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Informações
Roberto Bacci
Um trabalho necessário
Peter Brook
Grotowski, a arte como veículo
Jerzy Grotowski
o Performer
Peter Brook
Grotowski, a arte como veículo
O que me toca é que nada é tão divertido como um paradoxo, e que falar de Grotowski e
do seu trabalho nos coloca imediatamente diante de um imenso paradoxo. Grotowski,
como eu o conheço há mais de vinte anos, é um homem profundamente simples que
conduz uma pesquisa profundamente pura. Como é possível que, ao longo dos anos, o
resultado desta simplicidade é de criar também a complicação e até confusão? Através do
contato pessoal com seu trabalho, eu adquiri um conhecimento íntimo do seu valor; um
trabalho iniciado na Polônia por um homem excepcional, com um número muito restrito
de pessoas e que, graças ao sistema de viagens e de comunicação do século XX, repercutiu
muito rapidamente nos livros, revistas, entrevistas, no trabalho de pequenos grupos em
todos os países do mundo. Então, é inevitável que esta difusão ultra-rápida não passe
necessariamente por pessoas qualificadas, e que, em torno do nome de Grotowski, como
um rochedo que rola, venham se grudar, se enxertar, todo tipo de mal-entendidos, de
excrescência.
Eu me lembro, alguns anos atrás, existia no aeroporto de Paris um controlador de vôo.
Quando, depois do trabalho, que é muito duro e muito intenso, ele voltava para casa no
subúrbio, esse cara dava cursos de Grotowski. Então, eu não posso dizer nada, podia ser
alguém extremamente qualificado que transmitia alguma coisa de essencial a duas ou três
pessoas. Mas talvez, fosse apenas alguém que tendo visto aterrissar um avião da
companhia polonesa LOT se sentia especialista em assuntos poloneses e
conseqüentemente também no trabalho de Grotowski?
Então, qual é o resultado hoje de todos esses anos de mal-entendidos? O que não está
claro, e que deve ser esclarecido é: qual é a relação precisa e concreta entre o trabalho de
Grotowski e o teatro?
Houve uma época em que isto parecia simples, porque os atores de Wroclaw faziam
espetáculos que provocavam um choque no mundo do teatro, imediatamente, por causa
da qualidade, em todos os níveis, do seu trabalho, digamos de ordem dramática, que
passava através dos recursos do ator. Então, nesta época, estava claro que era como uma
luz, como um farol, para mostrar que, no teatro, era possível atingir um nível superior
mais profundo, mais intenso, com a condição que os atores chegassem a um nível de
devotamento, de sinceridade, de seriedade e compreensão de seus próprios meios que
não existem no nível medíocre do teatro habitual. Então, aí se coloca muito rapidamente o
primeiro mal-entendido. Em outros países, grupos de teatro, porque compartilhavam
deste ideal, porque compartilhavam deste desejo de sair de um teatro sórdido, de ir na
direção de um teatro de uma outra intensidade, começavam a seguir a via de Grotowski,
sem se dar conta que se o mestre e seus próprios alunos não se achavam neste tão alto
nível, se eles não possuíam pela sua própria experiência este nível de compreensão, todo
o trabalho sincero que eles faziam, no lugar de subir na direção do ideal faziam descer o
ideal ao seu nível real, que era o nível contra o qual eles estavam revoltados.
A segunda fase do trabalho de Grotowski, vista de fora, se tornou mais misteriosa e mais
complexa porque Grotowski, seguindo um caminho que sempre foi simples, lógico e
direto, dava a impressão de fazer uma mudança extraordinária de direção porque ele
parou de fazer apresentações públicas. Então começa a se colocar uma questão totalmente
real: o que este trabalho tem a ver com teatro se não tem mais apresentação?
Se olharmos este trabalho na sua evolução, visto de muito perto, ele continua a se
desenvolver, a evoluir, a se tornar cada vez mais rico, importante, necessário, e, visto de
longe, ele tem um ar de ser cada vez mais misterioso. Um trabalho profundo deve ser
protegido. Um trabalho não pode ao mesmo tempo ser uma pesquisa em profundidade e
se abrir todos os dias a todos que venham com uma curiosidade natural. Isto seria a
destruição de um trabalho intenso e sério. Mas eu acho que existem certos momentos
como hoje quando é necessário deixar passar um grande vento de abertura sobre o
mistério. Então olhemos de mais perto o que queremos compreender melhor hoje.
A partir do ponto de vista do teatro, o veículo mais forte em todas as formas de teatro que
existem no mundo sempre foi o homem, ou para não criar reações feministas, a pessoa, o
indivíduo. Este indivíduo, esta pessoa, é sempre desconhecida. E é uma necessidade
absoluta por tudo que se passa, em toda parte, no mundo do teatro que em algum lugar
existam as condições excepcionais para a única pessoa que no mundo de hoje faz
pesquisas tão profundas neste âmbito possa continuar a investigar este estranho
desconhecido que é o ator.
