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Direito Sanitário Tempus - Actas de Saúde Coletiva

A Determinação do Início da Vida: Ciência versus


Direito
Determining the Beginning of Life: Science versus
Entitlement
Determinación el Comienzo de la Vida: la Ciencia
contra el Derecho
Liliane Lopes Andrade 1 e se adequando às teorias sobre o início da vida
humana, cabe à sociedade decidir qual dessas
RESUMO
explicações é válida em determinada ocasião,
pois vivemos em uma sociedade dinâmica,
O estudo, “A determinação do início da vida:
onde há diversas descrições, sob a ótica de
Ciência versus Direito” faz uma avaliação das
variados pontos de vista, mas todas com o
discussões acerca do início da vida humana,
mesmo valor.
baseadas em teorias científicas sob o ponto
de vista genético, embriológico, neurológico,
Palavras-chave: Vida; Teoria; Ciência;
ecológico e metabólico, articulando-as com a
Direito.
contextualização jurídica do Estado brasileiro.
Objetivando a clareza da análise, o presente ABSTRACT
trabalho (descritivo-analítico) faz uma revisão
teórico-crítica, acerca das discussões sobre The study, “The determination of early
o início da vida humana, cuja ferramenta de life: Science versus Entitlement” makes
análise é o método sistêmico, utilizando-se an assessment of the discussions about the
de algumas das categorias da teoria sistêmica, beginning of human life, based on scientific
tais como a evolução; a autopoiese, vista como theories on the genetic point of view,
uma explicação para a evolução dos sistemas; embryological, neurological, metabolic and
o sistema do direito e o da comunicação, o ecological, linking them to the legal context
qual consiste no dispositivo fundamental da of the Brazilian State. Aiming clarity of
dinâmica evolutiva dos sistemas sociais. O analysis, this study (descriptive-analytical)
direito tem como obrigação a construção de make a review of theoretical-critical about
parâmetros conceituais para o início da vida, the discussions concerning the beginning of
para isso ele deve utilizar fontes científicas. human life, whose analysis tool is the systemic
Diante disso, observa-se que o direito não method, using some of the categories of
declina, ele se adapta aos novos parâmetros systems theory, as evolution; the autopoiesis,
científico-biológicos, rompendo os paradigmas seen as an explanation for the evolution of
1 Programa de Direito Sanitário da FIOCRUZ, Direito systems and the system of entitlement; and
Sanitário.

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the communication, which is the fundamental que es el dispositivo dinámica fundamental
device of evolutionary dynamics of social de evolución de los sistemas sociales. El
systems. Check, in this study that this derecho tiene la obligación de construir
communication happens from the articulation parámetros conceptuales para el comienzo de
of scientific theories with the contextualization la vida, para que él debería utilizar fuentes
of the Brazilian legal system. The right has the científicas. Dado lo anterior, se observa que el
obligation to build conceptual parameters for derecho no disminuye, se adapta a los nuevos
the beginning of life, for that he should use parámetros, científico biológicos, rompiendo
scientific sources. Given this, it is observed paradigmas y la adaptación de las teorías sobre
that the law does not decline, it adapts to new el comienzo de la vida humana, le corresponde
scientific and biological parameters, breaking a la sociedad para decidir cuál de estas
paradigms and adapting theories about the explicaciones es válido en una ocasión, porque
beginning of human life, it is up to society to vivimos en una sociedad dinámica, donde hay
decide which of these explanations is valid on varias descripciones, desde la perspectiva de
one occasion, because we live in a dynamic diferentes puntos de vista, pero todos con el
society, where there are various descriptions, mismo valor.
from the perspective of different viewpoints,
but all with the same value. Palabras clave: Vida; Teoría; Ciencias;
Derecho.
Keywords: Life; Systems Theory; Science;
Entitlement. INTRODUÇÃO

RESUMEN A temática referente às teorias sobre o


início da vida é pauta de diversas discussões
El estudio “La determinación del comienzo e controvérsias, não há efetivo consenso na
de la vida: la ciencia contra el derecho” hace comunidade científica. Assim, o trabalho
una evaluación de las discusiones sobre el pretende avaliar as discussões acerca do início
comienzo de la vida humana, con la base de da vida humana, baseadas em teorias científicas
las teorías científicas, debajo el punto de sob o ponto de vista genético, embriológico,
vista genético, embriológico, neurológico, neurológico, ecológico e metabólico, sem, no
metabólico y ecológico, articulando con el entanto, desprezar a relevância dos dispositivos
dispositivo jurídico del estado brasileño. Con jurídicos, do Estado brasileiro, que permeiam e
el objetivo claridad del análisis, este estudio qualificam a temática.
(descriptivo y analítico) hace una discusión el
críticas teórica, sobre el comienzo de la vida É importante destacar que os debates acerca
humana, cuya herramienta de análisis es el do início da vida humana tornaram-se cada
método sistémico, utilizando algunas de las vez mais intensos, na tentativa de responder
categorías de la teoría de sistemas tales como a pergunta à qual almejamos uma única
la evolución; la autopoiesis, visto como una resposta: quando começa a vida humana?
explicación de la evolución de los sistemas Começa no momento em que o óvulo é
y el sistema de derecho; la comunicación, fecundado pelo espermatozoide? Ou quando o

