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CENTRO DI LAVORO DI JERZY GROTOWSKI

WORKCENTER OF JERZY GROTOWSKI

Centro per la Sperimentazione e la Ricerca Teatrale


Regione Toscana
Provincia di Pisa
Comune di Pontedera
University of California,Irvine,USA
Peter Brook/Centre International de Créations Théâtrales, Paris

INDICE

Informações

Roberto Bacci
Um trabalho necessário

Peter Brook
Grotowski, a arte como veículo

Jerzy Grotowski
o Performer

O CENTRO DE TRABALHO DE JERZY GROTOWSKI, em atividade na Toscana desde


agosto de 1986 com um programa trienal, nasceu por iniciativa do Centro per la
Sperimentazione e la Ricerca Teatrale com o apoio da Regione Toscana e da University of
California, Irvine, USA e em colaboração com Peter Brook - Centre International de
Créations Théâtrales, Paris, França. Entre outros, foi acordada também uma subvenção
pela Rockefeller Foundation, N.Y., USA.
Como prólogo à ativação do CENTRO DE TRABALHO DE JERZY GROTOWSKI, foi
realizado um seminário de dois meses no verão de 85 em uma vila dos Marqueses
Frescobaldi. Naquela ocasião Grotowski fez também uma conferência pública no
Gabinetto Vieusseux de Florença. O texto desta conferência foi publicado no Linea
d'Ombra n. 17 e na The Drama Review vol. 31 T. 115 .
O objetivo do CENTRO DE TRABALHO DE JERZY GROTOWSKI é de transmitir a
alguns indivíduos da geração mais jovem as conclusões práticas, técnicas, metodológicas,
criativas ligadas ao trabalho que Grotowski desenvolveu no curso de quase três décadas.
Os candidatos são pessoas com experiência artística - em alguns casos quase debutantes -
ativos no âmbito das artes do espetáculo e que dispõem não só do interesse específico
mas também das possibilidades criativas e das determinações necessárias a um trabalho
fundamentado no rigor e na precisão. Não se trata no entanto de uma escola. É antes um
instituto criativo de educação permanente para artistas adultos, responsáveis. A arte
dramática é aqui veículo do desenvolvimento individual. O treinamento é de fato,
principalmente, um trabalho criativo, do modo como Grotowski o concebe.
Ao longo dos primeiros anos cerca de 200 jovens profissionais, provenientes da Itália, de
toda a Europa e da América tomaram parte na atividade do CENTRO DE TRABALHO
DE JERZY GROTOWSKI; a duração da sua participação no trabalho pode variar de
alguns dias a muitos meses. Este é um dos aspectos característicos do funcionamento do
Centro.
Os aspectos técnicos elementares são os seguintes:
Relação precisão / organicidade.
Relação tradição / trabalho pessoal.
Relação ritual / espetáculo.
Dança e ritmo.
Canto.
Vibração da voz.
Ressonância espacial e corporal.
Respiração.
Consciência do espaço e reações aos seus elementos constitutivos.
Improvisação: os impulsos / consciência vigilante.
Improvisação numa estrutura.
Montagem das ações físicas.
Montagem da performance / papel.
Busca de uma linha precisa e de uma lógica dos impulsos e das ações físicas: a partitura.
O grupo engajado no programa de participação a longo prazo (de muitos meses até
alguns anos) conta com de 10 a 20 pessoas que trabalham simultaneamente, no mesmo
período.
Além da própria atividade em Pontedera o CENTRO DI LAVORO DI JERZY
GROTOWSKI organizou, em colaboração com o Centre d'Aide Technique et de
Formations Théâtrales de Bruxelas (Bélgica), um encontro de trabalho com jovens
companhias teatrais da Europa do Norte no Château de l' Hermitage (França). Além das
demonstrações e análise dos espetáculos - o encontro se articulou em três sessões práticas
consecutivas (de cerca de 10 dias cada uma) com os atores e os diretores, sob a direção de
