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● Em ruptura com a tradição, os artistas optam por uma abordagem mais irónica e
provocatória;
● Movimentos:
da força do indivíduo;
● A Mensagem terá tido origem no projecto de um livro cujo título seria Gládio, do qual
resultou apenas um poema com esse nome, integrado na obra, surgido em 1913.
● A ideia de um livro de poemas de inspiração nacional terá surgido, pela primeira vez, por
volta de 1917-1918, na época em que governou Sidónio Pais.
● Em 1922, foi publicado um conjunto de poemas, sob o título de «Mar Português», que
acabaria por constituir a segunda parte de Mensagem.
● A obra foi proposta para o Prémio Antero de Quental, que se destinava a distinguir "poesia
nacionalista", mas tal acabou por não acontecer por não possuir o número de páginas
estipulado (100). António Ferro, amigo de Pessoa dos tempos da revista Orpheu e
responsável pelo Secretariado de Propaganda Nacional, improvisou um prémio de segunda
categoria para distinguir Mensagem.
● Na Mensagem, Pessoa assume-se como o cantor do fim do império português (Camões foi o
cantor do seu início e auge). De facto, a Pátria, no tempo do poeta, encontrava-se num
estado de decadência e desagregação, circunstância que faz despertar nela a ânsia de
renovação e regeneração que procura plasmar na sua obra. Ele acreditava que, através dos
seus textos, poderia despertar as consciências e fazê-las acreditar e desejar a grandeza de
outrora. Por isso, as duas partes iniciais de Mensagem assinalam o passado histórico e
grandioso de Portugal, enquanto a terceira descreve o presente decadente e anuncia a vinda
do Encoberto, representado na figura mítica de D. Sebastião, o pilar do Quinto Império.
● O conteúdo enaltecedor da maioria dos poemas contrasta com o contexto em que foram
produzidos:
Super-Nação mítica.
Título: Mensagem
A explicação em torno do título dado por Pessoa à sua única obra em língua portuguesa
publicada em vida não é consensual, daí que não seja de estranhar que existam diversas
teorias acerca do tema.
razão: o nome da pátria estava muito associado a textos publicitários, que promoviam, por
exemplo, marcas de sapatos e marcas de hotéis;
. 1.ª explicação:
. 2.ª explicação:
recetor: o Poeta, que, pelo seu génio, foi eleito por Deus, para dar conhecimento da
mensagem à tribo de que será guia e profeta, transformando-se também, em emissor.
. 3.ª explicação:
o título Mensagem teria tido origem na afirmação feita por Anquises, personagem da Eneida,
quando explica a Eneias, descido aos Infernos, o sistema do Universo - Mens agitat molem =
a mente move a matéria;
. 4.ª explicação:
o título poderá ainda estar ligado à expressão «ens gemma», isto é, ente em gema, ovo;
. 5.ª explicação:
a palavra mensagem pode ser «recortada» e construir as expressões mea gens ou gens mea,
isto é, «minha gente» ou «gente minha», remetendo para a raça de heróis nomeados ao
longo da obra;
outra hipótese remete para mensa gemmarum, isto é, o altar ou mesa onde repousam as
gemas portuguesas - Portugal é onde se procede ao sacrifício necessário à realização do
sagrado;
Portugal seria, assim, o altar onde os sacrifícios em nome do divino foram realizados.
Classificação de Mensagem
Desde logo, é possível referenciá-la como uma obra lírica (sobretudo na terceira
parte):
» é um livro de poemas;
» o simbolismo;
mágoa»);
» o tom menor;
» o heroísmo:
agem pelo instinto, sem terem a visão do sentido e alcance dos seus actos
» a matéria histórica.
Por fim, é possível detectar traços em Mensagem que a levam a considerar uma obra
mítica:
» Portugal é a nação eleita por Deus para ser o coração e a sede do Quinto
Império;
readaptando-os;
» o mito do Santo Graal, sendo o nosso Desejado o herói sem mácula do ciclo da
Demanda do Santo Graal - Galaaz -, aquele que encontrará, por ser o mais puro
dos
cavaleiros da corte do rei Artur, o cálice sagrado (o Graal) que contém o sangue
de
Cristo, sobre o qual se poderá construir a Cidade de Deus (poema "O Desejado);
» o mito das Ilhas Afortunadas, com fortes conotações arturianas, "terras sem ter
ilha rodeada de nevoeiro, de onde um dia regressará para cingir a sua coroa
usurpada;
» o mito das Idades, do ciclo, que apresenta a história da pátria como o mito de
um
O mito sebastianista
No entanto, o mito tem raízes mais profundas, desde as lendas arturianas até aos
mitos peninsulares em torno da figura do Encubierto, passando pelas Trovas do Bandarra,
profecias da autoria de Gonçalo Antes de Bandarra, um célebre sapateiro de Trancoso,
anterior a D. Sebastião, posteriormente adaptadas à figura do rei.
2. A figura de D. Sebastião
D. Sebastião herdou o trono do avô, D. João III, em 1557, portanto com três anos de
idade. Como era menor, sua avó, D. Catarina de Portugal, ficou no seu lugar enquanto
regente do reino. Desde muito cedo, sentiu a necessidade de readquirir a glória recente do
país e prosseguir a cruzada dos Descobrimentos e da expansão da fé cristã. Deste modo,
quando atingiu os catorze anos, reorganizou o seu exército e preparou-se para a guerra no
Norte de África.