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óvulo fecundado adere à parede do útero? Ou posicionamentos, seja pelas linhas científicas
será que a vida começa quando aparecem as ou pelas proposições pessoais adotadas,
primeiras terminações nervosas que resultarão a discussão torna-se de suma importância
no cérebro? À medida que a ciência busca o para garantir maior grau de objetividade à
detalhamento da gestação humana, os debates interpretação constitucional, buscando uma
tornam-se mais complexos. argumentação sobre o início da proteção
constitucional do direito à vida de acordo com
Trata-se de um tema polêmico e de interesse a lógica trazida pela Constituição Federal e
da sociedade, visto que desde a antiguidade pelo ordenamento jurídico brasileiro.
determinados grupos e/ou indivíduos se
debruçavam sobre uma das questões mais A determinação de quando tem início
profundas da filosofia: a gênese da vida. a vida é primordial para o ordenamento
Atualmente, tal assunto volta às discussões jurídico, uma vez que para o reconhecimento
quando são tratados outros temas que reportam da personalidade jurídica, torna-se necessário,
à questão da vida e da morte, destarte é mister primeiramente, determinar de forma concisa,
a reflexão e a discussão sobre conceitos, teorias quando um ser em formação está vivo de fato e
e normatizações no contínuo processo de de direito, do mesmo modo como se fez com o
construção da sociedade. conceito de morte.

Provavelmente, a dificuldade em se No que tange à metodologia do trabalho,


estabelecer um consenso sobre essas questões pode-se dizer que se trata de um trabalho
seja consequência do cunho subjetivo das descritivo-analítico, considerando que será uma
teorias científicas sobre a vida, cuja visão revisão teórico-crítica acerca das discussões
estaria arraigada em áreas específicas da sobre o início da vida humana, baseada em
ciência, não obstante, o direito tenta buscar bibliografia científica, médica e jurídica. A
uma teoria mais aceitável para subsidiar suas ferramenta de análise será o método sistêmico.
decisões a respeito de normatizações de grande É válido destacar que dentro desse método
repercussão na sociedade. serão utilizadas somente algumas categorias
da teoria, tais como a evolução, a autopoiese,
Considerando a abrangência do tema o sistema do direito e a comunicação. No
proposto, pelos diferentes campos de estudo: que tange aos procedimentos e técnicas de
ciência, religião, bioética e direito, destaca- pesquisa, utilizaremos a pesquisa bibliográfica,
se que o objetivo desse estudo visa mostrar legislativa e jurisprudencial.
as divergências científicas sobre a temática,
articulando-as com a contextualização jurídica Para realizarmos a análise, dividimos o artigo
do Estado brasileiro. em duas partes. Na primeira, trataremos do
estado da arte das teorias científicas que versam
Este trabalho analisará as diversas teorias sobre o início da vida, e ainda da repercussão
científicas, como também o posicionamento que essa temática causa na sociedade e,
jurídico a respeito das questões da vida. Tendo consequentemente, no mundo jurídico. Na
em vista, possível divergência sobre tais segunda, as teorias formuladas pelas diferentes

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áreas científicas serão apresentadas e ótica de variados pontos de vista, mas todas
confrontadas com as normatizações existentes. com o mesmo valor. Nesse contexto não se
Em seguida, averiguaremos a relação das pode falar em segurança, pois o que é seguro
teorias sobre o início da vida com o sistema do para um observador pode não ser seguro para
direito, dentro dos seus limites e possibilidades. outro, e assim, essa autorrestrição que para
os cientistas garante segurança, não seria
O ESTADO DA ARTE DAS TEORIAS garantia de segurança numa sociedade “poli-
CIENTÍFICAS QUE VERSAM SOBRE O contextual”. Outro ponto relevante para a
INÍCIO DA VIDA quebra do paradigma da certeza e da segurança
é o fato de vivermos numa sociedade cuja
Quando pensamos em ciência, acreditamos,
marca é o risco. Quando estamos diante do
normalmente, que os cientistas sabem do que
risco não temos mais condições de ter certeza
estão falando. Contudo, eles não só falam
ou segurança absoluta.
como também, talvez principalmente, agem.
Tal como ocorre com seus discursos, os Para Nunes e Oliveira(3), o jurídico no intuito
cientistas, ao mostrarem de que modo seus de prever e regrar os movimentos da sociedade
conceitos podem ser empregados, mostram busca, incessantemente, respostas para as
que estão seguros acerca dos sentidos que questões que envolvam a vida, seu ciclo e todas
emprestam às suas ações. Essa segurança as suas repercussões. Destarte, o homem, como
decorre do fato de que os conceitos e ações pessoa, vive em sociedade e nela realiza suas
científicas, para fazerem sentido, devem atividades, relacionando-se com os demais
referir-se a domínios específicos. Em outros seres e recebendo proteção do ordenamento
termos, os cientistas sabem o que estão jurídico, no sentido de lhe conferir direitos,
fazendo porque seus conceitos e suas ações bem como de atribuir-lhe obrigações. É
não são válidos em todo e qualquer domínio. justamente aí que repousa a noção de sujeito de
A precisão e a objetividade da ciência derivam, direito, que pode ser entendido como portador
em parte, dessa autorrestrição, isto é, de sua do direito subjetivo ou da faculdade jurídica ou
limitada capacidade para fazer afirmações aquele sobre quem recai o dever jurídico.
sobre o conjunto de fenômenos e objetos que
ela investiga (1). Dessa forma, conforme a categorização
da ciência, diante da evolução3 do conceito
Todavia, a definição de sociedade “poli- de morte ao longo dos anos, chegando-se ao
contextual2”, dada pelo autor Günther(2), consenso de que a morte é determinada quando
diz que ninguém detém um ponto de vista o cérebro deixa de funcionar (morte encefálica),
absoluto, considerando o único como correto. os pesquisadores, então, discutem se a vida
O conhecimento é resultado da observação acaba quando o cérebro para. Partindo desse
de segunda ordem, na qual um observador 3 Os sistemas, inclusive o da ciência, não têm
observa o que outro observador observou. uma estrutura imutável que enfrenta um ambiente
complexo. Nesse enfrentamento o sistema se transforma
Desta maneira há diversas descrições, sob a internamente (a partir das irritações externas), ele se
2 Günther chamou de sociedade poli-contextual a especializa cada vez mais e se diferencia dos demais,
sociedade moderna com a possibilidade de múltiplas justamente pela unidade da diferença, a esse processo
definições. dá-se o nome de evolução(9).