Grotowski e da sua equipe de 4 assistentes. Em maio de 1987, uma sessão de trabalho
aconteceu na Universidade da Califórnia, Irvine, USA, com a contribuição do National
Endowment for the Arts, Washington, D.C.
Em relação às exigências de criação e de pesquisa, a atividade do CENTRO DE
TRABALHO pode ser completada por encontros com características de seminário. Por
exemplo, em fevereiro/87 teve lugar em Pontedera um seminário teórico de alguns dias
que forneceu aos convidados, umas trinta pessoas, na maioria estudiosos e gente de
teatro, os materiais de informação e reflexão para uma abordagem da fase atual do
trabalho de Grotowski. Mais tarde, em Florença, presentes mais de duzentas pessoas, se
realizou um encontro onde pela primeira vez Grotowski, em companhia de Peter Brook,
falou publicamente do programa de atividades do Centro.
A propósito do seminário de fevereiro de 87, Georges Banu escreveu: "Grotowski entende
fechar-se não sozinho com os livros como Craig, mas sozinho com os outros. Craig que no início
do século agitou o teatro ocidental, se retirou nos anos trinta em Florença onde criou a
Arena Goldoni e Grotowski encontra a sua torre a vinte quilômetros apenas, na academia
de Pontedera. Ali, convidou alguns amigos seus a de falar no contexto de uma segurança
familiar e para evitar o jogo social (...) Voz do além do teatro que encarna esta exigência
suprema cuja vocação não é de salvar uma arte, mas de ajudar um ser a se completar".
Tradução do italiano por Celina Sodré
Roberto Bacci
Um trabalho necessário
Nestes últimos anos trabalhamos por um "novo teatro". Esta foi uma definição que
mobilizou forças de todos os tipos dentro e fora do teatro, foi um slogan que, segundo
cada caso, acentuou diferentes linguagens, sobre o tema da mudança de gerações, sobre o
impacto sociológico do teatro, sobre a antropologia teatral, sobre a criação de estruturas
organizativas. Mas, às vezes, temos a impressão que tudo isso não serviu para fazer o
teatro sair do seu próprio mecanismo, de certos automatismos que freqüentemente o
fazem viver apenas como reflexo de outro teatro. Os grandes mestres sempre se orientam
no sentido de um "duplo", mantido o mais escondido, que é preciso fazer crescer
paralelamente ao processo criativo.
Eles mudaram seu próprio teatro porque o "trocaram" por alguma outra coisa.
Procurando esta "alguma outra coisa" através de uma prática profissional, se
encontraram, ao final, tendo modificado, junto aos confins dos conhecimentos comuns,
também aqueles mais importantes da própria consciência. Para Jerzy Grotowski tudo isto
sempre foi declarado, concreto e evidente. Quem seguiu suas pegadas se encontrou mais
de uma vez em uma pista que para Grotowski já estava exaurida: se pode dizer que o seu
processo teatral se transformou paralelamente na sua história pessoal. Talvez quem faz
teatro fale de Grotowski como um mito exatamente por isto, porque ele nunca esteve
onde os outros pensavam que estava: vinte anos atrás se pensava que estivesse praticando
o seu "teatro pobre" (uma das grandes revoluções teatrais do século), enquanto na ponta
dos pés ele já tinha saído pela porta dos fundos do edifício teatral para buscar alguma
coisa fora do espetáculo. Mas aquilo que eu queria sublinhar nesta aventura, que redefine
constantemente a posição do homem diante do processo teatral, é o ensinamento que
Grotowski indiretamente nos deu sobre o modo de viver o teatro ao largo das instituições.
Enquanto de um lado se fala sempre mais da necessidade de um "novo sistema teatral" e
de ampliar e racionalizar a máquina produtiva e distributiva de espetáculos, nasceram ao