3. O mito em Bandarra
António Gonçalo Anes, mais conhecido por Bandarra, foi um sapateiro e poeta nascido
por volta de 1500 em Trancoso e falecido, provavelmente, em 1556.
A sua obra, de cariz messiânico, conhecida por Trovas ou Profecias de Bandarra, foi
composta entre 1530 e 1540 e publicada apenas em 1603, em Paris, graças a D. João de
Castro. Foi dedicada a D. João de Portugal, bispo da Guarda, mas nem este gesto evitou a
perseguição de que foi alvo pelo Santo Ofício, tendo acabado por ser acusado de judaísmo
(de facto, as Trovas parecem ter despertado grande interesse junto da comunidade de
Cristãos-Novos), julgado e condenado. A sua condenação forçou-o a participar numa
procissão de um auto-de-fé, a nunca mais interpretar a Bíblia ou a escrever sobre assuntos
teológicos.
Quando Bandarra foi interrogado pela Inquisição, afirmou que tinha lido a Bíblia e que
determinadas passagens o tinham marcado, nomeadamente passagens dos livros de Daniel,
Isaías, Jeremias e Esdras, nos quais é profetizada a vinda de um rei que traria, finalmente, a
paz e a justiça a todos os povos da terra:
4. O mito em Mensagem
O tempo de Pessoa é marcado por uma série de acontecimentos que mergulham o
país na crise e no descrédito: o descrédito do governo monárquico, a implantação da
República, o desencanto após os primeiros instantes de euforia e, sobretudo, o Ultimatum
inglês (1891), que deixou o país sangrando de humilhação.
Procurando traçar com rigor os contornos do mito, Pessoa procede a uma análise do
papel do rei do
António Machado Pires, na esteira de José Chaves, considera a existência de três fases
no que ao mito sebastianista diz respeito:
O «rei, que de aqui há-de ir» é o senhor rei D. Sebastião, mas a «ida» dele tem três
feições - foi a ideia da independência da nacionalidade, foi a ida do próprio homem, e foi a ida
do povo português, ou do império português. Assim, o «tornar a vir» se conformará, por seu
lado, com estas três interpretações. (...) «Tesouras» refere-se a um número, e, como deve
ter interpretações, segundo a regra profética, e aqui as interpretações, como sempre do
menor ao maior, são, forçosamente, do menor ao maior número, porque se trata de
números, segue que os três números serão aqueles que possam ser representados por
tesoiros. Além de que estas referências numéricas são sempre à numeração romana,
acontece, ainda, que na numeração árabe não há número que se assemelhe a tesouras, isto
é, que tenha dois elementos. Na numeração romana há três: o dois (II), que é como a
tesoura ainda reunida, como tal, o cinco (V), que é a parte de cima da tesoura reunida, e o
dez (X), que é a tesoura inteira aberta.
A indicação refere-se a «trinta tesouras», e vê-se que vai por «números redondos».
Diz «passadas trinta tesouras», isto é, não antes de teres passado trinta tesouras. Como o
número redondo seguinte será quarenta, temos que o tempo indicado é «entre trinta e
quarenta tesouras».
No caso da primeira tesoura (II, dois), isto quer dizer entre 60 e 80 anos da ida do rei,
e refere-se ao facto mais material, a perda da independência. Reaver-se-ia a independência,
diz o profeta, entre 60 e 80 anos depois de ir aqui o rei. Com efeito, a independência foi
reavida em 1640, 62 anos depois de 1578, que foi quando o rei «partiu». No caso da segunda
tesoura (V, cinco), temos que o tempo é entre 150 e 200 anos depois de 1578. Isto quer
dizer entre 1728 e 1788. Foi entre estes anos que apareceu o Marquês de Pombal, cujo
nome, por sinal, era Sebastião. Há aqui um «regresso de força».
No caso da terceira tesoura (X, dez), o prazo indicado é entre 1878 e 1978. É entre
estas duas datas que se dará a verdadeira «vinda» do rei «que de aqui» foi.
Outra interpretação diz que as datas devem ser marcadas para logo passadas as trinta
tesouras, isto é, para a tesoira 31. Isto daria, respectivamente, as seguintes datas - 1640,
1733 e 1888." (NOTA: ano do nascimento de Fernando Pessoa)
Sabendo-se que a interpretação profética é sempre tripla, a ida (ou partida, perda) de
D. Sebastião tem feições - a ida da independência, a ida do homem, a ida do poder
português; do mesmo modo, a sua vinda terá três partes distintas, a saber:
Quinto Império
Acabou por ser o profeta Daniel quem lho revelou e decifrou do seguinte modo: "Tu é
que és a cabeça de ouro. Depois de ti surgirá um outro reino menor do que o teu; e depois
um terceiro reino, o de bronze, que dominará toda a terra. Um quarto reino será forte como o
ferro, vindo a esmagar todos os outros, mas sendo de ferro e de argila não se aguentará para
sempre. A pedra que destrói os quatro metais ou quatro reinos simboliza o reino que o Deus
do Céu fará aparecer, um reino que jamais será destruído e cuja soberania nunca passará a
outro povo." (Daniel, 2, 24-45)
Sintetizando:
1.º) Designou-se Quinto Império o sonho mítico do Padre António Vieira, segundo o qual
Portugal consumaria a realização do reino universal de Cristo através da acção do rei D. João
IV.