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princípio, seria aceitável a suposição de que ela células da mãe e do pai.
começa com o início da atividade cerebral, ou
seja, quando o cérebro começa a funcionar(4). Contudo, existem cinco argumentos que
Então, assim como foi dado o conceito de impedem a certeza dessa teoria científica, a
morte e definido o seu estado temporal, deve-se qual afirma que desde a fecundação há pessoa
reavaliar o conceito do início da vida humana, humana, a saber: 1º) A grande maioria dos
devido à grande necessidade de subsidiar os zigotos não consegue se implantar no útero
debates concernentes à vida, de acordo com os (não ocorre a nidação), causando o aborto;
anseios e necessidades da sociedade(5). 2º) Não se pode falar em pessoa, se não existe
individualização antes da gastrulação; 3º) O
O início da vida ainda é muito discutido nos zigoto possui informação operativa para gerar
dias de hoje. Muitas são as teorias científicas, os processos ulteriores do desenvolvimento,
não que elas sejam as mais corretas ou mas para que haja pessoa requerem-se também
absolutas, tratando-se, apenas, de diferentes informações operativas exógenas; 4º) O zigoto
formas de enxergar o início da vida. Nessa sozinho é potência em termos de informação
perspectiva, sem pretensão de exaurimento, genética, se não entram em jogo muitos
é possível enunciar cinco teorias científicas elementos exógenos, a potência que é o zigoto
apontadas por Muto e Narloch(6): nunca passará a ser ato, somente com seis a oito
semanas que o embrião terá as características
Na perspectiva genética, a vida de formação física e fisiológicas; 5º) O
humana começa na fertilização, quando o processo do zigoto para a pessoa futura não é
espermatozoide e o óvulo se encontram e um contínuo físico, se não um desenvolvimento
combinam seus genes para formar um indivíduo em continuidade, pois no período embrionário
com um conjunto genético único. Assim é sucedem importantíssimas e decisivas
criado um novo indivíduo, um ser humano com mudanças qualitativas(10).
direitos iguais aos de qualquer outro.
Já na perspectiva embriológica, a vida
Nesse contexto, Sadler (p. 3)(7) define que começa a partir da terceira semana de gestação,
“o desenvolvimento começa pela fertilização, quando ocorre a gastrulação, o evento mais
o processo pelo qual o gameta masculino, característico dessa semana, processo que
o espermatozoide, e o gameta feminino, o estabelece os três folhetos germinativos
ovócito, unem-se para produzir um zigoto”. (ectoderma, mesoderma e endoderma), cujas
células darão origem a todos os tecidos e
Destarte, Schoenwolf (p. 7)(8):
órgãos no embrião(6). Assim, se estabelece a
individualidade humana, isso porque até 12
Por causa da união dos cromossomos do
dias após a fecundação, o embrião ainda é
ovo e do espermatozoide em uma única célula
capaz de se dividir e dar origem a duas ou mais
na fertilização, estabelecendo uma nova célula
pessoas.
chamada de zigoto, a fertilização resulta
também na produção de uma única célula
Com isso, essa teoria suscita divergência e
tendo um genoma único, diferente daquele das
complexidade, ou seja, a ideia de complexidade

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nos remete à contingência, pois há mais solidificada no que tange ao consenso sobre
possibilidades do que se pode realizar em um quando começa a vida.
dado momento. As possibilidades são tantas
que somos obrigados a escolher apenas algumas Diante disso, os doutrinadores de Direito
delas para conseguirmos prosseguir, as demais Penal optaram por classificar a vida após a
ficam potencializadas como opções futuras(11). fertilização, da seguinte maneira: ovo (até
Ou seja, é o que se tem quando se tenta definir três semanas de gestação), embrião (de três
a proteção jurídica da vida humana, a partir semanas a três meses) e feto (após três meses)
do estabelecimento do seu início, vejamos o
(15)
.
entendimento do Supremo Tribunal Federal a
Para a visão neurológica, o mesmo
esse respeito:
princípio de morte vale para a vida. Ou seja,
O direito infraconstitucional protege por se a vida termina quando cessa a atividade
modo variado cada etapa do desenvolvimento elétrica no cérebro, então, ela começa quando
biológico do ser humano. Os momentos da o feto apresenta atividade cerebral. Essa é uma
vida humana anteriores ao nascimento devem corrente que tem crescido de forma grandiosa,
ser objeto de proteção pelo direito comum. O no mundo inteiro. O problema é que esse
embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, período não é consensual. Alguns cientistas
mas não uma pessoa no sentido biográfico a dizem que esses sinais cerebrais já existem
que se refere à Constituição (p. 137)(12). na oitava semana, outros afirmam que é na
vigésima semana(6).
Salienta-se que a Constituição brasileira
não determina a partir de quando se inicia a E assim, para confrontar essa afirmação
proteção jurídica do ser humano. E não o faz científica, cabe citar Barroso (p. 691-692)
propositadamente, a fim de que o legislador : “O início da vida humana tem início
(16)