mesmo tempo outras necessidades, talvez menos aparentes, mas de qualquer maneira
ainda mais decisivas para o futuro do teatro.
As mutações às quais mestres como Grotowski dão vida na cultura material do teatro,
requerem respostas que as instituições não sabem dar, muito freqüentemente habituadas
a responder somente por automatismos ou com a lógica de quem gerencia uma empresa.
É exatamente aprendendo a reagir que se criam novos espaços mentais e culturais, que se
constrói concretamente uma nova reatividade das instituições para o teatro.
Assim como existem atores que vivem dos clichês e atores orgânicos, existem também
dois modos diversos de organizar teatro: um é especializado no aumento das
necessidades e dos projetos de quem faz teatro nas formas pré-estabelecidas pelos
orçamentos e pelos regulamentos, o outro não pode se especializar e transforma a
organização em trabalho criativo. Dobra ou tenta dobrar os materiais administrativos
adaptando-os às exigêngias dos processos artísticos. É inútil se esconder que uma
instituição teatral que vive de vida orgânica é freqüentemente experimentada como uma
idéia e uma prática intimamente contraditórias. A verdadeira dificuldade consiste no
saber desfrutar desta contradição como energia vital impedindo de se transformar em
uma laceração.
Tínhamos tido freqüentes relações com Jerzy Grotowski, de Apocalypsis cum figuris à
Arvore de Gente ao Teatro das Nascentes, mas, uma hospitalidade estável é uma coisa bem
diferente. Para estar à altura do CENTRO DE TRABALHO DE JERZY GROTOWSKI, o
Centro per la Sperimentazione e la Ricerca Teatrale de Pontedera teve que escolher um
caminho radical.
Entre outras se reforçou seja a tendência ao investimento a longo prazo das nossas
energias sem pedir resultados imediatos, assim como a vontade de nutrir o ambiente
teatral no seu conjunto, sustentando uma pesquisa que tem suas raízes na história do
teatro e naquela de indivíduos precisos.
Os jovens artistas de todo o mundo que vieram a Pontedera para trabalhar ou para
encontrar Grotowski nestes anos, não vieram para ver um espetáculo ou para participar
de um seminário, vieram mais para verificar e rediscutir em uma academia (no sentido
original do termo) também a sua visão do teatro.
Estas pessoas, que, às vezes com sacrifício, se aproximaram de uma experiência extrema e
concreta como aquela que Grotowski persegue, vão embora com uma grande bagagem de
experiências profissionais, mas também com perguntas fundamentais a responder.
Observado, superficialmente, de fora o empenho de uma pequena instituição como a
nossa de manter vivo o CENTRO DE TRABALHO DE JERZY GROTOWSKI, este
empenho pode parecer excessivo diante dos recursos que podemos ativar. Mas quem
administra ou dirige institutos culturais deve saber colher o segredo do próprio metier.
Estou convencido que não existe um verdadeiro conhecimento aonde não existe um
verdadeiro segredo, mas é também verdade que os segredos são construídos dia-a-dia.
O CENTRO DE TRABALHO DE JERZY GROTOWSKI, deste ponto de vista, é o segredo
do nosso metiê, o que o mantém vivo apesar dos tempos. Este segredo se transmite
continuamente, também como possibilidade de conhecimento para outras pessoas que
encontramos.
Para o Centro de Pontedera, com a sua história feita de tantos encontros, de tantos
espetáculos produzidos, de tantos projetos que nos aproximam a cada vez de culturas e
teatros de todo o mundo, hospedar Grotowski é hoje um "trabalho necessário", um modo
de manter viva uma inquietude que já tem alguma coisa a ver com o nosso futuro: um
silêncio que nos obrigamos finalmente a escutar.

