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OBRAS COMVPIETAS- 8 Ja te O HOMEM CAVALO OSWALD DE ANDRADE, TEATROLOGO Oswald de Andrade interessou-se pelo género teatral em sua mocidade, Publi- cou em 1916, de parceria com Guilherme de Almeida, duas peas em francés: Leur ame e Mon coeur balance, Promaveu e badalou o mais que pode esses dois tex- tos, lendo-os nos sales literarios de S. Paulo e, depois, no Rio, na Sociedade Brasileira de Homens de Letras. Fez is: ofereceu o volume ao famoso ator Lucien ‘Guitry, entéo em tournée pelo Brasil, dele recebendo carta em que afir- mava ter tido o mais vivo prazer na lei- tura e elogiava o didlogo “charmant, vif, léger”. Um ato de uma delas chegou a ser representado, sem nenhum éxito, por uma companhia’ francesa que, naquele tempo, se exibia no Teatro Municipal paulista. $6 muitos anos depois, Oswald voltou a praticar a literatura cénica, publicando em 1934 a pega O homem e o cavalo, que escreveu para o Teatro de Experién- cia de Flavio de Carvalho, Esse “espe- taculo em 9 quadros”, como o autor o denomina, inicia-se com grande verve € rica inventiva a Jarry. Nos primetros momentos, tem o ar de uma transposicao feérica, surrealista e de grande teatrali- dade do espirito de Serafim Ponte Gran- de, Mas, na continuacao, Oswald dei- xa-se dominar pelo seu engajamento ideo- Iégico, Resultado: aos olhos de hoje O omem 2 0 cavalo parece antes ingénua prosa politica, documento de uma época de.efervescente busca de caminhos, quan- do 2 esquerda e a direita festivas as ve- zes se engalfinhavam em truculentas re- TEATRO Colegio VERA CRUZ (Literatura Brasileira) Volume 147-G OSWALD DE ANDRADE Obras Completas VI TEATRO A morta Ato lirico em trés quadros O rei da vela Peca em trés atos O homem e o cavalo Espetaéculo em nove quadros civilizagio brasileira Exemplar .N2 1333 Desenho de capa: Dovuné Diagramagao: Léa CauLumaux Direitos desta edigdo reservados & EDITORA CIVILIZACAO BRASILEIRA $.A. Rua da Lapa, 120 — 129 andar RIO DE JANEIRO — cB. 1973 Impresso no Brasil Printed in Brazil Obras completas de Oswald de Andrade rs Suk o 10. n. . Os Conpenapos (Alma / A Estrela de Absinto / A Escada) —~ Romances. MeMérias SENTIMENTAIS DE JOAO Mmamar / SERAFIM Ponte Granpe ~ Romances. . Manco Zeno: 1 — A Revolugdo Melancélica — Romance. . Marco Zero: I] — Chéo — Romance. . Ponta pe Langa — Polémica. . Do Pau-Brasut A AntRoporacia & As Utortas (Manifesto da Poesia Pau-Brasil / Manifesto jamie dice 70 / Meu Tes- tamento / A Arcédia e a Inconfidéncia / A Crise da Filo- sofia Messidnica / Um Aspecte Antropofdgico da Cultura Brasileira: O Homem Cordial / A Marcha das Utopias) — Manifestos, teses de concursos e ensaios. . Pogstas Reuntas O. Anprape (Pau-Brasil / Caderno do Aluno de Poesia ¢ outras) — Poesias. ‘Teatro (A Morta / O Rei da Vela / O Homem e o Cavalo) . Um Homem seat Prorissio: Sop as ORDENS DE MAMAE — Memérias e Confissées. Teteronemas — Crénicas e polémica. Esparsos. Sumario Carta-prefacio do autor 3 A morta 5 O rei da vela 57 O homem e 0 cavalo 123 A morta foi escrita em Séo Paulo, em 1937. O rei da vela em Paqueta, em 1933. Carta-Prefdcio do Autor Julieta Bérbara Dou a maior importincia 4 Morta em meio da minha obra liter4ria. E o drama do poeta, do coordenador de toda ago humana, a quem a hostilidade de wm século reaciondrio afastou pouco a pouco da linguagem util e corrente. Do ro- mantismo ao simbolismo, ao surrealismo, a justificativa da poesia perdeu-se em sons e protestos ininteligiveis e parou no balbucionamento ¢ na telepatia. Bem longe dos chamados popu- lares. Agora, os soterrados, através da andlise, voltam a luz, e, através da ago, chegam as barricadas. Sao os que tém a coragem incendiéria de destruir a propria alma desvairada, que neles nasceu dos céus subterraneos a que se acoitaram, As catacumbas Iiricas ou se esgotam ou desembocam nas cata- cumbas politicas. A vocé, que é a minha companheira nessa dificil aterrissagem, dedico A Morta. OSWALD DE ANDRADE Sado Paulo, 25.4.37. A morta Ato lirico em trés quadros Compromisso do Hierofante O Hierorante (Surgindo na avant-scéne, senta-se sobre a caixa do ponto.) — Senhoras, senhores, eu sou um pedago de personagem, perdido no teatro. Sou a moral. Antigamente a moralidade