ordinário, no decorrer dos anos, pondere a quando o sistema nervoso se forma, ou, pelo
necessidade de normatização, a partir do menos, quando ele começa a se formar. E isso
surgimento de casos não previstos, com ocorre por volta do décimo quarto dia após a
os dispositivos constitucionais, quando da fecundação, com a formação da chamada placa
elaboração legislativa. É desta forma que se tem neural”.
desenvolvido a legislação infraconstitucional,
Destaca-se ainda que, em recente pesquisa
cabendo às leis ordinárias, através de um
realizada por uma equipe de pesquisadores da
processo de ponderação legislativa, dispor
McGill University, no Canadá, foi descoberto
sobre a suposta vida do embrião e sua
que mesmo o cérebro estando acordado ele
proteção(13). Assim, o dogmatismo que impôs ao
apresenta padrões de funcionamento de um
aplicador do direito a neutralidade na aplicação
cérebro adormecido em alguns momentos.
de normas positivas vem cedendo lugar a um
Entretanto, a alternância entre esses dois
ativismo jurídico, que, embora ainda tímido
estados ocorre somente nos 20% finais da vida
no Brasil, vem ganhando espaço na arena
embrionária. Pois, durante os primeiros 80%
pública de resolução de conflitos(14). É válido
da vida embrionária, o cérebro fica em um
destacar que ainda não temos uma dogmática

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estado comparável ao de uma pessoa em coma pulmões prontos, entre a 20ª e a 24ª semana
ou sob efeito de anestesia(17). de gestação. Esse foi o critério adotado pela
Suprema Corte dos Estados Unidos na decisão
Para o pesquisador, Balaban, o trabalho que autorizou o direito do aborto(6).
mostrou que assim como nos adultos, os
cérebros de embriões também possuem um No Brasil, o artigo 2º do Código Civil de
circuito neural que monitora o ambiente para 2002 dispõe que a personalidade civil da pessoa
seletivamente ativar o cérebro, durante eventos começa do nascimento com a vida (noção de
importantes, e desativar em outras situações(17). capacidade), contudo a lei põe a salvo, desde
a concepção, os direitos do nascituro(25) –
Ele completa, dizendo que “Os últimos invocando aqui a ideia de personalidade(18).
30% do desenvolvimento do cérebro fetal
compreende o período mais interessante do Em ação direta de inconstitucionalidade
que pensávamos, porque é quando funções n. 3.510 de 2008, contra o art. 5º da Lei de
complexas que dependem da coordenação de Biossegurança, o relator do processo, ministro
áreas separadas do cérebro começam a surgir” Ayres Britto, em extenso e fundamentado
(p. 858)(17). voto decidiu que a vida humana é confinada a
duas etapas: entre o nascimento com vida e a
Em face à falta de consenso dos estudiosos morte encefálica, período em que a pessoa é
na determinação do surgimento das atividades revestida de personalidade jurídica que confere
neurológicas e das recentes descobertas sobre a ela, direitos e obrigações na vida civil. O
o funcionamento da atividade cerebral, essa ministro enfatizou que nascituro é quem já
teoria não pode valer para o início da vida está concebido e que se encontra dentro do
assim como valeu para determinar a morte. ventre materno, não em placa de petri (no
Pois, diante das demais teorias científicas, a caso de embriões humanos produzidos por
teoria neurológica mostra imprecisão quando inseminação em vitro). O ministro disse,
se trata da determinação do período em que ainda, que “embrião é embrião, pessoa humana
surgem as primeiras atividades cerebrais. Não é pessoa humana e que feto é feto. Portanto,
obstante, alguns autores suscitam divergência apenas quando se transforma em feto é que
ao afirmarem que a vida tem início a partir da esse novo ser recebe tutela jurisdicional”(12).
formação da placa neural, já outros afirmam
que é com o início da atividade elétrica no Já o Código Penal brasileiro, em seus arts.
cérebro. 124 e seguintes, versa sobre os casos em que
a prática do aborto é tipificada como crime.
Ao contrário da visão neurológica, a Constata-se após a leitura desses artigos,
visão ecológica afirma que a vida tem início uma gradação jurídica na proteção do direito
com o nascimento, ou seja, para essa teoria a à vida, supondo-se que o legislador ordinário
capacidade de sobreviver fora do útero é que faz optou por proteger a vida intrauterina em grau
do feto um ser independente e que determina inferior à vida de uma pessoa já nascida(19).
o início da vida. Médicos consideram que um
bebê prematuro só se mantém vivo se tiver Ressalta-se que o direito penal considera