Roberto Bacci - Diretor Artístico do Centro per la Sperimentazione e la Ricerca Teatrale


Tradução do italiano por Celina Sodré.

Peter Brook
Grotowski, a arte como veículo

O que me toca é que nada é tão divertido como um paradoxo, e que falar de Grotowski e
do seu trabalho nos coloca imediatamente diante de um imenso paradoxo. Grotowski,
como eu o conheço há mais de vinte anos, é um homem profundamente simples que
conduz uma pesquisa profundamente pura. Como é possível que, ao longo dos anos, o
resultado desta simplicidade é de criar também a complicação e até confusão? Através do
contato pessoal com seu trabalho, eu adquiri um conhecimento íntimo do seu valor; um
trabalho iniciado na Polônia por um homem excepcional, com um número muito restrito
de pessoas e que, graças ao sistema de viagens e de comunicação do século XX, repercutiu
muito rapidamente nos livros, revistas, entrevistas, no trabalho de pequenos grupos em
todos os países do mundo. Então, é inevitável que esta difusão ultra-rápida não passe
necessariamente por pessoas qualificadas, e que, em torno do nome de Grotowski, como
um rochedo que rola, venham se grudar, se enxertar, todo tipo de mal-entendidos, de
excrescência.
Eu me lembro, alguns anos atrás, existia no aeroporto de Paris um controlador de vôo.
Quando, depois do trabalho, que é muito duro e muito intenso, ele voltava para casa no
subúrbio, esse cara dava cursos de Grotowski. Então, eu não posso dizer nada, podia ser
alguém extremamente qualificado que transmitia alguma coisa de essencial a duas ou três
pessoas. Mas talvez, fosse apenas alguém que tendo visto aterrissar um avião da
companhia polonesa LOT se sentia especialista em assuntos poloneses e
conseqüentemente também no trabalho de Grotowski?
Então, qual é o resultado hoje de todos esses anos de mal-entendidos? O que não está
claro, e que deve ser esclarecido é: qual é a relação precisa e concreta entre o trabalho de
Grotowski e o teatro?
Houve uma época em que isto parecia simples, porque os atores de Wroclaw faziam
espetáculos que provocavam um choque no mundo do teatro, imediatamente, por causa
da qualidade, em todos os níveis, do seu trabalho, digamos de ordem dramática, que
passava através dos recursos do ator. Então, nesta época, estava claro que era como uma
luz, como um farol, para mostrar que, no teatro, era possível atingir um nível superior
mais profundo, mais intenso, com a condição que os atores chegassem a um nível de
devotamento, de sinceridade, de seriedade e compreensão de seus próprios meios que
não existem no nível medíocre do teatro habitual. Então, aí se coloca muito rapidamente o
primeiro mal-entendido. Em outros países, grupos de teatro, porque compartilhavam
deste ideal, porque compartilhavam deste desejo de sair de um teatro sórdido, de ir na
direção de um teatro de uma outra intensidade, começavam a seguir a via de Grotowski,
sem se dar conta que se o mestre e seus próprios alunos não se achavam neste tão alto
nível, se eles não possuíam pela sua própria experiência este nível de compreensão, todo
o trabalho sincero que eles faziam, no lugar de subir na direção do ideal faziam descer o
ideal ao seu nível real, que era o nível contra o qual eles estavam revoltados.
A segunda fase do trabalho de Grotowski, vista de fora, se tornou mais misteriosa e mais
complexa porque Grotowski, seguindo um caminho que sempre foi simples, lógico e
direto, dava a impressão de fazer uma mudança extraordinária de direção porque ele
parou de fazer apresentações públicas. Então começa a se colocar uma questão totalmente
real: o que este trabalho tem a ver com teatro se não tem mais apresentação?
Se olharmos este trabalho na sua evolução, visto de muito perto, ele continua a se
desenvolver, a evoluir, a se tornar cada vez mais rico, importante, necessário, e, visto de
longe, ele tem um ar de ser cada vez mais misterioso. Um trabalho profundo deve ser
protegido. Um trabalho não pode ao mesmo tempo ser uma pesquisa em profundidade e
se abrir todos os dias a todos que venham com uma curiosidade natural. Isto seria a
destruição de um trabalho intenso e sério. Mas eu acho que existem certos momentos
como hoje quando é necessário deixar passar um grande vento de abertura sobre o
mistério. Então olhemos de mais perto o que queremos compreender melhor hoje.
A partir do ponto de vista do teatro, o veículo mais forte em todas as formas de teatro que
existem no mundo sempre foi o homem, ou para não criar reações feministas, a pessoa, o
indivíduo. Este indivíduo, esta pessoa, é sempre desconhecida. E é uma necessidade
absoluta por tudo que se passa, em toda parte, no mundo do teatro que em algum lugar
existam as condições excepcionais para a única pessoa que no mundo de hoje faz
pesquisas tão profundas neste âmbito possa continuar a investigar este estranho
