocas, mas as enriquecem ainda mais, sendo ferramentas dispostas pelas tecnologias. E é
comum a todos os pontos elencados o caráter justamente esse uso e apropriação que passa a
absolutamente interacional. Possuindo uma forte constituir um novo motor de relações sociais e
vinculação às conversações de tradição oral devido formas emergentes de conversação.
ao momento histórico e social em que foram Levando em conta essa discussão, Recuero
desenvolvidos, estes estudos são basilares para se (2014, p. 25) foca na conversação como a principal
entender as formas de conversação que hoje forma de CMC e apresenta alguns de seus
emergem e se reconfiguram diante de um contexto elementos diferenciais quando comparado as ou-
fortemente marcado pelos processos de midia- tras formas de conversação tradicionais. São elas:
tização, onde grande parte das trocas e interações 1) um tipo de conversação que privilegia o
sociais se dão de forma mediada. anonimato em detrimento da identificação,
A CONVERSAÇÃO MEDIADA: TECENDO OS FIOS DAS principalmente nos primórdios desse tipo de
TROCAS EM REDE interação; 2) o distanciamento do espaço físico
entre os envolvidos, tornando mais elástico o
Posto que a conversação é o gênero mais básico
conceito de unidade temporal; 3) a persistência, no
da interação humana (MARCUSCHI, 2003), é
indispensável que se olhe para ela como elemento sentido de que muitas das interações estabelecidas
persistem no tempo e podem ser acessadas
que não apenas se dá em determinado contexto,
mas que também é afetada por ele. Em um mundo posteriormente, haja vista os ―rastros digitais‖ que
são deixados e; 4) grande parte das principais
permeado pelas tecnologias, não é de se estranhar
ferramentas utilizadas ainda tem a sua base na
que a conversação seja por elas tocada e a partir
textualidade, como ocorre nos Blogs, Twitter,

3
Facebook, fóruns e etc. (RECUERO, 2009, p. 3-4), o
Para exemplos de cada uma das características elencadas
que já vem se modificando em alguns casos com o
pelos autores, consultar o texto original: SACKS, H.,
SCHEGLOFF, E.; JEFFERSON, G. Sistemática elementar para surgimento de outros recursos, os quais permitem
a organização da tomada de turnos para a conversa. In.:
VEREDAS - Rev. Est. Ling, Juiz de Fora, v.7, n.1 e n.2, p.9-
73, jan./dez. 2003.

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o uso de diversos elementos4 (texto, imagem, áudio, das ferramentas computacionais, passa por vários
vídeo, emoticons, etc.), seja conjuntamente ou não, processos de reelaborações‖. Por esse ângulo, é um
indicando a presença da multimodalidade. Tais tipo de conversa que tem a sua irrupção a partir de
inovações permitem o estabelecimento de novos condições próprias, as quais passam a reconstruir
rituais de interação, possibilitando a superação de as conversações baseadas na co-presença com o
algumas limitações nos processos comunicacionais impacto da mediação, quando as tecnologias e seus
em rede, demonstrando que o espalhamento atra- recursos vão sendo incorporados ao dia a dia das
vés da propagação e apropriação das ferramentas pessoas que, com interesses e motivações variadas,
técnicas da internet modificou incisivamente as ressignificam as potencialidades das ferramentas
formas pelas quais as pessoas se comunicam. dispostas, reforçando o caráter da conversação
Herring (2010), uma das percursoras do estudo mediada ou em rede como uma apropriação
das conversações mediadas pelo computador, (RECUERO, 2014, p. 35). Com efeito, se tem uma
afirma que em um primeiro momento a CMC foi forma de conversação que não foi inventada pelos
vista a partir de uma concepção polêmica, dispositivos tecnológicos, mas emerge a partir dos
especialmente pelo fato de que as trocas textuais usos e apropriações que os sujeitos comuns fizeram
via computador eram consideradas mais como deles.
metáforas para a conversação e não como uma A apropriação é, nos termos de Lemos (2015), a
conversação em si mesma, o que segundo os essência da cibercultura, que em sua visão não é
críticos só ocorria através da fala. Todavia, com o um domínio à parte da cultura, mas entendida
crescimento das pesquisas sobre a temática, como ―[...] uma sinergia entre a vida social e os
evidências cada vez maiores passaram a dispositivos eletrônicos e suas redes telemáticas‖
demonstrar que a conversação mediada possui (p. 10). Nessas redes em que a sinergia tece outras
elementos típicos e semelhantes ao da conversação e novas possibilidades, a apropriação é vista como
oral. Nesse sentido, as tecnologias passaram a resultado do uso das tecnologias pelo homem,
proporcionar novos espaços conversacionais, isto é, possuindo duas dimensões: uma simbólica e uma
outros modos de interação para os indivíduos com técnica (LEMOS, 2015, p. 238). Enquanto a
contornos análogos aos das conversações apropriação técnica compreende os processos de
estabelecidas com base na co-presença, tendo aprendizado de uso das ferramentas, a simbólica
igualmente o objetivo de formar ou mantes os laços remete as construções de sentidos e significados
sociais, devendo ser entendida como uma outra que se depreendem dos usos dessas ferramentas,
configuração ao invés de simulação ou metáfora. na maioria das vezes de forma desviante, saindo do
Para Araújo (2014, p. 13), a conversação escopo incialmente formulado pelos dispositivos.
estabelecida em rede ―[...] não é somente aquela No caso das conversações produzidas em rede,
conversa tão antiga quanto a linguagem, mas no tem-se um imbricamento entre a apropriação
contexto das ferramentas digitais, ela é uma técnica e simbólica, pois ao mesmo tempo em que
―conversação emergente‖ que, em função dos usos ocorre o aprendizado do uso das ferramentas, pode
também ocorrer o desvio dos objetivos inicialmente
4 propostos por elas, suplantando os limites técnicos
No atual cenário de pandemia, as videoconferências têm
se tornado cada vez mais comuns, por exemplo, o que e inovando criativamente as possibilidades de
indica o contexto como fato essencial para a constituição interação, as quais, vale lembrar, são igualmente
das formas de se comunicar e interagir, como já
oriundas de uma estrutura emergente advinda da
mencionado.

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interconexão dos sujeitos em rede, nos espaços on- Considerando que os turnos e suas trocas entre os
line. Exemplar disso é o uso de seus recursos para o pares de adjacência (SACKS, SCHEGLOFF,
agendamento e promoção de movimentos sociais JEFFERSON, 2003) são os modos mais elementares
ou protestos, ou quando o uso de imagens ou gifs de organização de uma conversa que sempre é
são mobilizadas para dar lastro a preconceitos, negociada entre e pelos falantes, na mediação
entre muitos outros casos que desconsideraram a proporcionada pelas tecnologias digitais da
intenção inicial das ferramentas, utilizando-as com informação e da comunicação, as trocas de turno
finalidades bem distintas. se dão em sua maioria de forma determinada pelos
Tendo como ambiente interacional de softwares, plataformas ou sites que os sujeitos
desenvolvimento a cibercultura, a conversação em fazem uso.
rede demonstra resquícios das trocas face-a-face, No Facebook (imagem 1), por exemplo, as
principalmente uma escrita ainda ―oralizada‖ conversações públicas se organizam a partir da
(RECUERO, 2014, p. 45). Como novidade, obser- postagem e o espaço para a produção de
vam-se conversas em sua maioria públicas, exceto comentário sobre ela (escreva um comentário... –
nos casos em que as ferramentas e softwares enunciado apresentado abaixo das informações
utilizados possibilitam a sua privacidade. Nas redes sobre o engajamento que a postagem provocou);
sociais da internet, as conversas públicas são tendo ainda a função respostas, direcionada para
aquelas que tem a sua existência permeada por os próprios comentários, demonstrando o poder da
trocas iniciadas através de comentários tanto em ferramenta em determinar a estrutura conversa-
postagens de amigos quanto em páginas, já as cional, o que obviamente varia conforme a plata-
privadas se estruturam com base em um recurso forma observada, mas se reproduz no que se refere
específico para trocas de mensagens em janelas a sua forma.
particulares5. Outra característica da conversação No que diz respeito a dimensão dessas
em rede é que ela pode migrar entre diferentes conversas, é importante salientar que diversos
plataformas (RECUERO, 2014, p. 60). Melhor fatores podem implicar ou dificultar o início ou
dizendo, uma conversa pode ser iniciada em um manutenção de uma conversa na rede, como a
site de rede social como o Facebook, por exemplo, e forma de acesso (se com o uso de computador ou
migrar para outro, como o Twitter, o que pode smartphone – levando em conta a sua variedade de
acarretar dificuldades quanto ao seu acompanha- modelos) ou até mesmo o interesse de conversar
mento e sistematização. por meio do ato de digitar. Em outras palavras,
À primeira vista, a disposição desse tipo de apesar da similaridade e acesso objetivado pelas
conversação pode parecer se apresentar em uma ferramentas dos sites de redes sociais ou aplica-
estrutura caótica (principalmente devido ao grande tivos de conversação, pode ser que alguns
volume de comentários que pode ter, como indivíduos ainda não as vejam como um ambiente
geralmente acontece em conversações no facebook, recomendado ou propício para a sustentação de
twitter, grupos de whatsapp, etc.), mas tal qual a diálogos mais longos.
conversação oral, possui um mínimo de organi- A premissa ―fala um de cada vez‖, comum as
zação para que sua realização seja possível. interações face-a-face, é projetada pela ferra-
menta conforme o momento em que a mensagem é

5
enviada. Em uma conversação mediada, muitos
Funções que permitem o envio de mensagens diretas, as
indivíduos podem falar ao mesmo tempo, porém em
quais são direcionadas de forma particular a um
destinatário específico. nenhum momento uma fala será sobreposta a outra,

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mas organizada verticalmente pelo software de Com o objetivo de reduzir essas ocorrências, os
acordo com o horário de envio da mensagem, sites de redes sociais disponibilizam já há algum
caracterizando uma organização de turno disrupta tempo estratégias de marcação entre os
e descontínua. Com isto, pode ocorrer que interagentes como acontece com o uso do @ no
determinada mensagem postada se perca em meio Twitter e no Whatsapp ou a marcação do nome
às muitas outras mensagens que ali são produzidas. do usuário no Facebook.

Imagem 2 – Mecanismo de reparo.

Fonte: Post Revista Veja, 22 de maio de 2015.


Disponível em: https://www.facebook.com/Veja/. Acesso em: 31 jan. 2020.

No que diz respeito a dimensão dessas apesar da similaridade e acesso objetivado pelas
conversas, é importante salientar que diversos ferramentas dos sites de redes sociais ou apli-
fatores podem implicar ou dificultar o início ou cativos de conversação, pode ser que alguns
manutenção de uma conversa na rede, como a indivíduos ainda não as vejam como um ambiente
forma de acesso (se com o uso de computador ou recomendado ou propício para a sustentação de
smartphone – levando em conta a sua variedade de diálogos mais longos.
modelos) ou até mesmo o interesse de conversar A premissa ―fala um de cada vez‖, comum as
por meio do ato de digitar. Em outras palavras, interações face-a-face, é projetada pela ferramen-

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ta conforme o momento em que a mensagem é e reconhecimento dos pares em suas trocas de
enviada. Em uma conversação mediada, muitos turnos (imagem 2).
indivíduos podem falar ao mesmo tempo, porém em Mecanismo também utilizado nas conversações
nenhum momento uma fala será sobreposta a outra, realizadas é o uso do recurso de respostas ao
mas organizada verticalmente pelo software de comentário ou de respostas às próprias respostas
acordo com o horário de envio da mensagem, para a construção e trocas dos turnos entre os
caracterizando uma organização de turno disrupta pares. Outro elemento recorrente das conversa-
e descontínua. Com isto, pode ocorrer que ções face a face que se mostra presente na rede é o
determinada mensagem postada se perca em meio mecanismo de reparo (SACKS, SCHEGLOFF,
às muitas outras mensagens que ali são produzidas. JEFFERSON, 2003, p. 13-14), utilizado para
Com o objetivo de reduzir essas ocorrências, os corrigir o que foi dito com vistas a dar continuidade
sites de redes sociais disponibilizam já há algum a uma interação mais clara ou exitosa. Em
tempo estratégias de marcação entre os aplicativos de conversas, espaço de comentários ou
interagentes, como acontece com o uso do @ no sites de redes sociais, o reparo pode ser feito tanto
Twitter e Whatsapp ou a marcação do nome do através de outro comentário que possa corrigir o
usuário no Facebook (textualmente, o nome do que foi anteriormente enunciado, quanto pela
usuário citado também é destacado, tornando-se ferramenta de edição da mensagem, ofertado pelo
um hiperlink), que ao ser mencionado recebe próprio site (imagem 3).
notificação, favorecendo a formação, manutenção

Imagem 2 – Mecanismo de reparo.

Fonte: Post Revista Veja, 07 de fevereiro de 2015.


Disponível em: https://www.facebook.com/Veja/. Acesso em: 17 abr. 2020.

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A textualização de mensagens com ares da (kakaka, naum, eh, etc.), assim como, em algumas
oralidade é recorrente e vista como forma de vezes, o uso de emoticons para expressar ironia,
marcar a coloquialidade, resquício que favorece um riso, alegria, tristeza, etc. sobre determinado
sentimento de proximidade e partilha, conteúdo, a fim de lhes proporcionar maior
assemelhando-se a co-presença, reproduzindo o verossimilhança e suprir a ausência de algumas
ambiente da conversação face a face (RECUERO, deixas simbólicas (THOMPSON, 2011) produzidas
2014, p. 74). Algumas estratégias textuais- pela co-presença, como uma piscadela ou o
discursivas com esse objetivo são utilizadas, como levantar de sobrancelha.
a transcrição de palavras tal qual o seu som

Imagem 3 – O uso de emoticons.

Fonte: Post Revista Veja, 07 de fevereiro de 2015.


Disponível em: https://www.facebook.com/Veja/. Acesso em: 14 maio 2020.

Imagem 4 – O uso de emoticons.

Fonte: Post Revista Carta Capital, 15 de março de 2015. Disponível em:


https://www.facebook.com/CartaCapital/. Acesso em: 14 maio 2020.

Muitos elementos da conversação tradicional segundo Primo e Smaniotto (2006, p. 5), é um dos
são, assim, reconfigurados pela mediação e recursos mais importantes para o desenvolvimento
assumem formas distintas conforme o mecanismo e fomentação da conversação em blogs, o que pode
em que são (re)articuladas (se conversas privadas, ser estendido a outros espaços e redes sociais da
em comentários, ou outros). internet. Organizado de forma cronológica, as
De modo específico, o espaço dos comentários, trocas interativas e conversacionais dispostas nos

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comentários revelam reações e posicionamentos alguns rituais básicos da conversação são
diversos. Não raro, muitas vezes a conversa ali adaptados à rede, como os referentes à abertura e
produzida pode tomar, inclusive, outros rumos, fechamento (o olá, bom dia – para iniciar; e o tchau
abarcando variados temas e migrando para outras ou até mais – como finalização; entre outros),
direções, demonstrando nas palavras de Primo e estabelecendo o sentido de presença. Nas conver-
Smaniotto (2006, p. 5) uma conversação que sações em rede, principalmente naquelas públicas e
―escorre‖ entre temas e plataformas, ultrapas- efetivadas entre desconhecidos, se tem trocas mais
sando a mera interação reativa (PRIMO, 2007, p. diretas e objetivas (imagem 6), certamente pelo
228) – baseada no clicar, curtir ou compartilhar –, fato de os usuários não possuírem um reconhe-
construindo interações mútuas pautadas pela cimento mútuo, contribuindo para que os rituais de
reciprocidade entre os interagentes no transcurso abertura ou fechamento de uma conversa sejam
da conversa. suprimidos.
Geralmente, sobretudo nas conversas privadas,

Imagem 5 – O caráter objetivo das conversações.

Fonte: Post Revista Carta Capital, 08 de janeiro de 2015. Disponível em:


https://www.facebook.com/CartaCapital/. Acesso em: 14 maio 2020.

Compreendendo essas características, é tecem entre dois ou mais atores através de uma
notável um caráter mais impessoal, fluido e ferramenta de CMC, e cuja expectativa de resposta
dinâmico dessa forma de conversação, que ainda dos interagentes é imediata‖ (RECUERO, 2014, p.
podem ser síncronas ou assíncronas (RECUERO, 51). Nessa modalidade de interação, os aspectos
2009, p. 4; 2014, p. 51). A primeira forma se refere característicos da conversa elencados por
ao compartilhamento do mesmo contexto temporal Marcuschi (2013) são mais evidentes, como o
e midiático, ou seja ―[...] conversações que acon- centramento da interação e o compartilhamento de

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uma mesma identidade temporal. Já a conversação Recuero (2014) enfatiza que são mais comuns as
assíncrona é aquela que se estende no tempo e, reflexões que se dedicam aos aspectos síncronos da
muitas vezes, migrando entre várias plataformas, conversação.
contudo, centradas em um mesmo tópico. Enquanto Acerca dessa questão e suas reverberações na
a identificação dos pares na conversação síncrona rede, é válido destacar que no contexto da
é mais visível, na assíncrona este aspecto é produção de comentários dos sites noticiosos ou de
dificultado. redes sociais, nem todos os comentários geram
Observando estes elementos, principalmente os necessariamente a conversação propriamente dita,
relacionados à assincronia, Herring (1999) propõe já que algumas não obtém nenhuma resposta como
que as trocas conversacionais mediadas por retorno, não gerando, portanto, uma troca
computador possuem menor costura interna quan- conversacional por menor que seja.
do comparado com os intercâmbios face-a-face. Uma vez produzido um comentário sobre
Isto porque, com frequência, as respostas podem determinado conteúdo, a emergência da conversa
ser produzidas bem distantes dos turnos que as (com o comentário inicial + respostas) parece ser
evocam. Ademais, há uma degradação mais rápida motivada, além da necessidade do sujeito em
dos significados em meio a multiplicidade de men- responder, discursivizar a sua opinião e/ou
sagens que as vezes se sobrepõem, já que as posicionamento, especialmente por dois fatores: a
violações sequenciais são regras e não exceções, concordância ou discordância, de modo que o
contudo, isso não quer dizer que a coerência segundo é efetivamente o que dá maior sustento
conversacional não possa ser mantida, apenas que para a manutenção de trocas conversacionais mais
pode tornar-se mais complexa. longas e complexas, como indicado por Oliveira
É válido mencionar que os conceitos de (2019), principalmente quando são travados
sincronia e assincronia quando aplicados à debates com sujeitos específicos que se mantêm na
conversação em rede podem ser um tanto quanto conversa argumentando e respondendo uns aos
limitados (RECUERO, 2014, p. 53). Isto pelo fato de outros, diferente daqueles que respondem e somem
que uma conversa síncrona pode facilmente tornar- ou respondem e demoram muito para retomar a
se assíncrona e vice-versa. Basta lembrar das discussão.
conversas via e-mail, tradicionalmente vistas na Devido ao maior dinamismo e volatilidade, as
categoria assíncrona para exemplificar esta conversas desenvolvidas em rede podem ser mais
questão, pois se os sujeitos envolvidos nas trocas efêmeras do que as que se estabelecem nas
de mensagens responderem e passarem a conver- relações face-a-face ou mesmo nas plataformas
sar via e-mail de forma instantânea, logo se torna digitais privadas. A efemeridade está no fato de ser
uma conversação síncrona. Neste caso, tais carac- uma conversa que pode ser iniciada e finalizada
terísticas decorrem mais uma vez dos usos e com maior facilidade, sem levar em conta os seus
apropriações dos interlocutores que das ferra- rituais, isto, principalmente, por se dar entre
mentas ou tecnologias em si. pessoas que não possuem qualquer tipo de relação
Além disso, devido ao caráter mutante das mais aprofundada. Muitas vezes, essa conversa é
conversas em rede, pode ser que não haja formulada apenas por um comentário acrescido de
conversações puramente síncronas ou assíncronas. uma resposta, o que já é visto como uma
Em se tratando do desenvolvimento de estudos conversação. Noutras, é produzida pelo comentário
acerca dessas duas modalidades de conversação, inicial mais muitas outras respostas, se

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estabelecendo entre usuários que se apropriam das processos passam por reconfigurações
ferramentas e do tema tratado, discutindo-o sob significativas. Nesse ínterim, dispositivos
diferentes vieses. Esses aspectos configuram uma tecnológicos, sites, aplicativos e redes sociais da
forma específica de conversação e sociabilidade, internet tem buscado dar conta das especificidades
elementos que não deixam de existir, mas passam dos processos conversacionais, muitas vezes por
por mutações. meio da tentativa de transposição de sua estrutura
Em meio a um cenário em que milhares de e alguns de seus elementos.
atores estão interconectados por todo o globo, Ao mesmo tempo, percebe-se um
negociações são construídas e interações crescimento vertiginoso dessa conversação
difundidas. Com isto, laços são produzidos, mas promovida por meio dos aparatos tecnológicos,
também podem ser facilmente desfeitos (BAUMAN, principalmente entre os mais jovens e as gerações
2004). As conversações, no sentido de estruturas nascidas já nesse contexto – os chamados ―nativos
que sustentam os agrupamentos humanos são digitais‖ –, de modo que o estranhamento
(re)constituídas e (re)apropriadas. Além das inicialmente sentido quando do surgimento da
especificidades do meio analisado como fatores que comunicação mediada por computador tem se
devem ser levadas em conta para se refletir sobre a tornado cada vez menor. Com forte presença na
conversação, outro ponto importante é a vida em sociedade, a internet e as redes sociais são,
observação cuidadosa do contexto – nunca dado ou hoje, uma parte constitutiva da realidade cotidiana,
estanque – desses processos conversacionais, já o que implica, muitas vezes, na sua naturalização e,
que é elemento fundamental para se compreender consequentemente, ausência de reflexões sobre o
aquilo que é dito e discutido na rede, especialmente seu uso, bem como sobre o quanto as suas
quando se considera que nas conversações nela apropriações reconfiguram modos de ser e estar
estabelecidas o contexto precisa ser construído, com o outro e/ou para o outro.
reconstruído e recuperado a cada interação Nesse sentido, o presente artigo teve como
(RECUERO, 2014, p. 96). objetivo refletir sobre essas transformações,
Essencial à organização da conversação, o pensando a conversação em rede como um
contexto pode definir os rumos e caminhos da mecanismo constitutivo de relações ou modos de
interação, favorecendo uma leitura interpretativa comunicação que apesar de buscarem uma
mais profícua especialmente para a compreensão transposição ou naturalização, o que é feito não
das conversações assíncronas, quando há uma somente por meio dos dispositivos tecnológicos,
necessidade de sua recuperação e atualização. A mas também pelos próprios atores sociais, trazem
conversação mediada é a responsável pelo em si aspectos próprios que reconfiguram e
compartilhamento de ideias, informações, memes, ressignificam os modos de se conversar. Não se
disputas etc., bem como pela promoção e trata, é válido salientar, de uma perspectiva que
organização de protestos, fornecendo subsídios busca opor ou hierarquizar essas modalidades, mas
para a formação de vínculos e sociabilidades das de se pensar as suas diferenças e efeitos
mais diversas na contemporaneidade. justamente devido as suas especificidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS
Considerada como elemento imprescindível ARAÚJO, J. Apresentação. In: RECUERO, R. A
para as relações sociais e para a vida em sociedade, conversação em rede: comunicação mediada pelo
na contemporaneidade, a conversa e os seus

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20
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Geilson Fernandes de Oliveira


Doutor em Estudos da Mídia (PPGEM/UFRN). Mestre em Ciências Sociais e Humanas
(PPGCISH/UERN). Graduado em Comunicação Social – Jornalismo (UERN). Professor auxiliar
do Departamento de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN). Membro do Grupo de Pesquisa Informação, Cultura e Práticas Sociais (BITS/UERN) e
do GEMINI – Grupo de Estudos da Mídia – Análises e Pesquisas em Cultura, Processos e
Produtos Midiáticos (UFRN).

E-Mail: geilson_fernandes@hotmail.com.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3278-4044.

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SUJEITOS DA REDE: O NARRAR-SE COMO FORMA DE
PRODUZIR-SE
INTERNET SUBJECTS: TELLING YOURSELF AS A WAY TO PRODUCE
YOURSELF

Pâmella Rochelle Rochanne Dias de Oliveira

Recebido em: 03.11.2020


Aprovado em: 15.11.2020

RESUMO:

Este trabalho, objetiva discutir em que medida o ato de narrar-se no ambiente virtual e,
consequentemente, mostrar-se, corrobora para um atual movimento de construção de si.
Problematizando os sujeitos contemporâneos que encontram na rede novos mecanismos de
subjetivação. Para tanto, realizamos uma discussão teórica amparada em alguns dos principais
autores da área das Ciências Sociais e Humanas que se debruçam a respeito dos temas expostos.
Além de nos determos sobre como o formato das redes sociais e, especialmente, dos blogs de
escrita íntima, contribuem para um voltar-se para si na mesma medida em que incentivam os
sujeitos a espetacularizarem suas existências no grande palco que é a rede.

Palavras-Chave: Subjetividade, Narrativas de si e Cultura da rede.

ABSTRACT:

The present work aims to discuss the extent to which the act of narrating oneself in the virtual
environment and, consequently, showing oneself, corroborates a current movement of self-
construction. Questioning contemporary subjects who find new mechanisms of subjectification in
the internet. To this end, we held a theoretical discussion supported by some of the main
authors in the area of Social and Human Sciences who address the issues exposed. In addition to
dwelling on how the format of social networks (Internet) and, especially, blogs of intimate
writing contribute to a turn towards themselves to the same extent that they encourage subjects
to spectacularize their existence on the great stage that is the internet.

Keywords: Subjectivity, Narratives of the self and Culture of the internet.

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23
relacionadas ao movimento sociotecnocultural, o
INTRODUÇÃO 1
que o levou a refletir sobre o conceito de

as últimas décadas, nos deparamos cibercultura, sendo para o autor um tema em que

N com o desabrochar de
repertório de práticas sociais que
emergem da esfera da comunicação e
das novas tecnologias da informação (TICs), mais
um

precisamente do ambiente virtual. A esse respeito,


novo culturas locais e nacionais se fundem a uma cultura
globalizada e virtualizada, que se orienta por três
principais aspectos: interconexão, comunidades
virtuais e inteligência coletiva (TEIXEIRA, 2013).
Em livro posterior, intitulado Cibercultura, o autor
muitos teóricos classificaram o atual movimento defende que esta expressaria ―o surgimento de um

como o nascer de uma cultura da rede, nomeada de novo universal, diferente das formas culturais que
―cibercultura‖. Lemos (2005) a percebe como ―uma vieram antes dele, no sentido de que se constrói

cultura da desterritorialização‖, pois não precisa sobre a indeterminação de um sentido global


de um território geográfico e fixo para se qualquer‖ (LÉVY, 1999, p. 12), sendo responsável

estabelecer, sendo uma espécie de cultura móvel por manter a universalidade ao mesmo tempo em
que toma o mundo como seu lugar, virtualizando-o que dissolveria a totalidade. Corresponde, assim,
e comunicando-o a todos que estão conectados à ―ao momento em que nossa espécie, pela
rede 2 . Possui como principais características a globalização econômica, pelo adensamento das
agilidade, multiplicidade e interatividade. redes de comunicação e de transporte, tende a
formar uma única comunidade mundial, ainda que
O termo cibercultura surge na metade do
essa comunidade seja - e quanto! - desigual e
século XX diante de um novo ciclo de
conflitante‖ (LÉVY, 1999, p. 231).
desenvolvimentos tecnológicos, baseado na
expansão do maquinismo informático de Desse modo, mais do que informar, o ambiente

processamento de dados. Acredita-se que o termo virtual - por meio da cibercultura - passa a se
foi criado pela engenheira e empresaria norte- instaurar enquanto local em que novas práticas,
americana Alice Hilton, fundadora do Instituto de modos de ser e de estar se estabelecem. Neste

Pesquisas Ciberculturais (RUDIGUER, 2011, p. 8). entremeio, conceitos até então consolidados
Surge procurando dar conta dos fenômenos que diluem-se, reconfiguram-se. Como é o caso das

nascem junto com as novas tecnologias de noções de tempo, espaço, identidade e sujeito. A
comunicação, as mídias digitais e as redes sociais respeito dessas últimas, Lemos e Lévy (2010)
online. asseveram que os processos de construção da
identidade estão a partir de então cada vez mais
Com a publicação do livro A máquina do
fluidos. O que Haraway (1991) afirma ao se
universo, Pierre Lévy (1987) indagou questões
debruçar sobre o estudo dos sujeitos a partir de
uma perspectiva considerada pós-humana, em que
1O presente trabalho trata-se de um recorte da pesquisa defende que passamos a nos construir da mesma
de mestrado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação forma como construímos circuitos integrados ou
em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH) da Universidade
sistemas políticos.
do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), de título
“Subjetividade e escritas de si no blog “cem homens”: uma A partir dessa perspectiva, pretendemos
análise dos sujeitos contemporâneos no ciberespaço”, discutir; através de uma revisão teórica; como os
defendida e aprovada em 2016.
sujeitos da rede, aqueles que estão submersos na
2O termo rede é utilizado aqui como sinônimo de internet
cibercultura - eu, você e todos nós -, passamos a
e ambientes virtuais online.

