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A história local e regional na sala de aula do ensino fundamental

Ribeiro, Miriam Bianca Amaral

A trajetória do ensino das ciências humanas nas séries iniciais do ensino fundamental tem sido marcada
por uma contradição, ou melhor, por uma aparente contradição: ao mesmo que se promove uma sistemática e
intencional desqualificação da área em relação às outras áreas de conhecimento presente nas estruturas curri-
cular do Ensino Fundamental, através dos mais variados instrumentos (redução de carga horária ou atividades
como ensaios para festas lançadas como aulas dadas de história e geografia, por exemplo), observamos que, ao
longo da história política do Brasil, sempre que o poder constituído precisa consolidar suas bases ideológicas
sobre a maioria da população, a intervenção nas aulas da área de humanas é um recurso eficaz e freqüentemen-
te utilizado.
Assim, o que temos é que o tratamento dado às aulas da área de humanas, mesmo que aparente despreo-
cupação e a submeta à sistemática desqualificação, revela, se observarmos mais de perto, que o que se pretende
é evitar o interesse pela área que sabemos de fundamental importância para a compreensão da realidade social
do mundo em que vivemos ao mesmo tempo em que delas se utilizam para efetivar eficientes mecanismos de
construção de uma visão de mundo hegemonizada pelas classes dominantes.
Com freqüência, ainda estão presentes na escola, idéias e comportamentos que demonstram ser essa
área considerada de menor importância para a formação do aluno. São situações corriqueiras, que por mais que
se afirme formalmente o contrário, ainda estão presentes no cotidiano da escola e que refletem essa concepção.
Entre muitos exemplos que podemos citar, basta lembrar que, caso um aluno fique para recuperação em mais
de três matérias e uma delas for História ou Geografia, o senso comum que se estabelece é que se deve aprová-
lo nessas disciplinas. Muito já se fez e ainda se faz para superar esse tratamento hierarquizado e discriminatório
dado às Ciências Humanas, mas a se considerar o conjunto das escolas, infelizmente não temos um quadro
muito alentador.63
O contraditório está no fato de que, sempre que se precisa arregimentar forças para dar sustentação a
um determinado projeto político – ideológico, as salas de aula de Ciências Humanas são imediatamente con-
vocadas para cumprir o papel decisivo de conduzir a hegemonização da interpretação da sociedade sobre os
acontecimentos, sob a direção das forças conjunturalmente dirgigentes. Elas assumem, a partir daí, a centrali-
dade dos projetos educacionais. Assim, mesmo que seguidamente ‘desprezadas’, as ciências humanas, de fato,
nunca o foram.
Quando se instala o Estado Novo, por exemplo, essa atribuição político - ideológica para as aulas da
área de Ciências Humanas é aprofundada. Bittencourt (1989) demonstra esse papel fundamental exercido pelas
aulas de História, que associadas aos rituais cívicos, tinham o papel de consolidar a idéia de nação:

“As tradições nacionais poderiam, em princípio, ser legitimadas pela história, mas a questão
que se colocava referia-se à seleção dos ‘acontecimentos históricos’ que mereciam trans-
formar-se em ‘tradições nacionais’. (...) A história, valendo-se do seu poder de legitimar os
agentes históricos merecedores do reconhecimento de toda a população, não podia furtar-se
de ter como conteúdo introdutório,tanto na escola primária como na secundária, o estudo dos
grandes ‘personagens históricos’. (Bittencourt, 1989, 52-3)

63 Sobre isso ver o Relatório da Pesquisa “As Ciências Humanas no Ensino Fundamental”, goiânia, 2004; realizada pelo Grupo de Estudos e Pesqui-
sas em Educação e Ciências Humanas- F.E. / UFG, disponível no Núcleo de Formação de Professores, na Faculdade de Educação da UFG.
Neste contexto é que se instalam as festas cívicas obrigatórias, os desfiles, o ensino dos hinos pátrios,
o escotismo, a sacralização dos vultos históricos e suas respectivas datas. Tais práticas até hoje permanecem
instaladas no cotidiano escolar. Muitos de nós, professores de história, temos um sentimento de dever não cum-
prido quando não comemoramos as datas consideradas históricas. A maioria das coordenações pedagógicas e
secretarias de educação, por sua vez, não nos deixam passar um mês sem elas.
Foi também o que assistimos quando o regime militar instalado em 1964 reduziu as cargas horárias de
História e Geografia, unificando estas disciplinas nos chamados Estudos Sociais e criando a Educação Moral e
Cívica como disciplina obrigatória com parte da carga horária retirada. Isso ocorreu com a reforma educacio-
nal materializada pela Lei 5692 / 71 e com o Decreto –lei 69/ 1969. Toda a intenção nacionalista e patriótica
inventada pelo Estado Novo foi reavivada nesta ocasião, acrescida pela criação dos Estudos Sociais.
A substituição da Geografia e da História trouxe a reafirmação e a generalização da idéia de que, nessa
área, não tratamos de ciência. Ao se retirar as ciências História e Geografia e as substituir por estudos, mesmo
que sociais, libera-se tal disciplina do rigor do objeto e do método das Ciências Humanas e de sua relação com
o ensino. Se oficializa o espaço para o senso comum, sob controle dos interesses hegemônicos da ditadura, que
se apropria de tudo o que de mais conservador e mecanicista existia na produção do conhecimento e visão de
mundo relativos ao organização da vida social em nosso país.
Este foi o período, também, da disciplina ‘Integração Social’, que muitas vezes ocupa o lugar dos
Estudos Sociais, realizando, como próprio nome indica, a ‘integração’ dos indivíduos à lógica estabelecida.
A negação da área de Ciências Humanas enquanto tal é tão presente, ainda hoje, nas escolas brasileiras, que o
termo ciências é considerado sinônimo de Ciências Naturais, experimentação e laboratório.
Quando um professor anuncia uma aula de Ciências, os alunos invariavelmente se preparam para uma
aula de ciências naturais e nem chegam a pensar que uma aula de história ou geografia também é uma aula de
Ciências, porém, Humanas. Isso também repercute diretamente no trabalho com os temas regionais e locais,
que, desprovidos de um tratamento sistemático, se tornam presa fácil de conteúdos e práticas sustentados por
essa visão compartimentada, descritiva e conservadora.
Esses dois momentos da trajetória do ensino das Ciências Humanas no Brasil, para citar apenas os
mais emblemáticos, deixaram suas marcas. Mas, também já temos marcas das lutas pela reconstrução do cam-
po das Ciências Humanas como espaço de formação do sujeito capaz de compreender, interpretar e se situar
diante das contradições da realidade social. Muitas boas experiências didático-metodológicas, muitas propos-
tas curriculares, muita produção acadêmica, muitas publicações e eventos realizados pelos pesquisadores das
diversas ciências que compõem a área, construíram, nas últimas décadas, um capital cultural significativo,
nesta direção. Mas, sabemos, é claro, que ainda sobrevive uma grande distância entre intenção e gesto, no que
se refere ao cotidiano das salas de aulas de Ciências Humanas.
Aqui, finalmente, chegamos ao problema central deste texto. Ocorre que, um dos campos em que menor
avanço pode ser observado, é exatamente o que se refere ao ensino do local e do regional. Esse conteúdo está
presente nos programas curriculares de quase todas as redes de ensino fundamental, englobando as particulares
e as públicas municipais, estaduais e federais. Nos materiais didáticos, nas práticas pedagógicas, nos processos
avaliativos relativos aos temas locais e regionais, ainda permanece quase intocado o perfil conservador do
ensino das Ciências Humanas. Neste texto pretendemos contribuir para a compreensão deste quadro e também
para a sua superação, disponibilizando, para a discussão, algumas alternativas teórico-metodológicas.
Para essa discussão, estaremos considerando o regional como sendo o espaço geográfico com alguma
unidade cultural, econômica, social não livre de contradições internas e com outras regiões. Para sermos obje-
tivos, consideremos como objeto deste texto o estado, enquanto unidade federativa no Brasil e o município e
o seu ensino nas séries iniciais do Ensino Fundamental. Essa idéia se sustenta sobre o conceito de lugar apre-
sentada por Santos (1991):
O lugar é um conjunto de objetos que têm autonomia de existência pelas coisas que o formam- ruas,
edifícios, canalizações, indústrias, empresas, restaurantes, eletrificação, calçamentos - mas que não têm auto-
nomia de significação(...). (Santos, 1991, 52)
E também se apóia em manifestações menos acadêmicas e mais poéticas, como nos oferece Juraíldes
da Cruz, na letra da canção ‘Lugar’:

Quem diz seu lugar é seu povo


Quem diz o seu povo é seu costume
Assim como o cheiro
É que batiza o perfume642

1 - Origem e sobrevivência da visão conservadora no ensino do local e regional

Entre os elementos que asseguram a sobrevivência deste tratamento às temáticas locais e regionais na
sala de aula do ensino fundamental destacamos a reprodução do ufanismo, o localismo, as reminiscências do
mandonismo local, a ainda hegemônica presença de uma visão mecanicista das ciências humanas, o não acesso
da escola à produção acadêmica, a antecipação de conteúdos e a forma adotada pelos Parâmetros Curriculares
Nacionais para essas temáticas.

1.1 - O local e o regional e a reprodução do ufanismo

Ao longo da ditadura militar implantada em 1964, o ensino da História e da Geografia dos estados e
municípios não escapou da visão cívico – patriótica. Também esses conteúdos foram submetidos a um trata-
mento que transformava cada estado e cada município em um pedaço do paraíso. Assim como se idolatrava
o herói nacional, se idolatrava o fundador da cidade. A cidade estava isenta de contradições sociais, todos
deviam se dedicar invariavelmente ao ‘bem comum’, estabelecido pela legislação da ditadura como projeto de
sociedade.
Quem estudou em Goiás, nosso campo cotidiano de atuação, neste período, certamente encontrará em
suas memórias algumas referências sobre a presença em terras, então goianas, da maior ilha fluvial do mundo
– a Ilha do Bananal, acompanhada da exuberância dos rios,da fauna e da flora. Era bem comum se fazer refe-
rência, por exemplo, à palmeira do babaçu como sendo uma árvore abençoada, da qual tudo se aproveita.
Da mesma forma, as construções de Brasília e de Goiânia foram atribuídas à visão quase premonitória
de seus fundadores, que num arroubo de ‘progressismo’, decidiram e construíram, sozinhos, as novas capitais.
Goiânia foi a cidade primavera e Goiás, o coração do Brasil. Assim, vultos históricos foram cultuados em ca-
ráter obrigatório em datas comemorativas, da mesma forma em que isso ocorria nacionalmente com D.Pedro
I ou Princesa Izabel.
Essa conduta ainda está impregnada nos conteúdos oferecidos aos alunos das séries iniciais do ensino
fundamental. Em outros itens destes programas curriculares, muitas boas reconstruções têm sido feitas. Mas,
em se tratando do regional ou local, tendo como exemplo Goiás, ainda temos a visão do bandeirante desbra-
vador, do índio que contribui com o folclore ( aqui considerado como sinônimo de algo exótico ou pitoresco)
para a cultura regional ou das riquezas naturais que nos tornam um estado privilegiado.

64 2Juraíldes da Cruz é compositor e cantor goiano com vasta produção registrada. O trecho citado pertence a música ‘Lugar’, do CD Hot Dog Latino,
Produção Independente, goiânia, 2001.
Longe estamos da discussão das contradições entre estado rico e povo pobre, entre bandeirantismo e
ocupação colonial ou do estudo das etnias indígenas como culturas complexas e específicas. Basta ver a ree-
dição anual das comemorações do dia do índio na escola, quando os pequenos grupos indígenas sobreviventes
em Goiás raramente são citados. Não podemos negar as iniciativas que tentam romper essa tradição etnocên-
trica, mas, aqui nos referimos ao fato de que a maioria das escolas ainda fantasia as crianças de ‘índio’ para
comemorara a data, inclusive, independendo de estar-se estudando o estado ou não.
Interessante observar, por exemplo, que alguns municípios goianos abrigam reservas indígenas e que a
visão da população sobre esses remanescentes é de que se trata de bêbados preguiçosos que roubam coisas das
fazendas ou incomodam as cidades como pedintes.
Temos, enfim, o ufanismo histórico e geográfico na origem e na sobrevivência de um tratamento con-
servador das questões regionais e locais, mesmo observando que em outros temas relativos aos currículos e
programas da área de Humanas, isso já tenha sido em parte superado.