desconhecido que é o ator.
Entrando aqui eu cumprimentei um velho amigo que me lembrou que ele é o filho de um
dos nossos maiores mestres, Gordon Craig. Eu digo um de nossos maiores mestres,
porque existem poucas pessoas que tenham tido uma influência tão direta e tão
duradoura na totalidade do teatro do nosso século quanto Gordon Craig. E essa influência
passou através de duas ou três coisas, que somente uma pequena quantidade de pessoas
leu e viu, mas foram coisas extraordinárias. A qualidade da pesquisa deste homem criou
uma influência que atravessou o mundo. Porque o mundo do teatro é muito intuitivo e, é
esta sua grande qualidade, ser muito capaz de capturar o que está no ar. As grandes
influências se elas são fortes, penetram rapidamente e vão muito longe. É por isso que eu
posso dizer que o trabalho em Pontedera diz respeito e toca o mundo do teatro. Isto em
relação ao seu aspecto de laboratório onde se fazem experiências impossíveis de realizar
fora de um laboratório. E se nós nos associamos, como Centre International de Créations
Théâtrales de Paris com o Centro de Grotowski é porque nós estamos absolutamente
convencidos que existe uma relação viva e permanente a estabelecer entre o trabalho
fechado de pesquisa e a alimentação imediata que esta pode dar ao trabalho público.
Mas hoje, eu acho que há um outro aspecto que seria interessante abordar. Desde o
momento que começamos a explorar as possibilidades do homem, quer queira ou não,
quer se tenha medo do que isto representa ou não, é preciso se colocar francamente diante
do fato de que esta pesquisa é uma pesquisa espiritual; e começo por uma palavra
explosiva, muito simples, mas que gera mal-entendidos. Eu quero dizer "espiritual" no
sentido de que, indo em direção a interioridade do homem, passamos do conhecido ao
desconhecido, e que, na medida em que o trabalho dos grupos sucessivos de Grotowski,
graças a sua evolução pessoal, se tornou mais essencial, os pontos interiores que foram
tocados se tornaram cada vez mais inevitáveis, mais distantes de todas as definições
comuns. Então podemos dizer que, numa outra época que não a nossa, este trabalho teria
sido como a evolução natural de uma grande tradição espiritual. Porque as grandes
tradições espirituais em toda a história da humanidade tiveram sempre necessidade de
formas. Nada é pior que a necessidade do além tomada de uma maneira vaga e genérica.
Nas grandes tradições, vimos por exemplo, os monges que, procurando uma base sólida
para sua busca interior, faziam cerâmica, ou então aqueles que encontravam como veículo a
música. Me parece que hoje nós estamos diante de uma coisa que existiu em outra época
mas que foi esquecida há séculos e séculos, e o fato de que, em meio aos veículos que
permitem ao homem acesso a um outro nível e utilizar com mais precisão sua função no
universo, existe este meio de compreensão que é a arte dramática em todas as suas
formas. Mas isto depende de que? De uma só coisa: que a pessoa seja dotada para esta
forma. É evidente que se um homem quisesse ir em busca de Deus, e entrasse num
monastério onde todo o trabalho girasse em torno da música, mas que ele não gostasse de
música com seu coração, que ele não tivesse "ouvido", então ele teria ido ao lugar errado.
Por outro lado, existe no mundo muita gente que é atraída por esta função, muito natural
para o homem, que é representar. Nós sabemos muito bem, quando nós fazemos testes,
que a humanidade se divide em duas partes: aqueles que querem representar e não tem
talento, e aqueles que tem um verdadeiro talento. Então, aqueles que tem talento não tem
a mínima idéia do que isto quer dizer, eles não sabem falar por si mesmos; eles sabem
apenas que eles têm uma atração. Com esta atração, o homem que sonha com um papel
na vida: se tornar ator, pode, de uma maneira totalmente natural, sentir que seu dever é ir
só na direção do espetáculo. Mas ele pode sentir outra coisa, sentir que todo este dom,
todo este amor é a abertura para uma outra compreensão; e sentir que esta compreensão
ele não pode encontrá-la a não ser através de um trabalho pessoal com um mestre, como
em todas as tradições íntimas e esotéricas que sempre existiram. É por esta razão, que eu
gostaria de pedir ao meu, ao nosso amigo Grotowski para nos esclarecer hoje de que
maneira e em que medida seu trabalho sobre a arte dramática toma uma forma
inseparável da necessidade de uma evolução pessoal para aqueles que trabalham ao seu
redor. Eu gostaria que ele desse uma luz sobre isto.
Quanto a mim, eu estou convencido que sua atividade no domínio da arte como veículo é
não somente do mais alto valor para o mundo de hoje, mas que ninguém mais pode
imitar, nem fazer por ele. Por esta razão eu tirarei uma conclusão simples: ninguém pode
falar por ele.