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a nidação, isto é, quando o óvulo fecundado Por fim, a visão metabólica afirma que
adere na parede uterina, o momento exato para a discussão sobre o começo da vida humana
se considerar o início da vida, como se refere é irrelevante, uma vez que não existe um
Quintela de Brito (p. 426)(20), “juridicamente, só momento único no qual a vida tem início.
existe vida intrauterina depois da implantação Para essa corrente, espermatozoides e óvulos
do óvulo fecundado no útero materno”, isto é, a são tão vivos quanto qualquer pessoa. Além
partir da nidação qualquer ação para expulsão disso, o desenvolvimento de uma criança é um
do zigoto é considerada aborto. Assim, nota-se processo contínuo e não deve ter um marco
que a determinação do início da vida humana inicial(6).
é de suma importância. Uma vez que, para
tipificar uma conduta como violação de um Nesse sentido, muitos autores sustentam
direito, primeiro há de se estabelecer quando a tese de que a vida é um contínuo processo,
se origina o bem a ser protegido por lei, para contudo, tem início, meio e fim. Para Guy(24), a
depois caracterizar quais são as ações que a procriação é um processo evolutivo contínuo,
infringem, para ainda tipificá-las como crime. desde a fecundação, a primeira divisão celular,
até a formação dos órgãos e a constituição
Entretanto, para o direito penal, a descrição completa do ser humano. A biologia distingue
biológica do início da vida humana não diferentes estágios do desenvolvimento como
é suficiente para encontrar patamares de zigoto, mórula, blastocisto, embrião, feto,
proteção. Pois o que é considerado, em termos criança e etc. Contudo, a demarcação precisa
biológico-fisiológicos, como existência de desses estágios não pode ser estabelecida.
uma vida, desligada de outras valorações, Dessa forma, segundo o mesmo autor, pode-
não configura realidade suficiente para sua se considerar a vida um processo de evolução
relevância jurídico-penal. Em outras palavras: biológica e fisiológica.
se o único critério para determinação do
início da vida fosse o biológico-fisiológico, a Para uma melhor compreensão da evolução
utilização de métodos impeditivos da nidação, das teorias acerca do início da vida humana,
como a pílula do dia seguinte, constituiria utiliza-se parte da teoria sistêmica para
crime de aborto(21, 22). uma breve explicação: assim como ocorre
o aumento de possibilidades no sistema
O Código Penal prevê, apenas, duas da ciência, gerando complexidade, ocorre
hipóteses de aborto sem a criminalização, nos também no sistema do direito. Isso provoca
termos do seu artigo 128: irritações entre esses e outros sistemas que
acabam gerando alterações internas, ou seja,
Não se pune o aborto praticado por médico: termos e concepções que perduraram por
I – se não há outro meio de salvar a vida da muito tempo foram modificados ou até mesmo
gestante; II – se a gravidez resulta de estupro extintos, em decorrência de novas descobertas
e o aborto é precedido de consentimento (possibilidades). Quando o direito é irritado por
da gestante ou, quando incapaz, de seu outro sistema, como por exemplo, o da ciência,
representante legal(23). ele processa a irritação internamente e se
autorregula por meio da autopoiese, que é uma

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produção a partir si mesmo. Dessa forma, os circunstâncias: algo é complexo, quando, no
sistemas se autorresolvem, se autorreproduzem. mínimo, envolve mais de uma circunstância/
Partindo-se desse entendimento, o avanço das possibilidade, estamos diante da complexidade
ciências biomédicas gerou mais possibilidades, quando verificamos a existência de mais de
o que provocou irritações entre os subsistemas: uma possibilidade, ou seja, escolhemos uma
genético, embriológico, ecológico, metabólico e deixamos as demais sobrestadas. Com o
e neurológico que se diferenciaram, crescimento do número de possibilidades,
modificando os conceitos e concepções de cresce igualmente o número de relações entre
vida, morte, início e fim da vida(9, 25). os elementos, logo, cresce a complexidade(26).

A partir desse entendimento, o direito busca Dessa forma, a capacidade humana não
delimitar seu campo de incidência, respeitando dá conta de apreensão da complexidade,
certas liberdades e impondo determinados considerando todos os possíveis acontecimentos
limites. Considerando o ser humano como e todas as circunstâncias no mundo. Ela é,
seu criador e destinatário, importa para o constantemente, exigida demais. Assim,
direito definir a partir de que instante deverá entre a extrema complexidade do mundo e a
protegê-lo, impor obrigações, deveres, exigir consciência humana existe uma lacuna(26).
condutas e garantir direitos(3). Enfim, cabe ao Para Luhmann(28), intervêm entre a extrema
direito manter as expectativas do tipo jurídicas complexidade do mundo e a limitada capacidade
estáveis. do homem em trabalhar a complexidade. O
autor, então, define complexidade:
SISTEMA DO DIREITO: LIMITES E
POSSIBILIDADES NA PERSPECTIVA Quando num conjunto inter-relacionado de
SISTÊMICA elementos já não é possível que cada elemento
se relacione em qualquer momento com todos
Dando continuidade à análise e à discussão os demais, devido a limitações imanentes à
sobre as teorias científicas acerca do início capacidade de interconectá-los (p. 69)(28).
da vida, no âmbito da teoria dos sistemas,
neste tópico abordaremos os limites e as Neste processo é preciso que ocorra seleção:
possibilidades na perspectiva sistêmica, a “a complexidade significa obrigação à seleção,
partir da complexidade dos sistemas aplicada obrigação à seleção significa contingência
às teorias do início da vida, da necessidade e contingência significa risco4” (p. 69)(28). A
de autopoiese nos sistemas e da comunicação seleção é a escolha. Quando escolhemos algo
como estímulo para a reestruturação do sistema deixamos infinitas possibilidades sobrestadas.
social. Toda escolha/decisão gerará efeitos e o risco
faz-se presente nesse contexto.
A complexidade dos sistemas aplicada às
teorias do início da vida A complexidade é constituída pela
evolução, pois o sistema evolui para
Complexidade significa a totalidade
4 Segundo De Giorgi(27), risco é um evento generalizado
das possibilidades de acontecimentos e de da comunicação, sendo uma reflexão sobre as
possibilidades de decisão.