2.º) O Quinto Império seguir-se-ia aos quatro impérios antigos: Grécia, Roma,
Cristandade e Europa.
O seu número definitivo (7) só se fixou no início do século XVI e refere-se aos sete
castelos que foram conquistados aos mouros para garantir a demarcação do território
nacional.
Por outro lado, o título do poema é uma perífrase de Portugal: «O [país] dos castelos»,
isto é, Portugal.
Por outro lado, os cabelos são caracterizados como «românticos» (v. 3), sonhadores,
toldam o rosto, adensando o mistério que envolve a figura, enquanto os olhos são «gregos».
Estas metáforas sugerem as raízes culturais que constituem a identidade europeia: o Norte (a
referência aos “românticos cabelos”) e o Sul (a referência aos “olhos gregos”).
Portugal parece, pois, ter sido tocado pelo destino, reunindo todas as condições para
“comandar” a Europa na reconquista de um passado cultural perdido (paradoxo do verso 10).
Enquanto rosto da Europa, «fita» (atente-se na sua repetição por três vezes, como se de uma
verdadeira obsessão europeia e portuguesa se tratasse) o mar ocidental, seu destino, seu
futuro. Pessoa considera, assim, que a missão de Portugal é ligar o Oriente ao Ocidente (“De
Oriente a Ocidente jaz, fitando”), quer geográfica quer espiritualmente, sendo que reúne
características indicados para essa missão: a sua situação geográfica privilegiada e a sua
vocação marítima, já com provas dadas.
Neste poema, à semelhança do que Camões fez nas estâncias 6 a 21 do canto III de Os
Lusíadas, Pessoa procura apresenta Portugal, inserindo-o como cabeça da Europa, uma figura
feminina deitada e fitando “com olhar esfíngico e fatal”, em posição de expectativa, o
Ocidente, sua vocação histórica.
«O dos Castelos»
"O dos Castelos" é o primeiro poema de Mensagem, estando por isso inserido na
primeira parte da obra, intitulada "Brasão" e, dentro desta, numa subparte designada "Os
Campos". O campo é a parte inferior do escudo nacional e tem duas partes: a dos Castelos e
a das Quinas. Daqui surge o nome do poema: O (Campo) dos Castelos. Recordar que o outro
poema que integra este primeiro «andamento» de Mensagem se intitula O (Campo) das
Quinas.
Neste poema, Fernando Pessoa descreve a Europa e descreve-a como um ser feminino
deitado sobre os cotovelos, fitando (ter presente a diferença semântica entre «olhar» e
«fitar») «De Oriente a Ocidente», com «românticos cabelos» (que representam a herança
cultural do Norte da Europa) e «olhos gregos» (que simbolizam a herança cultural do Sul
europeu, a herança cultural grega). Por esta descrição, é fácil detectar a personificação da
Europa, que se estende por toda a composição poética. Por outro lado, convém atentar na
expressividade do verbo «jazer», que significa «estar deitado», mas também «estar morto ou
como morto». Ora tal pode significar uma alusão à necessidade de despertar de uma certa
letargia o continente europeu e conduzi-lo na senda da construção de um novo império. Seria
interessante reflectir sobre o chamado projecto europeu (Comunidade Europeia) e num certo
adormecimento da sua construção, bem como sobre as esperanças depositadas no Tratado
de Lisboa.
1.ª) Ulissipo: o nome proviria de Ulisses, um dos heróis lendários da Guerra de Tróia e o
protagonista da Odisseia, epopeia de Homero, que teria sido o fundador da cidade (segundo a
lenda, após a vitória de Tróia e de regresso a casa, ter-se-ia perdido no Mediterrâneo,
aportado no estuário do Tejo e fundado a cidade).
2.ª) Elasippos: nome de um dos filhos de Neptuno ou nome comum que significa «que lança
os cavalos na corrida» (alusão à fama entre os Antigos dos velozes cavalos do Ribatejo);
O documento mais antigo conhecido em que surge a palavra Lisboa é uma moeda do
reinado de D. Fernando I.
Fontes:
‑ lisboamm.blogs.sapo.pt;
‑ manual Página Seguinte.
5. Estrutura interna
. Tese: «O mito é o nada que é tudo» (metáfora e paradoxo): é «nada» porque, dada a sua
natureza, não tem consistência nem fundamento, não existe na realidade, não é um facto,
mas dá uma explicação para todas as coisas, está na origem dos grandes acontecimentos. Ou
seja, é algo que «oculta» a verdade, mas também concorre para a esclarecer;
. «O mesmo Sol que abre os céus / É um mito brilhante e mudo»: o mito é um acontecimento
habitual, presente aos olhos de todos, mas exige ser decifrado (é um enigma ‑ «mito
brilhante» ‑, nítido, claro, mas mudo, daí a exigência de ser decifrado), como o sol, que faz
romper a manhã («abre os céus» ‑ personificação). Note-se que o culto do sol, de origem
pré-histórica, está associado a grande número de ritos iniciáticos. Por outro lado, de acordo
com as conceções rosa-crucianas, o mundo é o corpo de Deus. O sol é, para Pessoa, «a
apresentação visível de Deus na matéria criada»;
. «O corpo de Deus / Vivo e desnudo»: o mito é uma fonte de criação («Deus») que aparenta
nada significar («corpo morto»), mas é «vivo e desnudo», isto é, encontra-se nele tudo,
explicação para tudo, é um mito vivo, a luz celeste.