Esta é a transcrição da conferência de Peter Brook, em francês, em março de 1987 em


Florença.
Esta transcrição foi traduzida para o português por Celina Sodré.

Jerzy Grotowski
o Performer

O Performer, com maiúscula, é o homem de ação. Não é um homem que representa um


outro. Ele é o dançarino, o padre, o guerreiro: ele está fora dos gêneros estéticos. O ritual
é performance, uma ação consumada, um ato. O ritual degenerado é espetáculo. Eu não
quero descobrir alguma coisa de novo mas alguma coisa de esquecido. Uma coisa tão
antiga que todas as distinções entre gêneros estéticos não são mais válidas.
Eu sou teacher of Performer. Eu falo no singular. Teacher, é alguém por quem passa o
ensinamento; o ensinamento deve ser recebido, mas a maneira para o aprendiz de
redescobri-lo, de se lembrar é pessoal. Como o teacher ele mesmo conheceu o ensinamento?
Pela iniciação, ou pelo roubo. O Performer é um estado do ser. O homem de conhecimento,
podemos pensá-lo em relação a Castañeda se amamos a sua coloração romântica. Eu
prefiro pensar em Pierre de Combas. Ou mesmo em Don Juan descrito por Nietzsche: um
rebelde que deve conquistar o conhecimento; mesmo se ele não é maldito pelos outros, ele
se sente diferente, como um outsider. Na tradição hindu se fala dos vratias (as hordas
rebeldes). Um vratia, é alguém que está no caminho para conquistar o conhecimento. O
homem de conhecimento dispõe do doing, do fazer e não de idéias ou de teorias. O que faz
pelo aprendiz o verdadeiro teacher? Ele diz: faça isso. O aprendiz luta para compreender,
para reduzir o desconhecido a conhecido, para evitar o fazer. Pelo fato mesmo de querer
compreender ele resiste. Ele pode compreender somente se ele faz. Ele faz ou não. O
conhecimento é uma questão de fazer.

o perigo e a sorte

Se eu utilizo o termo 'guerreiro' pensamos de novo em Castañeda, mas todas as Escrituras