Entrando aqui eu cumprimentei um velho amigo que me lembrou que ele é o filho de um
dos nossos maiores mestres, Gordon Craig. Eu digo um de nossos maiores mestres,
porque existem poucas pessoas que tenham tido uma influência tão direta e tão
duradoura na totalidade do teatro do nosso século quanto Gordon Craig. E essa influência
passou através de duas ou três coisas, que somente uma pequena quantidade de pessoas
leu e viu, mas foram coisas extraordinárias. A qualidade da pesquisa deste homem criou
uma influência que atravessou o mundo. Porque o mundo do teatro é muito intuitivo e, é
esta sua grande qualidade, ser muito capaz de capturar o que está no ar. As grandes
influências se elas são fortes, penetram rapidamente e vão muito longe. É por isso que eu
posso dizer que o trabalho em Pontedera diz respeito e toca o mundo do teatro. Isto em
relação ao seu aspecto de laboratório onde se fazem experiências impossíveis de realizar
fora de um laboratório. E se nós nos associamos, como Centre International de Créations
Théâtrales de Paris com o Centro de Grotowski é porque nós estamos absolutamente
convencidos que existe uma relação viva e permanente a estabelecer entre o trabalho
fechado de pesquisa e a alimentação imediata que esta pode dar ao trabalho público.
Mas hoje, eu acho que há um outro aspecto que seria interessante abordar. Desde o
momento que começamos a explorar as possibilidades do homem, quer queira ou não,
quer se tenha medo do que isto representa ou não, é preciso se colocar francamente diante
do fato de que esta pesquisa é uma pesquisa espiritual; e começo por uma palavra
explosiva, muito simples, mas que gera mal-entendidos. Eu quero dizer "espiritual" no
sentido de que, indo em direção a interioridade do homem, passamos do conhecido ao
desconhecido, e que, na medida em que o trabalho dos grupos sucessivos de Grotowski,
graças a sua evolução pessoal, se tornou mais essencial, os pontos interiores que foram
tocados se tornaram cada vez mais inevitáveis, mais distantes de todas as definições
comuns. Então podemos dizer que, numa outra época que não a nossa, este trabalho teria
sido como a evolução natural de uma grande tradição espiritual. Porque as grandes
tradições espirituais em toda a história da humanidade tiveram sempre necessidade de
formas. Nada é pior que a necessidade do além tomada de uma maneira vaga e genérica.
Nas grandes tradições, vimos por exemplo, os monges que, procurando uma base sólida
para sua busca interior, faziam cerâmica, ou então aqueles que encontravam como veículo a
música. Me parece que hoje nós estamos diante de uma coisa que existiu em outra época
mas que foi esquecida há séculos e séculos, e o fato de que, em meio aos veículos que
permitem ao homem acesso a um outro nível e utilizar com mais precisão sua função no
universo, existe este meio de compreensão que é a arte dramática em todas as suas
formas. Mas isto depende de que? De uma só coisa: que a pessoa seja dotada para esta
forma. É evidente que se um homem quisesse ir em busca de Deus, e entrasse num
monastério onde todo o trabalho girasse em torno da música, mas que ele não gostasse de
música com seu coração, que ele não tivesse "ouvido", então ele teria ido ao lugar errado.
Por outro lado, existe no mundo muita gente que é atraída por esta função, muito natural
para o homem, que é representar. Nós sabemos muito bem, quando nós fazemos testes,
que a humanidade se divide em duas partes: aqueles que querem representar e não tem
talento, e aqueles que tem um verdadeiro talento. Então, aqueles que tem talento não tem
a mínima idéia do que isto quer dizer, eles não sabem falar por si mesmos; eles sabem
apenas que eles têm uma atração. Com esta atração, o homem que sonha com um papel
na vida: se tornar ator, pode, de uma maneira totalmente natural, sentir que seu dever é ir
só na direção do espetáculo. Mas ele pode sentir outra coisa, sentir que todo este dom,
todo este amor é a abertura para uma outra compreensão; e sentir que esta compreensão
ele não pode encontrá-la a não ser através de um trabalho pessoal com um mestre, como
em todas as tradições íntimas e esotéricas que sempre existiram. É por esta razão, que eu
gostaria de pedir ao meu, ao nosso amigo Grotowski para nos esclarecer hoje de que
maneira e em que medida seu trabalho sobre a arte dramática toma uma forma
inseparável da necessidade de uma evolução pessoal para aqueles que trabalham ao seu
redor. Eu gostaria que ele desse uma luz sobre isto.
Quanto a mim, eu estou convencido que sua atividade no domínio da arte como veículo é
não somente do mais alto valor para o mundo de hoje, mas que ninguém mais pode
imitar, nem fazer por ele. Por esta razão eu tirarei uma conclusão simples: ninguém pode
falar por ele.