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nos constituir a partir das narrativas virtuais subjetivação são demarcados por dispositivos 3
dispersas pelas redes sociais e/ou os canais de historicamente constituídos e, portanto, podem se
interação online. Narrativas essas, em tom desfazer, transformando-se, à medida que novas
confessional, que mais do que expor nossa vida práticas de subjetivação se engendram‖ (CARDOSO,
parecem nos colocar em meio a um processo de 2005, p. 7). O que nos levar a crer que o
subjetivação bastante complexo, próprio do ciberespaço, comumente nomeado de rede, seria
movimento cibercultural. Assim, o que nasce com o esse novo dispositivo que incide diretamente sobre
intuito de saciar as necessidades de informação e a construção das subjetividades contemporâneas,
comunicação dos sujeitos nos parece fazer brotar trazendo consigo novos mecanismos pelos quais os
novas necessidades, entre as quais a de se pôr em sujeitos passam a se perceber e se constituir. Entre
evidência (SIBILIA, 2008). estes destacamos o ―narrar-se‖ e o ―mostrar-se‖,
ambos intrinsicamente ligados a um processo de
MODOS DE SUBJETIVAÇÃO: AS NARRATIVAS DE SI
NA REDE reflexividade (GIDDENS, 1991).
A reflexividade, de acordo com Giddens4 (1991),
No universo online não apenas nossos
é uma importante característica da atualidade;
comportamentos se adaptam a uma nova realidade,
classificada por este como modernidade tardia; a
mas nossa subjetividade passa a ser produzida de
uma maneira diferente, na medida em que novos qual consiste no ato de refletir sobre as práticas
sociais em todos os aspectos da vida humana,
mecanismos de subjetivação se instauram,
possibilitando novos processos de constituição de
si. 3A noção de dispositivo adotada neste trabalho parte da
Sobre os modos de subjetivação, Foucault percepção foucaultiana que o define como “*...+ um
(2010) aponta três principais maneiras pelas quais conjunto decididamente heterogêneo que engloba
discursos, instituições, organizações arquitetônicas,
os indivíduos tornaram-se sujeitos no ocidente. O decisões regulamentares, leis, medidas administrativas,
primeiro é o modo de investigação, responsável por enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
objetivar o discurso e as ações do sujeito, tentando filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os
elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se
dessa forma atingir status de ciência; o segundo diz pode estabelecer entre estes elementos. [Um] discurso
respeito às ―práticas provisórias‖ que objetivariam que pode aparecer como programa de uma instituição ou,
o sujeito a partir do seu lugar social e de suas ao contrário, como elemento que permite justificar e
mascarar uma prática que permanece muda; pode ainda
relações com os outros; e por fim, o terceiro seria o funcionar como reinterpretação desta prática, dando-lhe
do domínio da sexualidade, em que ―os homens acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma,
aprenderam a se reconhecer como sujeitos de sua entre estes elementos, discursivos ou não, existe um tipo
de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de
sexualidade‖ (FOUCAULT, 2010, p. 231-232). O
funções, que também podem ser muito diferentes. [O
termo sujeito é considerado por Foucault (2010) de dispositivo pode ser entendido também] como um tipo de
duas formas, a primeira como sujeito a alguém pelo formação que, em um determinado momento histórico,
teve como função principal responder a uma urgência
controle e dependência, e a segunda, preso a sua
histórica” (FOUCAULT, 1998, p. 244). Ver mais na obra.
própria identidade por uma consciência ou
4 É importante frisar que fazemos uso tanto do
autocontrole. Estando ambas as perspectivas pensamento de Anthony Giddens quanto de Michel
sugerindo uma forma de poder que subjuga e torna Foucault com o intuito de criar um diálogo rico e plural
sujeito a algo ou alguém. acerca do tema tratado, embora o primeiro autor chegue
a tecer críticas ao segundo em determinado momento de
Partimos da crença de que, ―os modos de sua obra. Dessa forma, não é intenção deste trabalho abrir
uma discussão sobre a possível oposição entre os autores.

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inclusive sobre a constituição do eu. Fato que assim como nas demais redes, é reservado um
ocorre desde as sociedades pré-modernas, mas que espaço para que o sujeito se apresente, além disso
agora assumiria um caráter mais radicalizado, ―o o próprio ambiente cria um histórico sobre as
que é característico da modernidade não é uma principais atividades desenvolvidas nele. Os
adoção do novo por si só, mas a suposição da usuários são interpelados a compartilhar fotos,
reflexividade indiscriminada — que, é claro, inclui a vídeos e textos, marcarem os locais que
reflexão sobre a natureza da própria reflexão‖ frequentam e as atividades desenvolvidas, além de
(GIDDENS, 1991, p. 49). A reflexividade, no dado divulgarem como estão se sentindo por meio de
momento, seria a prática que evoca o sujeito a emoticons, o que parece ampliar a exposição de si.
refletir sobre tudo que o cerca, bem como sobre si Já na rede Instagran7, por exemplo, os usuários
próprio enquanto sujeito individual. O que acaba têm um pequeno espaço para descreverem as
por levá-lo a um processo de percepção sobre a informações que julgam necessárias (nome, idade,
constituição de sua subjetividade, ou como Giddens interesse e contatos), e a partir de então passam a
(1991) prefere nomear, a um processo de narrar suas vidas exclusivamente por meio de
examinação da autoidentidade, de forma que o eu, imagens, sejam estas fotos ou vídeos.
a partir dessa perspectiva, passa a ser um projeto A importância que se dá a imagem de si parece
reflexivo (GIDDENS, 1993, p.71). ser uma característica latente do sujeito da rede,
Traços que conduzem a essa prática de refletir independente do canal de interação a que nos
sobre si mesmo podem ser observados no formato referimos, pois, um único individuo costuma
das redes sociais e dos canais de interação online, administrar várias redes sociais ao mesmo tempo,
que convidam o sujeito a se apresentar para os fato que a leva a expor sua intimidade e conectar-
outros a todo momento, desde a criação do seu se ao maior número de pessoas possíveis, fazendo
perfil, com perguntas do tipo ―Quem sou eu?‖, de si mesmo e da sua vida, por vezes, um
como também no decorrer do uso ao permitir que espetáculo midiatizado para o mundo. O que nos
este compartilhe seus gostos pessoais e opiniões. remete aquela sociedade do espetáculo profetizada
Cada rede possui suas peculiaridades e maneiras e discutida por Debord (2003) no final da década
próprias de convidar o indivíduo a apresentar quem de 1960, em que ―o espetáculo não é um conjunto
se é, ou, como no caso dos fakes5, quem gostaria de de imagens, mas uma relação social entre pessoas,
ser. O que já levaria o sujeito a um inicial processo midiatizada por imagens‖ (DEBORD, 2003, p. 14).
de reflexão sobre si mesmo, ainda que talvez de Debord (2003) acreditava que o espetáculo era
forma fragmentada e superficial, uma vez que o o oposto do diálogo e por isso a prática da
espaço para isso costuma ser restrito. conversação estaria fadada a morte numa
No Facebook6, rede social mais famosa no Brasil sociedade em que a imagem teria mais valor. O que
que atingiu mais de um bilhão de usuários na a nosso ver, encontra certa lógica na
primeira década do século XXI (RECUERO, 2012), contemporaneidade, já que ao menos o diálogo
genuíno face a face, sem qualquer interferência
5 Termo em inglês que traduzido significa falso, tecnológica, de fato esteja em crise. Cada vez mais
comumente utilizado para designar perfis falsos na as pessoas não apenas trocam a companhia ―real‖
Internet, em que se tenta ocultar a identidade “real”
(offline) usando outra.
6 Rede social mais usada no Brasil. Endereço: 7Rede social de compartilhamento de imagens. Endereço:
https://www.facebook.com/. https://www.instagram.com/.

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(offline) pela virtual (online), como também exibe na mídia [...]‖ (SIBILIA, 2008, p. 44),
parecem ter a necessidade de registrar tudo o que transformando o próprio mundo num grande
fazem por meio de fotos e vídeos, para assim, de espetáculo e os sujeitos em seres cada vez mais
fato, possuírem a sensação de estarem vivendo. interativos e visuais.
No entanto, acreditamos que a ―comunicação No compasso de uma cultura que se ancora
efetiva‖, bem como a arte da conversa, diferente crescentemente em imagens, desmonta-se o velho
do que Debord (2003) preconizava, não morreu, na império da palavra e proliferam fenômenos como os
verdade parece renascer alcançando seu ápice aqui examinados, nos quais a lógica da visibilidade e
o mercado das aparências desempenham papéis
justamente aliada a essa espetacularização da
primordiais na construção de si e da própria vida
intimidade, embora ―a imposição de um regime de
como um relato. Isso ocorre, porém, em meio a um
audiovisualidade obrigatória, muito alegre e
grau de espetacularização cotidiana que talvez nem
colorido‖ (SIBILIA, 2008, p. 48) parece de fato o próprio Guy Debord teria ousado imaginar
ocorrer, levando a uma estilização da vida, que não (SIBILIA, 2008, p. 48).
apenas passa a ser narrada, mas sua narração se
Os sujeitos passam a modelar a si mesmos e a
dá em formato quase cinematográfico. Como
suas vidas estetizando todo seu cotidiano por meio
explica Sibilia (2008):
de narrações autobiográficas e imagens poetizadas
Nesse contexto o eu não se apresenta apenas ou daquilo que os cercam e os representam, tomando
principalmente como narrador (poeta, romancista
em muitos casos a visibilidade como moeda de
ou cineasta) de sua própria vida, mesmo que seja a
troca para a autoaceitação. O que a nosso ver faria
trilhada e cada vez mais festejada epopeia do
brotar a necessidade recorrente da
homem comum, do anti-herói ou do “homem
ordinário”. Enfim, daquele, “qualquer um” que não autoreflexividade, embora esta em muitos casos
tem pudor na hora de confessar sua própria pobreza, não ocorra enquanto busca por uma descoberta
encarnado naquele você capaz de se converter na profunda do ser e sim tendo em vista dar uma
personalidade do momento. Em todos os casos, resposta imediata a si mesmo e aos outros que
porém, essa subjetividade deverá se estilizar como estão na rede. Sendo este, talvez, outro fator que
um personagem da mídia audiovisual: deverá cuidar leva o sujeito contemporâneo a um contínuo
e cultivar sua imagem mediante uma bateria de
processo de subjetivação e produção de si, uma vez
habilidades e recursos. Esse personagem tende a
que o ―eu‖ da rede não exibe apenas quem se é,
atuar como se estivesse sempre diante de uma
mas passa a ser cada vez mais aquilo que mostra,
câmera, disposto a se exibir em qualquer tela –
mesmo que seja nos palcos mais banais da “vida real” como se o processo de se tornar quem se é
(SIBILIA, 2008, p. 50). passasse agora a ser um crescente técnica de
interiorização do que primeiro foi exteriorizado.
O que nos leva a crer que mais do que um
Quanto mais esse ―eu‖ se mostra, mais passa a se
conjunto de imagens, o espetáculo tenha se
conhecer e a se construir enquanto tal, por isso
tornado um modo de vida moderna, ou seja, a
―em vez de solicitar a técnica da introspecção, que
maneira como o mundo contemporâneo passa a se
procura olhar para dentro de si a fim de decifrar o
organizar, a forma como os sujeitos se relacionam
que se é, as novas práticas incitam o gesto oposto:
uns com os outros, tendo em vista que ―tudo é
impelem a se mostrar para fora‖ (SIBILIA, 2008, p.
permeado pelo espetáculo, sem deixar
115).
praticamente nada fora. Os contornos dessa
gelatinosa definição ultrapassam aquilo que se As narrativas de si atuais passam a ocorrer por
meio das diversas redes sociais e canais de

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interação online como o Youtube8 e os blogs de Em diálogo com Sibilia (2008), partimos da
escrita íntima, sendo estes últimos páginas da perspectiva de que esse ―eu‖ que se exibe na rede
internet que podem ser mantidas fechadas para costuma ser tríplice: ao mesmo tempo autor,
apenas um pequeno público e mesmo uma única narrador e personagem de si mesmo. Sendo em
pessoa, como também direcionados para todos que certa medida uma ficção, se levarmos em
estão conectados à rede (SCHITTINE, 2004). consideração que ele não apenas exibe quem é, mas
Os blogs de escrita íntima nos parecem ampliar tornar-se o que exibe na medida em que se narra e
as possibilidades de exibição do sujeito, uma vez faz uso da linguagem.
que além de possuírem um local reservado para que Embora se apresente como “o mais insubstituível
se responda à pergunta ―quem sou eu? ‖, o autor dos seres” e “a mais real, em aparência, das
tem mais espaço para escrever longas postagens e realidades”, o “eu” de cada um de nós é uma
compartilhar fotos e vídeos. Tanto vlogs no entidade complexa e vacilante. Uma unidade ilusória
construída na linguagem, a partir do fluxo caótico e
Youtube quanto blogs confessionais cresceram de
múltiplo de cada experiência individual. Mas se o eu
forma acentuada na primeira década deste século,
é uma ficção gramatical, um centro de gravidade
nos levando a presenciar, como dito por Sibilia
narrativa, um eixo móvel e instável onde convergem
(2008), uma verdadeira abundância de narrativas todos os relatos de si, também é inegável que se
autobiográficas que se multiplicam constantemente. trata de um tipo especial de ficção (SIBILIA, 2008,
―Os sujeitos desses novos relatos publicados na p. 31).
internet se definem como alguém que é, alguém que
Ao pensar no ―eu‖ da rede como uma ficção,
vive a própria vida como um verdadeiro
partimos da perspectiva de que este se desprende
personagem (SIBILIA, 2008 p. 51) ‖.
―do magma real da própria existência‖ ao mesmo
Turkle (2011) acredita que os sujeitos da rede, tempo em que provoca um forte efeito no mundo: o
de forma mais específica os escritores de sites efeito-sujeito (o eu se exibindo). Esta seria uma
confessionais, passam a segurar um espelho ficção necessária e comum, uma vez que na
voltado para nossos tempos complexos. Exibindo contemporaneidade nos constituímos enquanto
não apenas a si mesmos, mas a realidade de nossa sujeitos a partir desses e nesses relatos de si, ―a
época, em que o ―real‖ (offline) e o virtual (online) linguagem nos dá consistência e relevos próprios,
misturam-se a ponto de tornarem-se um só, bem pessoais, singulares, e a substância que resulta
como a máquina parece agora ser de fato uma desse cruzamento de narrativas se (auto)
extensão do ser (HARAWAY, 1991). Nesse denomina eu‖ (SIBILIA, 2008).
contexto, manter um diálogo íntimo com
Noção que dialoga com o pensamento de
desconhecidos mediado por uma tela, por exemplo,
Foucault sobre os sujeitos serem discursivamente
passa a ser em muitos casos mais reconfortante do
produzidos em meio a relações de poder e regimes
que se abrir face a face com um amigo que pode
de verdade próprios de sua época. Nessa
rebatê-lo instantaneamente. Os sujeitos
perspectiva, a produção da subjetividade considera
contemporâneos passam a pedir menos das
a inscrição do sujeito em determinadas formações
pessoas e mais da tecnologia (TURKLER, 2011, p.
discursivas, nas quais ele é atravessado por
230).
discursos que definem suas práticas (FOUCAULT,
2008), podendo a subjetividade ser compreendida
8Plataforma de compartilhamento de vídeos online. enquanto ―produto entre virtualidades produzidas
Endereço: https://www.youtube.com. e resulta de práticas diversas, advindas de saberes

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que envolvem uma pluralidade de discursos‖ problematizados, demonstram uma busca pelo
(FERNANDES, 2012, p. 77). conhecimento contínuo de si mesmo, seja no nível
A exibição do sujeito na rede, diferente do que corpóreo e mais superficial ou até em questões
muitos críticos apontam, não seria apenas uma complexas e existenciais. A grande questão passa a
performance fraudulenta de uma vida perfeita que ser que agora nos produzimos por meio de uma
se deseja possuir, o que por vezes pode ocorrer. O estilização contínua do eu e da vida, que se dá
trunfo do cibercultura estaria, a nosso ver, no fato através das narrativas e imagens que
de possibilitar que o sujeito do século XXI desenvolvemos sobre nós mesmos e
mantenha um contínuo processo de compartilhamos na rede, bem como do encontro
autoreflexividade, reconfigurado-o para a dessas narrativas com outras.
realidade própria de seu tempo. Quando o ―eu‖ Hoje, todos e qualquer um encontram espaço
narra determinados acontecimentos de sua vida para narrar a si próprio e se pôr em evidência na
numa rede social ou num blog de escrita íntima, rede, mergulhando num processo contínuo de
não apenas passa a descrever o que lhe acontece, produção da subjetividade, de maneira que a
mas num primeiro momento, ao passo em que se ―experiência de si como um ―eu‖ se deve, portanto,
narra também se julga, percebendo-se enquanto à condição de narrador do sujeito: alguém que é
autor de sua própria existência. Posteriormente, capaz de organizar sua experiência na primeira
reexamina sua narrativa e o impacto desta sob pessoa do singular‖ (SIBILIA, 2008, p. 31).
seus seguidores/leitores, bem como sobre si mesmo.
NARRA A SI MESMO – A EPOPEIA DO SUJEITO
O que vale ressaltar, não ocorre de maneira linear, ONLINE
mas em vez disso a subjetividade passa a se
O narrador teve sua morte profetizada por
constituir ―na vertigem desse córrego discursivo, é
Walter Benjamin (1994) na década de 1930, época
nele que o eu de fato se realiza. Pois usar imagens
em que este suspeitou que os tempos modernos
e palavras é agir: graças a elas podemos criar
com seus avanços tecnológicos acabariam pondo
universos e com elas construímos nossas
fim ao antigo hábito de contar histórias. De acordo
subjetividades, nutrindo o mundo com um rico
com o autor, em sua época já eram poucas as
acervo de significações‖ (SIBILIA, 2008, p. 31).
pessoas que sabiam narrar devidamente, o que
O simples ato de postar uma self9, por exemplo, seria fruto de um esgotamento da própria
pode apontar para uma autoexaminarão de si (de experiência. Pensamento que teve início com a
sua imagem), em que o sujeito desenvolve todo um popularidade do romance enquanto grande forma
raciocínio estratégico de como fazer para narrativa do século XIX, e, sobretudo, com a
conseguir o maior número de curtidas possíveis. informação em sua estrutura difundida pela
Problematizando desde o melhor ângulo para seu imprensa.
rosto, a maquiagem adequada, luz favorável ou o
Para Benjamin (1994), o núcleo das narrativas
tipo de roupa ideal para seu corpo, entre outras
tradicionais seria uma distância quase mítica entre
questões que à primeira vista podem parecer
o espaço e o tempo, o que não acontecia no gênero
simplesmente impulsos narcísicos de sujeitos
informativo por apresentar caráter imediatista.
líquidos (BAUMAN, 2007) numa era de
Fato que nos leva a crer que não teria ocorrido a
espetacularização gratuita. No entanto, quando
morte do narrador como um todo e sim do narrador
benjaminiano, que na contemporaneidade ―seria
9 Fotografia tirada de si mesmo. mais do que confirmada nos relatos autobiográficos

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que congestionam a web‖ (SIBILIA, 2008, p. 42). necessariamente uma descrição topológica, mas
Nestes relatos a perspectiva de tempo e espaço uma ordenação temporal, de forma que essa
dilui-se e a agilidade na exposição dos escritos autonarração se dá na medida em que o indivíduo
torna-se uma de suas principais características. passa a prestar contas de si mesmo e se perceber
Larrosa (1994) trata sobre a questão do enquanto um ser temporal, que além de estar
narrar-se a partir da sua obra voltada para as inserido num certo momento histórico também
tecnologias do eu na educação, na qual discute possui sua própria temporalidade na qual sua
como se dá a experiência de si por meio do que percepção de si vai se formando.
classifica como dispositivos pedagógicos. Ao Assim, se a subjetividade humana está
acreditar que o ser humano seria resultado dos temporalmente constituída, a consciência de si
mecanismos que o levam a manter uma relação estará estruturada no tempo da vida. O sujeito se
reflexiva consigo mesmo, mecanismos estes em que constitui para si mesmo em seu próprio transcorrer
temporal. Mas o tempo da vida, o tempo que articula
o sujeito se vê, se produz, se julga, se domina, se
a subjetividade não é apenas um tempo linear e
narra, e como visto, se mostra.
abstrato, uma sucessão na qual as coisas se
Sobre dispositivo pedagógico entendemos todo sucedem umas depois das outras. O tempo da
e qualquer lugar ―no qual se constitui ou se consciência de si é a articulação em uma dimensão
transforma a experiência de si‖ (LARROSA, 1994, p. temporal daquilo que o indivíduo é para si mesmo. E
54), em que se aprende ou se modifica as relações essa articulação temporal é de natureza
que se estabelece consigo mesmo. O que nos leva a essencialmente narrativa. O tempo se converte em

perceber o ciberespaço como sendo também uma tempo humano ao organizar-se narrativamente. O
eu se constitui temporalmente para si mesmo na
espécie de dispositivo pedagógico, na medida em
unidade de uma história (LARROSA, 1994, p. 65).
que há uma constituição de si através da escrita e
imagem. Ao se narrar num blog confessional ou O tempo no qual uma subjetividade se produz é
numa rede social online o sujeito passa a refletir antes de qualquer coisa um tempo narrado, uma
sobre si mesmo na medida em que se descreve e se vez que ao narrar os acontecimentos de nossas
expõe. vidas e a percepção que temos sobre estes,
acabamos por nos colocar enquanto sujeitos
O termo ―narrar‖, vindo do latim ―narrare‖,
emersos numa realidade temporal. No entanto,
significa basicamente ―arrastar para frente‖,
seria simplificar por demasia afirmar que o sujeito
deriva da palavra ―gnarus‖ que tem como tradução
é fruto dessa temporalidade da qual faz parte,
ao mesmo tempo ―o que sabe‖ e o ―o que viu‖ e,
sendo sua narração apenas tal percepção.
por tanto, remete a uma expressão grega, ―istor‖,
da qual derivam os termos ―história‖ e ―historiador‖ A narrativa pode ser percebida enquanto
(LARROSA, 1994, p. 64). Percebemos, pois, uma discurso pré-existente, uma vez que o indivíduo já
associação entre o ver e o saber, sendo aquele que se encontra desde seu nascimento imerso em
narra ―o que leva para frente, apresentando-o de estruturas narrativas que se organizam por meio
novo, o que viu e do qual conserva um rastro em das práticas discursivas de forma que ―a narrativa
sua memória. O narrador é que expressa, no não é o lugar de irrupção da subjetividade, da
sentido de exteriorizar, o rastro que aquilo que viu experiência de si, mas a modalidade discursiva que
deixou em sua memória‖ (LARROSA, 1994, p. 64). estabelece tanto a posição do sujeito que fala (o
narrador) quanto às regras de sua própria inserção
Ao narrar-se o sujeito está pondo em evidência
no interior de uma trama (o personagem) ‖
o que guardou do que viu de si mesmo, não sendo

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(LAROSSA, 1994, p. 65). desejos, fantasias surpreendentes, tesão por coisas
diferentes. Os números não importavam. Importava
Devemos pensar então, na constituição
a mulher que eu era no início disso tudo, quem eu fui
narrativa da experiência de si enquanto algo que se
me tornando e o resultado disso no final. Escrever
produz não apenas num diálogo consigo mesmo,
fez parte da travessia, expor também. Até os
mas em um diálogo entre narrativas, uma vez que a julgamentos construíram essa história (LAPA, 2012,
―consciência de si próprio não é algo que a pessoa p. 12-13).
progressivamente descobre e aprende a descrever
Na fala de Nádia Lapa fica claro o papel
melhor. É, antes, algo que se vai fabricando e
importante da escrita por meio do ato do narrar-se,
inventando, algo que se vai construindo e
já que de acordo com ela, na medida em que o blog
reconstruindo em operações de narração e com a
foi sendo atualizado e conquistando leitores, ou
narração‖ (LARROSA, 1994, p. 66). O que nos leva
seja, na medida em que foi narrando sua intimidade
a crer que o processo de constituição da
em tom de confissão para a rede, mas do que expor
subjetividade; defendido até então enquanto
a si mesma e suas aventuras, Nádia passa a se
movimento contínuo que se dá no decorrer da vida;
descobrir enquanto tal, percebendo ou quem sabe,
passa a se estabelecer também por meio das
produzindo ―novos desejos‖. Podemos observar,
operações de narração, não simplesmente surgindo
embora Nádia não fale claramente, que na medida
nelas, já que o sujeito se percebe e modifica-se
em que ela se narra se percebe num processo de
enquanto tal através de suas narrações, bem como
subjetivação contínuo, produzindo a si mesma. De
das experiências narrativas dos que estão a sua
modo que sua subjetividade passa a constituir-se
volta.
amparada numa recorrente exposição da
Questão que se faz visível no Blog Cem intimidade.
Homens 10 ao percebermos certa mudança no
Na fala da blogueira ainda é possível perceber a
comportamento da autora, Nádia Lapa, quando
importância dos outros para o seu processo de
comparado o início do blog em 2011 com seu último
narração e subjetivação, sobretudo, quando
ano em 2014. O que começa pela própria
menciona que foi conquistando leitores e que ―até
apresentação desta, que inicialmente fazia uso do
os julgamentos construíram essa história‖, nos
pseudônimo Letícia Fernández, assumindo sua
remetendo a importância não apenas de um diálogo
―real‖ identidade posteriormente.
consigo mesmo, mas também de um diálogo com
O Cem Homens foi conquistando leitores e a minha narrativas outras. O que no âmbito do blog se dá
vontade de continuar escrevendo só aumentava. Ao
através do espaço aberto para os comentários, no
mesmo tempo, descobri muito de mim. Novos
qual os leitores também podem compartilhar suas
experiências de vidas e opiniões sobre o que está
10O Blog Cem Homens, criado em 2011 e encerrado em
2015, surge como uma espécie de celebração pela cura de exposto, como no exemplo a seguir.
sua autora, Nádia Lapa, do quadro de menopausa No print acima, retirado de um comentário do
precoce. Se apresenta em formato de diário íntimo online
blog, escrito pela leitura que se identifica como
em que Nádia (sob o pseudônimo de Letícia Fernandez)
pretende relatar minuciosamente suas aventuras sexuais Mara Costa, observamos que além de dar sua
com cem homens no período de um ano, meta opinião sobre o blog e o livro lançado em 2012,
estabelecida por ela. O livro “Cem Homens em um ano”
também compartilha seu pensamento sobre sexo e
lançado por Nádia Lapa em 2012, reúne as postagens do
primeiro ano do blog, além de contar como essa prática prazer feminino, ao mencionar suas conversas com
narrativa confessional transformou sua vida. Ver mais na as filhas e as amigas. O que nos leva a atentar para
obra.

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o fato de que essa produção e transformação da fazendo parte desse processo contínuo de contar,
consciência de si passa pela ―participação em redes ouvir, ler e contrapor histórias, entendidas aqui
de comunicação onde se produzem, se interpretam enquanto narrativas.
e se medeiam histórias‖ (LAROSSA, 1994, p. 67),

Figura 01- Comentário de uma leitora.

Fonte: Blog Cem homens (2012).

Outro fato relevante quando se trata da contemporaneidade como a época em que a


questão do narrar-se é o caráter social e político ―terceira mulher‖ de Lipovetsky (2000) encontra
da autonarração, uma vez que esta é atravessada oportunidade não apenas de se libertar das
pela história dos dispositivos normalizadores e correntes morais que aprisionavam sua sexualidade,
disciplinares que fazem os sujeitos contarem-se a como também de se narrar enquanto ser desejante
si mesmos de determinada maneira em que, como a leitora afirma, ―já aprendeu a fazer
determinada época (FOUCAULT, 1988). De forma sexo por prazer‖.
que é preciso atentar para gestão política e social
CONSIDERAÇÕES FINAIS
em torno da qual as narrativas pessoais gravitam,
O ―narrar-se‖ abordado aqui enquanto
bem como as relações de poder que envolvem os
mecanismo de subjetivação do dispositivo
lugares nos quais os sujeitos são interpelados a
pedagógico que seria o ambiente virtual, de forma
interpretar-se e reconhecer-se enquanto tais. O
mais precisa as redes sociais e os canais de
que no caso do blog Cem Homens e de forma mais
interação online – com destaque para os blogs de
específica desse comentário, nos leva a perceber a

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escrita íntima -, pode ser considerado uma forma parte dos aspectos que caracterizam a cibercultura.
de cuidado de si contemporâneo que reconfigura a
REFERÊNCIAS
antiga prática da confissão, apresentada por
BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Trad. Carlos
Foucault (1985b) em sua obra História da
Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
Sexualidade.
2007.
O narrar-se nestes blogs de escrita íntima se dá
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Obras
em tom de verdadeiras confissões, sobretudo, no
escolhidas: magia e técnica, arte e política (v. 1).
Cem Homens, que tem como assunto central a
São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.
sexualidade, tema desde muito tratado por este
viés. O que teria mudado da época vitoriana CARDOSO, Hélio Rabelo Jr. Para que serve uma
(FOUCAULT, 1988, p. 17) para os dias atuais, seria subjetividade? Foucault, Tempo e Corpo.
entre outros fatores o local e a forma como essas Psicologia: Reflexão e Crítica, 2005, 18 (3), pp.
confissões se dão, já que antes ocorriam bem mais 229-000.
por meio de uma imposição aos sujeitos tendo como DEBORD, Guy. Sociedade do espetáculo. Tradução:
locais adequados a igreja e o consultório médico. Terra vista. Editoração: Ebooks Barsil, 2003.
Enquanto que na contemporaneidade, chega a se FERNANDES, C. A. Discurso e sujeito em Michel
apresentar quase como um desejo inerente aos Foucault. São Paulo: Intermeios, 2012.
sujeitos, os quais passam a confessar detalhes de
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In:
suas vidas para um número cada vez maior de
DREYFUS, Hubert L. e RABINOW, Paul. Michel
pessoas, lavando ao atual fenômeno da
Foucault. Uma trajetória filosófica. 2 ed., rev. Rio
espetacularização da intimidade (SIBILIA, 2008),
de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 273-
em que esse ―eu‖ se transforma num show
295.
midiatizado.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber.
Sibilia (2003) acredita que essa recorrente
Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves, -7ed. – Rio
exposição da intimidade seria uma das principais
de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
características de nossa época. Não se tratando
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 7ª ed.
apenas de um mero exibicionismo, mas, como
Trad. Laura Fraga Sampaio. São Paulo: Loyola,
pontua Schittine (2004), provavelmente fruto do
1996.
desenvolvimento de um individualismo quase
narcísico que pensa no outro como uma plateia da FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a

nossa existência, em que ―a ilusão de se dirigir ao vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da

outro é apenas um pretexto para falar apenas de si‖ Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque.

(SCHITTINE, 2004, p. 66). Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988.

Ao passo em que o sujeito se narra e se mostra, GIDDENS, Anthony. As consequências da

se coloca numa complexa relação de auto- modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo:

examinação, como nos remete Giddens (1991). O Editora UNESP, 1991.

que nos leva a crer que o sujeito da rede é GIDDENS, Anthony. A transformação da
resultado dos diversos mecanismos e dispositivos intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas
que o levam a manter uma relação reflexiva sociedades modernas. Tradução de Magda Lopes.
consigo mesmo. Fato que ocorre de maneira cada São Paulo: Editora da Universidade Estadual
vez mais acentuada no ambiente virtual, fazendo Paulista, 1993.