. 2.ª parte (2.ª estrofe) – Ulisses enquanto mito: o herói Ulisses, ainda que não tenha
existido, foi transformado em mito, através do qual se explicou a origem de Lisboa (Olisipo >
Lisboa) – representando Portugal, como sua capital – e projetou, por ser um herói ligado ao
mar e às viagens, o povo português para a glória, concretizada nas longas viagens marítimas
rumo ao desconhecido, vencendo, com audácia, os perigos.
Ulisses «Foi por não ser existindo», isto é, ele é um ser mítico, portanto não existiu,
mas, também por ser um mito, existe na memória cultural de um povo.
. 3.ª parte (3.ª estrofe) – Conclusão: a lenda (o mito) fecunda a realidade, dá-lhe nova vida,
um sentido.
O mito é colocado num plano superior à realidade, à vida, que está «em baixo», é só
«metade de nada», transitória e mortal, por isso, quando não apoiada no mito, definha,
«morre». Só adquire vida aquilo que o mito fecunda. O mito permanece, a vida morre. Dito
de outra forma, sem mito não há vida.
Note-se, porém, que há autores que apresentam outra interpretação para os dois
versos finais. De acordo com essa interpretação, o sujeito poético aludiria à morte como
libertação ou energia redentora, numa perspetiva iniciática.
Através deste texto, Pessoa serve-se da origem lendária de Portugal para explicar a
importância do mito e desta para explicar o que deverá ser Portugal. Ulisses, o herói da
guerra de Tróia – inventor do estratagema do Cavalo de Pau – e protagonista da Odisseia‑, é
um dos grandes mitos da civilização grega, matriz da civilização ocidental e, segundo a lenda,
na sua viagem de regresso á pátria, teria aportado em Portugal, fundando Lisboa, a futura
capital do reino.Ulisses é tomado como pretexto para justificar que o mito, embora um nada,
é necessário. Ele foi herói, resistiu, impôs-se aos seus inimigos, sulcou os mares, cometeu ou
esteve na génese de grandes feitos – como Portugal fez (o império real) e deverá fazer (o
império de base espiritual). O importante é que Portugal se encha de coragem e denodo, para
vencer a mediocridade do presente.
Este poema pertence à primeira parte. As origens de Portugal, como das grandes
nações, estão envoltas na lenda e no mistério. Neste caso, é o mito de Ulisses, o herói
lendário fundador da capital do nosso império, Lisboa, o coração da pátria.
1. A figura de D. Sebastião
No século XVI, o príncipe D. João, herdeiro do trono português, casou-se com D. Joana
de Áustria, irmão de D. Filipe II de Espanha. Deste matrimónio nasceu um único filho, D.
Sebastião, que nasceu a 2 de janeiro de 1554, dezoito dias após a morte de seu pai, o
príncipe D. João.
O rei D. João III, avô de D. Sebastião, faleceu em 1557, quando o neto tinha três anos
de idade. A criança recebeu de imediato a coroa e a sua avó passou a regente do reino.
Assim, D. Catarina governou de 1557 a 1562, seguindo-se-lhe o seu tio-avô D. Henrique,
cardeal-arcebispo de Lisboa e inquisidor-mor, de 1562 a 1568.
Por outro lado, o jovem monarca dividia o seu tempo por caçadas, exercícios religiosos
e leitura de livros de História. Adorava desafiar o perigo. Em dias de temporal, embarcava
nas galés para fora da barra e contemplar o mar enfurecido. De acordo com o escritor
Fernando Dacosta, «Era um pouco louco; tinha dificuldade em separar a ficção da realidade».
Porém, quando Lisboa foi assolada pela peste de 1569, abandonou a cidade, facto que parece
comprovar que a sua coragem era apenas temperamental e não um valor consciente e
assumido.
Relativamente à sua vida íntima, nunca casou, não obstante a insistência da corte para
que escolhesse uma noiva entre as casas reais europeias e desse um sucessor à coroa. Em
determinada altura, negociou casamento com Margarida de Valois e com a arquiduquesa
Isabel de Áustria, que acabou por desposar Filipe II. O despeito pelo episódio, provavelmente
artificial, serviu de pretexto para que recusasse a encetar novas negociações, o que lhe
permitia estar completamente livre para se dedicar àquilo que mais o fascinava: a guerra.
A pedido do cardeal Alexandrino, enviado pelo Papa, esteve para participar numa
cruzada contra os Turcos, mas, na impossibilidade de levar avante a ideia, projetou uma
incursão na Índia. Dissuadido pelos conselheiros, decidiu, enfim, concentrar os seus esforços
em África, chegando a navegar em segredo até Tânger em 1574. Provavelmente, terá sido
por essa altura que começou a desenhar-se no seu espírito o desejo de invadir Marrocos a fim
de reconquistar as terras, outrora portuguesas, devolvidas aos mouros por D. João III.