1.2 - O localismo

Nas lutas contra essa visão cívico-patriótica imposta aos conteúdos disciplinares das Ciências Huma-
nas, uma das preocupações mais freqüentes era com a importação de temas considerados distantes da realidade
dos alunos que tinham como objetivo dificultar o acesso dos trabalhadores e de seus filhos a compreensão da
realidade social na qual estamos inseridos. Algumas críticas se tornaram emblemáticas, como a que se referia
ao fato de os livros trazerem as quatro estações do ano, sendo que no Brasil, apenas duas estações são mais
observadas.
Sabemos que essa importação de conteúdos trazia consigo a importação da visão de mundo que então
interessava aos setores dirigentes e que tal importação era literal, a ponto dos materiais didáticos para a área
de Humanas serem elaborados por equipes dirigidas por técnicos americanos. Estudava-se o geral e distante e
contra isso insurgiram-se os que defendiam que nosso aluno deve estudar o mundo que o cerca, sem ignorar
seu cotidiano, seu tempo e seu espaço.
Essa conduta tinha uma intenção politizante que consideramos absolutamente apropriada às discussões
que propunham reformulações curriculares e completamente pertinentes ao contexto histórico e dela participa-
mos, inclusive. Era o momento do enfrentamento direto ao imperialismo cultural que até hoje marca gerações
de brasileiros. Ocorre que, à defesa do retorno do estudo do ‘mundo à sua volta’ e à idéia de devemos ‘partir
da realidade do aluno’, correspondeu um quase isolamento do local e regional, que passaram a ser estudados
por si sós. Foi uma verdadeira explosão de interesse pelo local onde vivemos.
É preciso que se reafirme que essa defesa da valorização da realidade do aluno como ponto importante
do enfretamento às imposições ditadas pela ditadura militar foi fundamental para aglutinar os professores da
área de humanas e pautar a reconstrução se sua intervenção na escola. O problema é que neste contexto o tra-
tamento se tornou particularizante.
Isso deu origem ao que estamos chamando de localismo, ou seja, não se trabalha o local como com-
ponente da compreensão do todo e do próprio local e sim estuda o local por ele mesmo. A conseqüência foi a
quase idolatria do local, que por fim, reafirma o ufanismo. Os materiais e os conteúdos quase aprisionavam o
aluno à realidade que neste caso, o cercava mesmo.
Nessa lógica, a criança da escola rural não precisaria estudar o resto do mundo e sim, ‘seu mundo
rural’. Sabemos bem que esse localismo impede que o aluno entenda não só o mundo como um todo, como
também seu mundo mais próximo.
1.3 – As reminiscências do mandonismo local

Muito já se estudou sobre o coronelismo e o mandonismo local na história do Brasil. As relações de


poder locais e regionais constituídas no final do século XIX e início do século XX , como se sabe, se sustenta-
ram sobre o controle de um chefe oligárquico, comumente chamado de coronel. As bases agrárias da economia
garantiam esse controle, também favorecido pelas relações pactuadas com o centro político nacional que man-
tinham, reciprocamente, a reedição periódica deste poder.
Hoje tais relações estão permeadas de novos atores e componentes políticos e econômicos, como a
expansão da industrialização e a migração para os centros urbanos. Mas, basta observar os cenários políticos
regionais para vermos presentes e atuantes representantes do mandonismo local. Eleições são ainda definidas
pela troca de favores e pelas ameaças de retaliação. Não cabe aqui um aprofundamento desta discussão, mas
apenas situar esse dado para que se discuta como isso ainda repercute sobre o ensino dos conteúdos regionais
e locais.
Esse quadro reflete-se nas condutas das secretarias municipais e estaduais de educação. Ainda temos,
esparramados por esse país, cargos de confiança atribuídos aos parentes e correligionários, que possuem pouca
ou nenhuma formação para o cargo. Da mesma forma, boa parte dos professores trabalha sob contrato precário,
sem nenhuma garantia dos direitos trabalhistas e cuja sobrevivência na docência está diretamente condicionada
a explicitação do apoio cotidiano ao chefe político local.
Não é difícil estabelecer a relação desta realidade com o ensino de Ciências Humanas, especialmente
nos conteúdos relativos ao próprio município. O que estuda e se ensina sobre os municípios raramente ultra-
passa a reverência aos fundadores da cidade, as listas de prefeitos em seqüência cronológica, as secretaria e os
secretários municipais, a extensão e os marcos do território.
Em geral, cumpre-se os rituais do mandonismo local no cotidiano das salas de aula, reforçados pelos
eventos extra-classe como desfiles na datas de fundação do município. Nestes eventos reafirma-se a reverência
aos chefes políticos em exercício e os heróis da fundação.
Hobsbawn (1998) nos ajuda a compreender a força desse procedimento lembrando que a história das
grandes coletividades, nacionais ou não, não se apoiou na memória popular, mas naquilo que os historiadores,
cronistas ou antiquários escreveram sobre o passado, diretamente ou mediante livros escolares, naquilo que os
professores ensinaram para seus alunos a partir desses livros escolares, na forma como escritores de ficção,
produtores de filmes ou programadores de televisão e vídeo transformaram seu material. (Hobsbawn, 1998,
290-291)
Assim, estuda-se o município sob a vigência de relações de poder fundadas na sobrevivência do man-
donismo local que transformam esse estudo em instrumento de sua manutenção.
Os materiais didáticos utilizados são, via de regra, uma apostila produzida por um morador da cidade,
professor ou não, que movido por boas intenções, se dispõe a escrever o texto.São mesmo boas intenções.
Não há ironia nesta afirmação. São pessoas que guardam as memórias da cidade, afetivos documentaristas
que são. Em geral, são esforços pessoais ou encomendas feitas pela secretaria municipal de educação, que,
reproduzidas em fotocópias, se transformam em materiais didáticos. Muitas vezes, apenas o professor tem uma
cópia do material, que é reproduzido no quadro negro para os alunos da segunda ou terceira série do Ensino
Fundamental.
Esses materiais, resguardado o reconhecimento do esforço, são fontes excelentes para a discussão da
sobrevivência de uma concepção mecanicista das Ciências Humanas e de seu ensino. Do ponto de vista das
metodologias de ensino das Ciências Humanas, esses materiais reproduzem, em geral, a memorização com
procedimento e objetivo. Isso será evidentemente conferido nas ‘verificações’ de aprendizagem. Quase não
há recursos visuais nestes materiais. Poucos mapas, poucas fotos e ilustrações. As atividades são, em geral,
também mecanicistas.
1.4 – As relações entre a produção acadêmica, a escola e o mecanicismo renitente

O programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Goiás tem mais de trinta anos de
existência e produção acadêmica.Também não são recentes os programas de Geografia e das Ciências Sociais.
Boa parte da produção científica destes programas teve e têm como objeto o estado de Goiás. No entanto, quase
nenhuma repercussão toda essa produção pode ser observada na produção didática. São temas, abordagens e
fontes de uma variedade e consistência de orgulhar todos nós, mas, que estão alguns quilômetros de distância
das salas de aula, da formação do professor e dos materiais a ele disponibilizados.
Não se pretende aqui propor uma equivalência entre a produção científica acadêmica e os conteúdos
tratados em sala, especialmente em se tratando das séries iniciais do Ensino Fundamental. Nem se pretende
dizer que essa distância corresponde a uma hierarquização de áreas de atuação dos profissionais das Ciências
Humanas. A distância quilométrica, que é real, não é vertical e sim, horizontal e recíproca.
Uma coisa são os trabalhos acadêmicos e outra coisa são os conteúdos disciplinares. Temos hoje uma
trajetória considerável nas discussões entre ciência e disciplinas escolares, quando são polemizadas posições
que defendem desde a transposição quase imediata do conhecimento científico às instâncias escolares até a
idéia de que o que se torna possível na escola não é a produção científica e sim uma ação investigativa que nos
aproximaria, enquanto processo, da ciência.
Não reconhecer a diferença entre ciência e disciplina pode nos levar a um retumbante fracasso na
intenção pedagógica de contribuir para a formação de sujeitos capazes de conhecer e pensar sobre o mundo
em que vivem. Isso porque estabelecer os referenciais do rigor e da inovação acadêmica para sala de aula do
Ensino Fundamental inevitavelmente levará nosso aluno a se desinteressar por algo que parece inacessível. E
realmente o é. Os Encontros Nacionais de Pesquisadores em Ensino de História, por exemplo, com sua sétima
edição bienal realizada em 2006, tem acumulado muitas discussões no campo das relações entre saber científi-
co e saber escolar, entre metodologia da pesquisa histórica e metodologias de ensino de história.
Mas, a atitude investigativa e questionadora não é inacessível ao aluno. Pelo contrário, ela é
estimulante, desafiadora, criativa e inovadora. Ele pode sim construir o caminho para avanços futuros, rumo
à ciência. Ocorre, que, em se tratando da área de humanas, especialmente no aspecto que aqui discutimos,
quase nada do que se produz tem chegado à sala de aula via materiais didáticos ou formação continuada de
professores.
Já temos elementos suficientemente sustentados em pesquisas sistemáticas para não chamar os ban-
deirantes de ‘corajosos desbravadores que vieram trazer o progresso’ ou afirmar que a cidade de Goiânia foi
construída pelo sonho visionário de um homem à frente de seu tempo.Isso, mesmo considerando que não vamos
estabelecer em sala de aula uma discussão que ultrapasse os limites da capacidade de abstração pertinente à séries
iniciais do Ensino Fundamental. Sobrevive e reedita-se diariamente, nas salas de aula, uma concepção de histó-
ria, sociedade, relações de poder, cultura e espaço geográfico relativos à temática regional e local ainda marcada
pelo mecanicismo e pelo conservadorismo, há tanto já questionado e superado nas produções acadêmicas.
Ressalte-se que esse não é um privilégio do centro-oeste e que tal contradição se espalha pelo país,
pois a preocupação acadêmica com o local e o regional também não é nosso privilégio. Especialmente a partir
dos anos 80, muitas universidades não situadas no eixo Rio - São Paulo instalaram seus programas de pós-
graduação nas várias ciências da área de Humanas e a temática regional ocupou boa parte das dissertações e
teses. Isso se deveu a influência das contribuições na Nova História, que propõe novos objetos e novas fontes,
entre as quais se incluem o local e o cotidiano e também a uma demanda reprimida sobre o estudo sobre os
estado e os municípios onde estão instaladas essas instituições.
Os trabalhos de extensão universitária, que poderiam cumprir um papel fundamental neste sentido, têm
sido sistematicamente alijados da atividade acadêmica seja através de sua desqualificação nos procedimentos
produtivistas da avaliação de desempenho dos professores ou das unidades; seja através de uma sobrecarga
tão grande de trabalho sobre os docentes que acaba-se por inviabilizar ou, pelo menos, dificultar bastante seu
desenvolvimento65.
Via de regra, os contatos entre professores universitários, sua produção acadêmica e professores das
redes de ensino se dão através de convites para palestras e eventos esporádicos de formação continuada. Esse
tipo de contato é importante não deve deixar de acontecer. Mas, é claro que não é suficiente.
Uma queixa freqüente dos professores do ensino Fundamental é exatamente a carência de materiais di-
dáticos que ajudem a discutir esses conteúdos.66 A produção de materiais pelo próprio professor é sempre uma
possibilidade lembrada pelas secretarias e coordenações. Ouvimos costumeiramente, nos eventos de formação
continuada, especialmente de pessoas que ocupam cargos de chefia, a defesa do professor que se mantem atu-
alizado, produzindo a cada dia e a cada aula, seu próprio material, trabalhando com jornais, por exemplo. Isso
seria fantástico, se fosse possível. Ocorre que o cotidiano da escola básica, especialmente as séries iniciais do
Ensino Fundamental não permite que o professor tenha essa dedicação quase exclusiva que tal tarefa exigiria.
Qualquer um que foi ou é regente de sala nesta faixa de escolaridade sabe que é impossível suprir os
materiais para uma disciplina como essa, preparando diariamente seu material com pesquisa própria. Claro
que professores de 2ª. 3ª ou 4ª séries podem produzir bons materiais didáticos. Temos bons exemplos disso
espalhados pelo país. Mas, é um trabalho específico, com tempo específico, que exigiria formação aprofundada
específica. Miranda (2004) nos ajuda a compreender as relações entre pesquisa e docência quando afirma que

Assim, no que diz respeito às possibilidades de pesquisa na escola, elas têm lugar numa
atitude investigativa ou numa metodologia de ensino.(...) Nas duas modalidades de pesquisa
sugeridas antes, o interesse do docente não é a produção de novos conhecimentos, pois não é
esse seu objetivo. A pesquisa do professor é a pesquisa ditada pelos acontecimentos cotidia-
nos e sua efetividade se inscreve nesses limites. (Miranda, 2004, 24-25)

A própria universidade subqualifica a produção destinada ao Ensino Fundamental e ao Ensino Médio,


muitas vezes, por considerar esse vínculo secundário. Há que se considerar não é só a universidade que pode e
deve contribuir para a pesquisa sobre o local e o regional, mas não se pode negar que ela tem um papel funda-
mental neste processo. Porém, as relações ainda distantes, entre a universidade e a escola, em vários aspectos,
contribuem para a manutenção de uma visão conservadora do local e do regional em sala de aula.67

1.5 - A antecipação de conteúdos

Todos nós, sejamos profissionais da educação, pais ou alunos que convivemos com o ensino funda-
mental, séries iniciais, acompanhamos o crescimento de uma problemática constatável no cotidiano das salas
aula de História e Geografia: a antecipação e conteúdos. Na verdade, trata-se de um antecipação do processo
educativo como um todo.
Isso se traduz, no nosso caso, no trabalho com o município na segunda série, o estado na terceira série
e o país na quarta série. Isso corresponde, inclusive, a antecipação de conteúdos para a educação infantil, que
passou a ter livro didático, tarefas diárias ( e em grande volume) e provas. A impressão que se tem é que a
escola pretende se colocar com uma instituição que fornece mais possibilidades de um seu aluno, antecipando
conteúdos, concorrer em melhores condições nos vestibulares e concursos para trabalho. Pode parecer um exa-