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HARAWAY, Donna J. Simians, ciborgs, and Paulo: Companhia das Letras, 2000.
women. The reivention of nature. New York: RÜDIGER, Francisco. As teorias da cibercultura:
Routledge, 1991. perspectivas, questões e autores. Porto Alegre:
LAPA, Nadja. Cem homens em um ano. São Paulo: Sulina, 2011.
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LAROSSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
Silva, Tomaz Tadeu. O sujeito da educação. SIBILIA, Paula. A intimidade escancarada na
Petrópolis: Vozes, 1994, p.35-86. rede, blogs e webcams subvertem a oposição
LEMOS, André. (org.) Cibercidade II: Ciberube. A público/privado. Anais do 26. Congresso Brasileiro
cidade na sociedade da informação. Rio de Janeiro: de Ciências da Comunicação, Belo Horizonte-MG,
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LEMOS, André; LÉVY, Pierre. O futuro da internet: SCHITTINE, Denise. Blog: comunicação e escrita
em direção a uma ciberdemocracia. São Paulo: intima na Internet. Rio de Janeiro: Civilização
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Découverte, 1987. Brasil?. Edição 67, Nº 67, 2013.
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LIPOVETSKI, Giles. A terceira mulher: Permanêcia New York: Basic Books, 2011.
e evolução. Tradução de Maria Lúcia Machado. São

Pâmella Rochelle Rochanne Dias de Oliveira


Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade do Estado do
Rio Grande do Norte (UERN). Membro do Grupo de Estudos do Discurso da UERN (GEDUERN),
do Grupo de Pesquisa Informação, Cultura e Práticas Sociais (BITS/UERN), e do Núcleo de
Estudos de Gênero, Relações Étnicorraciais, Aprendizagens e Saberes (NEGRAS) da
Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA).

E-Mail: pamella_rochelle@hotmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3315-659X.

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ESBOÇO PARA UMA POSSIVEL CARTOGRAFIA SUBJETIVA
DE MOSSORÓ-RN
OUTLINE FOR POSSIBLE SUBJECTIVE CARTOGRAPHY OF MOSSORÓ-RN

Ailton Siqueira de Sousa Fonseca

Recebido em: 01.10.2020


Aprovado em: 15.10.2020

RESUMO:
O texto é resultado de uma conferência proferida em um evento que se propunha a repensar,
por diferentes percepções a cidade de Mossoró-RN. As reflexões aqui presentes se colocam
nessa perspectiva: fazer uma releitura do passado à luz das referencialidades desse momento
presente. O objetivo é repensar essa cidade para além das suas construções arquitetônicas,
físicas e práticas e enfocar seus aspectos imagéticos, sensíveis, narrativos e as paisagens
sentimentais que levam os sujeitos a elaborarem suas cartografias subjetivas da cidade para
melhor se relacionar com ela. Essas cartografias são menos traçáveis do que relatáveis. Elas são
móveis, fluídas, flexíveis, pois se trata de dimensões estão sempre em reconfigurações
performáticas e sensitivas dos sujeitos no seu dia a dia. Portanto, não se trata mais de uma
cidade construída para os sujeitos, mas como os sujeitos reconstroem a cidade a partir de suas
emoções, significações e subjetividades.

Palavras-Chave: Cidade; Subjetividade; Cartografia; Sujeito.

ABSTRACT:
The text is the result of a conference given at an event that proposed to rethink, by different
perceptions the city of Mossoró-RN. The reflections present here are placed in this perspective:
to make a reinterpretation of the past in the light of the referentialities of this present moment.
The objective is to rethink this city beyond its architectural, physical and practical
constructions and focus on its imagery, sensitive, narrative aspects and the sentimental
landscapes that lead the subjects to elaborate their subjective cartographies of the city to
better relate to it. These cartographies are less traceable than reportable. They are mobile,
fluid, flexible, because these are dimensions that are always in performative and sensitive
reconfigurations of the subjects in their daily lives. Therefore, it is no longer a city built for the
subjects, but how the subjects reconstruct the city from their emotions, meanings and
subjectivities.

Keywords: City; Subjectivity; Cartography; Subject.

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polissêmica, uma cidade que tem o que dizer e, por
INTRODUÇÃO isso, nos faz falar. Estamos aqui falamos o que ela

O
texto é resultado de uma conferência nos permite falar.
proferida em um evento que se pro- Se é verdade, como pensa Paul Connerton, que
punha a repensar, por diferentes ―todos os inícios contêm um elemento de
percepções a cidade de Mossoró-RN. As recordação‖ (1999, p.7) não poderia começar essa
reflexões aqui presentes se colocam nessa fala sem relembrar minha dissertação de mestrado
perspectiva: fazer uma releitura do passado à luz intitulada ―Labirintos, errâncias, vidas: um estudo
das referencialidades desse momento presente. O sobre os nômades urbanos do país de Mossoró-RN‖
objetivo é repensar essa cidade para além das suas (1998). De imediato, esclareço que não irei
construções arquitetônicas, físicas e práticas e reapresentar aqui esta dissertação na qual busquei
enfocar seus aspectos imagéticos, sensíveis, os hippes ou ―nômades urbanos‖ da cidade de
narrativos e as paisagens sentimentais que levam Mossoró-RN para conhecer a leitura que esses
os sujeitos a elaborarem suas cartografias homens faziam dessa cidade, cenário de suas cenas
subjetivas da cidade para melhor se relacionar com cotidianas. Como disse Félix Guatarri: “toda leitura
ela. Essas cartografias são menos traçáveis do que do passado está, inevitavelmente, sobrecodificada
relatáveis. Elas são móveis, fluídas, flexíveis, pois por nossas referências ao presente‖ (1996, p.122).
se trata de dimensões estão sempre em Coloco-me aqui nessa perspectiva: fazer uma
reconfigurações performáticas e sensitivas dos releitura do passado à luz das referencialidades a
sujeitos no seu dia a dia. Portanto, não se trata esse momento presente.
mais de uma cidade construída para os sujeitos, Ao longo desse evento, percebi que muitos já
mas como os sujeitos reconstroem a cidade a partir falaram sobre os grandes fatos e personalidades
de suas emoções, significações e subjetividades. históricas dessa cidade bem como das várias
REPENSANDO A CIDADE DE MOSSORÓ-RN: UMA interpretações sobre a sua história. Falar dessas
POSSÍVEL CARTOGRAFIA SUBJETIVA marcas é como ir em busca de um tempo perdido,
de um tempo em que a memória coletiva guarda os
Durante esse simpósio16 já foram apresentadas
fragmentos mais relevantes de si mesma, para si
muitas imagens e falas sobre Mossoró. Uma cidade
mesma. Rememorar esses fragmentos históricos
que cresce horizontal e verticalmente, mas,
não deixa de ser uma forma de as pessoas se
sobretudo, uma cidade que, humanamente,
(re)encontrarem com pedaços de suas vidas
multiplica as imagens e discursos de si mesma por
construídas ao longo dos tempos. Na concepção de
meio daqueles que nela moram ou sobre ela pensam.
Joseph Campbell, contar mitos e relembrar as
Aqui já foram enfocadas diversas dimensões
histórias passadas são formas de harmonizar as
dessa cidade, físicas e humanas, ecológicas e
pessoas com seu mundo, com o mundo e com elas
sociais, práticas e subjetivas. Vendo e ouvindo as
mesmas, ao mesmo tempo. É isto que pode
vozes que falaram nesse simpósio, percebe-se
configurar uma identidade local na globalidade do
facilmente que Mossoró é uma cidade polifônica e
mundo (1990). E isto possui uma importância
psíquica muito forte (seja pessoal ou coletiva), que
16Conferência no Simpósio de Geografia da Universidade não cabe agora abordar.
do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, realizado de 16
Para além disso, é importante reconhecer que
a 18 de dezembro de 2015, revista a atualizada para esta
publicação. as pessoas gostam de ouvir o que as outras pessoas

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pensam delas para que, assim, elas possam se Nesses dinamismos, ―os olhos não veem coisas,
recriar, reviver; reinventar-se, possam se olhar por mas figura de coisas que significam outras coisas‖,
meio do olhar das outras pessoas. Dessa maneira, como dizia Calvino (1990, p. 17). Por outro lado,
elas atualizam a sua própria imagem, tanto para Gaston Bachelard nos alerta para uma coisa
elas como para os outros, tanto individual como extremamente interessante: ―é preciso sempre se
coletivamente. ligar ao passado e sem cessar se desligar do
Relembrar a vida de certos personagens ou passado. Para se desligar do passado é preciso
certos fatos históricos é importante não só para imaginar muito‖ (1990, p.45). Se precisarmos
reconstruir uma identidade local na globalidade do imaginar muito para nos afastar da história,
mundo; é importante também para não deixar cair precisarmos igualmente imaginar muito para nos
no esquecimento aquilo que foi ou, ainda é, aproximar dela e, também, ir além dela.
importante para certa comunidade. Nessa Durante a pesquisa meus olhos procuravam
perspectiva, a história de uma cidade como cartazes, mapas, outdoor, placas, momentos,
Mossoró pode ser vista como uma elaboração ―porque ali é que estava a surpresa, a promessa, a
discursiva que se estabelece entre o que ocorreu no expectativa‖ (CALVINO, 2000, p. 42) que me
tempo (acontecimento) e aquilo que a memória ajudariam a me orientar em direção aos sujeitos
preserva dele (o significado e a interpretação). ditos nômades, sujeitos errantes que desenvolviam
Portanto, a história é uma (re)criação constante da práticas desterritorializadas, faziam dos lugares os
interpretação, do pensamento. Penso ser impor- não-lugares para sobreviver, vender, passar, ser e
tante, assim, ficarmos atentos ao fazer histórico e existir. Aquilo que chamarei mais a frente de
aos usos da história. cartografias emocionais da cidade.
Não irei seguir outro caminho diferente Meu esforço sempre foi captar os silêncios
daqueles que aqui passaram. Irei ensaiar outra dessa cidade que não para, não dorme, mas que
forma de caminhar. O que irei apresentar aqui é, nos fazem sonhar e imaginar seu passado, seu
portanto, uma reflexão sobre Mossoró a partir da presente e futuro. Mossoró é essa cidade se diz e
releitura que faço, hoje, daquele trabalho realizado se (re)faz com seus eventos e com as histórias que
de mestrado, tendo em vista a atualidade deste no contam sobre ela mesma. Cada detalhe revelado
que se refere as dimensões imagética da cidade funciona como um pretexto para elaboração de um
presentes nos discursos acadêmicos, na novo trecho da sua história. Para se ter uma ideia:
publicidade, nos discursos políticos e festejos as nomenclaturas, os símbolos, os vocábulos e as
culturais do ―País de Mossoró‖, como já foi assim histórias contadas sobre Mossoró, revelam e criam
chamada durante esse simpósio. outras dimensões da cidade, dimensões fantásticas
Aqui, não apresento mais o que aqueles homens e legitimantes; dimensões que tornam Mossoró
hippes ou ―nômades‖ de Mossoró narraram sobre a uma cidade admirável, singular, expressiva,
cidade, mas o que eu mesmo vi, senti percebi. Dito enigmática, subjetiva. Essas dimensões, para
de outra forma, minha postura é expressar um parafrasear as palavras de Michel de Certeau,
olhar sobre o olhar que olhou a cidade e, mostrar tornam a cidade confiável, atribuindo-lhe uma
assim, como os olhos constroem, hoje e sempre, as profundidade ignorada a inventariar e abrindo-a a
paisagens que eles mesmos enxergam. viagens no tempo, viagens imaginárias. Viagens
que nos levam ao encontro de vultos históricos,
A cidade não é só dinâmica, mas exige
personagens renomados e cenas inesquecíveis. As
dinamismo de percepção para melhor ser concebida.

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palavras, os contos, as imagens, as narrativas e os outro e todos tecendo a aura da cidade ou a ―alma
discursos são, para Michel de Certeau, as chaves da cidade‖. Para James Hillman (1993), essa noção
da cidade (1994). Chaves que dão acesso ao que de ―alma da cidade‖ está associada às idéias e
ela é: mítica. imagens de reflexão, de memória emotiva, de
Para captar as vozes silenciadas das ruas profundidade, de imaginação por meio de imagens
(cartazes, placas, outdoor, grafite) e as imagens e símbolos e de relações humanas.
errantes dos espaços (os sujeitos), foi necessário Mossoró, assim como toda cidade, se alicerça e
também a escuta sensível da literatura como meio se nutre das imagens, sonhos, utopias, rituais;
de despertar em mim, os olhos necessários a nutre-se de personagens míticos e desejos
percepção daquilo que quer ser visto mesmo sem se vibráveis; das relações espaciais e do coral de
mostrar, plenamente. vozes que ecoa no tempo e nos seus vários espaços.
Desde aquela pesquisa até hoje, sou movido ao Por tudo exposto até aqui, é possível considerar
encontro dos sujeitos e suas narrativas, suas mais duas coisas: primeira, a paisagem urbana diz
emoções sobre a cidade e as bacias de significados mais do que a seriedade arquitetônica, porque a
que eles constroem no espaço urbano para eles cidade preserva o espírito, o aglomerado, a
mesmos habitá-los de forma mais singular, com coerência múltipla e matizada; ela preserva um
significados afetivos. Busco os sujeitos para captar significado histórico cultural, econômico, político e
a cidade e não a cidade para pensar os sujeitos. imaginário muito forte. Segunda, o mundo urbano é
Isso pra mim é importante porque os estudos sobre traçado por vários traços que podem ser
as vidas urbanas só fazem sentidos se forem classificados em duas macro-perspectivas: por um
direcionados para a condição que os sujeitos lado, traços molares, conscientes, visíveis, limi-
ocupam nesses espaços, como eles significam os tados e, por outro lado, traços subjetivos, incons-
espaços que transitam, que habitam ou que tem cientes, indeterminados, transmutantes, imagi-
contatos. nários.
Penso que por trás das discussões sobre espaço Para além dos mapas, sinalizações e
urbano, territorialidade e economia urbana, meio cartografias físicas urbanas de Mossoró, os
ambiente e sustentabilidade, urbanização e sujeitos nômades elaboram outros mapas e
desenvolvimento, o que está por trás disso é cartografias da cidade para nela transladar e se
fundamentalmente uma preocupação com o ser reconhecer. É assim que uma cidade é construída e
humano, o sujeito citadino. Sem sujeitos urbanos a reconstruída pelas práticas discursivas cotidianas
cidade nada diz, nada faz acontecer, nada seria e pelos sentidos que os transeuntes imprimem aos
ocupado e dinamizado, nenhuma relação se esta- lugares, aos espaços públicos como forma de
beleceria. Tudo diz respeito às questões humanas: tornar a vida urbana mais aprazível ou de
a vida, as ações, as relações, as construções, os ―renaturalizar‖ os lugares (topoi) como acontecia
significados, os valores, organização e sustenta- em Marcovaldo e as estações da cidade de Ítalo
bilidade diária, aos (des)afetos vivenciados em CALVINO (1994).
suas trajetórias. É nesse aspecto que a compreensão de uma
A cidade de Mossoró deixa, assim, de ser cartografia física da cidade só faz sentido se
apenas uma selva de pedra e se transforma numa estiver em diálogo e complementariedade com uma
floresta de símbolos, de emblemas e de cartografia sentimental ou subjetiva que os
encantamentos míticos, cada um remetendo a sujeitos elaboram para nela transitar. Em síntese: a

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geografia urbana da cidade pode ser entendida por Clarice Lispector (2015a).
meio de suas cartografias emocionais, aquelas A cidade possui amina, vida psíquica. Se ela
traçadas pelos sujeitos citadinos, expressas tem alma é porque tem, igualmente, vida. A vida e
também nas imagens que a cidade assume ao a história da cidade se fundem e se confundem com
público. a vida e a história das pessoas e de seu tempo. A
É comum falarmos e estudarmos sobre a anima urbana sustenta e é sustentada pela vida
cartografia de um lugar ou de uma cidade. Mas existencial de sua população.
essas cartografias não contemplam aquilo que Ao ressaltar eventos históricos da cidade tais
Guattari chama de ―cidade subjetiva‖ (1994) e como, Chuva de bala no país de Mossoró, o Alto da
Suely Rounik chama de ―cartografia sentimental‖ liberdade, a festa de Santa Luzia e outras
(2011), aquelas que os personagens traçam dos comemorações referentes aos personagens
lugares como uma forma de melhor se relacionarem heróicos da cidade, percebemos que a Mossoró vive
com eles e consigo mesmos. Essas cartografias são se alimentando, inclusive, da morte de certos
menos traçáveis do que relatáveis. Elas são móveis, personagens do lugar. Relembrar, torna-se, assim,
fluídas, flexíveis, pois se trata de dimensões estão uma forma de não morrer. Falar das mortes é uma
sempre em reconfigurações performáticas e estratégia cultural e política para continuar
sensitivas dos sujeitos no seu dia a dia. vivendo. Relembrar e falar é triunfar sobre o
Esses mapas subjetivos, essas ―cartografias silêncio dos túmulos. Como bem disse Boris
sentimentais‖ dos espaços citadinos são traçadas Cyrulnik, relembrar é triunfar sobre a morte (2013).
por meio do olhar, dos desejos, das errâncias dos É assim que o sentido de que foi vivido reaparece.
personagens ou, como disse Michel de Certeau, Pois, ―o vivido conserva a marca do efêmero se não
ocorre através das práticas textuais urbanas puder ser revivido‖, como bem lembra Bachelard
(1994). Desse jeito, a cidade se torna mais (1990, p.40).
expressiva, mais comunicativa, os topois se enchem Existe uma vida da cidade que se nutre da vida
de histórias, exalam e ganham sentidos, adquirem existencial de sua população, como acontece com
alma humana. Mossoró e como nos faz crer a imagem de São
Andando pelas ruas e espaços de Mossoró, Geraldo, a cidade sitiada de Clarice Lispector
percebemos que os lugares estão impregnados de (2015b). Ela se reorganiza a partir das
medos, narrativas, mitos, superstições, condiciona- reorganizações operadas na subjetividade coletiva
mentos, induzem ritualizações, despertam desejos, e individual das pessoas, nos relatos sobre
sonhos, contam histórias e oferecem a matéria- acontecimentos do lugar. A cidade se auto-eco-
prima para contos literários, artes e poesia organiza nessa dialogia com aquilo que acontece
populares da cidade. As pessoas definem suas dentro de si e a seu redor. Ela sustenta e é
andanças e seus fazeres a partir das escolhas e dos sustentada por aquilo que Feliz Guattari chama de
significados que a cidade tem para cada um, o que ―auto-consistência subjetiva‖ (1994).
ela diz para cada sujeito urbano. Os nomes das Olhando sobre os olhos daqueles que habitam e
estátuas, mercados, praças, monumentos e ruas transitam pelas ruas, percebemos que os olhos que
expressam isso, pois não são vistos apenas como vêem a cidade não se diferenciam da cidade vista.
coisas inanimadas, mas como algo que tem vida, Os olhos se fundem e se confundem com aquilo que
história, anima. As pedras e mármores estão cheio vêem. Quem vê também se torna paisagem a ser
de ―sentimentações‖, para usar uma expressão de vista. A cidade tem os olhos de quem a vê.

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Engendrando-se num jogo entre a arte de fazer espaço. Ela é o espaço onde uma batalha ocorreu,
e o fazer da arte, o homem (re)constrói o espaço um amor aflorou, lágrimas rolaram, um romance se
para nele habitar, (re)constrói a cidade para nela desfez, acidentes aconteceram, passeatas surgiram
morar, humaniza a paisagem que vê e é e desapareceram. A rua pode ser um lugar de
humanizado por ela. Podemos dizer, assim, que desencontro e encontro com o mistério vivo e
uma cidade é feita de ―Carne e pedra‖ (Sennett, errante que é o outro. Ela guarda os riscos, as
1997), mas é nessa objetividade e visibilidade que mensagens, histórias deixadas por quem ali não
se enraízam as estruturas subjetivas e invisíveis mais se encontra.
dela mesma, como aquelas que Ítalo Calvino narrou A rua entrecruza histórias diversas. É o lugar
em As cidades invisíveis. do acontecimento. Até o amor pode surgir como um
Toda cidade é formada por dimensões invisíveis acontecimento fenomênico inesperado. Foi na
de si mesma. É assim que a cidade arquitetônica fugacidade e frenesi de uma rua que o poeta
abre espaço para a sentimentalidades dos sujeitos francês Charles Baudelaire, casualmente se depa-
e para as práticas de desterritorialidade dos não- rou com uma linda mulher a quem amou à primeira
lugares e, com isto, é possível captar o lado vista, mulher a quem dedicou apaixonadamente o
sensível da concretude de si mesma. poema ―A uma passante‖. Na verdade, esse amor
Se é possível dizer como Hillman que a cidade de Baudelaire aconteceu em uma rua: foi amor à
tem alma, a alma de Mossoró se manifesta, em primeira vista e a última vista também, já que ela
grande parte, na dinâmica de suas ruas. Os cami- desapareceu na multidão de forma tão rápida como
nhantes e os feirantes ambulantes, por exemplos, o piscar de olhos. Nessa perspectiva, as ruas
dão vidas às ruas. Aliás, a finalidade e a direção de podem ser concebidas como páginas escritas da
uma rua são traçadas pelos transeuntes a partir de história de um sujeito e da própria cidade. Podemos
seus próprios interesses, motivações e desejos. A compreender com isso que os verdadeiros
ideia de cidade subjetiva (Guattari) e de significados de uma história são aqueles que o
cartografia sentimental (Rolnik) se alicerça aqui. leitor sabe encontrar por sua conta, refletindo a
respeito.
Apesar de existir ruas de mão única, como
falava Walter Benjamin, para os transeuntes Lugar de todos e de ninguém, a rua favorece o
qualquer rua é sempre rua de mão-dupla: ela leva e cruzamento dos destinos humanos. Ela é traçada
traz, traz e leva, é entrada e saída, ao mesmo por trajetórias de desejos silenciosos, tecida por
tempo: é o próprio caminho. Quem diz a direção de um repertório de ―discursos bloqueados‖, como
uma rua são os passos dos sujeitos. Ao dar um diria Certeau, os discursos da publicidade, dos
rumo a seus passos, os caminhantes criam suas grafites, das marcas nos muros, nas calçadas etc.
próprias cartografias emocionais, porque imprimem Assim, a rua medeia um conjunto infinito de
sentidos e histórias às ruas por onde passam. relações consigo e com os sujeitos que nela
Deixam um pouco de si e levam um pouco delas transitam. Não deixa de ser o lugar onde as
consigo. Há uma cidade que carregamos em nós e pessoas se cruzam, algumas relações se estabe-
uma outra que não nos pertence, que fica onde lecem e se desvanece rapidamente: é o lugar da
sempre esteve. A rua ―guarda a fala dos passos fugacidade dos acontecimentos, da evanescência
perdidos‖, como diria Michel de Certeau (1994). dos desejos, da temporalidade das imagens; é o
lugar da história.
Assim sendo, a rua, por exemplo, deixa de ser
uma simples abstração ou mera concretude de um Para quem vive em movimento, a cidade não

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para. Para quem não tem um lugar fixo para espaços e temporalidades; uma cidade que não tem
habitar, cada rua é como uma sala, cada praça uma história e sim muitas histórias. Em uma
pode ser um quarto, cada loja pode se tornar um palavra poderia dizer: a história de Mossoró é
espelho enfeitando as paredes de seu lar. Para tecida por muitas histórias e nem todas temos
quem vive nas ruas, a cidade é sua casa. como saber, entender e falar. A cidade que revela
Nas ruas quase ninguém se cumprimenta; os suas histórias também sabe alimentar seus
olhares se cruzam por alguns segundos e depois se segredos para que os novos aventureiros da ciência
desviam, procuram outros olhares, não se fixam, possam tomá-la um desafio ao pensamento, a
como ocorre em Cloé, cidade invisível de Ítalo pesquisas.
Calvino. Assim como o acaso e o vento dão formas É assim que uma cidade se revela ao se
às nuvens, o acaso, a incerteza, os passos errantes esconder e se esconde revelando apenas o que
dos sujeitos e suas formas de ver e sentir pode ser conhecido. Diferentemente de San
reconstroem, a cada instante, a paisagem da rua. Giovanni, cidade imaginária de Italo Calvino,
Nesse aspecto, ela é uma espécie de vetor Mossoró mesmo ―não sendo o mundo todo, mas só
comunicacional com outras ruas e com a toda a um canto do mundo, não passa a sensação de uma
animada cidade. A rua concentra e dissipa imagens; cidade sitiada pelo resto‖ (CALVINO, 2000, p.31).
cenas, paisagens e personagens se imbricam numa Apesar desta cidade ter muitas praças, não há
trama indefinida onde seu enredo está sempre em mais aqueles banquinhos dos velhos que se
redação. sentavam a tarde para verem o sol se pôr e a
Se cada pessoa é um mundo, a rua torna-se um juventude passar. Os banquinhos estão vazios e
universo que concentra uma pluralidade de mundos aos redores há muros altos de casas que se
complexos. Presenciamos na rua o ―entre- protegem, muros que servem para anúncios das
cruzamento de experiências e vozes‖ inomináveis, novidades do mercado. Existe, assim, uma Mossoró
para empregar palavras do Certeau (1994). Além por trás dos muros, uma Mossoró dentro das casas:
disso, a construção arquitetônica das ruas oferece uma Mossoró nas memórias daqueles velhinhos que
a possibilidade de cada pessoa ou grupo inscrever viram o tempo passar e deixar a cidade como estar-
no anonimato urbano seu símbolo, sua mensagem agora.
ou marca identitária. É assim que os sujeitos se Os muros e prédios altos não escondem
comunicam com os espações, com os topoi: somente os velhinhos ou as coisas velhas.
atribuem nomes a eles para deles falarem. Escondem vidas, histórias e memórias de um povo e
Se, por um lado, a cidade alimenta a busca por de um tempo. Ao esconder isso, revela o palco ou a
necessidades a serem supridas (fome, sede, vitrine que se tornou seus muros e prédios novos
moradia, saúde), por outro lado, alimenta o cenário para uma juventude que, em breve, ficará velha e
de personagens lendários, imaginários; alimenta vazia de si, porque não tem histórias, não tem
sonhos possíveis, utopias realizáveis: as pessoas memórias e não mais novidades.
buscam a felicidade, os prazeres, as festas, a INCONCLUSÕES
comunhão, o bem-estar.
Em tão pouco tempo é impossível falar muito
Foi assim que comecei a perceber Mossoró: uma sobre a complexa simbologia e significações de
cidade que se descortina em sons e imagens, Mossoró, essa cidade que devido a sua
memórias e histórias contínuas e descontínuas singularidade, também é chamada de país: ―País de
diante dos olhos e ouvidos que percorrem seus

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Mossoró‖. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes
Sobre o complexo ―País de Mossoró‖, devo do fazer. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. Rio de
dizer que nem tudo pode ser dito. A realidade da Janeiro: Vozes, 1994.
cidade é multifacetada, a cidade, por sua vez, é CYRULNIK, Boris. Corra, a vida te chama:
polifônica, os mitos são, por natureza, polissêmicos memórias. Tradução: Rejane Janowitzer. Rio de
e a história de Mossoró é uma história feita por Janeiro: Rocco, 2013.
várias histórias, para falar como Clarice Lispector. CONNERTON, Paul. Como as sociedades se
Se é verdade, como pensava Ítalo Calvino, que recordam. Tradução: Maria Manuela Rocha.
―De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou Portugal: Celta Editora, 1999.
setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá FONSECA, Ailton Siqueira de Sousa. Labirintos,
as nossas perguntas. Ou as perguntas que nos errâncias, vidas: um estudo sobre os nômades
colocamos para nós obriga a responder‖ (1990, p. urbanos em Mossoró-RN. Natal: Programa de Pós-
44). Mossoró tem muito o que aproveitarmos, Graduação em Ciências Sociais da UFRN, 1998.
porque ainda tem muitas perguntas para as
GUATTARI, Félix. O novo paradigma estético. In:
respostas que possamos dar a ela.
SCHNITMAN, Dora Fried (Org.). Novos
REFERÊNCIAS paradigmas, cultura e subjetividade. Porto

BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma poética Alegre: Artes Médicas, 1996, p.121-137.

do fogo. Tradução: Norma Telles. São Paulo: GUATTARI, Félix. Práticas ecosóficas e
Brasiliense, 1990. restauração da cidade subjetiva. Revista tempo

BAUDELAIRE, Charles. A uma passante (poema). brasileiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, v.1,

Revista Prosa, verso e arte (on-line). Disponível n.116:5/8, jan-mar., 1994, p.9-25.

em: GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica:


https://www.revistaprosaversoearte.com/charles- cartografia do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996.
baudelaire-poemas/. HILLMAN, James. Cidade & alma. Tradução:
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito: com Bill Gustavo Barcellos e Lúcia Rosemberg. São Paulo:
Moyers. Tradução: Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Studio Nobel, 1993.
Palas Athena, 1990. LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo:
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução: crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 2015a.
Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. Rio de
1990. Janeiro: Rocco, 2015b.
CALVINO, Ítalo. Marcovaldo ou As estações na ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental:
cidade. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: transformações contemporâneas do desejo. Porto
Companhia das Letras, 1994. Alegre: Sulinas, Editora da UFRGS, 2011.
CALVINO, Ítalo. O caminho de San Giovanni. SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a
Tradução: Roberta Barni. São Paulo: Companhia cidade na civilização ocidental. Tradução: Marcos
das Letras, 2000. Aarão Reis. Rio de Janeiro: Record, 1997.

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Ailton Siqueira de Sousa Fonseca

Doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, professor do Departamento de Ciências Sociais e Políticas da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e do Mestrado Interdisciplinar em Ciências
Humanas e Sociais da UERN. Coordena o Grupo de Pesquisa do Pensamento Complexo GECOM/UERN.
E-Mail: ailtonsiqueira@uol.com.br
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2031-0711
.

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O LEÃO DE SETE CABEÇAS E A ESTÉTICA DA VIOLÊNCIA
EM GLAUBER ROCHA
THE SEVEN HEAD LION AND THE AESTHETICS OF VIOLENCE IN GLAUBER
ROCHA

Stamberg José da Silva Júnior

Recebido em: 06.11.2020


Aprovado em: 15.11.2020

RESUMO:
Este artigo investiga a utilização da mise-en-scène audiovisual como ponto de partida para uma
estética revolucionária e anticolonialista no Cinema Novo, movimento cuja base foi a afirmação
de um arte ―da fome‖ ou ―terceiro-mundista‖, construída a partir de elementos diegéticos que
visaram suscitar a superação da ―dominação‖ cultural e social oriundas do exterior. A análise,
de natureza exploratória, tem como referência o filme O Leão de Sete Cabeças (Der Leone Have
Sept Cabeças, 1970), do cineasta Glauber Rocha. Discutimos a produção deste aclamado
diretor da sétima arte brasileira relacionando-a a autores das ciências humanas e sociais e
objetivando ampliar o diálogo para além do contexto artístico.