falam também do guerreiro. Nós o encontramos tanto na tradição hindu como na
africana. É alguém que é consciente de sua própria mortalidade. Se é preciso enfrentar os
cadáveres, ele os enfrenta, mas se não é preciso matar, ele não mata. Entre os índios do
Novo Mundo diz-se que, entre duas batalhas, o guerreiro tem o coração terno, como uma
mocinha. Para conquistar o conhecimento ele luta, já que a pulsação da vida se torna mais
forte, mais articulada nos momentos de grande intensidade, de grande perigo. O perigo e
a sorte andam juntos. Não existe grande aprendizado a não ser em relação a um grande
perigo. Num momento de desafio aparece a ritmação das pulsações humanas. O ritual é
um momento de grande intensidade. Intensidade provocada. A vida torna-se então
rítmica. O Performer sabe ligar o impulso corporal à sonoridade (o fluxo da vida deve se
articular em formas). As testemunhas entram então em estados intensos porque, eles
dizem, sentiram uma presença. E isto, graças ao Performer que é uma ponte entre a
testemunha e alguma coisa. Neste sentido, o Performer é pontifex, fazedor de pontes.
A essência: etimologicamente se trata do ser, da serzisse. A essência me interessa porque
ela não tem nada de sociológico. É aquilo que nós não recebemos dos outros, aquilo que
não vem do exterior, que não é aprendido. Por exemplo, a consciência (no sentido de the
conscience, a "consciência moral") é alguma coisa que pertence à essência, e que é
completamente diferente do código moral pertencente à sociedade. Se você quebra o
código moral, você se sente culpado, e é a sociedade que fala em você. Mas se você age
contra a consciência você sente o remorso - isto é entre você e você mesmo, e não entre
você e a sociedade. Como quase tudo que nós possuímos é sociológico, a essência parece
pouca coisa, mas ela é sua. Nos anos cinqüenta, no Sudão, existiam jovens guerreiros nas
vilas Kau. No guerreiro com organicidade plena, o corpo e a essência podem entrar em
osmose e parece impossível dissociá-los. Mas isto não é um estado permanente, não dura
mais que um curto período. É, segundo a expressão de Zéami, a flor da juventude. Por
outro lado, com a idade, podemos passar do corpo-e-essência ao corpo da essência. Isso em
conseqüência de uma difícil evolução, evolução pessoal que, de alguma maneira, é a
tarefa de cada um. A questão-chave é: qual é o seu processo? Você é fiel ou luta contra seu
processo? O processo é como o destino de cada um, o próprio destino que se desenvolve
(ou: que apenas se desenrola) no tempo. Então: qual é a qualidade da sua submissão ao seu
próprio destino? Podemos captar o processo se aquilo que fazemos está em relação com nós
mesmos, se não odiamos o que fazemos. O processo está ligado à essência e, virtualmente,
conduz ao corpo da essência. Quando o guerreiro está no curto tempo da osmose corpo-e-
essência ele deve captar seu processo. Quando nós nos adaptamos ao processo o corpo se
torna não-resistente, quase transparente. Tudo é leve, tudo é evidente. No Performer o
performing pode se tornar muito próximo do processo.

o Eu-Eu

Podemos ler nos textos antigos: Nós somos dois. O pássaro que bica e o pássaro que olha. Um
morrerá, um viverá. Embriagados de estar dentro do tempo, preocupados em bicar, nós
esquecemos de fazer viver a parte de nós mesmos que olha. Existe então o perigo de se
existir somente dentro do tempo e nulamente fora do tempo. Se sentir olhado pela outra
parte de si mesmo, esta que está como que fora do tempo, dá uma outra dimensão. Existe
um Eu-Eu. O segundo Eu é quase virtual; não está em nós o olhar dos outros, nem o
julgamento, é como um olhar imóvel: presença silenciosa, como o sol que ilumina as
coisas e é tudo. O processo de cada um pode se completar somente no contexto desta
presença imóvel. Eu-Eu: na experiência a dupla não aparece separada, mas como plena,
única.
Na via do Performer percebemos a essência durante sua osmose com o corpo, em seguida
trabalhamos o processo desenvolvendo o Eu-Eu. O olhar do teacher pode às vezes
funcionar como o espelho da ligação Eu-Eu (esta ligação não estando ainda traçada).
Quando o vínculo Eu-Eu está traçado, o teacher pode desaparecer e o Performer continuar
na direção do corpo da essência. Isso que podemos reconhecer na foto de Gurdjieff velho
sentado num banco em Paris. Da imagem do jovem guerreiro de Kau àquela de Gurdjieff,
é o caminho do corpo-e-essência ao corpo da essência. O Eu-Eu não quer dizer estar cortado
em dois mas ser duplo. Se trata aqui de ser passivo na ação e ativo no olhar (ao contrário
do habitual). Passivo quer dizer ser receptivo. Ativo ser presente. Para nutrir a vida do
Eu-Eu, o Performer deve desenvolver não um organismo-massa, organismo dos músculos,
atlético, mas organismo-canal através do qual as forças circulam.
O Performer deve trabalhar numa estrutura precisa. Fazendo esforços, já que a persistência
e o respeito aos detalhes são o regime que permite tornar presente o Eu-Eu. As coisas a
fazer devem ser exatas. Don't improvise, please! É preciso encontrar ações simples, mas
tomando cuidado para que elas sejam dominadas e que isto dure. Senão não se trata do
simples mas do banal.