65 Na avaliação estabelecida pelo MEC para a concessão de gratificações salariais, conhecida como GED, (Gratificação de Estímulo à Docência), a
extensão é a atividade que menos pontua.
66 Sobre isso, ver a pesquisa, já citada, ‘As Ciências Humanas no Ensino Fundamental’.
67 Exemplo disso é a demora de mais de 13 anos que levamos, Ângela Mascarenhas e a autora deste texto, tentando publicar livros didáticos sobre
goiás para as séries iniciais do Ensino Fundamental pela Editora da UFG, Cegraf, sendo que isso nunca foi finalizado, até realizar a publicação
através de uma editora privada.
gero, já que estamos falando de crianças que estão a, pelo menos, uma década de ingressar no ensino superior
ou no mercado de trabalho.
Infelizmente, apenas parece exagero. Especialmente entre as escolas particulares, isso se aprofunda e
se espalha. Sabe-se, inclusive, da realização de ‘ vestibulinhos’ para séries iniciais, que são provas de seleção
para as séries iniciais. As escolas iniciam seu trabalho pedagógico tendo em vista a realização do vestibular.
Assim, os alunos, desde a educação infantil, são treinados para a competição, a concorrência e o treinamento
para provas. Estas são consideradas as escolas ‘fortes’, ‘exigentes’. A lógica do vestibular acompanha e condi-
ciona toda a vida escolar do estudante.
A antecipação a que nos referimos não é só de conteúdos. Ela também se materializa na antecipação
das faixas etárias dos alunos. Os pais acham vantajoso colocar seu filho na primeira série com 5 ou 6 anos,
porque isso também o colocaria em situação privilegiada para concorrer, antes dos outros, às últimas vagas no
mercado de trabalho. Claro que os pais fazem isso movidos pelas melhores intenções para com o futuro dos
seus filhos. Mas, também infelizmente, desconhecem os problemas que tudo isso acarreta para esse futuro. Não
nos cabe aqui aprufundar essa discussão, mas, tudo isso, é claro, é facilmente explicável por uma investigação
das relações entre as mudanças do mundo do trabalho, na vigência do projeto neoliberal, que traz o desempre-
go estrutural, a flexibilização das relações de trabalho e a reestruração produtiva.68
O que tudo isso tem a ver com o ensino do regional e do local, lá nas séries iniciais do Ensino Funda-
mental?
Ocorre, que antecipa-se os conteúdos relativos ao local e o regional, por considerá-los secundários,
desnecessários, superficiais e responsáveis pelo atraso do trabalho com o que realmente cai nas provas, que
são os conteúdos relativos ao Brasil, às Américas e ao resto do mundo. Essa aceleração é justificada por seus
defensores e implementadores69, pelo fato destes conteúdos serem ‘muito simples’ ou seus programas ‘rapida-
mente esgotáveis’.
Não podemos classificar conteúdos programáticos em simples e complexos pela amplitude das dimen-
sões a que se relacionam. Podemos tratar de maneira ‘rápida’, e supostamente ‘simples’, qualquer conteúdo.
Basta que para isso se retome a fórmula mecanicista e se amontoem dados a serem memorizados.
Mas, trabalhar com a formação conceitual,, com a construção de sujeitos capazes de compreender, in-
terpretar e interferir no mundo em que vive é tarefa para ser reconhecida como projeto que sustenta o trato com
qualquer conteúdo de qualquer disciplina, inclusive com os conteúdos que discutimos neste texto. Todos são,
assim, portadores de complexidade. Essa complexidade será tratada , em cada faixa etária e em cada conteúdo,
de maneira pertinente a seus processos de desenvolvimento cognitivo.
Antecipar os conteúdos relativos ao local e ao regional nos faz não propiciar uma formação possível
e tão necessária. Isso não facilita o trabalho conseqüente, nem desses conteúdos, nem os anteriores e nem pos-
teriores. Cumpre dizer que seria cômico se não fosse trágico o fato de que os concursos públicos municipais e
estaduais, assim como os vestibulares exigem, cada vez mais, conhecimento sobre história e geografia local e
regional. As questões relativas a esses conteúdos, são, muitas vezes, o fiel da balança para a aprovação. Pode-
se imaginar a correria dos candidatos atrás de materiais e aulas para suprir essa lacuna.

1.6 - O regional e o local nos PCN

Os PCN foram elaborados no contexto político da discussão, no Congresso Nacional, da Lei de Dire-
trizes e Bases da Educação Nacional, aprovada como Lei 9394/96.Todos sabemos das polêmicas acirradas que

68 Sobre isso ver Correa, Vera. Globalização e Neoliberalismo - o que isso tem a ver com você, professor?Quartet, RJ, 2001.
69 Na verdade, não muitos os defensores dessa prática, pois isso não é debatido, mas sim, implementado.
cercaram a aprovação desta lei, marcada pela intervenção do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública,
que apresentou e advogou o projeto construído pelo maior conjunto de entidades e movimentos nacionais da
educação já reunidos no Brasil. Isso não foi suficiente para que o governo FHC reconhecesse a vontade de
uma qualificada maioria. Como sabemos, ele acabou por impor a LBDEn atual, de cunho indisfarçavelmente
privatista e autoritário, como tudo o que se faz no curso do projeto neoliberal.
Interessante observar que o artigo 26 da LDBEn aprovada em 1996 , trata da necessidade de elabora-
ção dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que a essa altura já estavam prontos para publicação e implemen-
tação.
Isso porque o processo de elaboração dos PCN seguiu o mesmo modelo autoritário e centralizador da
aprovação da LDB 70. Não que as discussões não devessem avançar, mas nunca se decidiu tanto, em tão pouco
tempo, com tão pouca gente envolvida, na educação brasileira.
As entidades representativas do campo da História foram (nada) solenemente ignoradas apesar de se
fazerem presentes e dispostas à interlocução através da Associação Nacional dos Professores de História, para
ficar apenas em uma das disciplinas da área de humanas.71
Do ponto de vista do método de trabalho, o MEC privilegiou os “notáveis” de cada área. Na época da
elaboração dos PCN, isso causou muita polêmica. Mas, vale relembrar alguns elementos desta discussão. A
escolha de alguns nomes relevantes e reconhecidos, por mais notáveis que sejam, jamais acumularão o debate
coletivo, especialmente quando esse for referendado por entidades que organizam todos os que lidam com essa
área do conhecimento, seja eles dignos de nota ou não, da academia ou da Educação Básica. Por mais brilhante
que seja, uma proposta não amadurecida no coletivo não “emplaca”, como não “emplacaram” os PCN, a não
ser compulsoriamente. Os “notáveis”, por maior que fosse a boa intenção, corroboraram com um processo que
desqualificou sua entidade representativa como interlocutora. Enfim, quando se chega a ambígua condição de
notável por nomeação oficial, não se estará lidando com um “ingênuo notável”, que não saiba o que está ocor-
rendo.
Dissemos que os PCN de História e de Geografia não emplacaram, a não ser compulsoriamente. Isso
porque a implementação dos PCN se deu aliada a alguns instrumentos de controle como o condicionamento
de liberação de verbas complementares do MEC para as Secretarias de Educação, mediante adoção dos PCN
72
.Era preciso mudar o currículo e adotar os ciclos de formação, pelo menos. Isso impôs às Secretarias e aos
professores, uma adaptação relâmpago ao projeto.
Na história das redes públicas de educação, os exercícios de criação individuais e coletivos são quase
sempre ignorados. Isso mesmo sabendo das dificuldades deste exercício, como já foi observado anteriormente.
Parece que tudo o que se fez foi desconsiderado e que alguém, superior a nós, meros “regentes de sala”, nos
dirá o que é certo e o que é errado daqui em diante. Só esse desmonte das experiências locais e regionais já se-
riam suficientes para identificar qualificar o papel dos PCN em relação ao ensino do local e regional, no campo
das Ciências Humanas. A sensação de impotência e incompetência coletiva se espalha de maneira demolidora
nestas circunstâncias e mesmo que vivida individualmente, contamina a disposição de luta e a auto-estima de
toda uma escola e uma categoria profissional da classe trabalhadora.
É claro que ocorreram resistências, sejam individuais ou coletivas, a esse desmonte das experiências