Palavras-Chave: Glauber Rocha. Cinema. Revolução. Colonialismo.

ABSTRACT:
This article investigates the use of audiovisual mise-en-scène as a starting point for a
revolutionary and anti-colonialist aesthetics in Cinema Novo, a movement based on the
affirmation of an art "from hunger" or "third world", built on starting from diegetic elements
that aimed to overcome the cultural and social ―domination‖ from abroad. The exploratory
analysis is based on the film The Lion of Seven Heads (Der Leone Have Sept Cabeças, 1970), by
filmmaker Glauber Rocha. We discussed the production of this acclaimed director of the
seventh Brazilian art, relating it to authors from the human and social sciences and aiming to
expand the dialogue beyond the artistic context.

Keywords: Glauber Rocha. Movie theater. Revolution. Colonialism.

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renovação na linguagem e oposição ao cinema
INTRODUÇÃO clássico e industrial‖ (SILVA JÚNIOR, 2019, p.
Uma estética da violência antes de ser primitiva é 245). Os cinemanovistas possuíam, em suas
revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o películas, ―o desejo comum de legitimação da
colonizador compreenda a existência do colonizado: violência diante da opressão, o senso de urgência
somente conscientizando sua possibilidade única, a das transformações; ou seja, a ideia de que a
violência, o colonizador pode compreender, pelo revolução não era apenas um desejo, mas uma
horror, a força da cultura que ele explora. Enquanto
necessidade social" (XAVIER, 2001, p.33). A
não ergue as armas o colonizado é um escravo: foi
polarização dos conflitos ideológicos é a base da
preciso um primeiro policial morto para o francês
maioria dos filmes, que corporificam, em cena, a
perceber um argelino. (ROCHA, 2009, p. 56).
materialidade de uma esperança de luta em um
Fruto de um contexto sócio-político marcado mundo maniqueísta cindido entre oprimido e
pela radicalização de ideias, a ascensão dos opressor.
regimes totalitários e a crescente desigualdade
A identidade do povo e a cultura nacional que
urbana em virtude da intensa modernização do
pretendiam forjar tinham um forte componente
rural, a produção de Glauber Rocha, entre outros
anti-imperialista. Seguindo Frantz Fanon, eles
aspectos, visava construir uma estética do acreditavam que “lutar pela cultura nacional
subdesenvolvimento que desgarrar-se-ia da significa, antes de tudo, lutar pela libertação
hegemonia cultural/social da Europa e dos Estados nacional, por aquela base material essencial, que
Unidos. A revolução cubana, a guerra do Vietnã e a torne possível a construção de uma cultura”
descolonização da África e do Caribe são as (SIMONARD, 2008, p.15).
circunstâncias históricas que permeiam o mundo Nesse contexto, dentre as muitas obras
naquele momento. premiadas do artista aqui estudado, como Deus e o
A violência, defendida pelo cineasta (e por Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe
outros pensadores) como o único meio para (1967) e O Dragão da Maldade Contra o Santo
libertação do jugo opressor, faz-se presente não Guerreiro/Antônio das Mortes (1970), optamos por
apenas na diegese de seus filmes, mas na própria analisar Der Leone Have Sept Cabeças (1970). A
mise-en-scène: a experiência estética de tudo o que escolha pelo longa inicia-se pelo título original da
compõe a cena traduz a fome de revolução e o obra, composto pelos idiomas de algumas
latente desejo de transformação socialmente metrópoles coloniais: Alemanha, Itália, Reino
disruptiva. Para o cineasta, a estrutura que Unido/Estados Unidos, França, Portugal, respecti-
presidiu o mundo colonial manteve-se intacta e vamente.
fora remodelada de modo a ocultar a reificação Pela denominação do filme e a identificação do
perene do ―Terceiro Mundo‖, termo assumido pelo Cinema Novo como uma arte crítica aos modelos
Cinema Novo como forma de afirmação dos valores padronizados do audiovisual daquele período, já
do movimento. poderíamos inferir que este parece apresentar-se
O Cinema Novo, fundado por Glauber Rocha e como um produto central para a compreensão da
outros diretores em meados da década de 1960, estética revolucionária do movimento que
caracterizou-se pela ―pela convergência da pertenceu Glauber. Além disso, a obra localiza-se
‗política dos autores‘, filmes de baixo orçamento, temporalmente próxima à publicação de dois livros

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que o filme claramente referencia: Os Condenados descarnadas, morando em casas sujas, feias,
da Terra (1961), de Frantz Fanon e Colonialismo e escuras: foi esta galeria de famintos que identificou

Neocolonialismo (1968), de Jean Paul Sartre. Nesse o Cinema Novo com o miserabilismo (ROCHA, 2009,
p.56).
sentido, buscamos compreender a relação exígua
entre a estética da violência presente em O Leão e Em seu cinema de autor – que busca a inflexão
as teorias daquele período que possam ter política – o combate ao neocolonialismo e à
influenciado a obra. hegemonia cultural dos países centrais do
capitalismo figura-se como presente em toda a
A VIOLÊNCIA NA MISE-EN-SCÉNE DE O LEÃO DE
SETE CABEÇAS diegese de O Leão. O Terceiro Mundo se revela, por
meio de Pablo e Zumbi, como sujeito ativo da ação
Der Leone Have Sept Cabeças narra a história
revolucionária contra o imperialismo a partir de
de Pablo e Zumbi, guerrilheiro latino-americano e
uma estética da violência. Elementos como armas
líber negro, respectivamente, que se unem para
são ressaltados na mise-en-scène da trama e
libertar o continente africano a ferro, fogo e
parecem clamar ao espectador para que se junte
sangue. No processo revolucionário que
aos personagens. A diferença entre os meios para a
desencadeiam, os protagonistas enfrentam o
luta que o colonizado e o colonizador possuem
mercenário alemão que, auxiliado pelo agente
também explicitam a distância desigual a que estão
norte-americano e pelo assessor português,
submetidos: enquanto o primeiro possui armas
governa em nome da misteriosa Marlene. A
brancas, o segundo está repleto de armas de fogo e
produção apresenta, sucintamente, os 500 anos de
um conteúdo bélico claramente mais vantajoso.
progressiva dominação branca na África – que se
Embora o longa não apresente personagens
modifica entre colonialismo e imperialismo, mas se
populares como em Deus e o Diabo ou em Antônio
perpetua como hegemônica.
das Mortes, a dialética da colonização e a luta
Em O Leão, Glauber põe em prática suas ideias
contra ela prevalece aqui. O deslocamento do
sobre um cinema que conecte os três continentes
sertão – ambiente principal dos contextos de seus
frutos da exploração: África, América do Sul e
filmes anteriores – para o continente africano
América Central, a fim de apresentar um cinema
reflete o cenário internacional de opressão que o
épico-didático. Épico, pois visa estimular o caminho
cineasta discutira no livro supracitado.
revolucionário; didático no sentido da maneira
como os personagens se apresentam. Do sertão ao Brasil como um todo, e deste à América
Latina e ao Terceiro Mundo. Cada filme reitera o seu
As ideias do cineasta, escritas em Por uma
foco nas questões coletivas, sempre pensadas em
Estética da Fome (1965), tinham por objetivo a grande escala, através de um teatro da ação e da
reprodução e o entendimento de que ―o consciência dos homens onde as personagens
comportamento exato de um faminto é a violência, se colocam como condensações da experiência de
e a violência de um faminto não é primitivismo‖ grupos, classes, nações (XAVIER, 2001, p.118).
(ROCHA, 2009, p. 56). Para Glauber,
No início de O Leão, Zumbi, que é apresentado
O Cinema Novo narrou, descreveu, poetizou, como um revolucionário libertário que sonha com a
discursou, analisou, excitou os temas da fome: justiça social, narra a história do continente
personagens comendo terra, personagens comendo africano antes da colonização e a forma massa-
raízes, personagens roubando para comer,
crante que vivem os colonizados no contexto
personagens matando para comer, personagens
contemporâneo à narrativa:
fugindo para comer, personagens sujas, feias,

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Há dois mil anos, leões e leopardos corriam social por meio da revolução armada e violenta:
livres pela floresta. Os deuses eram livres nos céus ―As massas lutam contra a mesma miséria,
e nos mares. Há 500 anos, vieram os brancos e debatem-se contra os mesmos gestos e desenham
suas armas de fogo massacraram leões e seus estômagos encolhidos, o que se pôde chamar
leopardos...suas armas de fogo incendiaram o céu e de geografia da fome. Mundo subdesenvolvido,
a terra dos deuses. Levaram nossos reis e nosso mundo de miséria e desumano‖ (FANON, 1961, p.
povo para a América como escravos. Nossos deuses 76). A desumanização do colonizado, reiterada
partiram com eles. Na América, viram os sofri- pelo sistema colonial que insiste em animalizar os
mentos de nossos reis e nosso povo. Os negros oprimidos, desloca-se nos filmes de Glauber Rocha
passaram para enriquecer os amos brancos. Seu e apontam para o outro como o inumano.
suor era de sangue, que adubou os tabacais, O colonizador, representado aqui por Marlene e
algodoais, canaviais e todas outras riquezas da os outros estrangeiros, aparecem como usur-
América. Um dia nosso povo pegou as armas para padores, ladrões, exploradores e opressores. Na
conquistar a liberdade. Nós e os deuses lutamos há trama, Marlene é uma espécie de referência dos
mais de 300 anos contra os brancos que nos representantes coloniais na África: um alemão, um
dizimaram barbaramente. Mas não mataram a mim, português e um americano. Ao lado da mulher, a
Zumbi, que reencarno os chefes assassinados. Esta força religiosa de um líder messiânico cuja missão é
lança rachará a terra em duas. De um lado ficarão evangelizar os nativos e fazê-los cativos por meio
todos os carrascos; do outro, toda a África...livre! da fé: a ideia da religião como alienação é utilizada
Aqui e em todo lugar, todo negro levará em si um para a compreensão da estrutura colonial de
pouco de África. Mas agora não enfrentaremos violência simbólica e cultural. Uma das sequências
suas armas com lanças e com magia. Contra o ódio, mais emblemáticas é aquela em que são
o ódio! Contra o fogo, o fogo! (O Leão de Sete enumeradas as riquezas do continente e Marlene
Cabeças, 1970). prefere o maior tesouro local: um fêmur humano.
O discurso do colonizado se apresenta como
revolucionário na medida em que busca a mudança
Figura 1: Zumbi levanta as armas.

Fonte: O Leão de Sete Cabeças, 1970.

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Figura 2: À Marlene é oferecido um fêmur.

Fonte: O Leão de Sete Cabeças, 1970.

Podemos inferir disso que o colonizador, ao não-violentos pensamentos estão condicionados


buscar o conteúdo mais valioso do lugar e este por uma opressão milenar, vossa passividade só
apresentar-se como o fêmur – o osso mais longo, serve para vos colocar do lado dos opressores‖
mais volumoso e mais resistente do ser humano – (SARTRE, 1968, p. 15). O longa apresenta as
está procurando a estrutura esquelética que diversas mutações nas estratégias de poder
sustenta o colonizado: a terra. Nesse sentido, a exercidas pelos colonizadores com o intuito de
diegese narrativa aponta a luta como única forma surrupiar e promover novas formas de colonialismo.
de proteção do que, na trama, têm importância: a Assim, ainda que o mercenário alemão e o
libertação do jugo opressor do espaço do português remetam-se ao passado colonial, o
colonizado. agente dos EUA aponta para o presente
Para a população colonizada o valor mais essencial, imperialista como resultado dos "novos tempos".
por ser o mais concreto, é em primeiro lugar a terra: Nesse sentido, o filme mostra a aliança dos
a terra que deve assegurar o pão e, evidentemente, representantes das metrópoles com Xobu, líder da
a dignidade da “pessoa humana”. Dessa pessoa burguesia nacional, que é eleito presidente mesmo
humana ideal jamais ouviu falar. O que o colonizado
sufocando as revoltas. A sensação de traição
viu em seu solo é que podiam impunemente prendê-
populista, apresentada também em Terra em
lo, espancá-lo, matá-lo à fome; e nenhum professor Transe, aponta para a conciliação pacífica como
de moral, nenhum cura, jamais veio receber as uma estratégia ineficiente da massa colonizada: é
pancadas em seu lugar nem partilhar com ele o seu
necessário a ruptura armada para que haja uma
pão (FANON, 1961, p. 21).
verdadeira revolução. Para Fanon (1961), quando a
Para Sartre (1968), é justamente essa relação burguesia dos países colonizados se alia às
que deve ser analisada pelo colonizado: a injusta metrópoles, mesmo que queiram uma
apropriação das riquezas destes. O filósofo independência nacional, acabam por proclamar
acredita que ―se o próprio regime e até os vossos princípios, mas se abstém de lançar palavras de

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ordem. sobre a necessidade da prova de força, porque seu
objetivo não é exatamente a destruição da
Toda a atividade desses partidos políticos
ordem...essas formações políticas se dirigem sem
nacionalistas no período colonial é uma atividade de
rodeios à burguesia colonialista o pedido que lhes é
tipo eleitoralista, é uma sequência de dissertações
essencial: “Dêem-nos mais poder”. Quanto ao
filosófico-políticas sobre o tema do direito dos
problema específico da violência, esses grupos são
homens à dignidade e ao pão, a afirmação
ambíguos. São violentas nas palavras e reformistas
ininterrupta do princípio “um homem, uma voz”. Os
nas atitudes. (FANON, 1961, p. 45).
partidos políticos nacionalistas nunca insistem

Figura 3: Xobu, o líder populista.

Fonte: O Leão de Sete Cabeças, 1970.

Em outros trechos do filme, a relação de O dia todo te alimentas de ervas, mas a comida do
rebaixamento das condições socioeconô-micas das branco é rica e suculenta. Tua mulher morreu ontem.

colônias e a pujança das metrópoles também é Sua doença não era grave, mas não havia remédios.
O mercenário branco violou tua filha e roubou o
apresentada. Zumbi mostra ao chefe da aldeia que
ouro da tribo. Isso te parece justo? Tua mulher,
o mundo colonizado é cindido em dois: enquanto as
teus irmãos, todos os teus parentes trabalham todo
colônias e os colonizados são famintos e miseráveis,
dia nos campos de amendoim. O branco compra a
as metrópoles e os colonizadores são ricos e colheita a preço baixo. Será que sabem que ele a
opulentos graças ao surrupiamento da região revende mil vezes mais caro? (O Leão de Sete
colonizada. Cabeças, 1970).

O branco mora numa bela casa, na cidade...mas tua Esse mundo dialético, segundo Fanon, é
casa, no bairro indígena, está ruindo. Estás vestido habitado por espécies diferentes. Para ele, o
pobremente, mas o branco está muito bem vestido. contexto colonial reside em realidades econômicas

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distintas, em desigualdades e na enorme assimetria cinema que se afirma, que luta e que transforma a
entre os modos de vida do colonizado e colono. força em uma realidade prática revolucionária.
Assim, para o autor,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de
O cinema de Glauber questiona, aponta, afirma
pedra e ferro. É uma cidade iluminada, asfaltada,
e produz experiências artísticas e estéticas nas
onde os caixotes do lixo regurgitam de sobras
quais o subdesenvolvimento e a luta contra o
desconhecidas, jamais vistas, nem mesmo sondadas.
Os pés do colono nunca estão à mostra, salvo talvez colonialismo/imperialismo estão sempre presentes
no mar, mas nunca ninguém está bastante próximo na diegese de seus filmes. O cineasta traz consigo a
deles. Pés protegidos por calçados fortes, enquanto participação no processo político-social por meio
que as ruas de sua cidade são limpas, lisas, sem de um cinema ideológico vinculado à luta de classes
buracos, sem seixos. A cidade do colono é uma e contra o arranjo do mundo colonial a partir de
cidade saciada, indolente, cujo ventre está uma estética da violência.
permanentemente repleto de boas coisas. A cidade
Os protagonistas alinham-se às forças
do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros.
A cidade do colonizado é uma cidade faminta,
empenhadas pela transformação da sociedade por
faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de meio da violência armada, única saída possível
luz. (FANON, 1961 p.29). para a destituição do modo de exploração
capitalista na perspectiva glauberiana. Assim, O
Para o crítico de cinema Ismail Xavier (2009),
Leão de Sete Cabeças se lança como uma epopeia
nos filmes de Glauber a realidade injusta parece
africana/subdesenvolvida preocupada em pensar o
solicitar a violência como ―condição de
ponto de vista do homem colonizado do Terceiro
humanidade‖. Segundo o autor, ―Não importa se
Mundo, apresentando a exploração violenta e
consciente, passivo ou mergulhado na franca
desumana ocorrida no continente africano que
alienação, o oprimido traz uma disponibilidade
subjuga o outro e o mantém preso na teia
para a revolta, mesmo que subterrânea. A
imperialista.
internalização da história é radical e faz o próprio
filme se desenvolver pela crise e pelo salto violento. REFERÊNCIAS
(XAVIER, 2009, p. 112). O Leão mostra uma África FANON, Frantz. Os condenados da terra. Ed.
impossibilitada de estabelecer suas tradições Civilização Brasileira, 1961.
culturais, econômicas, políticas e sociais –
ROCHA, Glauber,1939-1981. Revolução do cinema
consideradas bárbaras, incultas e incivilizadas
novo. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
pelos conquistadores europeus.
ROCHA, Glauber, 1939-1981. Cartas ao
Na mise-en-scène, entretanto, a interpretação
mundo/Glauber Rocha. Organização: Ivana
dos atores dos países os quais pertencem os
Bentes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
colonizadores também aparece como uma marca
SARTRE, Jean Paul. Colonialismo e
cênica que se destaca no contexto fílmico. Quando
neocolonialismo. Rio de Janeiro: Tempo
se inicia o conflito, os atores africanos e sul-
Brasileiro, 1968.
americanos, que representam os colonizados,
protagonizam não apenas o estado de dominação SILVA JÚNIOR, Stamberg José. Política e pós-

econômica mas também cultural e simbólica: os colonialismo no cinema novo. Revista Temática.

personagens subalternos já não são mais a Ano XV-n.12.Dezembro/2019 Acesso em: 27 nov.

fraqueza, mas estão na linha de frente de um 2020.

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50
SIMONARD, Pedro. Origens do cinema novo: a novembro de 2020.
cultura política dos anos 50 até 1964. São Paulo: XAVIER, Ismael. Cinema moderno brasileiro. São
2008. Paulo: Paz e Terra, 2001. XAVIER, Ismael. Sertão
In:http://www.plataformademocratica.org/Publica mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São
coes/14603_Cached.pdf. Acesso em 27 de Paulo: Cosac Naify, 2009.

Stamberg José da Silva Júnior

Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanas


pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Possui graduação em
Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE).

E-Mail: stambergjunior@gmail.com.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8680-6501.

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51
“NARRO MINHA VIDA, COMEÇANDO PELO FIM, VOU
CONTAR PARA VOCÊS A VIDA QUE INVENTEI PRA MIM”: AS
IMAGENS LÍTERO-MUSICAIS E OS ESPAÇOS POÉTICOS DE
BELCHIOR
“I TELL MY LIFE, STARTING AT THE END, I WILL TELL YOU THE LIFE I
INVENTED FOR ME ”: THE LITTER-MUSICAL IMAGES AND THE POETIC
SPACES OF BELCHIOR

Ângelo Felipe Castro Varela

Recebido em: 10.12.2020


Aprovado em: 15.12.2020

RESUMO:
Este artigo apresenta a proposta de pesquisa sobre as imagens lítero-musicais presentes na
obra do cantor e compositor Belchior e a relação destas com sua biografia, mostrando a
reciprocidade entre vida e obra. Partimos de uma breve reflexão sobre o campo de estudo
pluridisiciplinar do imaginário e da imagem, especialmente em COCCIA (2015), BACHELARD
(1978; 1990; 1991) e HILLMAN (2010). Esses autores discorrem sobre a dinamicidade e
autonomia da imaginação e do imaginário, bem como sua recursividade sobre os indivíduos e
grupos. Destarte, utilizamos essa reflexão teórica para propor uma leitura de imagens
bachelardiana de parte do cancioneiro belchiorano, propondo como eixo analíticos, a existência
de quatro espaço poéticos (sertão, cidade, América Latina, Arcádia), como resultados dessas
imagens lítero-musicais, o que constitui como possibilidade de interpretação da relação vida e
obra desse artista cearense.

Palavras-Chave: Imaginário, Imagens Lítero-Musicais, Belchior

ABSTRACT:
This article will present the research proposal on the literary-musical images present in the
work of the singer and composer Belchior and their relationship with his biography, showing the
reciprocity between life and work. We start from a brief reflection on the multidisciplinary field
of study of the imaginary and image, especially in COCCIA (2015), BACHELARD (1978) (1990)
(1991) and HILLMAN (2010). These authors discuss the dynamics and autonomy of the
imagination and the imaginary, as well as their recursion on individuals and groups. Thus, we
used this theoretical reflection to propose a reading of Bachelardian images by part of the
belchiorano songbook, proposing as an analytical axis, the existence of four poetic spaces
(hinterland, city, Latin America, Arcádia), as a result of these literary-musical images, the
which constitutes a possibility of interpreting the life and work of this artist from Ceará.

Keywords: Imaginary, Music-Musical Images, Belchior

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Desse modo, nossa proposta de trabalho busca
DAS COISAS QUE APRENDI apontar como os nexos causais existentes entre
NOS DISCOS obra e contexto, entre artista/época/cultura não
são suficientes para uma compreensão das

M
eu primeiro contato com a música de expressões estéticas. É necessário explorar
Belchior veio por intermédio de uma também que tais expressões intersubjetivas, o
fita cassete que pertencia a meu pai, individual na trama da criação estética, enquanto
por volta dos meus 15, 16 anos de ato de imaginação. O objeto das expressões
idade, hábito que sempre alimentava com alguma artísticas é algo que está relacionada a uma época,
rebeldia - meu pai odiava o volume alto e desgaste sociedade, mas ao mesmo tempo consegue
da bateria do carro, pois vez, ou outra ouvia fitas ―fraturar‖ essa condição espaço-temporal, dada a
em seu toca-fitas - todavia ainda sim aquelas sua natureza imaginal. Sendo assim nosso estudo,
canções não havia me encantado, lembro de ouvir foca-se na leitura, a partir dos referenciais dos
―Tudo Outra Vez‖ e talvez ―Apenas um Rapaz estudos do imaginário presentes em autores como
Latino Americano‖, mas não com muito gosto, ou Emanuele Coccia, Gaston Bachelard e James
assiduidade com que ouvias outros artistas. O Hillman, as imagens que intuímos e lemos, nas
interesse e o gosto crescente pela obra musical do músicas de Belchior, partindo de uma leitura
cearense só viriam a se firmar mesmo já quando do bachelardiana e mostrar como essas imagens que
meu ingresso na universidade no curso de ciências identifico como ouvinte, não são apenas produto da
sociais na Universidade do Estado do Rio Grande do relação do artista com sua época, mas vetores de
Norte- UERN, entre os anos de 2004-2008. Nas construção pessoal e artística.
atividades de entretenimento e no acesso a outras
VOCÊ NÃO SENTE E NÃO VÊ, MAS NÃO POSSO
mídias, entre elas o cancioneiro da MPB em
DEIXAR DE DIZER MEU AMIGO, UMA NOVA
especial das décadas de 70 e 80.
MUDANÇA, BREVE VAI ACONTECER: IMAGINÁRIO E
O gosto pela música de Antônio Carlos Belchior DINAMISMO DAS IMAGENS
foi tão significativo a ponto de me inspirar a
A base da comunicação humana é decorrente
estudá-la, lê-la, sob uma perspectiva científica:
da produção das imagens. Ao concebê-las como
Como aquele sujeito, conterrâneo, conseguia
produto da imaginação, dos atos de imaginação, da
compor letras de tão largo alcance poético, de
formação do imaginário, pensava-se que estas não
beleza, de reflexões sobre os aspectos gerais sobre
se constituíam numa realidade com autônoma, ou
a vida humana numa época, cultura, ao passo que
relativa autonomia. Essa abordagem da imagem e
parece um relato atemporal, universal sobre
de sua influência se devia a própria da aura dos
dramas, relações, contexto político, cultural, enfim
objetos ligados ao imaginário como sendo um ramo,
sobre a condição humana? Busco não uma análise
da atividade mental, ou operações mentais, tido
das relações entre música e seu contexto social,
como ―irreais‖, ―engodo‖, ―ilusão‖, ―engano‖, uma
onde teríamos uma ―verdade‖ sobre a ―mensagem‖
vez que as expressões da religião, dos mitos, da
do artista, partindo da análise de sua biografia
literatura, poesia, das artes em geral, não seriam
individual e principalmente do contexto social,
objetivas, ou lógicas. A ideia de que uma análise
histórico e cultural em que aquelas canções e esse
racional (objetiva, neutra), não pode gerar um
artista estiveram em maior evidência social e
conhecimento seguro, logo não é real. Mesmo no
comercial.
domínio da filosofia, segundo para WUNENBURGER

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(2003) há uma percepção do imaginário enquanto (1884-1962) as imagens são onipresentes e
―produção de ficções‖, da qual a ciência se dinâmicas, possuindo uma autonomia ontológica
distingue por acessar conteúdos concretos e reais: sobre a psique (e sobre sujeito do conhecimento),
―essa tradição de pensamento é provavelmente constituindo-se assim na origem da relação poética
responsável por uma falta de curiosidade e de com o mundo. O psiquismo humano está carregado
exigências conceituais que impediram que se destas manifestações, carregadas de afetividade
procedesse a diferenciações categoriais das que serão responsáveis por organizar sua relação
imagens e das atividades da imaginação‖ com o mundo exterior. Partindo dos seus estudos
(WUNENBURGER, 2003, pg. 24) físico-químicos, o pensador francês acreditava ser,
Para os estudos do imaginário e autores do num primeiro momento, irreconciliável a visão da
imaginário há uma defesa de sua ontologia: ―a ciência que enxerga na imagem um obstáculo
imagem é o ser do sensível, sua existência mesma‖ epistemológico que fere o seu princípio de olhar
(COCCIA, 2015, pg. 79). Para esse Emanuelle puro e objetivo (razão diurna) em contraponto com
Coccia os fundamentos da racionalidade até a perspectiva poética e onírica (razão noturna), o
científica e da sensibilidade não são apenas a causa que passa contestar depois, quando vê que assim
das imagens, mas também seu efeito, o que como a linguagem, os modos de fazer científico
precisamente, torna o universo imagético, uma também são constituintes e constituídos de
esfera distinta dos objetos e seres como ―terceiro imagens, como figuração e explicação do mundo.
elemento entre corpo e espírito, entre sujeito e Para Bachelard haveria duas manifestações do
objeto‖ (COCCIA, 2015, pp. 82). É outra realidade imaginário: as imagens manifestas através dos
ligada tanto ao psiquismo, como as coisas, mas que sonhos e aquelas manifestas pelo devaneio. As
não se confunde com nenhuma dos dois. Nossa imagens oníricas são aquelas que se (de)formam no
experiência e percepção com o mundo é tornado estado de repouso, do sono, as imagens de
possível pela presença dessa terceira grandeza que devaneio são aquelas praticadas ao longo do dia,
é alimentada e transformada por imagens. Imagens uma espécie de ―sonhar acordado‖, dada ao
também estão no princípio e são o meio de toda contato livre, tanto com matérias de imagens já
atividade humana, de toda reificação humana, de existentes e enriquecidas pelo indivíduo, no
toda matéria: ―o sensível é, portanto, definido por contato com os elementos materiais do mundo
uma dupla exterioridade: uma exterioridade aos exterior. As imagens oníricas para Bachelard
corpos, porque ele se engendra fora do corpo, e obedeceriam a uma lógica simbólica de quatro
uma exterioridade das almas, porque as imagens elementos – terra, água, ar e fogo. A imaginação
existem antes mesmo de penetrar o olho de um aquática, por exemplo, refere-se às imagens das
sujeito que olha o espelho‖ (COCCIA, 2015, pg. 85). intimidades, dos afetos, os quais correspondem as
As imagens se hospedam na natureza dos sublimações e solvências dos sentimentos, das
objetos e dos sujeitos, mas não se confunde com emoções fluitivas como as correntezas de rios, ou
eles. Precisam de um médium (meio), pelo qual como o movimento das marés. A imaginação da
podem ser expostas, traduzidas, lidas, uma vez que água corresponde àquelas imagens ligadas aos
ao não se confundir com o objeto, ou sujeito de eventos da vida (águas claras) e da morte (águas
quem conhece, diz algo a respeito destes, mas não escuras), pares e contrários que estão unos nessa
é a ―verdade‖, posto que sua natureza é dinâmica, coincidência material; a imaginação ígnea
fugidia, múltipla, diversa. Para Gaston Bachelard corresponde aos sonhos e imagens do potencial do