Segundo um dos seus mais recentes biógrafos, o espanhol Baños-García, «D. Sebastião
acreditava ser um capitão às ordens de Deus e da Igreja, montando a invasão de Marrocos
para se tornar numa lenda vitoriosa.». Muitos tentaram demovê-lo, sobretudo os espanhóis
D. Catarina e Filipe II, mas o soberano português tinha vestido a pele da luta pela
independência nacional. Nada o faria mudar de ideias.
Porém, no areal, ficou apenas o que nele havia de mortal, o ser físico, o corpo («Ficou
meu ser que houve»), tendo sobrevivido o ser que há, que permanece, que é imortal, isto é,a
alma, o sonho, o ideal («o que há») ‑ loucura ‑, de querer grandeza, de devolver a glória à
Pátria, que continua vivo e por concretizar, daí o apelo que faz na segunda estrofe. Recorde-
se que o sonho «original» do rei consistia no engrandecimento de Portugal através da
conquista de terras aos mouros no norte de África e da expansão da fé de Cristo.
Além disso, nestes versos finais da primeira estrofe, Pessoa faz conjugar, na figura de
D. Sebastião, história e mito. De facto, historicamente, o rei pereceu no areal de Alcácer
Quibir (o «ser que houve» ficou «onde o areal está»), mas o que tem primazia para Pessoa é
o mito («o que há»).
. faz referência à loucura enquanto energia criativa que poderá ser canalizada para a
reconstrução nacional;
. através da loucura, o ser humano projeta-se no futuro e, por isso, não morre (com efeito,
perante o sonho / a loucura, a morte não passa de contingência física que não pode impedir
que aquele(a) prossiga noutras mãos);
. é a loucura que leva o homem a partir em busca de grandes realizações (como fizeram os
Argonautas e Vasco da Gama, para quem «Navegar é preciso / Viver não é preciso») ‑ e, de
facto, foi a louca temeridade de D. Sebastião que esteve na origem do desastre de Alcácer
Quibir, mas também serviu de exemplo aos vindouros.
Nota-se, ao longo do poema, uma viva admiração de Pessoa pela loucura de D.
Sebastião e um claro desprezo pelo homem «besta sadia», que vive sem ideais, sem grandes
sonhos ou projetos, contentando-se com a mediocridade e com o «gozo materialista».
Por outro lado, Pessoa associa a loucura ao génio. Na verdade, o louco é também o
símbolo da inspiração, do poeta, de todo aquele que está para além do comum da sociedade.
3. Estrutura interna
O poema insere-se na 1.ª parte de Mensagem, «Brasão», uma vez que esta
compreende os antepassados fundadores da nacionalidade. Por outro lado, a inserção nas
Quinas prende-se com o facto de D. Sebastião ter perdido a vida no contexto do cumprimento
de uma tarefa para que foi escolhido por Deus.
Atente-se nas palavras dos autores do manual Expressões ‑ 12.º ano sobre o valor
simbólico do rei D. Sebastião na obra de Fernando Pessoa: “D. Sebastião adquire em
Mensagem um valor simbólico que ultrapassa a sua figura histórica. São os valores da
determinação e da coragem que ele corporiza que funcionam como mito inspirador e, nessa
aceção, «fecundam a realidade»: «É Esse que regressarei.» O Sebastianismo em Mensagem
não se liga, pois, ao caso específico e concreto de D. Sebastião, que não poderá, obviamente,
voltar, mas à ideologia que lhe está subjacente. Depois de «ser que houve» e que ficou no
«areal» com a «morte», regressará a força inspiradora de D. Sebastião necessária ao
ressurgimento anímico da nação. O próprio Pessoa refere: «No sentido simbólico D. Sebastião
é Portugal: Portugal que perdeu a sua grandeza com D. Sebastião e que só voltará a tê-la
com o regresso dele, regresso simbólico (…)».”
5. Intertextualidade
Comparemos, por último, a forma como a figura de D. Sebastião é tratada em Os
Lusíadas e na Mensagem:
. Os Lusíadas:
. Mensagem:
‑ Retrato: o seu retrato é mítico, assente sobretudo no seu traço de «loucura» criadora e
inspiradora;
Este é o primeiro poema da segunda parte de Mensagem, o que faz todo o sentido se
tivermos em conta que o Infante D. Henrique foi o impulsionador dos Descobrimentos, por
exemplo ao fundar a Escola de Sagres. Daí o título do texto: embora nele se refira a aventura
marítima levada a cabo pelos portugueses, foi o Infante quem desempenhou um papel crucial
nessa aventura, o de protagonista, de impulsionador, o de símbolo do início da construção do
império. Daí que lhe caiba o papel de protagonista da «Possessio Maris» (Posse do Mar),
dedicada à gesta dos Descobrimentos. Segundo António Quadros, o Infante foi o “descobridor
da ideia de descoberta”.
Estrutura interna
. 1.ª parte (1.º verso) ‑ As três etapas que presidem à construção da obra humana,
traduzidas pelo mote / aforismo «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce».
. Os três «sujeitos» dependem mutuamente, numa relação de causa efeito: sem a vontade do
primeiro, o segundo não sonharia e a obra não poderia nascer.
. o caráter navegável do mar, para que o ser humano tivesse acesso ao conhecimento da
Terra.