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sobreviver à complexidade do ambiente que Considerando a perspectiva de Luhmann(27),
cria constantemente novas possibilidades que enfoca a concepção de complexidade com
de forma inesperada. Portanto, o sistema se relação ao seu objeto de análise – o mundo –,
transforma internamente devido a irritações do com a totalidade de todos os acontecimentos,
ambiente, mas a partir do seu código binário. até uma concepção epistemo-metodológica,
Sendo assim, a evolução do sistema ocorre elaborada e aprofundada nos seus estudos,
quando ele se autodiferencia e ainda quando observa-se que ele avança para uma teoria de
há a passagem de um tipo de diferenciação sistemas baseada em mudanças paradigmáticas
para outro. Segundo a perspectiva sistêmica, a fundamentais (sistema autopoiético), passando
segmentação, a hierarquia, centro/periferia e a da distinção do todo e das partes, para a
função são quatro formas pelas quais o sistema distinção de sistema e entorno, tendo como
pode diferenciar-se(11). referência o conceito de complexidade, ao qual
tudo o que acontece, acontece no mundo.
“A evolução não pode ser planejada, ela se
nutre dos desvios da reprodução normal” (p. Para tanto, identifica-se que a capacidade
192-193)(9). Ou seja, a evolução não pode ser humana não dá conta de apreensão da
“planejada”, ela simplesmente ocorre. No que complexidade, considerando todos os possíveis
concerne às teorias que tratam sobre o início acontecimentos e todas as circunstâncias no
da vida pode-se dizer que a “insegurança” mundo, abrindo espaço para a função dos
científica ocorre, também, em função da sistemas sociais. Estes intervêm na extrema
evolução. Ou seja, o sistema biológico é complexidade do mundo e da limitada
altamente complexo e evoluiu muito, isso capacidade do homem em trabalhar com
gera dificuldades para o sistema da ciência, no a redução da complexidade, verificando o
que concerne a apresentar a sua observação sistema como um todo resultando da soma das
referente ao começo da vida. Dito de outro partes, definido o sistema por sua diferença
modo: o sistema da ciência tenta dar respostas em relação ao entorno(26). Ou seja, a evolução
para a questão que versa sobre o começo da vida, dos sistemas, a sua diferenciação entre si,
todavia, face à complexidade, não temos uma servem, justamente, para tentar minimizar a
única reposta. É válido destacar que utilizando complexidade. Os sistemas possuem funções
a teoria sistêmica como paradigma, podemos específicas para enfrentar a complexidade.
dizer que não há uma única resposta, ou seja, Entretanto, ao tentar diminui-la acabam
não há uma resposta correta (na hermenêutica incrementando-a.
há uma resposta correta para a interpretação
de cada fenômeno, na teoria sistêmica não) Assim, a autopoiese é vista como uma
(29)
. A existência das diversas teorias sobre o explicação para a evolução dos sistemas, que
começo da vida, apresentadas anteriormente, assim devem enfrentar as contingências e a
demonstram a ideia de que não há uma única complexidade da sociedade contemporânea(30).
resposta.
Registra-se a utilização do termo
A necessidade da autopoiese nos sistemas “autopoiese” a partir de pesquisas
neurofisiológicas realizadas pelos biólogos

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chilenos Maturana e Varela(31), os quais dentre internamente, os seus “problemas”.
os conceitos fundamentais defendem a auto-
organização dos processos celulares, assim O sistema se recria a partir de si próprio
denominados de autopoiese5, no qual os e da ligação existente entre si(34). “A
sistemas se definem, criam identidade a partir autopoiese não é algo que nasce do nada e
de suas próprias operações que, por sua vez, que acaba em si mesma. É, ao contrário, um
produzem o próprio sistema em um processo processo de coligação entre as estruturas e os
circular de autoprodução de componentes e acontecimentos. Uma verdadeira autofundação
capaz de dar sentido às informações do entorno factual, dirigida ao acoplamento entre os
e, dessa maneira, distinguir-se do mesmo. sistemas sociais” (p. 103)(35).