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fogo, ligada as cenas da luta, do conflito, da cujo sentido é oculto e decifrável, como nas
destruição e da restauração. A imaginação do fogo interpretações psicanalíticas (dissimulação dos
relaciona-se também a luz, ao saber, a capacidade desejos reprimidos), mas imagens dotadas de
de refazer, de revolucionar, de mudança, que significação e energia de transformação. As
acompanha as fundações do sentimento de imagens oníricas deformam marcos socioculturais
comunidade, de união, presentes nas celebrações de espaço e tempo, compõem e se recompõem, sem
das fogueiras ao intercurso sexual e conjugal. planejamento ou controle prévio e podem ecoar
(BACHELARD, 1990, 1987) ainda sobre a própria vida individual, guiando-a em
Por sua vez, a imaginação aérea é por planos e interesses: ―Antes de ser um espetáculo
excelência a imaginação da mobilidade, do consciente, toda paisagem é uma experiência
movimento, da liberdade. Correspondem aos onírica. Só olhamos como uma paixão estética, as
nossos sonhos de mudança, da vigília, em torno das paisagens que vimos antes em sonho‖ (BACHELARD,
simbologias ascensionais, de trânsito, próprias da 2000, pg. 05). Ao reconhecer a proeminência da
atividade do pensamento. É a figura da novidade, imagem sobre atos e palavras, enfim das
da inovação, da invenção. A imaginação do ar é a expressões estéticas, Bachelard descreve sobre o
imaginação do devir, do encontro a rarefação e devaneio como uma manifestação distinta dos
pureza existente nas alturas, que traz renovação sonhos como eventos do sono, uma faculdade em
em simbologias de liberdade e inspiração que excita que o ser humano, ao longo do dia, passa a
as mentes a revolução, a ir além, a transfigurar, a imaginar a suspender em mente, os eventos,
superar limites, tais como os símbolos da asa, do acontecimentos do seu cotidiano que ocorrem no
vôo, da queda, que são imagens de movimento. E estado de vigília, no qual o imaginário entrelaça-se
por fim, a imaginação terrestre corresponde as à memória, à linguagem, sentimento,
figuras do trabalho, do esforço, da produção, da comportamento, etc., posto que diferente dos
criação, que produz a subsistência tanto material, sonhos que são contados, nos devaneios, ―é preciso
quanto imaterial. Para Bachelard, a imaginação da escrevê-lo, escrevê-lo com emoção, como gosto,
terra teria dois desdobramentos: uma seria a dos revivendo-o melhor ao transcrevê-lo‖ (BACHELARD,
devaneios correspondente à vontade, que é de 2013 pg. 07).
extroversão, pois busca superar as resistências dos É sobre a dinamicidade e autonomia do
materiais, do metal, das pedras, como uma espécie imaginário humano que o pensador James Hillman
de litografia imaginal (daí o debate sobre o par do (1926-2011) analisa as relações entre psiquismo e
duro/mole), que corresponde as imagens humanas ser, partindo das contribuições de Carl Gustav
da forja, do artesanato que produz bens, coisas, e Jung e sua psicologia analítica que atesta a força e
outros desdobramento seria das imagens e presença das matrizes arquetípicas (expediente
devaneio de repouso, relativas ao refúgio e também usado por Bachelard) para buscar a
introversão, nesse caso, do lugares de resistência reabilitação da noção de anima (alma) perdida ante
relacionadas a casa, a gruta, o ventre. Palavras as formulações reificantes e hegemônicas da
como matéria, mão, mãe, massa, são palavras que psicologia e da psicanálise sobre o psiquismo. Para
expressam início, algo iniciado por propósitos, por o psicólogo americano, a vida psíquica humana não
ação, que transforma e gera (BACHELARD, 1990, é algo que possa ser reduzido a uma coisa, forma,
1991) descritível, objetificável, que possa ser
Sonhos não seriam para Bachelard literalidades, caracterizado, ou conceituado numa materialidade

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concreta, regular, essencial, exata, como uma atividade, cada ser carrega, apresenta uma
pedra, um planta ou animal, posto que sua mecânica que atua sobre a própria condição do
natureza é imaginal, múltipla e tradutiva. Hillman indivíduo e ser social.
concorda com Jung, que psiquê é imagem, ou Desta feita o comportamento humano deve ser
conjunto de imagens, posto que a principal visto sob as várias possibilidades de interpretação
característica do psiquismo corresponde a atos de e/ou tradução que devemos observar na ontogenia
imaginação, portanto, a alma é constituída de onisciente e dinâmica das imagens, já que estas se
imagens. referem ao comportamento, mas a sentidos,
Para Hillman, se a alma é síntese da psique, e experiências, representações, sentimentos, afetos,
se psique é a composição e atos de imaginar, o planos: ―a imagem é uma múltipla relação de
autor acredita então que as explicações ou análises significados, disposições, eventos históricos,
sobre comportamento e identidade humanas deve detalhes qualitativos e possibilidades expressivas
superar as explicações lineares e as abordagens que se autodelimita. Como seu referente é imaginal,
causais, ou formais, e mesmo qualquer forma de ela sempre retém uma virtualidade para além da
intervenção conceitual ou analítica, posto que a sua realidade‖ (HILLMAN, 1983, pp31). Mudanças
alma não corresponde uma forma concreta e de comportamento, planos e expressões afetivas e
definida, ou uma representação de uma essência, íntimas da humanidade, correspondem às
ou substância escondida, mas de uma qualidade personalizações que cada mente e cultura promove
que sempre se revela, múltipla e dinâmica. A alma sobre as imagens e os arquétipos. A alma é uma
(logo a figura do ser) é algo que preciso ser metáfora dessa economia de imagens sob qual
acompanhada e lida não analisada, uma vez que repousam nossa atividade psíquica, nos sonhos,
―as imagens psíquicas são encaradas como nos devaneios, nas manifestações da cultura e do
fenômenos naturais, são espontâneas, quer seja no corpo. Para expressar sentimentos como ódio, ou
indivíduo, quer na cultura, e necessitam, na amor e explorar as sensações das fantasias e das
verdade ser experimentadas, cuidadas, acariciadas, paixões, o ser humano literaliza e antropomorfiza
entretidas, enfim respondidas. As imagens tais imagens para relacionar-se a elas, para
necessitam de relacionamento, não explicação‖ relacionar uns aos outros.
(HIlLLMAN, 1983, pp 10) Sendo assim ao reconhecer a relação entre
Desse modo, Hillman propõe uma radicalização imaginário e imaginação, não apenas como eventos,
no estudo do ser e do comportamento ao batizar realidades cuja autoria pertence aos indivíduos e
sua proposta intelectual de Psicologia Arquetípica, seres sociais, mas como realidades que retroagem
posto que para compreender imagens, é preciso lê- sobre o comportamento e o ser, que partimos para
las, identificando as qualidades primárias a leitura das imagens poéticas da música de
presentes numa imagem dada, ou seja, seus Belchior. Como já foi dito, propomos um estudo
arquétipos, os quais podem ser retratados nas sobre o cancioneiro do artista cearense, no qual
expressões da cultura e da imaginação (mitologia, identificamos certas imagens (poéticas) nas
arte, religião), cujo movimento o autor considera músicas, como sentidos e significações que
ser a ―base poética da mente‖, posto que a alma, o atuaram sobre a biografia do sujeito Belchior,
psiquismo é uma geradora infinita de imagens, as tomando por base uma leitura bachelardiana de
quais são repletas de sentidos e significações. Esse imagens, a partir da imaginação material dos
plano das imagens, que cada humano, cada quatro elementos, bem como e uma fenomenologia

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da imagem, buscando assim a relação com a emerge, necessitando, requerendo assim o ―cultivo
psicologia hillmaniana. Nossa leitura da música da alma‖.
belchiorana parte das imagens de espaço presente “Rock, moda de viola, Coca-Cola com angu”:
em suas canções e para isso propomos que existem O sertão em Belchior
quatro ―espaços poéticos‖ em Belchior, a seguir:
Sertão para Belchior está além da
sertão, cidade, América Latina e uma ―Arcádia
paisagem física, marcada pela presença do bioma
belchiorana‖ expressão de um lugar construído e
caatinga, pela irregularidade pluviométrica do
buscado pela lítero-musicalidade de Belchior, fruto
clima quente e seco, das expressões da vida rural e
dessa dinamicidade própria de ―seu imaginário‖,
agrícola e dos retratos da pobreza, da miséria, bem
próprias do imaginário como vimos nesse tópico.
como das expressões regionalistas de cultura
“PELA GEOGRAFIA, APRENDI QUE HÁ NO MUNDO, (forró, culinária específica, literatura de cordel,
UM LUGAR, ONDE UM JOVEM COMO EU PODE AMAR etc). o sertão belchiorano corresponde a territórios
E SER FELIZ”: POR UMA SÓCIO-POÉTICA DE de sentimentos e vivências, passado biográfico,
BELCHIOR
intimidades e desejos. São veredas múltiplas de sua
A música de Belchior corresponde possui realização como sujeito imagens sempre
características bem distintas quando comparados a enriquecidas por sentimentos opostos de
outros artistas, contemporâneos como Caetano morte/vida, de liberdade/medo, velhice/juventude,
Veloso, Gilberto Gil, Raul Seixas, Chico Buarque, etc. As canções em que Belchior explora a figura de
Alceu Valença, etc. e conterrâneos como Fagner, sertão nos remetem a imaginação material
Ednardo, Amelinha, preferência e mistura de aquática em Bachelard, uma vez que há, nas letras,
gêneros musicais ligados a tradição do repente e efusão de figuras de lamento, tristeza, resiliência,
cordel, forró, baião, do blues, do jazz e pops rock medo e morte, resistência, liberdade, sensação,
americano, do canto gregoriano e da lira menestrel, possibilidades de criação e recriação.
somado a apreciação do compositor pela literatura
Identificamos em Belchior ―três sertões
e poesia nacional e internacional (Concretismo, poéticos‖. Primeiro, o sertão de Sobral – CE, lugar
Carlos Drummond de Andrade, Vinicius, Álvares de
de nascimento do cantor, palco, ―rio‖ (e o rio
Azevedo, Camilo Castelo Branco, Fernando Pessoa, Acaraú que banha a cidade é uma feliz
Baudelaire, Rimbaud, Ginsberg, Keruoac, Blake). A
coincidência!) das primeiras experiências de
lítero-musicalidade belchiorana se constitui numa audição e canto do autor, de formação literária e
narrativa, numa coleção de imagens relacionadas a
cultural, no contato como os franciscanos da
experiências, paisagens, lugares de presença,
paróquia local, ao acompanhar as poesias emitidas
interação e convívio, mas sobretudo, de memória, nas feiras livres e nos pontos de passagem (Sobral
de invenção e imaginação. Os espaços como sertão,
é uma cidade de passagem para o Norte do país),
cidade, América Latina correspondem a lugares sim, dos parentes, músicos, da cantoria das lavadeiras
visitados, vividos, mas igualmente imaginados e
do rio, do aboio dos vaqueiros, dos corais de Igreja
devaneados. São espaços oníricos para Belchior, até mesmo dos ―serviços de alto-falante‖
pois sentidos e significados se alteram em cada
localizadas nos postes (ainda existentes no centro
canção nos sugerindo mudanças de caráter pessoal,
da cidade!) que marcaram o contato de Belchior
individual, confirmando assim a expressão
com o blues, o jazz, o folk-rock, com o baião de Luiz
hillmaniana da dinamicidade e multiplicidade
Gonzaga e Marinês, com a música brasileira de
(muitas vezes ignoradas) da alma, do ser que Cauby Peixoto e Ângela Maria. Há o ―sertão

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religioso‖, o sertão das imagens religiosas, O espaço poético da ―cidade‖ em Belchior
presente nas figurações de morte e vida como corresponde às imagens lítero-musicais de
realidades, do sagrado e profano, corpo e alma, etc. mobilidade, transição, luta individual e política, das
Aqui também afluem as experiências de contato referências à juventude, à busca de sucesso e fama,
com o diálogo da filosofia, da literatura, do latim, medo ante a mudança, mas de desejo e aceitação
do canto gregoriano da meditação e bucolismo com pela mudança, de vôo, de liberdade, de evasão e
natureza, explicitado nos três anos que o autor fuga, de sexualidade e erotismo. A imaginação
viveu como monge capuchinho em mosteiro em material belchiorana urbana é uma imagem de fogo,
Guaramiranga- CE, de reclusão, de introversão; no sentido de luta, aventura, desejo, ao mesmo
figuras de medo, morte, autoridade, de desejo de tempo que, aérea, nos significados de liberdade,
liberdade como expressas nas canções ―Senhor mudança, revolução, idealismo expressos. A cidade
Dono da Casa‖, ―Cemitério‖ ―Como se fosse pecado‖ para Belchior se apóia numa imagem recorrente,
―Sensual‖, ―Aguapé‖, ―Galos, Noites e Quintais‖, porém dinâmica, de mudanças pessoais e estéticas,
etc. nas quais o autor, o poeta passa a residir, como já
Por fim, há um terceiro sertão poético em dito em relação ao sertão, uma cidade
Belchior, que seria o ―sertão de Fortaleza‖. Mas desliteralizada: seria o Rio de Janeiro, primeiro
porque Fortaleza, que geograficamente é uma destino quando da vinda de Belchior para o
metrópole, veria a ser considerado por mim como Sudeste, para tentar a sorte como artista e cantor?
um ―sertão‖? Eis porque a imaginação poética Ou então pode ser São Paulo, lugar de igual
desconhece as fronteiras físicas e conceituais, logo, dificuldade no projeto de alcançar fama e fortuna?
as imagens (lítero-musicais) devem ser lidas, Não importa. Como nos diz Bachelard, se a poesia é
destacadas não como coisas, nem literalizações, devir, o passado não esclarece o poema, dada a
como assevera Hillman. Fortaleza se configura dificuldade na junção de vida e obra, pois ―será
numa realidade de sertão poético para Belchior, sempre indispensável estudar a obra para
porque nas experiências da turma da faculdade de compreender o poeta. A obra do gênio é a antítese
Medicina, da política do movimento estudantil e da vida‖ (BACHELARD, 1983, pg. 82).
universitário, da turma de amigos que reunidos no É sobre esse novo início, esse inicial infortúnio,
―Bar do Anísio‖ (extinto estabelecimento outrora sobre o ―sujeito de sorte‖ que a cidade representa
localizado na orla da Praia de Iracema), há uma na poética belchiorana. Propomos destacar três
solvência, uma nova maré de desafios, escolhas e cidades poéticas na literomusicalidade de Belchior:
recomeços. Fortaleza é parte da inspiração para as primeiro a cidade da contracultura, isto é, a cidade
decisões de abandono do ―sonho da estabilidade enquanto oportunidade e medo, estranhamento e
material‖ da carreira de Medicina e a opção pela solidão, mas também a cidade como luta pela
música. Canções como ―Mucuripe‖, ―Todo Sujo de afirmação, profissional, pessoal, lugar da
Batom‖ ―Na Hora do Almoço‖ ―Sorry Baby‖ nos juventude e suas expressões, das suas
trazem essas imagens de medo, surpresa, manifestações pela arte, etc. Há uma contracultura
recomeço, desafio. em Belchior, num instante que opta por deixar o
―sertão físico‖ para trás e seguir como artista, tal
“VOU FICAR NESSA CIDADE, NÃO QUERO VOLTAR
PRO SERTÃO, POIS VEJO VIR VINDO NO VENTO, O como dito em ―Fotografia 3x4‖, ―Passeio‖, ―Ter ou
CHEIRO DE NOVA ESTAÇÃO”: A CIDADE EM não ter‖, ―Sujeito de Sorte‖. Destarte, a
BELCHIOR contracultura belchiorana é achada e vivida nos

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devaneios literários dos poetas da ―Geração Beat‖, constrangimento; Por isso sentimentos, como medo
como Allan Ginsberg e Jack Keruoac, Baudelaire, e culpa, atitudes como exaltação da desobediência,
Edgar Allan Poe, Rimbaud, do cinema americano e da subversão, da revolta, do ―novo‖. É mais que
seus ícones como James Dean, como Alan Dellon, uma luta do indivíduo contra a sociedade, ou poder
Stanley Kubrick, da música de Bob Dylan, Beatles, político constituído, é uma luta contra a imagem do
do confronto musical contra a cena brasileira poder que repousa em cada um, afinal não é a
contra os ídolos do mercado fonográfico como imaginação que possui a imagem, mas o inverso
Roberto e Erasmo, da Tropicália de Caetano e Gil, como proposto por Hillman. Belchior quer insurgir-
do misticismo de Raul Seixas e Tim Maia. Belchior se contra o poder externo em insitiuições, e
defende uma psicodelia que é a do devaneio internalizado pelas imagens de disciplina e medo.
literário porque ele remete a vida, porque enxerta Canções como ―Pequeno Mapa do Tempo‖, ―Apenas
vida, que cria vida. O poeta é um ―hippie‖ ou um um Rapaz Latino-Americano‖, ―Como o Diabo gosta‖
―beatnik‖ imaginário. Canções como ―Velha Roupa ―Conheço meu Lugar‖, ―Como Nossos pais‖ ―Caso
Colorida‖, ―Alucinação‖, ―Fotografia 3x4‖, ―Como Comum de Trânsito‖ ―Clamor no Deserto‖
nossos pais‖, ―Não Leves Flores‖, ―A Palo Seco‖ ―Carisma‖, trazem imagens sobre essas imagens de
Segundo, há uma cidade política em Belchior, poder que são conclamados a serem enfrentados
composta pelas imagens lítero-musicais pelo poeta.
intimamente as imagens da contracultura. Aqui há Por fim, há uma terceira cidade poética, a
apreciação do universo político, estético e pessoal cidade do erotismo, da sexualidade. Se na segunda
que necessita ser enfrentada, no caso, da ditadura cidade o cantor busca superar as adversidades na
militar brasileira, responsável pela morte, tortura, afirmação como artista e carreira, do autoritarismo
prisão e censura a amplos setores da sociedade das imagens do poder, do medo, da força e da
civil, o que incluiu artistas e intelectuais. O poeta violência, ele busca isso na exaltação das
retoma a tristeza e melancolia das águas turvas, da liberdades do corpo, da desinibição dos prazeres,
força e do autoritarismo político, das pressões e das fantasias que irrompem outros canais de vida e
exigências da indústria cultural e da cultura de afirmação. São as imagens lítero-musicais de
massa encontrando aqui o mesmo desafio dos afirmação do sexo, da revolução sexual, já
abandonos dos sertões dos autocratismos do presente nos devaneios literários, no movimento
horizonte familiar e patriarcal, da rigidez da vida hippie e contracultural. Belchior quer responder a
partidária. O devaneio belchiorano registra assim imagem do poder que obstrui e reprime, o
as simpatias pelas possibilidades de militância, empoderamento das identidades, da libido e do
ativismo que a arte pode oferecer a vida e ao ser erotismo, do corpo como sagrado-profano. Ora é
humano, inspirando o comportamento e a sabido que há uma tradição de estudos sobre
identidade. Belchior passa a militar pela liberdade, sexualidade e gênero, que afirmam que o exercício
daí sua simpatia pelo anarquismo, explícita em das formas de poder, resulta de mecanismos de
entrevistas, implícita em canções. biopoder, pois o autor encontra essas teses ao
Os ―inimigos‖ de Belchior não são um regime, enaltecer a beleza do encontro sexual e erótico,
ou governante, uma figura concreta, uma pessoa, como pomo de desobediência civil e política, isto é,
mas toda e quaisquer imagens de poder e a política que muda é aquela que primeiro muda as
subjugação, as realidades do poder que inspirem, imposições e captura do desejo.
repressão e censura, como imposição e Canções como ―Coração Selvagem‖, ―Como Se

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fosse Pecado‖, ―Bel-prazer‖, ―Divina Comédia necessidade de através da literatura, da poesia, da
Humana‖, ―Beijo Molhado‖, ―Brasileiramente arte em geral. A ―integração latino-americana‖ em
Linda‖, ―Medo de Avião‖ ilustram o Belchior que Belchior é aquela que pode ser forjada pelo
busca irromper as figuras do poder, dos trabalho da poesia e da palavra; a ―mãe‖ América
estereótipos do poder, via sedução, ressurge em Belchior por essa identidade
experimentação do desejo. Houve até mesmo na reclamada para si (―sou apenas um rapaz latino-
época, não se sabe se de forma deliberada ou não, americano‖, ―descobrindo Américas, inventando
a construção sobre o próprio artista de um ―sujeito Áfricas‖, ―tenho 25 anos, de sonho, de sangue e de
atraente, charmoso‖, ―sex symbol‖, ―latin lover‖, América do Sul‖).
inspirado. Mais uma vez não importa saber se o Aqui vemos o artista cearense, uma imaginação
―Belchior sexual‖ foi uma jogada de marketing da terrestre, tanto em seu devaneio de repouso,
gravadora, ou exploração do próprio artista, cabe quanto de vontade, uma vez que o artista ao
ler que essa personagem é algo evocado em sua devanear sobre realidades culturais e estéticas
―alma‖, imagem que foi bastante aproveitada e latino-americanas, talvez busque reabilitar uma
conhecida pelo artista. comunidade tratada com descaso pela política
“TENTAR UM CANTO EXATO E NOVO, A SER institucionalizada, pela crítica cultural que voltada
CANTADO PELO POVO DA AMÉRICA LATINA”: A apenas as produções anglo-europeias. Canções
AMÉRICA LATINA EM BELCHIOR como ―Voz da América‖ ―Retórica Sentimental,
Também podemos destacar aqui na ―Ploft‖, ―O Negócio é o seguinte‖, ―Extra Cool‖,
literomusicalidade belchiorana a busca por um ―Mah‖ expõe as imagens de um Belchior as buscas
―lar‖, por um sentimento de origem, mais uma vez, de um lugar, de refúgio, aquela mesma aventura
de um território imaginário, de uma ―pátria poética e pessoal buscada no sertão que encontrou
onírica‖, presentes nas imagens lítero-musicais a literatura e música, mas abandonado, depois nos
relativas à América Latina. O cantor cearense conflitos e sedução pela cidade. A poética de
busca retratar, detectar algum sentimento, de uma Belchior, na apreciação das imagens que constroem
raiz, não como tradição intacta, mas plural e móvel, uma América Latina onírica, é a tendência de
em relação às culturas, modos, personagens ―volta ao ventre, a mãe‖ como diz Bachelard. Na
ligados ao universo latino-americano, matriz década de 80, cuja cena estava mais voltada para o
cultural historicamente recusada pelos brasileiros, pop rock, Belchior buscou novas experimentações
mais voltada de busca incorporar nas referências melódicas, introduzindo nas canções arranjos de
europeias, norte-americanas, etc. Mais uma vez o gêneros como salsa, merengue, tango, acordes de
caminho seguido pelo autor, é o da imaginação e da viola com letras repletas de citações a autores e
poesia. Se pudesse elaborar uma poetas da sul-americanos, além de manifestar
―latinoamericanidade‖, primeiro essa união deve interesse por traduzir seu cancioneiro para o
ser identificada não só na coincidência histórica espanhol, etc.
trágica dos colonialismos, do genocídio e etnocídio “SE ME DER VONTADE DE IR EMBORA, VIDA
contra os povos indígenas e negros, ou ainda na ADENTRO, MUNDO AFORA”: A ARCÁDIA17
ascensão dos regimes autoritários (ditaduras
militares no Chile, Argentina, Brasil, Peru, Uruguai), 17Arcádia, em grego Αρκαδία, era como ficaria
pela cobiça imperialista, ou seja, em figuras e conhecida uma antiga província da antiga Grécia,
depois, romantizada por literatos e poetas, como o
processos de morte, mas também de vida e
reino, ou paraíso dos poetas e das poetisas.

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BELCHIORANA sentido que defendemos aqui que esse

As viagens oníricas ao longo do imaginário comportamento estético do poeta, se converte em

belchiorano nos faz propor aqui a criação de um um quarto espaço poético de Belchior, espécie de

quarto espaço poético, uma vez que certas imagens Arcádia (lugar montanhoso habitado por pastores

no cancioneiro do artista cearense não se ligam a e poetas), um lugar desejado pelo poeta e nessa

nenhum dos outros espaços, aqui citados, como condição. Um movimento de saída experimentado

América Latina, Sertão ou Cidade. São imagens de pelo próprio sujeito em relação a música, aos

contemplação e mesmo refúgio, de desejo de exílio, palcos, a vida pública, como o que o artista

de contemplação e fruição artística, e não se protagonizou nos seus últimos dez anos de vida,

delimita a nenhuma fase ou álbum da carreira, pelo rejeitando contatos e convites para shows. Migrou

contrário, estão sempre presentes em toda obra, pra o sul do país, indo até o Uruguai, levantando a

interage e transmutam-se a partir dos demais curiosidade e o burilo de imprensa, fãs e familiares

espaços poéticos, tal como o bardo que Belchior sobre esse abandono da carreira. Belchior diria que

apresenta de si mesmo. estava escrevendo algo, dizendo que estava em


novos trabalhos principalmente de pintura e
São imagens de movimento e mobilidade,
desenho, dependendo da ajuda material de
imagens de verticalidade, queda e saída, tais como
terceiros para sobreviver, vivendo como retirante
Bachelard identifica na imaginação aérea. Belchior
de casa em casa, sendo finalmente encontrado,
aposta em uma mudança que se inclui radical,
falecido em Santa Cruz do Sul – RS, em 2017.
revolucionária, como o ―Zaratustra de Nietzsche‖
(texto filosófico, mas carregado de poesia como A Arcádia belchiorana, poderia ser então um

escreve Bachelard). Não há um destino específico arquétipo, uma imagem, ao qual o autor se apegou

para fuga, não há um lugar para ficar, porque a nos últimos anos? Talvez. Como atestado pelos

―morada‖ é estar no caminho a ser inventado, próprios teóricos do imaginário, as imagens e os

percorrido. Belchior parece propor que a devaneios, possuem uma autonomia e

imaginação, o imaginário, enfim podem ser a única transcendência sobre o comportamento individual,

saída para a uma nova realidade; É o desejo de uma sendo as imagens elas próprias a ―substância‖ do

outra alteridade que só se encontra, só se forma psiquismo.

nessa busca: ―no ar, o movimento supera a A GUISA DE INCONCLUSÃO


substância‖ (BACHELARD, 1990, pg. 09). Canções Minha vida que parece muito calma, tem segredos
como ―Ypê, ―Espacial‖, ―Bahiuno‖, ―Peças e Sinais‖, que eu não posso revelar, escondidos bem no fundo
―Que tudo mais vá para o Céu‖, ―Do Mar, da Terra, de minh‟alma, que não transparecem sequer no meu
do Céu‖, ―Até mais ver‖, ―Princesa do meu lugar‖ olhar
são canções que remetem a imagens de despedida Vive sempre conversando a sós comigo, uma voz que
e concomitante início, de retomada, de fuga, de escuto com fervor,
Escolheu meu coração pra seu abrigo, e dele fez um
movimento, de deslocamento. O poeta nos faz
roseiral em flor.
enxergar novas matizes, tudo como mudança,
Doce mistério da vida – Moacyr Franco
―florescer é deslocar matizes‖ (BACHELARD, 1990,
pg. 04).
Se Belchior como artista e poeta, viajou por
Assim não há um lugar, ou ponto de parada,
estes espaços poéticos como propomos aqui, é
chegada. O poeta e suas imagens desejam
possível que seu comportamento de ―abandono da
deslocar-se e veem nisso sua residência. É nesse

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carreira‖ não pode ser tomado como ―estado REFERÊNCIAS
psicopatológico‖, mas como a atitude de ―cultivo BACHELARD, Gaston. Imaginação e Matéria. In: A
da alma‖, um estado do indivíduo que ao envolver- Água e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes,
se na produção do seu imaginário, produz novos 1990.
conteúdos de imagens, que podem tornar-se novos
BACHELARD, Gaston. Introdução. In: A Poética do
conteúdos de uma cultura, de identidade, ou de
Devaneio. São Paulo: Martin Fontes, 2003.
alteração da cultura de um tempo, época.
BACHELARD, Gaston. Imaginação e Mobilidade. In:
Se o imaginário é algo que está presente na
O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do
construção a própria cultura, do ser, Belchior foi
movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
também o produto destas imagens que acompanha
BACHELARD, Gaston. A imaginação material e a
toda alma, toda interioridade, e que podem ser
imaginação falada. In: A terra e os devaneios da
lidas, relidas, em sua polissemia, mostrando a vida
vontade: ensaio sobre a imaginação das forças.
de um artista deve não só elucidar a presença do
São Paulo: Martins Fontes, 1991.
passado, do biógrafo, ou do contexto social sobre
uma obra, mas como esta pode elucidar sentidos, BACHELARD, Gaston. O problema da bibliografia.
significados do próprio artista, do próprio ser. A In: Lautreamónt. Recife: Editora Litoral. 1993
pessoa, o artista Belchior é talvez, muito mais um COCCIA, Emanuele. Física do sensível – pensar a
produto do ser por ele imaginado, do viajante, do imagem na Idade Média. In: ALLOA, Emaneul (Org).
flaneur, dos espaços poéticos e imaginados, dos Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica
devaneios através do seu amor por literatura, Editora, 2015.
poesia e arte. Todavia não se trata de uma HILLMAN, James. Re-vendo a psicologia. São
abstinência a vida, pelo contrário, a arte só faz Paulo: Vozes, 2010.
sentido quando se refere a vida, se elevá-la, se a
WUNENBURGER, Jean-Jacques. Introdução ao
recriá-la, através do imaginário. Belchior propôs
Imaginário. In: ARAÚJO, Alberto Felipe &
isso como artista, como pessoa. Ainda que sejam
BAPSTISTA, Fernando Paulo (Orgs). Variações
facetas distintas, ambas estão ligadas, juntas,
sobre o imaginário: domínio, teorizações e
influenciando uma a outra reciprocamente, afinal
práticas hermenêuticas. Lisboa: Instituto Piaget,
como dito por Bachelard, ―nosso ser onírico é um:
2000.
permanece no dia, a experiência da noite‖
(BACHELARD, 1990, pg. 22).

Ângelo Felipe Castro Varela


Docente das Faculdades Vidal em Limoeiro do Norte – Ceará e Doutorando em Ciências Sociais
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.

E-Mail: angelofelipevarela@hotmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1033-7411

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MUROS QUE FALAM: COMUNICAÇÃO MARGINAL NA
CIDADE EM CONTEXTOS DE RUPTURAS DEMOCRÁTICAS
SPEAKING WALLS: MARGINAL COMMUNICATION IN THE CITY IN
CONTEXTS OF DEMOCRATIC DISRUPTIONS

Júnia Mara Dias Martins

Recebido em: 01.12.2020


Aprovado em: 15.12.2020

RESUMO:

Alijada de representação efetiva nos mass media, a voz das minorias sociais se inscreve nos
espaços urbanos e pede atenção. O presente artigo analisa essa comunicação marginal em
períodos de rupturas democráticas na América do Sul. Sob abordagem dialética, análise
qualitativa e utilização de jornais de forma documental, o estudo traz Henri Lefebvre e José
D‘Assunção Barros como autores principais. Acredita-se que as mensagens expostas na cidade
em forma de pichações, lambes ou grafites podem ter caráter noticioso, artístico ou de denúncia
social; exigindo, assim, um olhar de maior compreensão científica.

Palavras-Chave: Comunicação marginal. Cidade. Democracia. Grafite. Folkcomunicação.

ABSTRACT:

Excluded from effective representation in the mass media, the voice of social minorities is
inscribed in urban spaces and calls for attention. This article analyzes this marginal
communication during periods of democratic rupture in South America. Under a dialectical
approach, qualitative analysis and use of newspapers in a documentary manner, the study brings
Henri Lefebvre and José D‘Assunção Barros as main authors. It is believed that the messages
displayed in the city in the form of graffiti, lambs or graffiti may have a news, artistic or social
denunciation character; thus requiring a view of greater scientific understanding.