aparecia no fim das fabulas, Hoje ela precisa se destacar no prinefpio, a fim de que a policia garanta o espeta- culo. E se estiole 0 rictus imperdodvel das galerias. Permane- cerei fiel aos meus propésitos até o fim da peca. E soliddrio com a vossa compreensao de classe. Coisas importantes nesta farsa ficam a cargo do cendrio de que fazeis parte. Estamos nas rufnas misturadas de um mundo. Os personagens nao séo unidos quando isolados. Em ago sio coletivos. Como nos terremotos de vosso préprio domicilio ou em mais vastas peni- tencidrias, assistireis o individuo em fatias e vé-lo-eis social ou telirico. Vossa imaginagao ter4 de quebrar tumultos para satisfazer as exigéncias da bilheteria. Nosso bando precatério & esfomeado e humano como uma trupe de Shakespeare. Pre- cisa de vossa corte, N&o vos retireis das cadeiras horrorizados com a vossa autépsia, Consolai-vos em ter dentro de vés um pequeno poeta © uma grande alma! Sede alinhados e cinicos quando atingirdes o fim de vosso préprio banquete desagrad4- vel. Como o8 Ioucos, nos comoveremos por vossas controvér- sias. Vamos, comegai! 1° QUADRO O pais do individuo Personagens draméticos Beatriz A Ourna DE Beatriz O Porras © Hrerorante QuaTRO MARIONETES COonRESPONDENTES A EnxrerMema SonAMBULA u A cena se desenvolve também na platéia. O tnico ser em agéo viva é A Enfermeira, sentada no centro do paleo em um banco metdlico, demonstrando a extrema fodiga de um fim de vigilia noturna, Ao fundo, arde uma lareira solitdria. Esté-se num cendculo de marfim, unido, sem janelas, recebendo a luz inguieta do fogo. Em torno da Enfermeira, acham-se colocadas sobre quatro tronos altos, sem tocar o solo, Quatro Marionetes, fantasmais e mudas, que gesticulam exorbitantemente as suas afligdes, indi- cadas pelas falas. Estas partem de microfones, colocados em dois camarotes opostos no meio da platéia. No ca- marote da direita, estéo Beatriz, despida, e A Outra, num manto de negra castidade que a recobre da cabeca aos pés. No da esquerda, O Poeta e O Hierofante, carac- terizados com extrema vulgaridade. Expressam-se todos estdticos, sem um gesto e em cdmara lenta, esperando que as Marionetes a eles correspondentes, executem a mimica de suas vozes. Sobre os quatro personagens da platéia, jorram refletores no teatro escuro. E um pano- rama de andlise. 13 A Ovrra — Somos um colar truncado. O Porta ~ Quatro lirismos... Beatraz — E um sé lirio doente... O Porta — No pais dissociado... A Ovurra — Da existéncia estanque... Bearniz — Nao te assustes, Outra! A Ovrra — Sou a imagem impassivel onde ondulam tuas cargas... Beatriz — Minha imagem frustrada. A Ourra — O siléncio é necessério & nossa amizade. O Porta — Toda mudez termina no ttero de amanha. A Ovtra — Estio batendo. © Porra — Aqui nao hé portas. Brarniz — Abre aquela porta. O Porra ~ No meio da magica. Beatnz — Nunca se sabe quem é que est4 batendo. A Ovurra — E perigoso abrir toda porta. O Porra — A porta d& sempre na jaula. Beara — S6 o papa pode abrir, © Poeta ~ O que haverd atras de uma porta? A Ovtna — Abre a portal Chi lo sd! © Porta — Pode ser a girafa, o oficial de justiga, a metralha- dora, a poesia! Beatniz — Nunca abra. A Ovrra — Eu me jogo seminua da minha posigio social abaixo, BeaTaiz — Entras pela janela equivoca de meu ser, poetal O Porta — Es 0 belo horrivel! A Ovurna — Praticamente este edificio sé tem forros fechados. Habitamos uma cidade sem luz direta — 0 teatro. O Pogra — Se te atirasses do primeiro impulso nfo morrerias inteira, Bearaiz — Permaneceria aleijada e bela diante de ti vendendo pedagos de meu espeticulo, is A Ovtna — Ganharlamos dinheiro. Bearriz — Me arrastarias torta e bela pelas ruas como a tua musa quebrada! A Ovrna — Seria a irradiag3o do meu climal © Poera — Qual dos crimes? Beata — Fui violada como uma virgem! A Ovtra — Est3o batendo outra vez, escutem... O Porra — Vou abrir. Nao vou. Beatarz — Tens medo que seja um personagem novol © Porta — Ou de cair num pais de fauna mirrada... O Hrroranre — Nao é preciso abrir, eu ja estava aqui. Beatarz — E o meu professor de jiu-jitsu, A Ovurna — Deite-se porque a sua camisola é de vidro. Brarriz — Me ame! Por favor! © Fienoranre — Faze-te gostar por um velho com dinheiro.... O Porta — Este quarto