Destarte, Luhmann(28) evidencia a ruptura Com a busca da Ciência por um maior


com o pensamento sistêmico tradicional, detalhamento da gestação humana, aumenta
trazendo e possibilitando a utilização da a complexidade sobre a discussão acerca
teoria autopoiética, proveniente das Ciências da formação de um novo ser, ampliam-se os
Biológicas para as Ciências Sociais. No questionamentos a respeito do início da vida,
entanto, foram necessárias rupturas com a conduzindo ao aumento da complexidade
autopoiese biológica, a fim de adequar esta do Sistema Biológico que, por sua vez,
teoria a uma realidade de fenômenos sociais. irrita o Sistema da Ciência, tornando-o mais
Para, então, constatar que o sistema social complexo, devido às diversas possibilidades
que contém em si sua diferença, é um sistema de explicação sobre o surgimento da vida
autopoiético, autorreferente e operacionalmente humana. Neste contexto, o direito depende
fechado e que consiste como tal, reduzindo a da evolução de outros Sistemas Sociais para
complexidade do entorno9. processar e definir o que será tutelado pelo
direito, através do seu código de comunicação
A autopoiese, conceito-chave na Teoria dos binário, considerando a resposta do sistema
Sistemas, tem como ideia básica um sistema da ciência, mas processando, internamente, a
organizado autossuficiente(33). Segundo partir do código jurídico (direito/não direito).
Luhmann e De Giorgi (p.39)(27), dizer que
um sistema é autopoiético significa que ele A comunicação como estímulo para a
produz não só suas próprias estruturas, mas reestruturação do sistema social
também os seus elementos constitutivos, isto
Os subsistemas jurídico e científico,
é, “Os elementos [...], que consistem sistemas
dentre outros, integram um sistema maior, o
autopoiéticos, não têm existência independente
sistema social global. Eles são formados pela
[...]. Pelo contrário, eles são produzidos pelo
comunicação, entretanto cada subsistema tem
sistema e exatamente por isso [...] são usados
sua linguagem própria ou código específico de
como distinções [...] que produzem a diferença
comunicação, esta leva esses subsistemas a se
do sistema”. Ou seja, o sistema, a partir das
autorreproduzirem, por meio da autopoiese(36).
suas estruturas e função, consegue resolver,

5 A palavra autopoiesis vem do grego auto (por si O conceito de comunicação é central nos
próprio) e poiesis (criação, produção, poesia).

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sistemas sociais, sendo que a recursividade haja alguma compreensão, pois a informação
da autopoiesis não está sob a forma de não é transmitida de um emissor para um
resultados causais, nem na forma de operações receptor, ela é construída pelo receptor.
matemáticas, mas sim de forma reflexiva,
mediante a aplicação de comunicação sobre A partir do Sistema Social (circuito
comunicação que consiste no dispositivo comunicativo geral), os sistemas internos vão
fundamental da dinâmica evolutiva dos se autonomizando, por meio de comunicações
sistemas sociais. Uma vez que é um processo específicas, valendo-se de uma codificação
de seleções no qual se opera o processo de binária, ou seja, cada elemento comunicativo
redução da complexidade na relação com o tem uma bifurcação que apresenta as
ambiente(26, 37). possibilidades de aceitação ou recusa, abrindo
ou fechando o sistema. Dessa forma, essa
A comunicação do subsistema da ciência autonomização gera subsistemas sociais
leva à evolução do próprio sistema social de autopoiéticos como o Sistema Biológico
modo geral que, por sua vez, reflete no processo que tem como elemento constitutivo e base
evolutivo do subsistema do Direito, no caso reprodutiva a vida e o Sistema do Direto que
deste estudo, essa comunicação se dá a partir usa a codificação binária (Direito/Não-Direito)
da articulação das teorias científicas com a para manter sua estabilidade e autonomia,
contextualização do sistema jurídico brasileiro. mesmo diante do excesso de possibilidades
comunicativas(32). Constata-se, após essa
A comunicação, na perspectiva sistêmica, breve explicação, que a comunicação é a base
para Esteves (p. 5-36)(38), “destina-se a produzir reprodutiva do Sistema social.
a eficácia simbólica generalizante que torna
possível a regularização da vida social sob a Assim, a informação gerada pelas diferentes
forma de uma organização sistêmica e, ao teorias científicas (Sistema da Ciência) é
mesmo tempo, cria condições de estabilidade interpretada de diferentes formas por outros
favoráveis a este tipo de organização social e sistemas, como o Sistema do Direito, que
ao seu desenvolvimento”. por possuírem comunicações específicas não
conseguem interpretar a informação no sentido
Nota-se isso quando o direito recepciona original. Entretanto, há o processamento
alguma teoria científica sobre o começo da dessa informação (o sistema é cognitivamente
vida, a partir do seu código binário próprio, aberto e operativamente fechado) e dessa
mesmo em meio à incerteza da ciência. É forma há comunicação, que serve como base
preciso “adotar” alguma teoria. para manter a estabilidade e autonomia desse
sistema quando surgem novas possibilidades
Segundo Luhmann(9), a comunicação
de explicação para o início da vida humana, que
acontece quando informação, mensagem e
são aceitas ou recusadas no âmbito jurídico.
compreensão são sintetizadas. Mesmo que
haja um mal entendido, isto é, ainda que a CONSIDERAÇÕES FINAIS
informação selecionada não corresponda com
a informação transmitida, o importante é que Neste trabalho foram detalhadas e