Assim, o Infante é o símbolo do herói, o agente por vontade divina, destinado a criar
uma obra superior.
‑ evoca o nome próprio «Sagres», a escola de navegação fundada pelo Infante, símbolo do
início da construção do império português;
‑ remete para o caráter mítico e predestinado do Infante, o escolhido por Deus para a
execução da obra, daí que possamos também falar na sua divinização;
. O complexo verbal «foste desvendando» (v. 4) apresenta a ação como uma continuidade,
como algo que se concretizou de modo progressivo; a forma verbal «desvendando»
(desvendar = revelar, descobrir, mostrar), por outro lado, remete para a ideia de revelação
de algo desconhecido.
→ a descoberta das ilhas da Madeira e dos Açores até à costa africana: «E a orla branca foi
de ilha em continente»;
→ o mar desconhecido a partir da zona do Cabo das Tormentas: «do azul profundo»;
→ a concretização:
. o aparecimento: «Surgir»;
. O percurso da obra:
→ deste modo, do mar (do «azul profundo»), «de repente», irrompeu a unificação do mundo.
. A realização da obra é sugerida por Pessoa através do recurso a diversos recursos poético
estilísticos:
. o gerúndio «correndo»;
. a aliteração do /r/;
‑ enquanto tal, simboliza o povo a que pertence, o que significa que também ele foi
assinalado, predestinado, escolhido por Deus para desvendar o mar desconhecido;
Mas, afinal, o que falhou em todo o processo? Porque se desfez o império? Deus quis, o
homem sonhou e a obra nasceu, mas uma obra efémera, perecível, como tudo o que é
material e humano. A culpa não é de Deus, já que ele sagrou e destinou o Infante e o povo
português ao cometimento de feitos muito acima da sua condição de mortais. Mas como ser
humano limitado, não houve continuidade para o império, que se desfez, daí que Pessoa
aponte para a necessidade de Portugal se cumprir integralmente, de complementar com a
dimensão espiritual a materialidade do império passado, novamente sob a predestinação
divina.
A ação do Infante:
‑ representa o povo português («… e nós em ti nos deu sinal.» ‑ v. 10) e «foi desvendando
[descobrindo, revelando] o mar», ultrapassando dificuldades;
‑ é também o herói que busca a universalidade, daí a utilização do artigo definido no título
(«O Infante») e em «o homem» (verso 1) com um valor universalizante;
‑ possui um caráter divino, dado que foi o eleito, o predestinado por Deus para o
cumprimento desta missão; por extensão, como é português e representa o seu povo, a sua
sagração significa a divinização do homem português;
‑ a sua sagração, a sua obra, tem como consequência o acesso ao conhecimento: dos limites
geográficos do planeta, do mar, de outros povos, de outras culturas.
. Tom dramático do poema:
‑ as três personagens:
. o sujeito poético, que se dirige ao Infante e interpela Deus, significando este facto a
existência de um diálogo (implícito), o que está de acordo com o caráter misterioso e
messiânico do poema;
. Deus;
. o Infante.
2. Título
1.º) A palavra «mostrengo» é derivada por sufixação («monstro + engo»). O sufixo «-engo»,
de origem germânica, tem um valor pejorativo. «Mostrengo» significa, assim, «ente
fantástico, geralmente considerado perigoso e assustador, dotado de uma configuração fora
do normal e desagradável» (in manual Entre Margens 12).
2.º) Por outro lado, «mostrengo» está relacionado com o verbo «mostrar». Neste sentido,
«mostrengo» é aquele que mostra o que não é ainda conhecido.
3. Retrato do «mostrengo»:
. situa-se no desconhecido, na lonjura, no local que se julgava ser o fim («está no fim do mar
/ Na noite de breu…») – vv. 1-2), ligado a um tom de mistério, de enigma;
. é o senhor dos mares e dos seus segredos: «Nas minhas cavernas que não desvendo, /
Meus tetos negros do fim do mundo» (vv. 6-7) ‑ o mar é apresentado fechado no sentido de
espaço e sem fim no sentido da profundidade, indiciando mistério; por outro lado, representa
o desconhecido («Nas minhas cavernas que não desvendo»; «fim do mundo»);
‑ voa (v. 2) – notar a intenção de exprimir a voz do morcego e o seu nervosismo, por ver os
seus domínios ameaçados, através da musicalidade de sons como /u/, /ô/, /ê/, /i/, /a/;
‑ chia;
. defende os seus domínios perante a ousadia dos portugueses, que ousam invadir e
desvendar esses domínios;
‑ os movimentos circulares que tece em roda da nau (vv. 3, 4, 12, 13, 25) parecem querer
«asfixiar» os portugueses;
‑ chia;
‑ etc.
. identifica-se com o mar tenebroso e desconhecido: «moro onde nunca ninguém me visse / E
escorro os medos do mar sem fundo» (vv. 15-16) ‑ notar a expressividade do verbo
«escorrer», sugerindo que o «mostrengo» simboliza o mar, bem como a aliteração em /m/ e
o pretérito imperfeito do conjuntivo «visse», sugerindo o desejo do «mostrengo» em
continuar desconhecido;
. sente-se desafiado;
. os argumentos de autoridade que evoca têm como objetivo infundir nos marinheiros o medo
e levá-los a retroceder, a desistir da sua viagem;
. na 3.ª estrofe, apaga-se e já não fala, facto que denota o triunfo dos marinheiros. De facto,
à medida que o poema vai avançando, o «mostrengo» perde força, acabando por se anular.