70 Durante o VIII Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, ( Julho,1996 / Florianópolis), já circulava o texto final dos PCN.
71 Sobre isso ver “Resposta à Proposta PCN/ MEC- área de História, do Boletim da ANPUH, ano 6, número 13/ outubro-dezembro/1998.
72 Aqui tomamos como referencial a experiência da Rede Municipal de Educação de goiânia. O grupo de trabalho convocado para esse para elabo-
rar um novo currículo para o Ensino Fundamental, em 1997, ouviu essa afirmação, textualmente, em reunião, feita pela coordenação do projeto.
Infelizmente não conseguimos ter acesso ao ofício do MEC, que assim determinava. A convocação foi feita em setembro, o currículo aprovado em
novembro, impresso em dezembro e implementado em janeiro / 98, apesar de algumas tentativas individuais de propor alternativas que não repro-
duzissem método e conteúdo dos PCN. Observe-se que nessa rede já havia uma experiência acumulada quanto ao tratamento do local e do regional
na área de humanas, inclusive com reformulação curricular e publicação de materiais didáticos próprios.
locais e regionais. Mas, a maior resposta a essa prática autoritária é que os PCN, apesar de impostos, hoje se
limitam aos cursos de formação de professores, enquanto eles estão sendo ministrados. O cotidiano da escola
não registra, comumente, professores discutindo sua implementação, muito menos implementando. Poucos
são os que conhecem seus conteúdos ou lidam com seus procedimentos metodológicos73. Mesmo as boas con-
tribuições que poderiam trazer ficam invalidadas pelo método de implementação.
Mas, considerando o contexto da implementação dos PCN, retomemos o enfoque deste texto como
são tratados o local e o regional nos PCN, especialmente os de História e de Geografia?
O PCN de Geografia e História utilizam um conceito não sistematizado pela ciência Geografia: Lo-
calidade. O que seria localidade? Uma propaganda de empresa de telecomunicação, em 1999, usava o termo
localidade para lembrar que “Agora, qualquer localidade no Brasil, tem telefone”. Essa foi a única referência
que já ouvimos sobre esse termo. Mas, conversando com geógrafos, confirmamos a suspeita de que não se trata
de um conceito da área. No PCN, propõe – se comparar localidades e coletividades, além de tratar em um item
separado, as comunidades indígenas. Não se explicita o que é localidade e nem comunidade. As contradições
na localidade parecem não existir, pois trata-se, prioritariamente, da descrição e da identificação.
Esse é o principal problema que identificamos no tratamento dado ao local e ao regional nos PCN. Ao
levantamento de dados não é proposto o exercício analítico. Os alunos são levados a realizar levantamentos,
caracterizar realidades e param por aí. Como já dissemos, descrever, caracterizar, levantar dados não basta a
si mesmo se se pretende uma ação investigativa, mas aparenta alguma mudança, quando propõe que o aluno
faça os levantamentos. Mas, privado de uma proposta conceitual, que dê suporte e conseqüência analítica aos
dados coletados, não ultrapassamos os limites do mecanicismo. Para constatar isso, basta que se observe o
volume de dados a serem coletados pelo alunos sobre sua “localidade”. O que fazer com tudo isso?

2 – Algumas contribuições para repensar o ensino do local e regional

Entre os elementos que podem contribuir para a superação deste quadro, queremos considerar alguns,
entre tantos: a reconceituação do regional, considerando, inclusive a sua contextualização no processo de
globalização excludente; a construção do tratamento da área de Ciências Humanas como tal; a opção pela
construção de conceitos e o tratamento das fontes primárias como objetos de investigação.

2.1 – O regional em tempos de globalização do capital



Hoje, o capital alcançou dimensões planetárias, mundializando seu o poder de intervenção em todos os
campos da atividade humana, apropriando-se da expressão cultural de uma imensidão de povos e padronizado
atitudes e visões de mundo. Ao mesmo tempo, submete a atividade econômica de qualquer parte do planeta aos
seus interesses absolutamente hegemônicos, interfere diretamente nas relações políticas e altera as relações
socais de trabalho nos espaços aparentemente mais remotos.
Se em outros tempos do desenvolvimento da sociedade capitalista não cabia uma contraposição o ma-
cro e o local, isso agora é absolutamente irrealizável. O regional deve ser considerado sempre como singular
e parte do geral. Para compreender as contradições que observamos no lugar onde vivemos, não podemos ig-
norar que, hoje, mais que em qualquer outro período da história da humanidade, o mundo é o lugar onde vive-
mos. Não compreenderemos nosso município ou nosso estado sem entender quais as relações estes universos
estabelecem com o resto do mundo.