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articuladas as diferentes teorias científicas e solucionar os problemas da sociedade (as
sobre o momento no qual a vida tem início, com contingências, as possibilidades e os anseios),
os dispositivos jurídicos e algumas decisões não descartando as outras teorias, ficando
judiciais concernentes à vida humana. Na busca estas sobrestadas. Do mesmo modo, quando
por uma melhor justificativa sobre a existência tentamos definir a proteção jurídica da vida
de diferentes teorias científicas, conceitos e humana, a partir do estabelecimento do seu
concepções a respeito da temática foi utilizada início, surgem várias possibilidades que nos
parte da Teoria Sistêmica, de Niklas Luhmann, obrigam a escolher apenas algumas delas para
que serve como embasamento teórico para conseguirmos prosseguir, as demais ficam
o enfrentamento dos problemas, anseios e potencializadas como opções futuras.
necessidades da sociedade, incluindo-se aqui
as discussões e controvérsias na determinação Essa limitação da capacidade humana,
do instante em que nossa vida começa. de apreensão da complexidade e a extrema
complexidade do mundo, abre espaço para
Verifica-se que o fato de existirem pesquisas a função dos sistemas sociais. Dessa forma,
de diferentes áreas científicas, que estudam e os sistemas se diferenciam (através da
descrevem cada fase do desenvolvimento diferenciação funcional e da autopoiese)
biológico humano, não nos permite afirmar que e, consequentemente, evoluem para tentar
suas teorias são as mais corretas ou absolutas, diminuir a complexidade do entorno. Nesse
pois se tratam de diferentes formas de enxergar sentido, assim como o direito depende da
o início da vida. A precisão e a objetividade da evolução do sistema da ciência e de outros
ciência derivam, em parte, dessa autorrestrição, sistemas sociais para processar e definir o
isto é, de sua limitada capacidade para fazer que será tutelado por ele, o sistema da ciência
afirmações sobre o conjunto de fenômenos e depende do sistema biológico para evoluir.
objetos que ela investiga.
Com relação à autorreprodução dos sistemas
Observa-se, ainda, que o avanço das (autopoiese), esta é garantida pela comunicação,
tecnologias científicas proporcionou um maior base reprodutiva do sistema social global, cada
detalhamento das fases do desenvolvimento subsistema possui o seu código de comunicação
biológico humano, gerando mais possibilidades específico, ou seja, o subsistema do direito tem
de explicação sobre o início da vida humana, o seu código binário (direito/não direito) e o
aumentando a complexidade. Assim, o sistema subsistema da ciência (ciência/não ciência).
da ciência tenta dar respostas para a questão que Eles se comunicam trocando informações, mas
versa sobre o começo da vida, todavia, face à por possuírem comunicação específica, não
complexidade, não temos uma única resposta. conseguem interpretá-las no sentido original,
Diante disso, e da limitada capacidade humana mesmo assim o sistema é cognitivamente
de apreensão da complexidade, considerando aberto e operacionalmente fechado, garantindo
todos os possíveis acontecimentos e todas as o processamento da informação e a existência
circunstâncias no mundo, tornou-se necessária da comunicação.
a adoção (seleção) de algumas dessas
explicações, para atender às necessidades No caso da comunicação, entre as teorias

Rev Tempus Actas Saúde Col // 127


científicas e o Direito, essa se dá a partir da direito.
articulação das suas informações, que serve
como base para manter as expectativas Nota-se que as constantes polêmicas,
do tipo jurídicas estáveis, diante de novas acerca dos assuntos que envolvem o início
possibilidades de explicação, para o início da vida humana, tornam-se necessárias para a
da vida humana que, por sua vez, tornam-se consolidação e evolução do direito, por tratar
fundamentais na busca de uma determinação de uma questão que envolve a vida humana.
mais fidedigna. Sendo de grande pertinência a presença do
direito na maioria das discussões, pois estas
Após essa análise, conclui-se que não há tratam de explicações que servem de subsídio
uma dogmática jurídica solidificada no que para as questões ligadas ao direito à vida,
tange ao consenso sobre quando começa a que é um dos princípios basilares da pessoa
vida. Entretanto, existem teorias científicas humana. O direito tem como obrigação a
que têm uma maior aceitação perante a construção de parâmetros conceituais para
sociedade e outras, que são mais adequadas ao o início da vida, para isso ele deve utilizar
âmbito jurídico, isso porque o direito possui fontes científicas. Diante disso, observa-se que
diferentes áreas que têm por objeto a tutela de o direito não declina, ele se adapta aos novos
bens variados. Em outras palavras, o direito parâmetros científico-biológicos, rompendo os
civil se preocupa com o início da personalidade paradigmas e se adequando às teorias sobre o
civil e os direitos do nascituro, já o direito início da vida humana, dando lugar para novas
penal criminaliza qualquer prática de expulsão jurisprudências e leis infraconstitucionais.
do feto após a nidação. Portanto, o direito
infraconstitucional protege por modo variado Então, cabe à sociedade decidir qual dessas
cada etapa do desenvolvimento biológico do explicações é válida em determinada ocasião,
ser humano. pois vivemos em uma sociedade dinâmica,
onde há diversas descrições, sob a ótica de
Para tanto, o princípio da existência da variados pontos de vista, mas todas com o
vida humana é o conteúdo elementar de todos mesmo valor. Porém, o mesmo princípio usado
os demais direitos e liberdades dispostos na para a morte não deve valer para a vida, pois
Constituição. A construção do mundo do direito como foi afirmado neste trabalho, a vida é um
tem nos marcos da vida de cada indivíduo os contínuo processo, resultado das várias etapas
limites máximos de sua extensão concreta. A do desenvolvimento intrauterino. Por fim,
vida é premissa dos direitos proclamados pelo conclui-se que excetuando a teoria neurológica,
constituinte, não faria sentido declarar direitos todas as outras teorias são válidas.
se não fosse definido, antes, o momento do
surgimento da vida a ser tutelado. O seu peso REFERÊNCIAS
abstrato, inerente à sua capital relevância
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é superior a todo outro interesse, tornando
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