Keywords: Marginal communication. City. Democracy. Graphite. Folkcommunication.

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INTRODUÇÃO1 lambe 2 e o pixo funcionam similarmente como
protesto ou simplesmente como válvula de escape

A
o longo das décadas, as Ciências da para aqueles que também querem pulsar de algum
Comunicação têm pautado como modo nas veias da cidade; numa espécie de
objetos de pesquisa diversos elementos movimento contracultural dotado de maior ou
midiáticos dispersos no cotidiano – menor consciência política, mas sempre buscando a
textos jornalísticos, quadrinhos, filmes, materiais expressividade, o comunicar-se.
em áudio, fotografias, cartazes, propagandas e O conteúdo aqui apresentado é tangente às
outros conteúdos audiovisuais. Entre os conteúdos análises desenvolvidas pelo Projeto de Pesquisa
analisados, nem sempre a estética da cidade em si, Muros Que Falam 3 , coordenado pela autora e
no âmbito dos seus discursos periféricos, é sediado na Universidade do Estado do Rio Grande
vislumbrada como medium, como instrumento do Norte (UERN), em Mossoró-RN. O projeto,
catalisador da reflexão e leitura de mundo. iniciado em 2018, visa o mapeamento e análise dos
Acreditamos que as mensagens deixadas nas discursos dispostos em forma de lambe, pichação
paredes da cidade sejam um desses instrumentos ou grafite registrados no espaço urbano. Em sua
potencializadores de reflexão normalmente primeira etapa, a pesquisa teve foco nas
desprezados, elas subentendem uma racionalidade mensagens encontradas na cidade de Mossoró-RN;
na prática comunicativa, no uso de linguagem na etapa atual, contudo, as análises se estendem a
própria e argumentos que incitam a crítica mensagens registradas em qualquer lugar do Brasil
(HABERMAS, 2012). Em forma de textos imagéticos e do mundo. A intenção é mapear e perceber o
ou escritos, as mensagens nas paredes urbanas caráter noticioso, artístico e de denúncia social
decerto incitam mais que pura intervenção do desses conteúdos.
autor no espaço público, podem simbolizar um grito Para compor a estrutura teórica, utilizamos
individual ou coletivo; podem refletir o pensamento como base o conceito da ―cidade como texto‖, a
e as inquietações de determinados grupos partir dos escritos de José D‘Assunção Barros
socioculturais, as questões silenciadas pelos mass (2011), e a noção de espaço preconizada por
media, as formas de resistência, as tentativas de Milton Santos (2006). A dialética passível de ser
contrapoder – visto que ―toda comunicação é percebida nas mensagens pesquisadas, por sua
comunicação de algo, feita de certa maneira em vez, ganha ressonância na microssociologia do
favor ou na defesa, sutil ou explícita, de algum cotidiano delineada por Henri Lefebvre (1999;
ideal ou contra algo e contra alguém, nem sempre 2001); enquanto o vínculo entre estética, política e
claramente definido‖. (FREIRE, 2011, p. 136). comunicação está abalizado nos estudos de Jürgen
Neste ínterim, pressupomos que o grafite, o
2
Conhecido popularmente como “lambe”. A técnica
1 consiste em colar pôsteres no espaço público. Esse pôster
Versão atualizada de artigo apresentado na DTI 13 -
normalmente tem tamanho de papel A3 ou A4, no qual é
Folkcomunicação do XVI Congresso IBERCOM,
impressa, pintada ou grafada mensagem textual e/ou
Departamento de Comunicação, Faculdade de
imagética.
Comunicação e Linguagem, Pontificia Universidad
3
Javeriana, Bogotá, Colômbia, 27 a 29 de novembro de Projeto vinculado ao Programa Institucional de Bolsas de
2019. Iniciação Científica (PIBIC).

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Habermas (2011). Já a folkcomunicação se faz A CRISE DA SOCIAL-DEMOCRACIA
intrínseca ao corpo de todo o conteúdo, Em seu último artigo publicado 6 no jornal El
reafirmando o saber popular como mídia dos País, a filósofa Ágnes Heller (2019) 7 mostrou-se
socialmente marginalizados a partir da teoria de preocupada com o autoritarismo de Viktor Urban,
Luiz Beltrão (2001). primeiro-ministro húngaro que foi eleito, por três
O método de abordagem utilizado pelo Muros vezes consecutivas, sustentando um discurso
Que Falam é o dialético; enquanto o de xenofóbico e baseado na etnia. Urban também tem
procedimento é o etnográfico, com análise travado uma batalha contra a cultura e o
qualitativa. As plataformas Instagram 4
conhecimento, intervindo no conteúdo didático das
(@muros_quefalam) e Facebook 5 (@murosqfalam) escolas, nas pesquisas científicas e na nomeação de
são os principais meios de divulgação das mensa- líderes das universidades. Heller, que postulava
gens analisadas pelo projeto. que o Estado de direito não deve se centrar
Neste artigo, expomos inicialmente o contexto somente no voto, pontuou como a atual conjuntura
de rupturas democráticas em alguns países da húngara pode representar um perigo à democracia
América do Sul, para que haja melhor compreensão na Europa. A esse sistema adotado na Hungria, a
da conjuntura em que as mensagens dos pixos, filósofa não nominou nem de democracia, nem de
lambes e grafites estão inseridas. Antes de ditadura, e sim, de tirania.
abordarmos o Projeto Muros Que Falam, trazemos, O sucesso do governo tirânico na Hungria,
todavia, uma breve explanação sobre o conceito de segundo Heller, tem como uma das prerrogativas a
cidade; aqui pensada como a materialização da sua não identificação do indivíduo pobre, por exemplo,
própria história e, por assim ser, visualizada num com uma classe social. A perda desta sensação de
fazer-se contínuo, inacabado, caótico. Supomos pertença implica no esvaziamento das lutas de
que as inscrições nas paredes, decerto, refletem classes e na ineficácia de slogans costumeiros que
parte deste caos. ofereciam a renovação de um Estado de bem-estar
Lançamos a hipótese de que, em períodos de social. Promessas de empregos, melhores salários e
crise social, política e/ou econômica, as mensagens distribuição de renda parecem já não atrair grande
fixadas nas ruas tendem a refletir ainda de forma parte dos eleitores, os quais, em meio à
mais intensa os pensamentos e contestações dos instabilidade do sistema, se apoiam em ideologias
indivíduos; funcionando como meios públicos e de cunho nacionalista, de defesa da cristandade,
populares de comunicação. Tal cenário exige um de uma identidade tradicional e de ódio aos
olhar de maior compreensão científica, no entendi- imigrantes.
mento de que o recorte local, microssociológico,
pode encontrar discursos semelhantes no nível
6
macro. HELLER, Ágnes. Por que a Hungria se rendeu ao
extremista Orbán e como controlar o ensino é essencial
para seu projeto. El País. Madrid, 23 mai. 2019. Disponível
em
4
No Instagram, todas as fotografias postadas apresentam https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/18/actualidad/15
legenda com texto de descrição de imagens para cegos. 55585620_542476.html. Acesso em 16 nov. 2020.
5 7
As imagens publicadas são de autoria da equipe do Uma das maiores influenciadoras do pensamento do
projeto ou de usuários que interagem, enviando seus século XX, Agnes Heller era conhecida como filósofa da
registros. vida cotidiana. Faleceu em julho de 2019.

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A crise da social-democracia é uma realidade. E política da sua história 9 . Todos os presidentes
ela vem acompanhada, entre outras coisas, da eleitos neste século estão sob investigação por
desaceleração econômica, da perda da confiança envolvimento em algum esquema de corrupção. A
nas instituições de poder legitimadas, da crescente tensão no país se intensificou em 30 de setembro
polarização ideológica. O modelo tirânico de de 2019, quando o então presidente Martín
governar, consentido por maioria dos eleitores que Vizcarra dissolveu o Congresso, utilizando como
o legitimam através do voto, pode ser observado base um artigo constitucional 10 , suspendendo o
em conjunturas políticas contemporâneas ao redor mandato dos parlamentares e convocando uma
do mundo. É o caso de muitos países da América do nova eleição legislativa a ser realizada no início de
Sul, que têm vivido períodos de turbulências, 2020. Como resposta ao ato, o Congresso decidiu
conflitos e incertezas. pela suspensão de Vizcarra por um ano, alegando
No Equador, onde o dólar é a moeda oficial, o sua incapacidade moral e nomeando a vice-
presidente Lenín Moreno fez um acordo com o presidenta do Parlamento, Mercedes Aráoz, como
Fundo Monetário Internacional (FBI), em meados presidenta interina do país. Aráoz, contudo,
de setembro de 2019, a fim de conseguir um renunciou ao cargo um dia após sua nomeação e
empréstimo de US$ 4 bilhões8. Para tanto, aplicou pediu novas eleições. Como a decisão da suspensão
uma série de ajustes fiscais, entre eles, o corte dos do presidente foi tomada quando o Congresso já
subsídios dos combustíveis, provocando conse- estava dissolvido, não teve validade, o que
quente aumento do preço desses para a população. culminou no retorno de Vizcarra à presidência,
O aumento desencadeou uma onda de protestos apoiado pela Polícia e pelas Forças Armadas
pelo país, trazendo à tona a insatisfação dos peruanas.
equatorianos em relação a outras questões Turbulências políticas que colocam a demo-
propostas por Moreno, como a reforma trabalhista, cracia em xeque também se estenderam pelo
por exemplo. Mesmo com a decretação de estado Paraguai. Uma ata secreta que firmava um acordo
de exceção, toque de recolher e violenta repressão entre o presidente paraguaio Mario Benítez e o do
militar, os manifestantes intensificaram os protes- Brasil, Jair Bolsonaro, foi descoberta e provocou
tos e, após mais de 10 dias de manifestações nas indignação na população. O acordo previa a
ruas, conseguiram a revogação do decreto sobre os compra de energia elétrica da Usina de Itaipu pelo
combustíveis. Os indígenas tiveram participação Paraguai, que pagaria ao Brasil um adicional de
especial neste processo. Mais de 30 mil deles US$ 50 milhões por ano até 2023. Ao ser ameaçado
seguiram para Quito, pressionando o governo a de impeachment, Benítez recuou e anulou o
repensar suas ações e criar medidas protetivas às
classes mais vulnerabilizadas.
Já o Peru viveu nos últimos anos a maior crise
9
FIGUEIREDO, Danniel. Crise no Peru: o que está
acontecendo? Politize! 21 out. 2019. Disponível em
8 https://www.politize.com.br/crise-no-peru. Acesso em 16
MANIGLIO, Francesco; SILVA, Rosimeire Barboza da.
nov. 2020.
Revolução contra as medidas do FMI no Equador. Brasil de
10
Fato. 10 out. 2019. Disponível em Artigo 134 da Constituição peruana, onde se lê que “O
https://www.brasildefato.com.br/2019/10/10/opiniao-or- Presidente da República está facultado a dissolver o
revolucao-contra-as-medidas-do-fmi-no-equador. Acesso Congresso se este tiver censurado ou negado sua
em 16 nov. 2020. confiança a dois Conselhos de Ministros (…).”

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acordo 11 . Atos pontuais de recuo de medidas dadas, pelos manifestantes chilenos, à truculência
tomadas pelo Executivo parecem, contudo, do exército nas ruas, ao toque de recolher e à
atenuar, mas não sanar a insatisfação dos política neoliberal continuada pelo então
populares. E essa não é uma característica limitada presidente Sebastián Piñera. Pressionado, Piñera
ao contexto paraguaio. pôs fim ao estado de exceção, anunciou mudanças
Enquanto as linhas deste artigo eram escritas, ministeriais e disse se comprometer com uma
uma revolução acontecia no Chile, país que se fez agenda social. Mas os chilenos não saíram das ruas
palco da primeira experiência política neoliberal da – eles exigiram uma Assembleia Constituinte que
América do Sul. Foram contabilizados 18 mortos12 abandonasse a herança deixada pelo regime de
durante os protestos que se intensificaram em Pinochet e garantisse condições básicas de vida aos
outubro de 2019 e se estenderam até março de seus cidadãos, a partir de um Estado de bem-estar
2020, movimento que ficou conhecido como social. Finalmente em 25 de outubro de 2020, via
estallido social. Embora o estopim do conflito plebiscito, 78% da população chilena decidiu
tivesse sido o aumento da tarifa do metrô, oficialmente pelo fim da atual Constituição. Em
provocando a insurgência dos alunos secunda- abril de 2021, será formada a Assembleia
ristas, as manifestações demonstraram também a Constituinte, inteiramente integrada por novos
reprovação do chileno ao sistema hegemônico membros eleitos, sem necessidade de filiação a
neoliberal. Tal sistema provocou no país a partidos.
privatização de serviços básicos como saúde e ―Apesar das diferentes motivações em cada
educação, precariedade do sistema previdenciário, país, os acontecimentos na América do Sul, como
perdas de direitos trabalhistas, maior concen- no Equador e no Chile, têm causas comuns (…) Há
tração de renda e diminuição do poder aquisitivo baixo crescimento econômico, desigualdades
da classe média13. sociais persistentes e desconfiança da população
Greve geral, incêndios, afrontamento a bancos com as elites políticas e econômicas‖, afirma o
privados e apresentações artísticas em meio às cientista político Gaspard Estrada (2019) 14. Nesse
zonas de conflito foram algumas das respostas sentido, os protestos em vários países da América
do Sul, em diferentes níveis, encontram eco no
11 coletivo das ruas e no levantamento de demandas
CARNERI, Santi. Presidente paraguaio anula acordo com
o Brasil para evitar impeachment. El País. 01 ago. 2019. comuns sobressalentes em meio à crise de
Disponível em representatividade. Isso realça um cenário de
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/01/internacional exigências similares por parte de populações de
/1564674648_241391.html. Acesso em 16 nov. 2020.
países distintos, mas nem sempre com fácil
12
O GLOBO. Número de mortos em protestos no Chile
identificação das lideranças desses movimentos –
chega a 18, incluindo um menino de 4 anos. O Globo. 23
out. 2019. Disponível em visto o descrédito do cidadão nas instituições e
https://oglobo.globo.com/mundo/numero-de-mortos-em-
protestos-no-chile-chega-18-incluindo-um-menino-de-4-
anos-24036443. Acesso em 16 nov. 2020. 14
BARROCAL, André. Economia e Brasil ajudam a explicar
13
UCHÔA, Marcela. Chile: crise no paraíso neoliberal. turbulências na América do Sul. Carta Capital. 28 out.
Público. 25 out. 2019. Disponível em 2019. Disponível em
https://www.publico.pt/2019/10/25/mundo/opiniao/chile https://www.cartacapital.com.br/mundo/economia-e-
-crise-paraiso-neoliberal-1891446. Acesso em 16 nov. brasil-ajudam-a-explicar-turbulencias-na-america-do-sul.
2020. Acesso em 16 nov. 2020.

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partidos. No Brasil, a situação não é Em seu lugar, assumiu o vice Michel Temer, político
dessemelhante. em consonância com a agenda dos grupos
Em 2013, enquanto o mundo vivia uma crise financeiros e políticos neoliberais. O Golpe de
econômica internacional, que também atingiu o 2014 16 , como ficou conhecido o afastamento de
Brasil, muitos brasileiros foram às ruas de capitais Dilma, parece ter dado espaço para maior
do país em protesto ao aumento das tarifas do fragilidade da democracia, mas não é o único
transporte público. As manifestações, que acontecimento que reforça essa assertiva.
começaram de forma esparsa ainda no ano de Em 2017, um ano antes das eleições
2012, aos poucos foram intensificadas e se presidenciais, o juiz Sérgio Moro condenou Luiz
estenderam por 2014 com a soma de mais Inácio Lula da Silva, então líder nas pesquisas para
participantes e de uma diversidade de temas, como presidente da República, a nove anos e seis meses
os gastos na Copa, a corrupção política, a violência de prisão 17 . Acusado de corrupção passiva e
de gênero, a precariedade dos serviços públicos, lavagem de dinheiro, condenado mesmo sem provas
entre outros. Foi, então, em 2014, que a crise da do crime, o ex-presidente Lula se entregou à Polícia
democracia ficou mais fortemente marcada no país. em abril de 2018. No cárcere e impossibilitado de
No mesmo ano, a Operação Lava Jato15 passou a concorrer à presidência, Lula apoiou o ex-prefeito
ser notícia recorrente nos jornais. de São Paulo, Fernando Haddad, nas campanhas
A ampla divulgação da Lava Jato pelos mass eleitorais. Haddad chegou ao segundo turno das
media, com denúncias de corrupções políticas e eleições, porém, foi vencido pelo candidato da
vazamentos de áudio, estimulou ainda mais a ida extrema-direita Jair Bolsonaro.
dos brasileiros às ruas; muitos deles adotaram as Todo esse cenário de rupturas democráticas ao
cores verde e amarela como símbolo de redor do mundo tem encontrado nas ruas da cidade
patriotismo, aversão ao comunismo e à esquerda um palco de reclames e visibilidade. Muitos dos
política. A Operação contribuiu para a impopular- temas deturpados ou silenciados pela grande mídia
ridade da então presidenta reeleita Dilma Rousseff, são externados por agentes sociais que ocupam a
que acabou sofrendo impeachment, em agosto de pólis e inscrevem seus textos nas paredes, postes,
2016, acusada de crime de responsabilidade fiscal.

16
RUFFATO, Luiz. O golpe contra Dilma Rousseff. El País.
15 01 set. 2016. Disponível em
Os procedimentos tomados pela Operação Lava Jato
https://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/31/opinion/1472
foram colocados sob suspeita depois das investigações
650538_750062.html. Acesso em 16 nov. 2020.
lideradas pelo jornalista Glenn Greenwald. Em parceria
17
com jornais de diferentes linhas editoriais, Glenn divulgou Em outro processo, relacionado a recebimento de
conteúdos de interesse público que comprovaram ações propina para a reforma de um sítio em Atibaia, a juíza
da Lava Jato direcionadas a afastar Lula da Presidência da Gabriela Hardt, substituta de Moro, condenou Lula a 12
República. Essas informações foram obtidas por meio de anos e 11 meses de prisão. O Ministério Público Federal
acesso a áudios de diálogos mantidos no aplicativo (MPF) mais tarde reconheceu, contudo, que o sítio não
Telegram, envolvendo partícipes da Operação Lava Jato. pertencia a Lula, e sim ao empresário Fernando Bittar.
Publicados pela equipe de Glenn, os áudios também (REVISTA FÓRUM. MPF reconhece que dono do sítio de
comprovaram, entre outras coisas, a troca de informações Atibaia é Fernando Bittar e autoriza venda do imóvel.
confidenciais entre procurador e juiz do processo (Deltan Revista Fórum. 27 mai. 2019. Disponível em
Dallagnol e Sérgio Moro) e a proteção de determinados https://revistaforum.com.br/politica/mpf-reconhece-que-
correligionários políticos, que foram poupados de dono-do-sitio-de-atibaia-e-fernando-bittar-e-autoriza-
investigações de corrupção. venda-do-imovel. Acesso em 16 nov. 2020).

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calçadas. Esses textos, com diversas formas e seria não apenas um lugar de concentração de
formatos, podem constituir uma comunicação, uma produtos artísticos, mas ela mesma uma obra de
mídia em mãos de marginalizados sociais arte em si. Essa possibilidade de observá-la como
(BELTRÃO, 2001), os quais usam o espaço citadino um artefato, porém, é, segundo Barros (2011),
para ecoar a sua voz, poesia, arte, indignação. contestada pelo arqueólogo Gordon Childe, que
Muito além da verticalidade do concreto, é também observa o espaço urbano como um sistema, e não
a cidade o lugar de exposição, sedimentação e simplesmente como um artefato arquitetônico.
questionamento dos pensamentos individual e Ao aprofundar a discussão sobre os tipos de
coletivo. sistemas, D‘Assunção Barros (2011) destaca três
SOBRE A CIDADE deles – o circulatório (território de fluxos),
defendido por Walter Isard; o ecológico (habitat
Se nos pedissem para fecharmos os olhos e
natural do homem, o qual cumpre sua função
imaginarmos uma cidade, possivelmente as
dentro do organismo), assimilado pela Escola de
primeiras imagens que nos viriam à mente estariam
Chicago; e o informático (análogo à estrutura de
ligadas à arquitetura urbana – edifícios, casas,
uma árvore, com estruturas sociais isoladas),
ruas, postes, pontes, lojas, indústrias. Essa
contemplado por Christopher Alexander. Esse
arquitetura, porém, talvez estivesse acompanhada
último sistema é questionado por endossar o
de veículos e pessoas em suas trajetórias mais ou
isolamento das estruturas sociais, da interação e
menos aceleradas em direção ao trabalho, à escola,
compartilhamento entre as vizinhanças, o que
à residência. A cidade, contudo, não pode ser
parece ser pouco provável mesmo em ambientes de
vislumbrada somente como área organizativa,
segregação social, hierarquização ou setorização
infraestrutural, de regulação de fluxos,
corporativa.
movimentação de indivíduos e comércios. Ela é
também sítio da construção dos saberes Milton Santos (2006), por sua vez, observa a

resultantes das mediações sociais – aquilo que é cidade como um espaço geográfico, como um

vivido, percebido, também faz parte do espaço conjunto de sistemas de objetos e ações

urbano e da sua memória. Forma e conteúdo intervenientes, retroalimentadas, construídas e

constituem, assim, a pólis enquanto lugar de desconstruídas em instâncias sociais, culturais,

atuação de sujeitos que produzem coisas e econômicas. A cidade pode ser pensada, portanto,
sociabilidades. Esses sujeitos, portanto, não como um sistema composto de vários subsistemas

somente organizam, mas produzem o espaço da interagentes em menor ou maior escala, com níveis

cidade (LEFEBVRE, 1999). distintos de influência que operam em situações e


territórios de integrações e conflitos. Pode ser
O historiador José D‘Assunção Barros (2011),
vislumbrada muito além das suas estruturas
ao trazer um panorama das imagens que constroem
arquitetônicas, semáforos, veículos e sonoridades;
o conhecimento sobre a cidade ao longo do século
além do fluxo de pessoas e mercadorias. Ela é
XX, cita o arquiteto Camilo Sitte como um grande
constituída, também, pela diversidade de textos
incentivador da ―possibilidade de enxergar a
imagéticos, verbais e multimodais, num trânsito de
cidade como obra de arte coletiva, reelaborada
representações que circulam, muitas vezes,
permanentemente tanto pelos seus eternos
despercebidamente diante dos olhos dos transe-
construtores como pelos seus diversos habitantes‖
untes, mas, em outras, provocam sensações, dis-
(BARROS, 2011, p. 193). Nesse sentido, a cidade

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rupturas, inquietações. A cidade é, também, texto. MUROS QUE FALAM
―Um texto que registra as atitudes de uma Em algum momento da existência humana, a
sociedade perante os fatos mais elementares de necessidade de construir algo além dos
sua existência‖ (BARROS, 2011, p. 94). instrumentos de uso diário foi acrescida da
A seus habitantes, e por extensão a seus analistas, vontade de criar imagens. Acredita-se que, na era
uma cidade fala eloquentemente dos critérios de glacial, período em que coletores e caçadores ainda
segregação presentes em sua sociedade através dos viviam em cavernas, o impulso cro-magnon de
múltiplos compartimentos em que se divide, dos seus conceber imagens suplantou a mentalidade
acessos e interditos, da materialização do
neanderthal de somente construir objetos
preconceito e da hierarquia social em espaço. Sua
(SANTOS; SANTOS, 2014). A vontade do homem de
paisagem fala de sua tecnologia, de sua produção
inscrever imageticamente suas inquietações e
material; seus monumentos e seus pontos simbólicos
falam da vida mental dos que nela habitam e vivências nos espaços que habita e passeia,
daqueles que a visitam; seus caminhos e seu trânsito portanto, advém de antes da escrita; os mais
falam das mais diversas atividades que no seu antigos registros artísticos encontrados datam de
interior se produzem; seus mendigos falam da 30.000 a 25.000 a.C. (GUIDON; MARTIN, 2010).
distribuição de sua riqueza ao estender a mão em Não há consenso, contudo, quanto ao surgimento
busca de esmolas. Cada um destes índices remete às exato da primeira pintura rupestre, porém, existe a
letras de um alfabeto que pode ser pacientemente
certeza de que a enorme diversidade de produções
decifrado pelos sociólogos, pelos historiadores,
artísticas em sítios e povos distintos tem uma
pelos urbanistas. A cidade, sem dúvida, pode ser
característica comum: o pragmatismo; ou seja, há
“lida” (BARROS, 2011, p. 202-203).
uma finalidade na arte concebida ao longo dos
Os situacionismos, as pessoas, os monumentos, séculos.
as tecnologias e tantas outras coisas podem ser
Em períodos evolutivos de ampliação da
lidas para decifrar o mosaico sociocultural da
complexidade cultural, percebeu-se que a trans-
cidade. Também os grafites, as pichações e os
missão oral estaria aquém da necessidade
lambes, com suas mensagens carregadas de
sempiterna de registrar pensamentos, comporta-
limitações e potencialidades, podem ser lidos como
mentos, narrativas, lazeres e outras cotidiani-
reflexos de um recorte social, político e econômico.
dades. (GUIDON; MARTIN, 2010). A evolução
Mesmo impregnada de efemeridade, essa
cognitiva do homem impulsionou, portanto, o
comunicação marginal constitui a história da
desenvolvimento e aprimoramento do abstrato. Os
cidade, tecendo ideias que provocam reflexões,
primórdios da iconografia nas paredes remontam,
alegrias, tensões; incita um descompasso estético
destarte, não apenas diários imagéticos que
e/ou analítico no cotidiano da urbe. Com ―técnicas
compõem a rotina das pessoas, mas também
e políticas diferenciadas de acordo com o propósito
recortes de tradições e particularidades de
de cada agente ou grupo em seu tempo e espaço
coletivos e indivíduos, delimitando estilos.
definidos‖ (RAMOS, 2007, p. 1260), esse conteúdo
textual se estabelece no contrafluxo da urbanidade Os estudos da arte rupestre no âmbito da História
da Arte apontam tanto os estilos generalizados,
contemporânea, do planejamento, provocando uma
quanto cada artista, cada obra separada por linhas
intervenção que para uns é cultura, arte, poesia;
mestras estilísticas. A partir do entendimento que
para outros, sujeira, crime, vandalismo.
cada tradição, cada abrigo e paredão pintado com

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seus painéis possuem particularidades realizadas simbolismo, de imaginário, de atividades lúdicas
por seus autores ou „artistas‟, o que se encontra é a (LEFEBVRE, 2001, p. 105).
variedade. [...] A evolução na forma de apresen-
No trecho citado, Lefebvre faz alusão às
tação indica as diferenças culturais e cronológicas,
necessidades do cidadão em relação ao espaço da
presentes ao longo de toda história, sem esquecer a
subjetividade de cada indivíduo (PEREIRA, 2011, p. cidade; de não apenas realizar trabalho e constru-
26). ção, mas também de deixar uma marca criadora no
campo do imaginário, do simbolismo. Na cidade, os
Se transpusermos este cenário dos traços nas
muros, que demarcam territórios, funcionam
paredes para a atualidade do grafite, do lambe e da
também como mídia, como espaço sígnico para
pichação, podemos sugerir que esses se asseme-
textos expostos aos seus transeuntes. Acreditamos
lham à arte rupestre; visto que ambos se consti-
que em período de rupturas democráticas, como o
tuem como fenômenos socioculturais que intentam
atualmente vivido, com crescimento da extrema
firmar, esteticamente, tudo aquilo que é conside-
direita no Brasil e no mundo, essas mensagens
rado importante para quem os registra. Trata-se
sirvam como discursos indicadores de dissidências
de universos iconográficos e socialmente simbó-
e conflitos por vezes ocultados pelos meios de
licos, que representam ―o testemunho de um
comunicação de massa.
determinado modus vivendi (forma de vida) e de um
No Projeto de Pesquisa Muros Que Falam,
peculiar modus operandi (forma de fazer).‖ (ENDO,
buscamos a compreensão sociológica e noticiosa
2009, p. 04). Nesse sentido, as necessidades de
dessas manifestações em períodos de crise política
registro, enquanto necessidades sociais, se
e rupturas democráticas, na observação da cidade
efetivam como antropológicas.
como organismo vivo, pulsante e comunicante. Um
As necessidades sociais têm um fundamento
dos principais procedimentos metodológicos que
antropológico; opostas e complementares, com-
utilizamos é a publicação de fotografia da mensa-
preendem a necessidade de segurança e de
gem capturada no espaço urbano, acompanhada de
abertura, a necessidade de certeza e a necessidade
de aventura, a da organização do trabalho e a do crédito do autor, local da captura e legenda com
jogo, as necessidades de previsibilidade e do análise noticiosa. Boa parte destas mensagens,
imprevisto, de unidade e de diferença, de isolamento divulgadas simultaneamente no Instagram e
e de encontro, de trocas e de investimentos, de inde- Facebook, têm extensão no story, por onde são
pendência (e mesmo de solidão) e de comunicação, lançadas pesquisas de opinião, enquetes e outras
de imediaticidade e de perspectiva a longo prazo. O
formas de interação com o tema em questão.
ser humano tem também a necessidade de acumular
Reuniões periódicas para discussão teórica e
energias e a necessidade de reunir essas percepções
planejamento de ações práticas também são
num „mundo‟. A essas necessidades antropológicas
executadas com os discentes pesquisadores.
socialmente elaboradas (isto é, ora separadas, ora
reunidas, aqui comprimidas e ali hipertrofiadas) Em Mossoró, nosso primeiro campo de imersão
acrescentam-se necessidades específicas, que não etnográfica, as mensagens mais recorrentes
satisfazem os equipamentos comerciais e culturais encontradas até então se apresentam em forma de
que são mais ou menos parcimoniosamente levados pichação e grafite. Esses dois tipos de
em consideração pelos urbanistas. Trata-se da
manifestações estão teoricamente alicerçados no
necessidade de uma atividade criadora, de obra (e
campo de estudo da folkcomunicação (BELTRÃO,
não apenas de produtos e de bens materiais
2001), teoria que pesquisa a cultura popular como
consumíveis), necessidades de informação, de