73 Sobre isso ver pesquisa citada “As Ciências Humanas no Ensino Fundamental”, nota 1
Quando nos referimos ao resto do mundo, não é força de expressão, pois todo o resto do mundo acaba passan-
do pelo modo como vivemos em espaços antes considerados particulares ou isolados. Não estamos sós, mesmo.
Vamos exemplificar. Não é mais possível falar que Nerópolis, em Goiás, é um grande produtor de alho,
sem lembrar que seu preço, em um mercado sob rígidos domínios internacionais, faz com sua produção seja,
vez por outra, queimada em praça pública. Como uma criança que mora em Nerópolis vai poder compreender
o que se passa, isolando a cidade do resto do mundo? Como entender que Goiás é um dos maiores produtores
de soja do país e que, em qualquer supermercado deste rico estado, o preço do óleo de soja não pára de subir?
O mesmo serve para a carne bovina ou para a produção do álcool combustível, entre outros.
Compreender porque as festas que uma cidade, tradicionalmente, realiza há décadas, às vezes séculos,
como evento religioso e/ou folclórico, por exemplo, se transformou em um objeto do consumo turístico finan-
ciado por grandes empresas, cercado por barracas de camelôs e onde os moradores locais a quase nada mais
têm acesso, é entender o local sem idolatrar ou cultuar nem a cidade e nem a festa.
Hoje, mais do que nunca, para compreender o local não podemos ser localistas. O local, mesmo con-
siderado como dimensões como o município, não pode ser tratado apenas com espaço mais próximo, sob pena
de não sermos capazes de entender nem o que nos parece mais familiar. Mesmo o mais ‘familiar’ é objeto de
contradições. O mais próximo nunca foi o menos complexo ou mais simples. E em tempos neoliberais, isso se
aprofunda irremediavelmente. Lembrando que a globalização, sim é irremediável, mas não necessariamente a
globalização sob hegemonia neolioberal.

– A opção pela área de Ciência Humanas

Como já dissemos, consideramos que os PCN, principal documento da história recente do campo
dos currículos fornecida pelas políticas públicas oficiais para o Ensino Fundamental, no Brasil, comete um
retrocesso ao lidar com a área de Humanas, especialmente no que se refere às séries iniciais. Como se ela se
resumisse em duas disciplinas, a História e a Geografia, as outras ciências da área são ignoradas.
Mascarenhas (2000) desnuda a contradição entre intenção declarada, no documento Introdução (PCN,
V. 1, p. 44- 45), - que afirma em seus princípios a prioridade dada à relação entre a escola e a constituição da
cidadania - e gesto efetivado:

Se é este o compromisso, então que coerência há em designar um espaço ínfimo às ciências


que têm por prioridade desvendar a vida social, trabalhar as questões da participação política,
das configurações das diversas culturas (...).Por que, então, a sociologia, a antropologia, a
ciência política (...) desaparecem do currículo, ou alguns de seus conteúdos são apresentados
de maneira fragmentada, diluída, sem consistência teórico – metodológica? ( Mascarenhas,
2000, p. 84).

Essa opção dos PCN repercutem diretamente sobre os conteúdos relativos ao local e o regional, espe-
cialmente se se observar que tais conteúdos centralizam as atenções nas séries iniciais.
O tratamento compartimentado da área de Humanas não é invenção dos PCN, pois já vigoravam na
legislação educacional anterior. A experiência dos Estudos Sociais, duramente combatida tanto a nível do então
primário ou primeiro grau ou a nível da formação do professor, apesar de dar um tratamento aparentemente in-
terdisciplinar às Ciências Humanas, apenas lidava com a História e Geografia, também. Além disso, o contexto
do regime militar, como já se disse aqui, fazia desta área um campo privilegiado para propaganda ideológica
deste projeto político ou de rebaixamento da formação deste professor; ficando, portando, longe da discussão
que aqui estamos propondo.
Para compreender globalmente ou plenamente, o local e o regional, é preciso que o entendamos inter-
disciplinarmente74. Aliás, o estudo do local e do regional são temas em que já propiciaram boas experiências75,
inclusive não só entre as disciplinas da área de Humanas. È um campo que possibilita a observação muito mais
cotidiana e direta da realidade. Se a essa observação for dado um tratamento investigativo e questionador, ca-
paz de estabelecer relações e caminhar para construção de explicações sistematizadas, a compreensão do local
e do regional se dará em dimensões muito mais consistentes.
Nunca é demais lembrar que o local não se contrapõe ao macro, não se isola do geral, mas, o compõe,
com suas especificidades. O local retém o passado presente no ambiente. E esse ambiente é acessível ao aluno
quando se estuda o local. O local materializa as contradições das relações de poder que extrapolam o local,
mas que nele são visíveis, desde que sob tratamento da investigação. No local e no regional, a diversidade cul-
tural, ou seu massacre, pode ser observada na contradição entre atitudes culturais que as diversas gerações ou
componentes étnicos da população manifestam. No cotidiano local ou regional, as relações sociais, em todas
as suas dimensões estão para ser observadas e interpretadas de maneira muito convidativa, pois delas fazemos
parte de maneira disfarçáveis.
Não estamos pretendendo subentender que só se pode pretender um tratamento interdisciplinar ao
estudo do local e do regional, é claro. Se assim o fizéssemos estaríamos invalidando a proposta do estabeleci-
mento da área de Ciências Humanas para todas as séries iniciais do Ensino Fundamental. Estamos apenas pro-
curando demonstrar que o tratamento interdisciplinar do estudo do local e do regional é quase imprescindível
para que isso seja realizado de maneira conseqüente, além de ser essa, uma oportunidade privilegiada.
Há que se lembrar que não podemos pretender estudar o local, que por ser mais próximo, seria mais
atrativo. Isso nos remeteria ao erro, já comentado, de considerar que para ser atrativo, um conteúdo deve ser
diretamente ligado ao que já vivemos e que isso nos levaria, necessariamente, ao estudo do local e do regio-
nal. Todo conteúdo será interessante e atrativo se nos ajudar a compreender o mundo e a nós mesmos, se nos
desafiar em nossos limites, se estimular a capacidade de investigar, compreender, conhecer e dar respostas aos
nossos questionamentos.

3.3- A formação de conceitos e a questão local / regional

Mascarenhas (1994), ao se referir aos processos de formação de conceitos e o ensino das Ciências
Humanas nas séries iniciais do Ensino Fundamental, lembra que

“ (...) Fomos sempre muito questionados sobre a pertinência de se lidar com a construção de
conceitos no Ensino Fundamental; a questão do processo de maturação da criança, sua ca-
pacidade ou não de compreensão, análise, sistematização, colocou-nos sempre uma questão
muito séria a ser trabalhada.” (Mascarenhas, 1994: 67)

Essa preocupação procede. Estamos lidando com crianças entre 7 e 11 anos e propondo que elas sejam
capazes de pensar a história, a geografia, a sociologia, a antropologia e a política do lugar onde vivem. E ainda
estamos pretendendo que isso se faça de maneira a que se tornem criticamente ativos diante desta realidade.
Não seria pedir demais para uma criança? Consideramos que não. Ela é, sim, capaz de desenvolver a capaci-
dade de compreensão e interpretação da realidade social, em todas as suas abordagens, se isso for estabelecido
como eixo de sustentação do projeto pedagógico em exercício e se estiver assentado sobre uma fundamentação