aquilo de que me lembro


Um dos acessos à via criativa consiste em descobrir em si mesmo uma corporalidade
antiga à qual somos ligados por uma relação ancestral forte. Não se encontra então nem
no personagem, nem no não-personagem. A partir de detalhes, pode-se descobrir em si
um outro - o avô, a mãe. Uma foto, a lembrança das rugas, o eco longínquo de uma
coloração de voz permite re-construir uma corporalidade. Primeiro a corporalidade de
alguém conhecido, e a seguir cada vez mais longe, a corporalidade do desconhecido, do
antepassado. Ela é verídica ou não? Talvez ela não seja como ela foi mas como ela poderia
ter sido. Você pode chegar muito longe para trás como se a memória despertasse. É um
fenômeno de reminiscência, como se nos lembrássemos do Performer do ritual primário.
Cada vez que eu descubro alguma coisa tenho o sentimento de que é aquilo do qual me
lembro. As descobertas estão atrás de nós e é preciso fazer uma viagem para trás para
chegar até elas. Com a travessia - como na volta de um exilado - podemos tocar alguma
coisa que não é mais ligada às origens mas - se ouso dizer - à origem? Eu acredito. A
essência está no fundo da memória? Eu não sei nada. Quando eu trabalho muito perto da
essência tenho a impressão de atualizar a memória. Quando a essência é ativada é como
se potencialidades muito fortes se ativassem. A reminiscência é talvez uma destas
potencialidades.

o homem interior

Eu cito: Entre o homem interior e o homem exterior existe a mesma diferença infinita que
entre o céu e a terra.
Quando eu estava na minha primeira causa, eu não tinha Deus, eu era minha
própria causa. Ali, ninguém me perguntava para onde eu tendia nem o que eu fazia; não tinha
ninguém para me interrogar. Aquilo que eu queria, eu era e aquilo que eu era eu queria; eu era livre
de Deus e de todas as coisas.
Assim que eu saí (flutuando) todas as criaturas falavam de Deus. Se me
perguntavam: -Irmão Eckhart, quando vós saístes de casa? -Eu sentia que não fazia mais de um
instante. Eu era eu mesmo, eu me queria a mim mesmo e me conhecia a mim mesmo, para fazer o
homem (que aqui embaixo eu sou).
É por isso que eu sou não-nato, e segundo a minha forma não-nata eu não posso morrer. Aquilo que
eu sou segundo a minha nascença morrerá e se aniquilará, porque isso é devolvido ao tempo e vai
apodrecer com o tempo. Mas no meu nascimento nasceram também todas as criaturas. Todas
experimentam a necessidade de se elevar da sua vida à sua essência.
Quando eu volto, esta travessia é muito mais nobre que minha saída. Nesta travessia eu estou
acima de todas as criaturas, nem Deus, nem criatura; mas eu sou aquilo que eu era, aquilo que eu
devo continuar sendo agora e para sempre. Quando eu chego lá, ninguém me pergunta de onde eu
venho, nem aonde estive. Lá sou aquilo que eu era, eu não cresço nem diminuo, porque lá eu sou
uma causa imóvel, que faz mover todas as coisas.
NOTA: Uma versão deste texto (baseado na conferência de Grotowski) foi publicada em maio de
1987 pela Art-Presse em Paris, com a seguinte nota de George Banu: "Não é nem um registro, nem
uma prestação de contas que eu proponho aqui, mas notas tomadas com cuidado, o mais próximo
das fórmulas de Grotowski. Seria preciso lê-las como indicação de percurso e não como os termos
de um programa, nem como um documento acabado, escrito, fechado. Os ecos da voz do eremita
podem chegar até nós, mesmo se seus atos continuam secretos". Os subtítulos (salvo o último: "o
homem interior") são da redação Art-Presse. O texto foi retrabalhado e completado por Grotowski
em vista da sua publicação. Grotowski fala aqui da sua mais alta intenção. Identificar "o
Performer" com os estagiários do "Centro di Lavoro" seria um abuso. Se trata antes do ápice,
daquele caso de aprendizagem que, em toda a atividade do " teacher of Performer" não aparece a
não ser raras vezes.

Texto original em francês traduzido para o português por Celina Sodré.

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