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meio de comunicação dos socialmente ―Lula, ladrão‖. Maior parte destas fotografias
marginalizados. Os agentes dessa comunicação estão dispostas no Instagram do projeto.
normalmente criam sua própria mídia para difusão A postagem de maior repercussão foi um texto
de ideias ou mesmo ressignificação das mensagens registrado na parede da própria UERN: ―+Amor‖,
lançadas pelos mass media, a qual, muitas vezes, que alcançou 7.146 pessoas. Maioria das
divulga tais agentes de modo estereotipado ou publicações alcançaram mais de 300 usuários cada
mesmo os invisibiliza na grade de programação. uma. Não somente questões políticas foram bem
Acreditamos que o Projeto Muros Que Falam dá curtidas. Frases como ―Desaprenda, a vida é sua‖,
visibilidade às mensagens desses agentes, grafadas ―Vamos falar sobre o tempo?‖, ―Minha voz é
na cidade como poesia, grito, arte. A discussão canção que não morre no ar‖ e ―Seja você o amor
sobre a criminalização do pixo e do grafite não é da sua vida‖ também demonstraram apreço
levantada, contudo, pois procuramos estabelecer popular. Paralelas a elas, questões de afirmação
uma análise sob a sociologia da comunicação, em identitária se apresentaram como debates
sua abordagem noticiosa. Cabe dizer, todavia, que necessários em frases como ―Pretos e pretas estão
as pichações não são grafadas para agradar os se amando‖; ―Jesus, crush das LGBTQ+‖ e
olhares, ―não podemos ‗gostar‘ nem ‗não gostar‘, ―Mulheres em luta‖.
basicamente porque elas não se propõem a ser um O consumismo e o uso de agrotóxicos também
objeto do gosto‖ (OLIVEIRA, 2017). Essa é uma estiveram presentes nos muros. A pergunta ―Você
discussão que certamente divide opiniões; porém, precisa de tudo o que compra?‖ foi o pixo
tanto o pixo quanto o grafite se circunscrevem capturado na parede externa da Loja Riachuelo;
como mídia marginal que, historicamente, é enquanto uma bruxa dando uma maçã envenenada
grafada no espaço urbano como voz daqueles à Branca de Neve foi o desenho registrado no muro
alijados de participação ou representação positiva do Colégio Estadual Eliseu Viana. Na ilustração, a
nos espaços institucionais de poder. bruxa diz: ―Dessa vez, ela não escapa, é com
Uma das fotografias enviadas pelo seguidor agrotóxico!‖.
João Portela, capturada em Brasília, afirma o Entre as dificuldades enfrentadas durante a
caráter midiático dos muros para os populares; execução do plano de trabalho do projeto, podemos
nela, é possível ler: ―parede branca, povo mudo!‖. citar a ausência de tempo e de bolsas para os
No período atual de crescimento da extrema direita discentes integrantes, que trabalham voluntaria-
no Brasil e no mundo, as paredes da cidade mente. A ausência de transporte, para maior
também trazem protestos a favor da democracia e circulação na cidade e registro das mensagens nos
contra o golpe político. Em Mossoró, foram bairros mais distantes do centro urbano, pode
registrados textos como ―-64, +69‖, no Memorial também ser mencionada como um empecilho. A
da Resistência; ―Levante resista, lute pelos seus característica inovadora do projeto – o primeiro a
direitos‖, ―Desobedeça‖ e ―Força, companheirxs!‖ ser realizado em Mossoró, com tangibilidade à
no Parque Municipal Maurício de Oliveira; ―Moro, pesquisa da comunicação dos muros da cidade sob
juiz do golpe‖, ―Globo golpista‖ na Avenida olhar sociológico e noticioso – gerou alguma
Presidente Dutra; ―Lula inocente‖ e ―Fora, Temer dificuldade na consolidação dos procedimentos
golpista‖ no centro do município. Em contrapartida, metodológicos, visto a lacuna de bibliografias
também no centro da cidade, pôde-se ler num muro próximas de referência. Tal lacuna, todavia, tem

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sido preenchida com debates com a equipe de efetiva na luta pela democracia.
pesquisa, imersões etnográficas e ajustes ao longo
REFERÊNCIAS
do trabalho.
BARROS, José D‘Assunção. As imagens da cidade e
CONSIDERAÇÕES FINAIS os saberes urbanos. Politeia: História e Sociedade,
Partimos do pressuposto de que o ato de se Vitória da Conquista, v. 11, n. 1, p. 187-208, 2011.
comunicar e suas funções, ampliadas e BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: um estudo dos
complexibilizadas ao longo dos séculos, têm na agentes e dos meios populares de informação de
linguagem seu instrumento basilar para apreensão fatos e expressões de ideias. Porto Alegre:
e ressignificação das coisas do mundo. Das micro EDIPUCRS, 2001.
às macrorrelações sociais, das efemeridades às
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes
interações mais perenes, a linguagem semantiza o
necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e
―tornar comum‖ e não pode ser analisada apartada
Terra, 2011.
da sua conjuntura social, política, econômica; o que
GUIDON, Niède; MARTIN, Gabriela. Arte global
justifica a análise do ponto de vista dialético.
num único destino: a sobrevivência. In: Anais do
Nossa pesquisa, contudo, não entra na seara de
Global Rock Art, 2009. São Raimundo Nonato-PI,
estabelecer distinções entre pichação e grafite, por
2010.
exemplo. Buscamos um percurso de aproximação
HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo.
semasiológica, na tentativa de perscrutar o
v.1. Racionalidade da ação e racionalização social.
discurso dessa comunicação marginal no contexto
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
da cidade; compreendendo essa como um espaço
organizativo, estético, social e político; de LEFEBVRE, Henri. Para uma estratégia urbana. In:

apropriação e ressignificação da paisagem; de LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte:

transitoriedade e intervenções individuais e Ed. UFMG, 1999.

coletivas. LEFEBVRE, Henri. Sobre a forma urbana. In:

Enquanto organismo vivo, a cidade – ora gerida LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo:

por coletivos, ora gerindo a vida coletiva – vai se Centauro, 2001.

estabelecendo como lugar da administração, da OLIVEIRA, Rodrigo Cássio de. Grafite e pichação
moradia e do trabalho, mas também da produção são formas de arte? Estadão, São Paulo, 03 fev.
de mitos e ritos, como galeria, como livro aberto, 2017. Estado da Arte. Disponível em:
como território de reinvenção do cotidiano. https://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-
Enquanto livro aberto, ela mesma conta a sua daarte/grafite-e-pichacao-sao-formas-de-arte/.
história transpassada na arquitetura das ruas e Acesso em 16 nov. 2020.
casarios; na mobilidade dos seus cidadãos; na PEREIRA, Thiago. Panorama da arte rupestre
efemeridade ou permanência das suas obras e brasileira: o debate interdisciplinar. Revista de
diálogos; e nos escritos deixados nos muros como História da Arte e Arqueologia. Campinas-SP:
berro, informação, poesia ou agressão, como Unicamp, ano 11, n. 16, p. 21-38, jul./dez. 2011.
expressão comunicativa incitante da percepção de Disponível em: http://migre.me/wqa4o. Acesso em:
quem por ela passa. Essas expressões, em tempo de 16 nov. 2020.
cerceamento de liberdades, fazem gritar os SANTOS, Felipe Caetano dos; SANTOS, Juvandi de
silenciamentos, consubstanciando-se como voz

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Souza. Surgimento da arte pré-histórica e o seu Acesso em: 16 nov. 2020.
desenvolvimento artístico. Revista Tarairiu. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e
Campina Grande-PB, ano V, v. 1, n. 8, p. 43-50, tempo, razão e emoção. 4 ed. São Paulo: EDUSP,
ago. 2014. Disponível em: http://migre.me/wtqbz. 2006. Ebook. (Col. Milton Santos; v. 1).

Júnia Mara Dias Martins

Professora do Departamento de Comunicação da Universidade do Estado do Rio Grande do


Norte (UERN). Mestra em Comunicação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Especialista em Leitura pela Universidade do Sudoeste da Bahia (UESB).

E-Mail: juniamartins@uern.br
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8580-7430

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REFLEXÕES SOBRE A PESQUISA CIENTÍFICA FEMININA:
DESAFIOS EM TEMPOS DE PANDEMIA
REFLECTIONS ON FEMALE SCIENTIFIC RESEARCH: CHALLENGES IN
PANDEMIC TIMES

Maria Eduarda Pereira Leite

Recebido em: 10.12.2020


Aprovado em: 15.12.2020

RESUMO:

Neste pequeno ensaio busco refletir sobre a complexidade de se fazer pesquisa em tempos de
pandemia, a partir de minha experiência enquanto pesquisadora mulher. O coronavírus trouxe
dificuldades novas e passados mais de oito meses desde o início da pandemia, nós,
pesquisadoras (e pesquisadores) precisamos nos reinventar para manter a pesquisa ativa, ligada
à realidade e atenta aos acontecimentos. Dessa forma, abordo neste ensaio questões sobre o
processo criativo da escrita acadêmica a fim de identificar alguns imaginários socialmente
compartilhados sobre que é escrever academicamente. O objetivo é mostrar que os bastidores
que envolvem o ato de fazer ciência são uma importante fonte de conhecimento para o
aprimoramento de uma escrita reflexiva, capaz de fomentar qualidade à pesquisa acadêmica.

Palavras-chave: pandemia; pesquisa; gênero; escrita.

ABSTRACT:

In this essay I seek to reflect on the complexity of doing research in times of pandemic, from my
experience as a woman researcher. The coronavirus brought new difficulties and more than
eight months after the beginning of the pandemic, we researchers (and researchers) need to
reinvent ourselves to keep the research active, linked to reality and attentive to events. Thus, I
address in this essay questions about the creative process of academic writing in order to
identify some socially shared imaginings about what it is like to write academically. The objective
is to show that the backstage surrounding the act of doing science is an important source of
knowledge for the improvement of reflexive writing, capable of fostering quality in academic
research.

Keywords: pandemic; research; gender; writing.

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INTRODUÇÃO Tais imaginários também atuam na construção de
epistemologias e direcionam a experiência da
A pandemia do coronavírus trouxe uma escrita.
realidade bastante diferente para a minha O objetivo, com isso, é mostrar que as
trajetória enquanto pesquisadora, assim como para dificuldades com a escrita é um problema social do
qualquer um a que se dedique à carreira acadêmica. contexto acadêmico, e não apenas um problema
Passados mais de oito meses do fechamento das individual. Bourdieu (2001), também aponta nessa
salas de aula e laboratórios da universidade onde perspectiva: ―Nada é mais universal e universalizá-
faço meu curso de pós-graduação, assim como nas vel do que as dificuldades. Cada um achará certa
universidades de todo país, foi preciso se reinven- consolação no fato de descobrir que grande
tar e adquirir um novo olhar para a continuidade número das dificuldades imputadas em especial à
da pesquisa científica. Mas, mesmo diante das sua falta de habilidade ou à sua incompetência são
complicações, a produção científica manteve-se universalmente partilhadas‖ (p. 18). Dessa forma,
ativa, com a participação em eventos e encontros os bastidores que envolvem o ato de escrever uma
em plataformas virtuais, tudo de acordo à nova tese são uma importante fonte de conhecimento
realidade e acontecimentos. para o aprimoramento de uma escrita reflexiva,
O fazer ciência a partir da escrita de uma tese capaz de fomentar qualidade à pesquisa científica.
de doutorado, é um processo complexo, que LER, ESCREVER E FAZER PESQUISA EM TEMPOS DE
envolve horas de dedicação e exige de nós, PANDEMIA
pesquisadoras e pesquisadores, habilidades com a
A pesquisa cientifica, através da construção de
leitura e escrita que não são naturais. Antes de
um texto acadêmico, reflete não somente nossas
tudo, são habilidades que exige muita disciplina,
influências teóricas, mas, antes de tudo, é um meio
esforço braçal e emocional, noites mal dormidas,
de expressão, é uma construção de conhecimento,
horas meditando em frente às páginas em branco
permeado por desigualdades presentes nessa
da tela do computador, muitas dúvidas, momentos
construção.
de insegurança, leitura e releitura, escrita e
Diversas pesquisas científicas (CASTRO e
reescrita.
CHAGURI, 2020; BARRADAS, 2020; GARCIA, 2020)
E o fazer ciência em tempos de pandemia
relatam o quanto a pandemia do coronavírus tem
precisou se reinventar, recomeçar, buscar novas
afetado a produção científica de quem depende de
metodologias, olhar a pesquisa por um outro viés,
recursos públicos para produzir e, no caso nas
reaprender a ler e escrever o que se descobriu.
mulheres, o impacto foi brutal. Se já era desigual
Com isso, escrever uma tese de doutorado não é
antes, só piorou com o home office, aulas à
algo que se faz da noite para o dia. E produzi-la em
distância e isolamento social, uma vez que muitas
tempos de pandemia é ainda mais desafiador.
mulheres precisam dar conta não só da pesquisa
Sendo assim, a proposta deste pequeno ensaio científica, mas dos filhos, das refeições, da limpeza
é refletir sobre o processo de doutoramento em da casa, das angústias provocadas por falta de
tempos de pandemia, abordando questões sobre o apoio, como também, não raro, de idoso ou doentes.
processo criativo da escrita acadêmica a fim de
Começo então usando o meu próprio processo
identificar alguns imaginários socialmente compar-
de construção da escrita acadêmica para refletir
tilhados a cerca do que é escrever academicamente.
sobre as minhas inquietações de fazer ciência. É

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fácil dizer que para escrever é só abrir o escrita. No entanto, apesar de concordar com a
computador e começar a colocar as palavras na autora, é preciso entender que o ato de ler não
tela em branco. No entanto, é só iniciar esse pode se resumir ao simples ato de decodificar
movimento que o primeiro obstáculo não demora a mecanicamente as palavras (FREIRE, 1996).
aparecer. No meu caso, tem todo um ritual que Muitas vezes, principalmente durante a
antecede. Primeiro escolho um dia, um horário e graduação, com a compreensão errônea do que
um local. Se a escolha for estudar em casa, ao significava o ato de ler, eu me vi as voltas para
invés de ir estudar na biblioteca, então preciso cumprir as extensas bibliografias do curso de
acordar cedo, preparar o café da manhã, arrumar o ciências sociais, que foram mais ‗devoradas‘ do que
quarto, varrer a casa, lavar a louça, alimentar a realmente estudadas. Com o tempo, em nome da
gata e limpar a caixa de areia, preparar uma xícara minha formação acadêmica, precisei superar as
de café, e, só então, me sento em frente ao leituras mecânicas, criando uma disciplina
computador para tentar começar a escrever. intelectual (no sentido do exercício rotineiro,
Mas, mesmo depois de todo esse ritual, quando organizado e contínuo), buscando ler seriamente,
eu fico em frente à tela em branco, vem o primeiro sempre na intenção de entender aquilo de que o
obstáculo: por onde começar a escrever? Howard texto fala.
Becker (2015) diz que existem muitas maneiras de Porque uma escrita fluida, clara, organizada,
se escrever sobre um assunto, mas que só com uma ideia bem desenvolvida e bem estruturada,
encontramos a nossa maneira de dizer o que que- em geral, parte de uma boa experiência de leitura.
remos quando começamos a escrever o que muitas Então, parte do meu trabalho de escrita também é
vezes se inicia na desordem e no desconforto de ler e analisar como foram estruturados os argu-
não saber de que modo escrever, como pesquisar e mentos daqueles trabalhos que eu achei mais bem
como articular as ideias no texto. escritos.
Para mim é importante começar fazendo um A partir daí, seleciono as sessões e subseções e
levantamento sobre o assunto que preciso escrever. copio as idéias principais para entender a
Se a temática é ―escrita acadêmica‖, então começo elaboração da lógica do argumento. Essa primeira
pesquisando trabalhos que foram publicados sobre parte da escrita é uma tentativa de colocar
o tema, para entender ―o que‖ e ―como‖ as pesqui- transformar as ideias que estão na minha cabeça
sadoras e pesquisadores desse campo de estudo em palavras. Para este trabalho, por exemplo, nem
abordam o assunto. Por isso, para escrever, eu tudo o que eu escrevi na primeira versão, está
começo lendo, não só para ficar por dentro do agora na versão que entrego. No início, tudo que eu
debate do campo de estudo, mas porque a leitura escrevi era muito confuso, redundante e não
também é importante para que eu possa entender e dialogava com a bibliografia prévia que deveria
me apropriar mais ainda do estilo específico da aparecer no texto.
escrita acadêmica.
Mas uma lição que eu tiro disso é a prática do
Eloísa Mártin (2018) diz que no mundo das desapego. Se não está bom, descarto e reescrevo,
ciências sociais se passa muito mais tempo lendo refino as idéias em relação aos diálogos com a
do que escrevendo e todo esse tempo dedicado à bibliografia, lendo e reescrevendo repetidamente,
leitura faz com que nós, cientistas sociais, porque muitas vezes a ideia surge nesse momento
tenhamos algum conhecimento do que é uma boa de reescrita. Esse texto mesmo, que está sendo

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entregue, foi escrito/reescrito muitas vezes. As ção do mundo perante o sujeito, que supera o me-
primeiras versões foram completamente descarta- do, e se apropria de um discurso explicativo do
das, de modo intencional ou não, pois reescrevi mundo (SANTOS e ECKSTEIN, 2012).
tantas vezes, que quando percebi o texto já nem se A análise que os autores frankfutianos fazem, é
parecia mais com a ideia inicial. que a ciência descumpre sua promessa original, de
Então o meu processo inicial de construção do emancipação da humanidade. Pois, enquanto na
texto é assim, um misto de sentimentos como narrativa mítica o poder estava nas mãos do
insegurança, baixa confiança, vergonha das inter- narrador mítico ou do poeta, na linguagem cientí-
mináveis correções e reescritas, porque acho que o fica, parece que o poder é naturalmente daquele
texto nunca está bom o suficiente. E tudo só piora portador do discurso neutro e imparcial. Essa
quando lembro que na academia, a escrita deve ser imparcialidade conduz a uma aceitação e coerção
uma prática racional, neutra e objetiva para ser social de todos na comunhão irrestrita do discurso
científica. E, caso expresse alguma emoção, que científico (SANTOS e ECKSTEIN, 2012).
seja positiva e potente para a ciência, como a A interpretação que se pode chegar com essa
emoção da descoberta, da segurança e do fazer análise do conceito de esclarecimento, é que aquele
produtivo (REZENDE e SALLAS, 2019). que tem o poder de informar seus juízos e ainda
Essa pretensa neutralidade e objetividade dizer que seu discurso é neutro, objetivo e tem
científica são discutidas a partir do conceito de métodos claros (mas que são estabelecidos por ele
esclarecimento, presente na obra Dialética do mesmo).
esclarecimento, de Theodor Adorno e Max Hork- Com isso, pensando na cultura acadêmica, com
heimer (1985). Os pensadores da Escola de suas regras e modelos do fazer científico, criados
Frankfurt iniciam a obra apresentando o conceito e por homens brancos, da alta classe dos traba-
a função do esclarecimento no pensamento ociden- lhadores intelectuais, de países que já sabemos
tal no processo de transição das narrativas míticas quais, é impossível pensar a ciência e a técnica
até a consolidação do discurso científico. dissociada da sociedade capitalista, que tem como
Os autores mostram que o poder promovido maior objetivo ampliar a produção de riqueza.
pelo conhecimento desencanta o mundo, desmis- Assim, essa perspectiva, que diz que eu deveria
tifica-o e o torna cada vez mais distante e objetivo afastar minha vida pessoal e emocional para
da realidade humana. Essa distância também é demonstrar profissionalismo e evitar julgamentos,
responsável por manter a neutralidade e obje- também me nega uma escrita pessoal, emotiva, de
tividade do conhecimento, pois dessacraliza a experiências subjetivas. Por isso, é preciso por em
natureza, que se torna conhecida de dominável questão o próprio método de fazer ciência começar
tecnicamente. a questionar para quem estou escrevendo e
O discurso da neutralidade e da objetividade pesquisando? A quem interessa minha escrita?
científica em relação ao seu objeto só é possível É possível usar o conceito de configuração de
devido ao próprio método científico, que se dá Norbert Elias para começar a pensar sobre essas
através do distanciamento entre o pesquisador e o questões. Através de uma interpretação da teoria
objeto, pois isso assegura a veracidade e a lisura eliasiana, pode-se dizer que a constituição da
nos processos de pesquisa científica. Esse dis- ciência resulta das diferentes configurações nas
tanciamento metodológico homologa a subordina- quais ela está imersa. Isso significa dizer que os

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indivíduos produtores da ciência, não seres abs- pois as emoções, além de muitas vezes serem
tratos ou essencialmente intelectuais, mas são aquilo que define nosso interesse em conhecer (de
seres sociais, com suas identidades profissionais, conhecer uma coisa e não outra, ou seja, de
imersos em uma vida grupal na qual partilham uma selecionar o objeto a partir do que é significativo
cultura, derivando seus conhecimentos, valores e para nós) é a fonte de nossa percepção, também
atitudes dessas relações, com base nas podem servir como ―teste‖ ou confirmação do
representações constituídas nesse processo que é, processo de elaboração do conhecimento.
ao mesmo tempo, social e intersubjetivo, pois as Tendo em vista a perspectiva dessas duas
possíveis singularidades individuais estão sempre autoras, é possível chegar a uma síntese do meu
enraizadas nas figurações sociais e vice-versa raciocínio até aqui: há uma cultura escrita
(LEÃO, 2007; GATTI, 2013). dominante que participa do imaginário produzindo
Norbert Elias (1994) também desenvolve sua saberes que precisa ser questionada, pois a escrita
reflexão analisando que os indivíduos, ao mesmo não é mera transmissão de conhecimento, mas
tempo em que modelam a sociedade, modelam-se a também parte criadora das ideias e, portanto, a
si próprios. Os empreendimentos individuais não sua estética também faz parte da construção do
ocorrem num vazio de determinações sociais, mas a conhecimento.
partir de eventos mais amplos, sejam sociais, Com isso, refletir sobre a prática da escrita
políticos, econômicos ou culturais. E a interação acadêmica é possibilitar a compreensão tanto da
desses fatores molda suas concepções que, por sua constituição dessa ―forma consagrada‖ do escrever
vez, são estruturalmente delimitadas pela maneira acadêmico, quanto de pensar uma nova forma de
que as pessoas se veem, como estruturam suas fazer ciência, que tenha consciência e faça uma
representações, como se descrevem como veem os revisão estrutural da construção epistemológica,
outros e a sociedade à qual pertencem. ou seja, de como se produz o conhecimento.
Dessa forma, refletindo sobre o processo de Por isso, é necessário propor novas formas de
construção da ciência, é preciso pensar outra escrever e se inscrever no texto acadêmico. Como
forma para a escrita acadêmica que se possa falar inspiração, trago a escritora Carolina Maria de
sobre a realidade identificando esta tensão entre Jesus, que certamente ilustra com maestria o
indivíduo e sociedade. Afinal de contas, a escrita ponto desta discussão. Catadora de lixo, moradora
não é uma mera transmissão de conhecimento, mas da favela do Canindé, mãe solteira de três filhos de
é parte criadora de idéias e teorias, portanto, a sua pais diferentes, ela acreditou em um sonho: a
estética, é constituinte de epistemologias escrita. Mas o que escreveria uma mulher negra,
(RESENDE, 2019). pobre, semi-analfabeta senão sua própria história?
Camila Resende (2019), a partir de Miriran O que ela buscava com sua escrita? Optou por
Adelman (2016), diz que há duas formas de narrar sua luta diária e quase infinita nas páginas
conhecer o mundo: primeiro o mundo privilegiado de um diário.
pela ciência positivista e pela epistemologia A obra Quarto do despejo: diário de uma
convencionais, a qual traça uma linha divisória favelada (2019) já foi traduzido para diversas
rígida entre razão e emoção; e a segunda forma, no línguas e já está em sua décima edição, e é
qual o conhecimento e o sentimento não são vistos perceptível como a autora revela a força da sua voz,
como opostos no processo de apreensão do mundo, em todos os sentidos: étnico, social e de gênero,

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rompendo com as barreiras sociais e chamando a exploração e de opressões.
atenção do público para a realidade das favelas
CONSIDERAÇÕES FINAIS
brasileiras.
Este ensaio buscou relacionar as experiências
Com sua escrita ácida, Carolina encontrou
pessoais da pesquisadora no fazer ciência em um
muito mais do que uma forma de expressão. Sua
contexto de pandemia. O relato dessas experiên-
obra também é vista como uma importante fonte de
cias teve o objetivo desvendar as muitas relações
crítica social e consciência política e, portanto, de
que envolvem o fazer científico, que é sempre
produção de conhecimento. Deixando claro com
apresentado em uma forma pronta e acabada
isso de que a ciência também deve ser uma ―prática
escondendo muitas desigualdades, como as de
social de conhecimento, uma tarefa que se vai
gênero.
cumprindo em diálogo com o mundo e que é, afinal,
Em qualquer tempo se sabe que as mulheres
fundada nas vicissitudes, nas opressões e nas lutas
cientistas são empurradas para o universo do
que o compõem‖ (SANTOS, 1989, p. 13)
conhecimento científico em um contexto marcado
Por essa e tantas outras problematizações que
por desconfianças ou condescendências. E em
ocorrem nos bastidores do doutorado, fazer ciência
tempos de pandemia essas dificuldades se fazem
não tem sido trabalho fácil. Afinal, não se trata
ainda mais presentes na dificuldade de encontrar
apenas de eleger um tipo ideal de teoria, de sujeito,
tempo e espaço para pesquisar.
e de escrita, pois, as minhas escolhas de abor-
Tais dificuldades serão apenas superadas na
dagem não apagam tantas outras infinitas
medida em que noções de mérito e produtividade
possibilidades de caminho. Se trata, antes de tudo,
sejam baseadas no reconhecimento das injustiças
de se tornar uma pesquisadora ativa, criadora do
de gênero, assim como daquelas baseadas em raça
meu próprio discurso.
e sexualidade sobre as quais a produção científica
Por isso que em tempos de pandemia, para
se assenta. Para tanto, concordando com Castro e
continuar produzindo é preciso encontrar formas
Chaguri (2020), é necessária uma política científica
de se adaptar. Em um cenário de sobrecarga para a
feminista, onde as mulheres cientistas não sejam
mulher, com crianças em casa integralmente, sem
lembradas apenas como as pioneiras que estiveram
escola, sem uma total rede de apoio familiar, a
à frente de seu tempo, mas que existam
teoria da reprodução social explica principalmente
intelectualmente em seu tempo presente, a partir
o modo pelo qual a sociedade capitalista organiza o
de uma escrita acadêmica produtora de um
trabalho e como essa organização sobrepesa de
discurso social que se faça ativo.
forma diferenciada certos grupos de pessoas, de
acordo com seus marcadores sociais de gênero ou REFERÊNCIAS
raça, por exemplo. ADORNO, T. HORKHEIMER, M. Dialética do
Desse modo, conforme Castro e Chaguri (2020), esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução
para que a pesquisa científica feminina, no de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro:
contexto da pandemia, encontre menos barreiras, Zahar, 1985.
não basta enfrentar as desigualdades de gênero APPLE, Michael. A educação pode mudar a
somente no ambiente doméstico e de trabalho, é sociedade?. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
necessário que se questione o modelo de BARRADAS, Mirian Socal. Pesquisa da UFRGS
acumulação que alimenta essa cadeia de revela impacto das desigualdades de gênero e

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raça no mundo acadêmico durante a pandemia. GATTI, Bernadete A. Formação continuada de
Published 23 de julho de 2020 · Disponível em: professores: a questão psicossocial. Cadernos de
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v.13
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Maria Eduarda Pereira Leite

Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS/UFPB). Membro do Grupo de


Estudos e Pesquisa em Sociologia Política (GRESP/UFPB). Bolsista CAPES.

E-Mail: mariamepleihte@gmail.com

Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6222-9490

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PODER E VIOLÊNCIA EM MICHEL FOUCAULT E HANNAH
ARENDT: BREVES REFLEXÕES
POWER AND VIOLENCE IN MICHEL FOUCAULT AND HANNAH
ARENDT: BRIEF REFLECTIONS

Betânia Maria Barros Feitoza

Recebido em: 10.12.2020


Aprovado em: 15.12.2020

RESUMO

O presente artigo tem a pretensão de fazer uma breve e sucinta discussão acerca da ideia de
poder e violência a partir da análise de algumas das obras de Michel Foucault e Hannah Arendt,
buscando entender de que forma estes dois autores abordaram estes fenômenos, bem como suas
contribuições para a compreensão nos dias atuais de tão importante temática.

Palavras-chave: poder; violência; política.

ABSTRACT

The present article aims to make a brief and succinct discussion of the idea of power and
violence from the analysis of some works of Michel Foucault and Arendt, trying to understand
how these two authors addressed these phenomena as well as their contributions to understand
nowadays so important subject.

Keywords: power; violence; policy.

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empregada foi de cunho eminentemente
INTRODUÇÃO bibliográfico.