. Retrato do marinheiro:
‑ invoca a autoridade de que foi investido: «El-Rei D. João segundo!» (v. 9);
‑ mostra um crescendo de coragem e valentia, pois se, na 1.ª estrofe, fala a tremer, nesta
fala depois de tremer.
‑ de facto, o marinheiro está dividido interiormente entre o terror e a coragem, acabando por
vencer esta última;
‑ consciencializa-se de que ali não se representa a si mesmo («Aqui ao leme sou mais do que
eu« ‑ v. 22), mas a vontade do rei e do seu povo, e enfrenta o «mostrengo», vencendo e
prosseguindo a sua missão, uma atitude que revela coragem, convicção, força e
determinação.
. Ambiente:
- «noite de breu»;
- tetos negros»;
‑ «onde me roço»;
‑ «Três vezes rodou imundo e grosso».
. Localização espácio-temporal:
‑ «à roda da nau»;
‑ «nas minhas cavernas que não desvendo, / Meus tetos negros do fim do mundo!»;
‑ os segredos ocultos
. O homem do leme
‑ é o herói mítico, símbolo do seu povo e que, por isso, passa de herói individual a coletivo,
com uma missão a cumprir.
. Grande tensão entre as duas personagens ao longo do diálogo e ao longo de todo o texto:
. Ambiente de terror:
- a linguagem visualista;
- as atitudes do «mostrengo»;
- a localização espácio-temporal.
. Os recursos estilístico-poéticos:
- as exclamações e interrogações;
- a reiteração;
- as metáforas;
- o refrão.
. Verso decassílabo.
. Harmonia imitativa.
. Aliterações.
. Título: no título, constituído por duas palavras, há a destacar o adjetivo «português», que
remete para a conquista e o domínio dos mares pelos Portugueses, que os ligaram e fizeram
com que existisse apenas o «mar» conhecido. Essa união foi o resultado do sofrimento e da
coragem dos lusitanos; daí o mar ser «português». Por outro lado, apesar de os Portugueses
já não cruzarem o mar no presente, o título deixa entender que ele será sempre lusitano.
. Estrutura interna
. 1.ª parte (1.ª estrofe) – Interpelação do sujeito poético ao mar, a que, relembra o preço (os
sacrifícios) pago pelos Portugueses para conquistarem o mar.
Outra ideia que ressalta da 1.ª estrofe é a de que o mar é português, tão alto foi o
custo que a sua conquista implicou. E notemos que é o mar, não os mares, o que traduz a
ideia de unificação do mar, a qual se ficou a dever ao empenhamento lusitano. Outra forma
de mitificação de Portugal operada nesta estrofe consiste na atribuição ao sal do mar de uma
origem portuguesa, mitificando-se a dor lusa.
Por outro lado, esta estrofe assume um claro cariz épico, uma vez que nela predomina
a valorização do sofrimento e do espírito de sacrifício dos Portugueses, capazes de superar
provações extremas e de, desse modo, provar a sua grandeza espiritual. Tudo começa e
acaba no mar.
. 2.ª parte (2.ª estrofe) ‑ Balanço / justificação dos sacrifícios: os grandes feitos (a conquista
e o domínio do mar) pressupõem sofrimento, mas todo o esforço e dor arrastam consigo
alguma compensação, daí que o esforço e o sacrifício dos Portugueses não tenham sido em
vão.
Esta segunda estrofe assenta na apresentação da resposta, através de três frases
declarativas, à interrogação inicial que introduz a reflexão:
. «Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena»: todos os sacrifícios são justificáveis se o
objetivo que estiver na sua base for nobre e se se agir com ousadia, coragem, determinação
e abnegação; tudo vale e pena para atingir o ideal sonhado, a heroicidade.
. «Quem quer passar além do Bojador(1) / Tem que passar além da dor»: quem quer
alcançar o objetivo desejado tem de superar os obstáculos que se lhe depararem e a própria
dor, indo além dela (notar que o Bojador é, aqui, a metáfora dos objetivos a alcançar e
simboliza o ultrapassar do medo, do desconhecido, o primeiro passo para o conhecimento). É
necessário superar os limites da frágil condição humana.
. «Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu»: quem superar,
sofrendo, os perigos do mar, alcançará a glória suprema, que é o mesmo que dizer que tudo
o que é verdadeiramente custoso tem o seu preço (1.ª estrofe) e a sua compensação (último
verso). O «mar» é símbolo de sofrimento e morte («perigo» e «abismo»), mas também
símbolo de realização do sonho, de glória e imortalidade, já que foi nele que deus fez
«espelhar» o céu. Quem conquistar o mar ascenderá ao plano divino. Se, na 1.ª estrofe, se
lamentou o preço pago pela conquista do mar, na segunda, anuncia-se o prémio.
. A apóstrofe inicial e a do 6.º verso, que confere uma certa circularidade à estrofe.
. Vertente lírica: a expressão comovida dos sentimentos do sujeito poético (o lamento do lado
negativo das Descobertas) e a descrição da dor e do sofrimento dos que viveram a saga das
descobertas (vv. 2, 3, 4 e 5).