74 A proposta de tratamento das Ciências Humanas como área não é se limita aos conteúdos regionais e se vincula a uma proposta teórico - metodo-
lógica formulada e discutida pelo GEPECH – FE/UFG.
75 Sobre isso ver A Aula Integrada, 3ª e 4ª séries. Unijuí, Ijuí, 1993.
teórica capaz de sustentar, científicamente, a construção conceitual realizada, pela criança, neste processo.
Não consideramos que seja facilmente realizável pela criança nesta faixa etária, a tarefa diária de
memorizar centenas de nomes de heróis, acidentes geográficos, datas, seqüências de estados e capitais, micro -
regiões e seus municípios ou listas de governadores e prefeitos. Mas, também não é fácil preferir a construção
conceitual. Mas, é a nossa opção, como afirma Mascarenhas:

“ A opção pelo ensino das Ciências Sociais através da construção de conceitos responde a
perspectiva da ampliação da capacidade de análise, interpretação e sistematização do aluno,
resultando no alargamento das sua visão de mundo e na construção da possibilidade de situar-
se melhor dentro dele. (Mascarenhas, 1994: 68)

O suporte teórico a que nos referimos é a formulação apresentada por Vigotsky, que nos traz como
referência a idéia de que

(...) a formação de conceitos é o resultado de uma atividade complexa, em que todas as


funções intelectuais tomam parte. Mas, se o meio – ambiente não fizer novas exigências ao
indivíduo (...) o seu raciocínio não conseguirá atingir níveis mais elevados ou só os alcançará
com grande atraso.(Idem, 69)

Não nos cabe aqui aprofundar a exposição desta fundamentação teórica. Basta, neste momento, que
se lembre que a produção conceitual é um processo construído ao longo de um conjunto de momentos que
estabelecem relações sistemáticas entre o concreto e o abstrato, mediadas pelas relações sociais.
Todos os conceitos fundamentais para a compreensão das Ciências Humanas, considerando todas as
ciências que a compõem, podem ser identificados nos conteúdos relativos ao local e o regional. Tais conceitos
fundamentais são tempo histórico, espaço geográfico, cultura, poder e relações sociais, alinhavados pelo con-
ceito de trabalho.. Qualquer conteúdo relativo ao ensino de Ciências Humanas, qualquer que seja a série a que
nos referimos, deve ter como referência e projeto, a construção destes conceitos.

Ao se tratar a escola ou a família, por exemplo, tais conceitos estarão em construção. Quando se tratar
do estudo do município ou do estado, tais conceitos também estarão em construção. Compreender a família ,
a escola, o município ou o estado não são objetivos que se bastam em si mesmos. Ao contrário, compreender
conceitualmente cada um deles é perceber que todos se inter- relacionam e interdependem. Também assim,
efetivamos a possibilidade de compreender quaisquer conteúdos, pois, instrumentalizados pelo conceito, po-
demos conquistar a autonomia de análise que ele nos possibilita.
Por exemplo, na escola se trabalha, na família se trabalha, no município se trabalha, no Brasil e no
mundo se estabelecem relações de trabalho. Para compreender o trabalho e conceituá-lo, precisamos sim, par-
tir do que é mais concreto, mas não para nos prendermos a ele, mas, sim, para conquistar a autonomia que nos
permite situar relações de trabalho onde quer que elas se apresentem, além de sermos capazes de compreender,
de maneira sistematizada e analítica, é claro, o lugar onde vivemos.

2.4 – As fontes primárias como objetos de investigação

Sob a influência da Nova História e da História Cultural, as fontes primárias para o estudo das Ciências
Humanas, experimentaram, nas últimas décadas, uma considerável ampliação. Tudo ou quase tudo passou a
ser considerado fonte documental: uma carta, um vestido, uma foto, um brinquedo, um desenho infantil, uma
narrativa familiar, uma panela da sua cozinha.
Grandes são os ganhos desta ampliação, que contribuiu profundamente para o enfrentamento de uma
visão oficialista e hegemonista das fontes documentais. Também a idéia de que a história, por exemplo, possui
outros ângulos de análise e outros agentes, até então não considerados, como a história vista de baixo, a história
das mulheres ou a história da infância, a história local. Isso tudo tem nos feito alargar nossas fontes, nossos
objetos e nossas análises.
Isso pode nos ajudar muito no trabalho com o ensino do local e do regional nas séries iniciais no En-
sino Fundamental. Os alunos convivem com o patrimônio histórico, cultural e ambiental podem acessá-lo em
maiores dificuldades.
Porém, ao se tratar de em novas fontes temos que nos precaver de não as transformarmos em objetos de
descrição. Para serem fontes de uma investigação, temos que assim tratá-las. Não nos basta localizar a fonte.
Ela deve ser objeto de investigação.
Uma fotografia de nosso bisavô, conversando com outro senhor, em frente a sua casa, na praça central
da cidade, em 1920, deve ser tratada como fonte de questionamentos e análises. Por que se vestiam assim? Por
quem e como eram feitas as roupas? O que mudou na praça, ao longo dos anos? Onde estão as mulheres? Onde
estão as crianças? Onde moram as outras pessoas? Por que não existem fotos de moradores que não tinham
casa na praça central? Essas e outras tantas questões devem ser levantadas para que a fonte seja considerada
uma contribuição para o estudo da cidade.
Esse é um dos problemas que enfrentamos com as visitas escolares aos museus. Além da contemplação
do belo, do diferente, da novidade, raramente se transforma a visita em algo que supere o passeio.

Concluindo

As contradições que constatamos no início deste texto, ou seja, a aparente desqualificação da área de
Ciências Humanas em permanente conflito com sua importância, historicamente observável, para os processos
de hegemonia político - ideológica, não está superada na educação brasileira. Isso ainda se faz sentir nas polí-
ticas educacionais para formação de professores, por exemplo, com a retomada das licenciaturas curtas, hoje
travestidas de cursos normais superiores. Sabemos que essa problemática atinge todas as áreas da formação
dos professores, mas, em se tratando o quadro se agrava, consideravelmente, em função dos elementos que
alinhavamos ao longo deste texto, tendo como objeto específico, o ensino do regional e do local, nas séries
iniciais do Ensino Fundamental.
Mas, cumpre dizer que muito já caminhamos e tanto ainda temos que caminhar. Os espaços estão em
aberto para serem ocupados pelas propostas que se disponham a reconstruir esse campo de nossa intervenção,
os docentes das séries iniciais, sempre que têm oportunidade, demonstram sua disposição em contribuir nesse
sentido. O que se pretendeu, enfim, foi contribuir para que se reconheça que nossos limites neste campo, como
em tantos outros, devem para nós, professores, pesquisadores, escolas e universidades se transformar em con-
vites ao desafio. Isso para a construção coletiva de sujeitos capazes de, de fato, se capacitarem a ser se tornarem
sujeitos críticos, cujo enunciado ultrapasse as boas intenções e os chavões de nossos planejamentos de aula.

Bibliografias Bibliográficas

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