Na tradição do pensamento ocidental, durante PODER E VIOLÊNCIA: NOTAS CONCEITUAIS


muito tempo o poder esteve associado à violência, HANNAH ARENDT
o que acabou por emprestar-lhe um caráter de O ensaio político Sobre a Violência escrito por
naturalidade, de algo que é comum, corriqueiro e Hannah Arendt foi reflexo do momento histórico
até exigível a depender da necessidade. Autores vivido pela autora, razão pela qual o entendimento,
como Michel Foucault e Hannah Arendt romperam ou melhor, a compreensão de fatos históricos
com essa tradição do pensamento clássico importantes que marcaram o século XX deve muito
ocidental ao fazerem uma análise do poder, ou ao pensamento desta filósofa. Alguns dos
melhor dizendo, das relações de poder, permitindo acontecimentos que se desenrolaram ao longo
sua compreensão para além da noção tão em voga daquele século e foram peças fundamentais das
de poder enquanto sinônimo de violência, análises feitas por Arendt, foram entre outros: a
dominação e repressão. Ao romperem com este emergência do totalitarismo, do nazi-fascismo, a
pensamento, eles contribuíram com a Segunda Guerra Mundial e com ela a
desconstrução da ideia de que o poder é um ente instrumentalização da violência. Ela traça um mapa
que paira sobre todos, que pode ser identificado à do percurso que levou ao tempo moderno,
figura de um ser, um soberano que encarnaria o experiências do passado lhe serviram de bússola
próprio poder. para pensar o futuro, talvez a forma possível de
Porém, ainda hoje quando se pensa no poder, pensar a violência que se apresentava até então
logo aparece a sombra da violência, razão pela qual como forma de exercício do poder, comumente
discussões que tragam autores que pensaram o confundido com ele. Na tentativa de lançar luzes
poder e a violência sob outro ângulo devem ser sobre questões relacionadas ao poder, acaba
promovidas. Deste modo, este artigo traz de forma tratando sobre a violência nos governos. A teoria
breve e sucinta uma discussão a respeito da ideia política de Hannah Arendt a coloca enquanto
de poder e violência a partir de algumas das obras autora que como poucos se destacaram no cenário
de Michel Foucault e de Hannah Arendt, de modo a político contemporâneo, justamente por pensar o
tentar compreender a visão desses dois autores poder por outro viés que não aquele do qual os
acerca desses fenômenos e suas contribuições para clássicos eram a fonte, como por exemplo, os que
a desmistificação do poder enquanto apenas seguiram a tradição hobbesiana.
dominação, repressão e violência, como se o Hannah Arendt propôs críticas a algumas ideias
enquadramento deste fenômeno pudesse ser assim consagradas pelo pensamento político ocidental
tão reducionista e ignorar seus múltiplos aspectos, que versavam, entre outras coisas, sobre os
características e formas de manifestação. Ambos conceitos de categorias como poder e violência.
os autores, a sua maneira, tentaram retirar o véu Visando compreender os acontecimentos políticos
que cobria o fenômeno do poder, bem como que estavam então em curso, ela propôs a distinção
buscaram fazer o distanciamento entre poder e entre essas categorias, indo, portanto, na
violência, operando assim uma ruptura com uma contramão do pensamento dominante e de toda
ideia já bastante enraizada que identificava e uma tradição do pensamento político ocidental
reduzia o poder à violência. A metodologia para o qual a violência é uma flagrante

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manifestação de poder, sendo o poder político a arma emerge o comando mais efetivo, resultando
encarnação deste papel. na mais perfeita e instantânea obediência. O que
De acordo com Hannah Arendt, a violência foi nunca emergirá daí é o poder‖ (2001, p.42).
durante algum tempo fenômeno quase que Ela destaca o caráter instrumental da violência
ignorado, não obstante estar sempre presente. A que ao contrário do poder não necessitaria de
respeito disso ela pontua que: números (2001, p. 26). Ou seja, a violência seria o

Ninguém que se tenha dedicado a pensar a história e


domínio das técnicas e não passaria de meio para a
a política pode permanecer alheio ao enorme papel consecução de um fim, enquanto que o poder para
que a violência sempre desempenhou nos negócios tornar-se legítimo não prescindiria do maior
humanos, e, à primeira vista, é surpreendente que a número de pessoas. Para Arendt os dois fenômenos
violência tenha sido raramente escolhida como não apenas não se confundem, como são
objeto de consideração especial (2001, p.16). incompatíveis, onde um ocorre, o outro não pode se
Primeiramente, a autora lança uma crítica ao manifestar.
tratamento marginal dispensado à violência por O poder é realmente parte da essência de todo
uma certa tradição intelectual, o que fez com que a governo, mas o mesmo não se dá com a violência. A
violência na sociedade contemporânea, tenha sido violência é, por sua própria natureza, instrumental;
tratada e encarada enquanto algo comum, como todos os meios está sempre à procura de

aceitável e até mesmo natural. De fato, se para orientação e de justificativas pelo fim que busca
(2001, p. 32).
uma linha de pensamento hobbesiana, a violência
consistiria um caminho possível para realização de Hannah Arendt lamenta o fato de a ciência
intentos do homem, algo mesmo da natureza do política moderna conviver com uma espécie de
comportamento humano, Arendt pensa diferente e confusão conceitual entre poder, força, vigor,
faz críticas a questão da naturalização da violência, autoridade e violência, fenômenos distintos, mas
bastante presente, aliás, nos discursos e debates que segundo ela são comumente utilizados
que permearam a segunda metade do século XX, enquanto sinônimos pelo fato de expressarem ao
época em que os chamados pensadores entendimento comum à mesma ideia de ―quem
revolucionários proclamavam o uso legítimo da domina quem‖. Nas palavras de Arendt:
violência enquanto meio para enfrentar e combater O “poder” corresponde à habilidade humana de não
o poder instituído que também era violento. apenas agir, mas de agir em uníssono, em comum
Uma das consequências da naturalização da acordo. O poder jamais é propriedade de um
violência é que ela constantemente aparece indivíduo. Pertence ele a um grupo e existe apenas
enquanto o grupo se mantiver unido. Quando
vinculada ao poder e para os defensores deste
dizemos que alguém está “no poder” estamos na
ponto de vista, a violência assume o status não
verdade nos referindo ao fato de encontrar-se esta
apenas de algo inerente ao ser humano, mas
pessoa investida de poder, por um certo número de
também de algo quase inevitável. Poder e violência
pessoas, para atuar em seu nome. No momento em
seriam as duas faces de uma mesma moeda. Mas que o grupo de onde originara-se o poder (potestas
para a autora, poder e violência são fenômenos in populo, sem um povo ou um grupo não há poder),
distintos, pois onde há a ausência de poder, aí desaparece, “o seu poder” também desparece. Na
impera a violência, para Arendt: ―[...] a violência linguagem comum, quando falamos de um “homem
sempre pode destruir o poder; do cano de uma poderoso” ou de uma “personalidade poderosa”,

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estamos já usando a palavra “poder” comum, espaço público, da manifestação das
metaforicamente; aquilo a que nos referimos sem pluralidades, dos mecanismos que fazem a política
metáforas é o “vigor” (2001, p. 27). acontecer. É o espaço por excelência da liberdade
Segundo a autora o poder brota do de ação política. É aí que as relações políticas
consentimento, estando ligado a um grupo ao qual podem se desenvolver pelo consenso e pelo diálogo,
deve a sua existência, portanto, o poder não é impensável, portanto, o uso da força, da violência.
propriedade de um único indivíduo conforme Arendt sintetizou em uma frase a distinção
normalmente somos levados a pensar, para Arendt básica fundamental entre poder e violência: ―A
quando identificamos a palavra poder à figura de forma extrema do poder resume-se em Todos
uma ―personalidade poderosa‖, já o fazemos de contra Um e a extrema forma de violência é Um
forma metafórica. Poder e política estão contra Todos‖ (2001, p. 26). De fato e conforme já
intimamente ligados na visão arendtiana, pois mencionado, o poder segundo a filosofia
segundo a autora é na política que o poder se arendtiana não é algo que pertence a um indivíduo,
manifesta através da ação dos sujeitos no espaço mas brota do consentimento, sua legitimação está
público, ela assim definiu em sua obra A Condição necessariamente atrelada ao maior número de
Humana a atividade política: pessoas ao contrário do que ocorre com a violência
A ação, única atividade que se exerce diretamente a qual se atribui apenas justificação pelo objetivo
entre os homens sem a mediação das coisas ou da que quer atingir, mas jamais legitimação que é
matéria, corresponde à condição humana da própria do poder. A autora alerta ainda para a
pluralidade, ao fato de que homens, e não Homem, armadilha de se confundir poder e obediência, o
vivem na terra e habitam o mundo. Todos os que contribui ainda mais para nivelar poder e
aspectos da vida humana têm alguma relação com a
violência, entretanto, ela diz que esta é apenas
política, mas esta pluralidade é especificamente a
uma das formas ou casos especiais do poder, que é
condição – não apenas a conditio sine qua non, mas
o poder em termos de governo, ou seja, também
a conditio per quam – de toda vida política (2007, p.
15).
governo não se confunde com poder.

No entanto, deve-se admitir que existe a tentação de


O homem político age buscando o consenso
se pensar no poder em termos de mando e
através do convencimento, do discurso, das
obediência, e, portanto igualar o poder à violência,
palavras; sem o uso da violência, portanto. Eis o
em um debate sobre aquilo que é realmente apenas
laço forte que une poder e política, e que, um dos casos especiais do poder – ou seja, o poder
definitivamente, separa aquele da violência. De em termos de governo. Uma vez que nas relações
fato, na contemporaneidade poder e violência têm exteriores assim como nos negócios internos
sido tratados numa relação de grande proximidade, apresenta-se a violência como a última opção para
tão grande que muitas vezes são confundidos. Mas que a estrutura de poder seja mantida intacta

Arendt vai buscar na polis grega a base do poder, contra os vários tipos de desafios – do inimigo
estrangeiro, do criminoso local parece realmente ser
aquilo que é o fundamento de sua legitimação, que
a violência o pré- requisito do poder, e o poder nada
é justamente o diálogo, o consenso, o
mais que uma fachada, a luva de pelica que ou
convencimento, o discurso, as palavras. A partir
esconde a mão de ferro, ou que mostrará pertencer
deste raciocínio não é difícil compreender porque a um tigre de papel. Em um exame mais detido,
para a autora, poder e violência se situam em polos entretanto, perde essa noção muito de sua
opostos. Ela trabalha com a noção de espaço plausibilidade (2001, p. 29).

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MICHEL FOUCAULT escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao
contrário, se articula sobre dois elementos que lhes
Apesar de não ter necessariamente trabalhado
são indispensáveis por ser exatamente uma relação
o conceito de violência, o termo aparece no
de poder: que “o outro” (aquele sobre o qual ela se
discurso de Foucault sobre as relações de poder, exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido até
em sua tentativa de explicar o que entende por o fim como sujeito de ação; e que se abra diante da
poder, conforme veremos mais adiante. Para o relação de poder, todo um campo de respostas,
filósofo francês, o poder não é algo que exista reações, efeitos, invenções possíveis (1995, p. 243).
enquanto tal, como se fosse um ente que paira
Para Foucault mesmo que o uso da violência
sobre todos, uma substância. A ideia de Foucault
esteja de certa forma presente numa relação de
sobre poder rompe com o pensamento tradicional
poder, esta não constitui sua forma primitiva, seu
contratualista que tinha no consentimento e na
substrato, seu princípio ou sua natureza. A esse
renúncia dos sujeitos a direitos e poderes em favor
respeito ele destaca ainda que:
da figura que encarnaria o próprio poder, sua base
O fundamento das relações de poder, evidentemente,
de sustentação.
não é uma exclusividade do uso da violência mais do
Assim, Foucault fala em relações de poder: que da aquisição dos consentimentos; nenhum
O exercício do poder é simplesmente uma relação exercício de poder pode, sem dúvida dispensar um
entre “parceiros” individuais ou coletivos, é um ou outro e frequentemente os dois ao mesmo tempo.
modo de ação de alguns sobre outros. O que quer Porém, se eles são seus instrumentos ou efeitos, não
dizer certamente que não há algo como o “poder” ou constituem, contudo, seu princípio ou sua natureza
“do poder” que existiria globalmente, maciçamente (1995, p. 243).
ou em estado difuso, concentrado ou distribuído: só
Percebe-se que para o autor, apenas em último
há poder exercido por “uns” sobre os “outros”; o
caso, o poder coage, no sentido que nos remete à
poder só existe em ato, mesmo que, é claro, se
violência, pois o poder segundo Foucault se
inscreva num campo de possibilidade esparso que se
manifesta através de ação sobre ações e não
apoia sobre estruturas permanentes (1995, p. 242).
diretamente sobre o corpo como faria supor a
Porém, descartar o consentimento enquanto
violência. De acordo com este raciocínio, a ideia de
base sobre a qual se assenta o poder, não faria da
poder passa pela análise da relação entre polos
violência sua razão de ser ou a forma pela qual ele
ativos, de ação sobre ação. Sobre o poder, Foucault
existiria, seria exercido? Ao propor este
pontua que: ―Ele não é em si mesmo uma violência
questionamento, é o próprio Foucault que responde
que, às vezes, se esconderia, ou um consentimento
de maneira a negar que o fundamento do poder
que, implicitamente, se reconduziria. Ele é um
seja a violência, que esta seja a sua forma primitiva,
conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera
pois tal ideia, de acordo com o autor nos remeteria
sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o
a uma análise mecânica do poder. Em seu ensaio
comportamento dos sujeitos‖ (1995, p. 243).
Sujeito e Poder, Foucault traça claramente os
Resta claro que para Foucault a violência é algo
contornos de ambos os termos:
que se dá, que ocorre no limite da relação de poder,
Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre praticamente fora, no exterior dessa relação,
as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela
porque exercer o poder é diferente de coação e
destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem,
sugere a ―condução de condutas‖ num campo de
portanto, junto de si, outro polo senão aquele da
possibilidades, no sentido de probabilidades de
passividade; e, se encontra uma resistência, a única

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estruturação do campo de ação possível dos outros. enxergar seu funcionamento, isto é, a forma como
Foucault parece não ter desenvolvido uma ele é exercido através de táticas e de estratégias
teoria geral do poder, capaz de englobar todas as como em um jogo. Em outra obra do autor de
relações sociais e diversos contextos históricos, grande importância para a compreensão da
como uma teoria padrão que se encaixasse em dinâmica do poder, Vigiar e Punir, ele diz:
qualquer época. Sua análise do poder ou como ele Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder
próprio denominava das relações de poder parece nela exercido não seja concebido como uma
estar mais preocupada em definir o domínio propriedade, mas como uma estratégia, que seus
específico e determinar os meios ou os efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma
“apropriação”, mas a disposições, a manobras, a
instrumentos para analisá-lo (1979, p. 80). Ou seja,
táticas, a funcionamentos; que se desvende nele
Foucault está preocupado em analisar o poder pela
antes uma rede de relações sempre tensas, sempre
ótica específica de seu funcionamento local através
em atividade, que um privilégio que se pudesse deter;
dos discursos presentes em determinadas épocas que lhe seja dado como modelo antes a batalha
ou contextos. Em sua obra Microfísica do Poder ele perpétua que o contrato que faz uma concessão ou
esclarece a respeito: uma conquista que se apodera de um domínio.
Temos em suma, que admitir que esse poder se
(...) o problema não é de constituir uma teoria do
exerça mais do que se possui; que não é privilégio
poder que teria como função refazer o que
adquirido ou conservado da classe dominante, mas o
Boulainvilliers ou Rousseau queriam fazer. Todos os
efeito de conjunto de suas posições estratégicas –
dois partem de um estágio originário em que todos
efeito manifestado e às vezes reconduzido pela
os homens são iguais, e depois o que acontece?
posição dos que são dominados (1977, p. 29).
Invasão histórica para um, acontecimento mítico
para outro, mas sempre aparece ai deia de que, a De fato, para o autor não há um poder
partir de um momento, as pessoas não tiveram mais onipresente que comandaria a todos, representado
direitos e surgiu o poder. Se o objetivo for construir
por uma instituição ou a figura de um governante,
uma teoria do poder, haverá sempre a necessidade
o que existe são relações de poder num campo
de considerá-lo como algo que surgiu em
aberto de possibilidades, inclusive de resistência.
determinado momento, de que se deveria fazer a
gênese e depois a dedução. Mas se o poder na No que diz respeito ao poder, não há
realidade é um feixe aberto, mais ou menos generalizações na visão foucaultiana, não existe
coordenado (e sem dúvida mal coordenado) de um conceito unívoco capaz de dar conta do poder
relações, então o único problema é munir-se de em todas as suas nuances, infiltrações,
princípios de análise que permitam uma analítica do capilaridades; ele enxerga o poder enquanto
poder (1979, p. 154). prática, uma rede que perpassa o corpo social:
É comum ouvirmos as pessoas se referirem ao Quando se define os efeitos do poder pela repressão
poder enquanto algo que se possa ter a tem-se uma concepção puramente jurídica deste
propriedade ou de que se está em posse, o que mesmo poder; identifica-se o poder a uma lei que diz
corrobora com a ideia, segundo o autor, não. O fundamental seria a força da proibição. Ora,
equivocada de que uma classe que é dominante creio ser esta uma noção negativa, estreita e
esquelética do poder que curiosamente todo mundo
detém o poder em detrimento de outra que seria a
aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se não
classe dominada. De acordo com Foucault para
fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita
uma melhor compreensão do poder devemos
que seria obedecido? O que faz com que o poder se

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mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele violência é, de fato, algo ruim, mau, prejudicial,
não pesa só como uma força que diz não, mas que de indesejável e destruidor; dispensável, portanto,
fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, para o poder.
forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo
A unidade possível e desejável ocorre entre
como uma rede produtiva que atravessa todo o
corpo social muito mais do que uma instância poder e política. Assim como Hannah Arendt,
negativa que tem por função reprimir. Em Vigiar e Foucault vai pensar o poder de maneira diversa,
Punir o que eu quis mostrar foi como, a partir dos indo inclusive na contramão de muitos dos teóricos
séculos XVII e XVIII, houve verdadeiramente um que abordaram o assunto. Ele procura o poder nas
desbloqueio tecnológico da produtividade do poder. margens e não no centro como normalmente se faz.
As monarquias da Época Clássica não só Porque, para o autor, não existe um lugar
desenvolveram grandes aparelhos de Estado –
específico de poder em que ele certamente possa
exército, polícia, administração local – mas
ser encontrado.
instalaram o que se poderia chamar uma “economia
do poder”, isto é, procedimentos que permitem fazer O poder, tal como pensado em Foucault,
circular os efeitos de poder de forma ao mesmo também não é característica de um ser, um
tempo contínua, ininterrupta, adaptada e soberano que o incorporaria, emprestando-lhe
“individualizada” em todo o corpo social (2003, p. 8). forma, face e identidade. Não! No entendimento de
Percebe-se aqui claramente a crítica do autor Foucault, o poder está espalhado, capilarizado,
às teorias de poder que desde Hobbes até então o penetrando as relações sociais. Para o filósofo, o
cercam com concepções jurídicas, entendendo de poder encontra-se por toda parte e suas relações
forma equivocada as relações de poder como perpassam as práticas sociais e os sujeitos
relações jurídicas. Ele enaltece ainda aspectos encontram-se em posições de praticá-lo. Nisso, o
positivos do poder que muito além da repressão autor se aproxima de Hannah Arendt, para quem o
constituem uma rede produtiva que a tudo poder é um fenômeno amplo, não se concentrando
perpassa e permeia. Portanto, Foucault nos fala de em uma instituição ou na figura de uma única
um poder que atua através de técnicas e pessoa.
estratégias tão sutis que mal se percebe o Em sua obra O poder psiquiátrico (2006),
adestramento e que irão possibilitar o controle e o Foucault faz um questionamento a respeito da
domínio das relações sociais. São os ―micropoderes‖ vinculação do poder à violência e alerta para o fato
que atravessam todo o conjunto do corpo social. de quão nociva e perigosa pode ser esta
identificação/vinculação, primeiramente porque
ALGUNS ENCONTROS...
reduz o poder à violência, levando a crer que o
Hannah Arendt faz uma espécie de ataque aos
poder que não se utiliza da violência não é poder.
teóricos do poder que absurdamente teriam
Mas, para Foucault, todo poder, mesmo aquele que
ignorado o distanciamento entre os fenômenos do
não lança mão da violência, aqui entendida
poder e da violência, o que acabou por contribuir
enquanto força bruta, de uma forma ou de outra,
com uma certa visão naturalista desta última. A
age sobre o sujeito, de maneira que este agir não
autora enxerga a política de forma positiva e
pode ser confundido e reduzido à violência.
rechaça a violência enquanto desvio da dominação
O poder é, deste modo, muito maior que isso na
política, como uma espécie de medicamento que se
visão foucaultiana. Para ele, a racionalidade por
tem que usar quando necessário. Em Arendt, a
trás das técnicas e táticas de poder se utiliza sim

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da violência, mas isso não autoriza que se confunda mais genuína manifestação do poder, passa-se a
poder e violência ou mesmo que se faça a redução encará-lo enquanto fenômeno presente nas
do primeiro a esta última. Para reforçar o que relações sociais, nas práticas cotidianas,
acabou de ser dito, vale lembrar que Foucault não perpassando todo o conjunto do corpo social, uma
compreende o poder como mera repressão ou como verdadeira microfísica do poder como tão bem
algo que só oprime, ele o entende também de forma denominou Foucault.
positiva, produtiva, daí falar-se em produção de É evidente que ainda persiste atualmente no
saberes, verdades e discursos. imaginário social a ideia de poder como um ente
De fato, tanto nas consideraçoes de Arendt que paira acima de todos ou corporificado na figura
quanto nos Estudos de Foucault, o poder não pode de uma pessoa. Assim como persiste o pensamento
ser confundido com violência, já que o poder é de que o poder guarda grande similitude com a
fruto do consentimento, fenômeno do campo da violência.
ação coletiva, ação política (Arendt), bem como Autores como os citados neste trabalho têm
atua positivamente de forma produtiva, fenômeno contribuído para uma ampliação da compreensão
amplo, muito maior que a violência (Foucault). de fenômenos tão presentes na realidade social. A
Evidentemente que os conceitos, recortes, leitura de Arendt, portanto, expande a
enquadramentos, pontos de vista e a maneira como compreensão do fenômeno politico como dimensão
cada um desses dois autores fizeram suas dinâmica e indeterminada do estar junto na
abordagens são diferentes e guardam suas construção do mundo humano.
peculiaridades.
No entender de Arendt, a processualidade
Porém, o fato de ambos não enxergarem poder própria do mundo humano, sempre perpassado por
e violência enquanto sinônimos, operando um vulnerabilidades inerentes à fragilidade dos
distanciamento entre os dois fenômenos, permite- assuntos humanos, estabelece uma fugaz
nos vislumbrar o poder com outros olhos, objetividade que emana de processos
atentando para fatos e características intersubjetivos marcados por disputas morais, por
constitutivas do poder que vão muito além da poder e, não raro, violentas. Foucault, por seu
violência, da força bruta, da dominação como o turno, explora, em síntese, os subterrâneos e as
fato dele estar presente, perpassando as relações invisibilidades do poder como fenômeno complexo e
sociais, ser parte delas e um impulsionador das onipresente na liga estrutural do social e da
ações humanas. cultura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS REFERÊNCIAS
É inegável a contribuição de autores como ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. Ed.
Michel Foucault e Hannah Arendt quando se Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. Trad.
propõe pensar a questão do poder, suas Roberto raposo.
características, suas formas de manifestação, suas
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. 3. ed. Rio de
relações e práticas. De um pensamento enges-sado
Janeiro: Relume-Dumará, 2001.
e hermético que preconizava o poder como algo
estanque, representado na figura de um rei, ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 6.
soberano ou governante, ou ainda por uma Ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.
instituição que identificava a violência enquanto a

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FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. São FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In:
Paulo: Martins Fontes, 2006. DREYFUS, Humbert L. e RABINOW, Paul. Michel
Foucault, uma trajetória filosófica: para além do
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder.
estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro:
Organização e tradução de Roberto Machado. Rio
Forense Universitária, 1995.
de Janeiro: Edições Graal, 1979.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, Ed.


Vozes, 1977.

Betânia Maria Barros Feitoza

Bacharel em Direito, Especialista em Direitos Humanos e Mestre em Ciências Sociais e Humanas


pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).

E-Mail: betaniabarrosrn@gmail.com

Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7225-602X

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resenhas
“ADMIRÁVEL MUNDO EM DESCONTROLE”: A POSIÇÃO DAS
CIÊNCIAS SOCIAIS ENQUANTO FORMULADORA DE
RESPOSTAS NA PANDEMIA DA COVID-19
“ADMIRABLE BRAVE WORLD”: THE POSITION OF SOCIAL SCIENCES AS
AN ANSWER MAKER IN THE COVID-19 PANDEMIC

Ângelo Gabriel Medeiros de Freitas Sousa

Recebido: 08.12.2020
Aprovado: 12.12.2020

COSTA, Jean Henrique. Barbosa, Raoni Borges. Admirável Mundo em Descontrole: As


Ciências Sociais e a pandemia da Covid-19. São Paulo: Editora Lucel, 2020.

O
livro que nos dedicaremos a resenhar implicações causadas pela Pandemia. Cobra-se
foi feito a pa rtir do trabalho muito dessa área que ela consiga gerar resoluções
colaborativo de cientistas sociais de na vida prática da população: o livro ―Admirável
diferentes áreas, sendo dividido em Mundo em Descontrole‖ vai nesse caminho. O
capítulos que abordam uma série de elementos segundo ponto diz respeito ao contexto de
surgidos a partir do contexto de pandemia da deslegitimação das Ciências Humanas no Brasil, a
Covid-19. Mesmo com essa divisão, o conjunto da partir de uma política conservadora que confunde o
obra consegue demarcar o espaço das Ciências fazer científico com o fazer militante. O
Sociais dentro do discurso científico contem- empreendimento moral que tem como conteúdo
porâneo. uma política conservadora cerca os profissionais da
A demarcação desse espaço é de grande valor área em um regime de constrangimento e censura.
devido a dois fatores. O primeiro é a do O projeto político ‗Escola sem partido‘ é um
protagonismo dado às ciências naturais para a exemplo: persegue professores da área de
resolução dos problemas gerados pelo Coronavírus: humanidades e os impede de debater assuntos
está encarregada de descobrir o funcionamento essenciais para a área. Com a eleição do presidente
desse novo vírus, a forma como este age no nosso Jair Bolsonaro, a perseguição ganhou força
corpo, quais os melhores tratamentos de saúde e institucional, com cortes de verbas para a
qual o desenvolvimento de uma vacina para a Educação e para a Ciência; e as ciências humanas
imunização da população mundial. A partir desse sendo categorizadas como ―não essenciais‖ nas
livro, podemos visualizar as contribuições das políticas governamentais. A publicação dessa obra
Ciências Sociais para uma série de outras resenhada serve não somente como prova da

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importância das Ciências Sociais e Humanas, mas desinformação. Em oposição ao discurso
também questiona por meio do método científico as apresentado pelos autores na primeira parte, está
narrativas da política conservadora. a narrativa pertencente aos setores conservadores
É nesse contexto que está inserido a publicação da política brasileira. Garcia & Silva (2020),
da obra, a partir daqui, podemos apresentar as debatendo a respeito dessa narrativa, apresentam
contribuições de cada capítulo contido na o negacionismo por parte do próprio presidente do
coletânea. No prefácio da obra, o professor Lázaro Brasil e que essa narrativa que inicialmente negou
Fabrício destaca a realidade de desigualdade social a doença e posteriormente desmereceu os números
brasileira, que se acentua na sociedade há séculos. alarmantes de vítimas da doença. Destacam que,
Na crise de saúde e sanitária causada pela Covid- além do discurso atrapalhar a operação das
19, o quadro de desigualdade constrói uma políticas públicas, ele faz parte de um projeto
realidade particular no Brasil. Ou seja, apesar de o político por parte de um setor da política brasileira.
vírus ter se espalhado em todo o mundo, sem No segundo artigo, Barbosa (2020) parte de
diferenciar fronteiras nacionais, cada país tem uma uma base antropológica, sobretudo da
experiência particular da pandemia. No caso Antropologia das Emoções e Moralidades, para
brasileiro, como destaca o autor do prefácio, o analisar a situação limite de falência moral gerada
quadro de desigualdade social faz com que a pela pandemia do coronavírus. Compreende a
pandemia seja sentida de forma diferente pelos moralidade do Homo Economicus, em que parar a
setores da sociedade brasileira. Destaca também produção econômica de sobrevalor significa perda
que nas populações de maior vulnerabilidade social, de lucros, e que é rompida a partir da instauração
a crise de saúde se agrava, com um risco de morte da pandemia, gerando uma situação de
muito maior. Ele pressupõe, a partir de um dado questionamento dos valores sociais, diante uma
construto teórico, que o Estado é responsável pela dicotomia entre vidas e economia, e um sentimento
política da Vida e da Morte (Bio- e Necropolítica), de falência e banalização das vidas a partir da
em que a negligência do Estado ganha traços de um perda de parentes e pessoas próximas para o vírus.
projeto político, que escolhe quais vidas importam. Por meio da etnometodologia, o autor etnografou
No primeiro artigo apresentado na coletânea, redes sociais e percebeu a disputas de narrativas a
os autores Garcia & Silva (2020) desenvolvem um respeito da Covid-19, além de enxergar as
trabalho que segue dois pontos principais: 1) As tentativas de reestruturação moral e emocional
contribuições da Sociologia e da Antropologia para para continuidade do cotidiano.
a compreensão da crise de saúde e sanitária No terceiro artigo, Costa & Barbosa (2020) se
gerada pelo coronavírus; 2) a partir do estudo de dedicaram a compreender o ―Novo Normal‖, termo
caso brasileiro, compreender as narrativas a amplamente utilizado que buscava projetar como
respeito da pandemia, sobretudo desde um recorte seria a realidade social durante a pandemia e após
de negacionismo científico enquanto discurso ela. Porém, os autores demonstram que para a
político. O primeiro ponto trata da construção de efetivação do termo, banalizou-se a morte, a
um discurso das ciências sociais, apresentando um doença, com o desenvolvimento de novas
conjunto teórico que desestabiliza explicações moralidades e conteúdo de sociabilidades que
ligadas ao senso comum, a explicações fizessem possível a continuação das atividades
pseudocientíficas fortalecidas por uma rede de econômicas. Mesmo com os números ainda

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crescentes de infectados, havia pressão de lobbys Covid-19. Eles vão além, demostrando que não
político para o afrouxamento das regras de é somente pela falta de respostas, mas também
distanciamento social. Para os autores, a crise pela falência no Sistema Público de Saúde e da
sanitária acentuou as características predatórias distância do mesmo em relação ao homem comum
da política neoliberal, além de estabelecer uma que a fitoterapia está presente em seu cotidiano
relação de quais vidas importavam e quais seriam por fazer parte do seu universo de realidade,
descartáveis. imaginário e memória coletiva. Além disso, os
No quarto e último artigo e capítulo, o trabalho autores alertaram para o número crescente de
de Silva, Costa & Cunha debate, a partir de uma Fake News que apresentavam vários produtos
etnografia realizada em Imperatriz - Maranhão, o naturais como cura contra o coronavírus. Na minha
aumento da procura da fitoterapia durante a crise leitura, os autores também apresentaram um
de saúde causada pelo Sars-Cov-2. De forma debate a respeito da relação entre Homem e
instigante, os autores, a partir do estudo de Natureza, da apresentação dos diferentes tipos de
produtos medicinais de um conhecimento conhecimento no cotidiano do homem comum e
tradicional do Norte brasileiro, mostram como a como eles disputam essas narrativa, que não são
falta de respostas da medicina hegemônica para o necessariamente excludentes.
tratamento do coronavírus levou muitas pessoas a
procurarem a assistência do conhecimento
tradicional e popular para amenizar os sintomas da

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