. Vertente épica: a valorização e o entusiasmo que anima a alma humana para concretizar os
seus sonhos, ideais elevados e com isso ascender ao patamar da divindade e da imortalidade.
A coexistência dos dois planos justifica-se pelo misto de epopeia e de lirismo que se
encontra no poema. «Para realizar a glorificação da Pátria, os Portugueses tiveram de sofrer
a dor e as privações, o preço a pagar pelos feitos sublimes que praticaram
Na 1.ª estrofe, o sujeito poético lamenta a sorte daqueles que vivem felizes. Ela inicia-
se com a oposição «triste» / «contente»: na perspetiva do sujeito poético, a alegria do
conformista é triste para ele mesmo, já que ignora o prazer que a aventura que se segue ao
sonho lhe pode proporcionar em termos pessoais, e é triste para a sociedade de que faz parte
pela razão de que sem ideais e sonhos e sem a ousadia de os tentar concretizar, a sociedade
não evolui, estagna e torna-se decadente.
O ato de sonhar acordado leva quem sonha a agir no sentido de buscar outra realidade
através da libertação daquela (a rotineira e banal) que conhece, tal como aconteceu com
Ícaro, que quis libertar-se da ilha de Creta, onde se encontrava prisioneiro, voando com as
asas de penas e cera que os eu pai, Dédalo, construiu para ele. Foi o sonho que impulsionou
Ícaro a voar, daí a referência ao «erguer da asa» no verso 3. O mito grego exemplifica o
sonhador que ousa pôr em prática os sonhos, chegando a morrer por eles, como Ícaro.
A referência à lareira onde arde «mais rubra a brasa» relaciona-se com antigos
costumes romanos, já que era costume, sempre que os romanos mudavam de cidade, levar
parte das brasas que ardiam nas lareiras das suas antigas casas para as novas, para manter
viva a ligação à respetiva terra de origem. Assim, a brasa que arde mais intensamente
(«mais rubra») é um sinal de partida recusado por aquele que está «Contente com o seu lar»
e que, portanto, não deseja a mudança.
O oximoro que inicia a segunda estrofe retoma a ideia que inicia o poema, agora
através de uma frase exclamativa que expressa o desdém do sujeito poético face à aceitação
da rotina como se de uma atitude positiva se tratasse; deste modo, o sujeito poético
desmistifica o conceito de «felicidade» aceite pela sociedade em geral e que assenta na
valorização da vida ao nível mais rudimentar ‑ a vida instintiva ou «a lição da raiz». A lição
que podemos retirar da raiz é simples: quem vive apenas por viver, sem sonhos e ideais
(«porque a vida dura» ‑ v. 7) é semelhante a uma raiz: vive como se estivesse sepultado. Os
nomes «raiz« e «sepultura» associam-se ao imobilismo e à ausência de vida e de sonho. Por
outro lado, a forma verbal «dura» (v. 7) remete para a existência enquanto mero passar do
tempo. Assim, quem «Vive porque a vida dura» não a aproveita e limita-se a existir, a
sobreviver. Esta aceitação da vida segundo os instintos conduz à morte do indivíduo porque a
vida digna de ser vivida é a que é orientada pelos mitos, pelo sonho, pela loucura de sinal
positivo (vide poema “D. Sebastião”), pela partida em direção a horizontes desconhecidos,
pela vitória sobre o Mostrengo «porque quem passar além do Bojador / Tem que passar além
da dor» (“Mar Português”), pela vontade de chegar «lá» custe o que custar, animado pela fé
em Deus («Cheio de Deus, não temo o que virá» ‑ “D. Fernando”). O apego ao conforto do
lar, ao espaço familiar, o medo do desconhecido, a fraqueza anímica conduzem à
«sepultura», pois só a busca da plenitude confere imortalidade.
Em suma, estamos perante duas posturas do ser humano, pautadas por traços
diferenciados:
. banalidade . inquietação
Na penúltima estrofe, o sujeito poético alude aos quatro impérios do «ser que sonhou»
(Grécia, Roma, Cristandade, Europa), o qual assistirá ao renascimento da idade do ouro, mito
grego segundo o qual a humanidade regressará a um tempo de pureza e de imortalidade que
a chegada do Quinto Império vai proporcionar. Assim, «A terra será teatro / Do dia claro, que
no atro / Da erma noite começou» (vv. 18 a 20), isto é, das trevas da noite deserta e esta
escuridão dará lugar à luz ou verdade ou Quinto Império, que resplandecerá de paz e
harmonia. Observe-se a antítese presente nos versos 19 e 20, que coloca em confronto o
tempo passado e presente («… atro / Da erma noite…») e o tempo futuro («dia claro»), que
se anuncia sob a égide espiritual dos portugueses. Depois dos «quatro / Tempos» (vv. 16-
17), os quatro impérios considerados por Pessoa, chegará o Quinto Império. Observe-se
igualmente a metáfora aí presente, que transmite a profecia de que o mundo assistirá («será
teatro») ao nascimento de um novo império («Do dia claro»).
. 1.ª parte (estrofes 1 e 2) ‑ O sujeito poético lamenta a sorte daqueles que vivem felizes
com a mediocridade e faz a apologia do sonho como única forma de aceder a grandes feitos.