Jerzy Grotowski
o Performer
o perigo e a sorte
o Eu-Eu
Podemos ler nos textos antigos: Nós somos dois. O pássaro que bica e o pássaro que olha. Um
morrerá, um viverá. Embriagados de estar dentro do tempo, preocupados em bicar, nós
esquecemos de fazer viver a parte de nós mesmos que olha. Existe então o perigo de se
existir somente dentro do tempo e nulamente fora do tempo. Se sentir olhado pela outra
parte de si mesmo, esta que está como que fora do tempo, dá uma outra dimensão. Existe
um Eu-Eu. O segundo Eu é quase virtual; não está em nós o olhar dos outros, nem o
julgamento, é como um olhar imóvel: presença silenciosa, como o sol que ilumina as
coisas e é tudo. O processo de cada um pode se completar somente no contexto desta
presença imóvel. Eu-Eu: na experiência a dupla não aparece separada, mas como plena,
única.
Na via do Performer percebemos a essência durante sua osmose com o corpo, em seguida
trabalhamos o processo desenvolvendo o Eu-Eu. O olhar do teacher pode às vezes
funcionar como o espelho da ligação Eu-Eu (esta ligação não estando ainda traçada).
Quando o vínculo Eu-Eu está traçado, o teacher pode desaparecer e o Performer continuar
na direção do corpo da essência. Isso que podemos reconhecer na foto de Gurdjieff velho
sentado num banco em Paris. Da imagem do jovem guerreiro de Kau àquela de Gurdjieff,
é o caminho do corpo-e-essência ao corpo da essência. O Eu-Eu não quer dizer estar cortado
em dois mas ser duplo. Se trata aqui de ser passivo na ação e ativo no olhar (ao contrário
do habitual). Passivo quer dizer ser receptivo. Ativo ser presente. Para nutrir a vida do
Eu-Eu, o Performer deve desenvolver não um organismo-massa, organismo dos músculos,
atlético, mas organismo-canal através do qual as forças circulam.
O Performer deve trabalhar numa estrutura precisa. Fazendo esforços, já que a persistência
e o respeito aos detalhes são o regime que permite tornar presente o Eu-Eu. As coisas a
fazer devem ser exatas. Don't improvise, please! É preciso encontrar ações simples, mas
tomando cuidado para que elas sejam dominadas e que isto dure. Senão não se trata do
simples mas do banal.
o homem interior
Eu cito: Entre o homem interior e o homem exterior existe a mesma diferença infinita que
entre o céu e a terra.
Quando eu estava na minha primeira causa, eu não tinha Deus, eu era minha
própria causa. Ali, ninguém me perguntava para onde eu tendia nem o que eu fazia; não tinha
ninguém para me interrogar. Aquilo que eu queria, eu era e aquilo que eu era eu queria; eu era livre
de Deus e de todas as coisas.
Assim que eu saí (flutuando) todas as criaturas falavam de Deus. Se me
perguntavam: -Irmão Eckhart, quando vós saístes de casa? -Eu sentia que não fazia mais de um
instante. Eu era eu mesmo, eu me queria a mim mesmo e me conhecia a mim mesmo, para fazer o
homem (que aqui embaixo eu sou).
É por isso que eu sou não-nato, e segundo a minha forma não-nata eu não posso morrer. Aquilo que
eu sou segundo a minha nascença morrerá e se aniquilará, porque isso é devolvido ao tempo e vai
apodrecer com o tempo. Mas no meu nascimento nasceram também todas as criaturas. Todas
experimentam a necessidade de se elevar da sua vida à sua essência.
Quando eu volto, esta travessia é muito mais nobre que minha saída. Nesta travessia eu estou
acima de todas as criaturas, nem Deus, nem criatura; mas eu sou aquilo que eu era, aquilo que eu
devo continuar sendo agora e para sempre. Quando eu chego lá, ninguém me pergunta de onde eu
venho, nem aonde estive. Lá sou aquilo que eu era, eu não cresço nem diminuo, porque lá eu sou
uma causa imóvel, que faz mover todas as coisas.
NOTA: Uma versão deste texto (baseado na conferência de Grotowski) foi publicada em maio de
1987 pela Art-Presse em Paris, com a seguinte nota de George Banu: "Não é nem um registro, nem
uma prestação de contas que eu proponho aqui, mas notas tomadas com cuidado, o mais próximo
das fórmulas de Grotowski. Seria preciso lê-las como indicação de percurso e não como os termos
de um programa, nem como um documento acabado, escrito, fechado. Os ecos da voz do eremita
podem chegar até nós, mesmo se seus atos continuam secretos". Os subtítulos (salvo o último: "o
homem interior") são da redação Art-Presse. O texto foi retrabalhado e completado por Grotowski
em vista da sua publicação. Grotowski fala aqui da sua mais alta intenção. Identificar "o
Performer" com os estagiários do "Centro di Lavoro" seria um abuso. Se trata antes do ápice,
daquele caso de aprendizagem que, em toda a atividade do " teacher of Performer" não aparece a
não ser raras vezes.