esté incrustado de febses. Bearwiz — Eu sou uma grande flor no leito.de um acude. .. O HierorantE — Bon giornof Besrniz — Me ame por caridadel O Humoranre — Onde estamos, em que capitulo? O Porta — Hospital? Ovulo? Teia de aranha? Bearniz — Navegamos num rio presol A Ovrra ~ Tenho medo de ser um cadaver em vez de dois seres vivos! O Hierorante ~ Fornego a consciéncia dos incurdveis. O Porta — A volta ao trauma... A Enrermemra SonAMBuLA (Levanta-se devagar ao fundo.) — Madre, na calada de uma noite de enfermagem, esgano a doente que me confiaste, (Senta-se.) Beatriz (Solugando.) — Ail concede-me o ditimo beijot Ait Nao quero morrer sem o ultimo beijol A Ouraa — Nao admito que faga isto de barulhol Morra como Napoledo. Beatnz — Querem transformar o mundo! 15 A Ovrpa — Através de absurdas catéstrofes... O Poza — As classes possuidonse expulsaram-me da agdo. Minha subversio habitou as Torres de Marfim que se transformaram em antenas... O Hrorante — E a reclassificagao. . . Beata — No ultimo beijo direi que preciso de ti. O Porra — O meu 4nimo se torna o Animo de um condenado a morte... a febre cai com a primeira meia tinta fria da noite, Dou por encerrada a nossa vida amarga e tumul- tudria. Mas sinto as reagées térmicas da insdnia. Q delirio de novo crepita nos meus membros nervosos! A Ovrra — Onde nfo ha plano, nao ha sangao. O Porta — Ha sempre dois planos e um espetculo. Beata — Sinto a voragem... a voragem que vai esfriando a gente antes de cair. © Porta — Oh inflexivel? oh! obsolutal Desmoronas na agaol A Ourra — Que vés, poeta? O Porra — Ha uma fresta na tua imagem. Uma fresta. Esté aberta a porta do teu quarto tenebrosol Mas nao ha ninguém dentro dele. BeaTwiz — Ha 0 outro homem, o citime e a ameaga permanente da vida... A Ourra — HA, um grande sddico, um sacerdote no circa... No plenario do circo. .. Quero denunciar! quero! Que sexualidade crescentel Aquele aparelho um prolongamento do corpo dele. A sua cara de orgasmo! Fundemos um tribunal. Beatriz — Foi na sala cirdrgica. A pureza me envolvia como algodao. E o pai da minha primeira experiéncia digitall Porta — Sinto um suspiro imenso pelo teu corpo em posigao,.. O Hieroranre — Ginecolégica... A fantasia é sempre um para-quedas, O Porta — Arte é outra realidade... Brarnz — Mas eu serei um cadaver rebelde. Nao me deixo enterrar! A Ovrra — Vives enterrada em ti diante do espelho! 16 © Porra — fs sempre uma Vitéria de Samotrécia, com os olhos ¢ os cabelos presos a um horizonte sem funda. A Ouraa — Eu sou a perspectiva. Beatriz — Nao-ougo nada... senao os meus gritos, um atropelo e0 siléncio.. . Q Porta ~ Paz a teu corpo! A ENFERMEIRA ~ Quem a tratard? © Hnoranre ~ Quando a morte resvala por nés, a vida torna-se grandiosa, Beatriz — Somos almast © Porra — Ninguém, como eu, tem a compreensio absoluta da destruigao. Cansada e vigilante ela espreita o homem. Beatriz — Existo para o bem e para o mal. O Poera — Respiraste o cheiro perigoso da liberdade, Brvrriz — Venho de terras simples. A Ovurna — Essa incapacidade de se mortificar... Beatriz — Por que nasci? Me digam? Me expliquem? Nao queria nascer. Sou um pobre sexo amputado do seu tronco econémico... (Chora.} Nunca pensei que a vida fosse resisténcia. Ou me mato ou me isolo na parede de um bordel, O Hirorante — As conjuragdes. As Gperas. As hipnoses. A Ourra — Amaldigoada naturezal Beatriz ~ Amaldigoada hora que me criou! Tu, poeta, nado passas de um ser vivo, Deviamos ter juntos uma bela coragem. © Hurorante — Qual? Brarne — Nos amarmos num necrotério lavado. O Porra — Meu coragao nao sente ainda a forga atrativa da morte... A Ovrra — Foste tu poeta que preparaste para Beatriz os caminhos evasivos da liberdade. Bratnuz ~ Eu queria saber se era para outro humano a Ins- piragio. .. O Porra — Desmanchaste meu sonho infantil. WV Beararz = Atiro-me em flexa maravilhosa para ti... O Porta — Es maternal! Que madrugada de amor vamos ter, cotovial O Hinofanre — A ltima noite é sem dia seguinte... A Ouraa ~ A mulher nao ¢ somente um frasco fisico. O Hieroranre — O sexual é a raiz da vida. A{ tropegam um no outro o mundo velho e 0 novo. Beatriz — Quero e nio quero. A Ovtra ~ Hesito. Beatriz — Tenho fome. A Ovrra — Ela quer ganhar o pio levianol Bratz ~ Meu pai. O Hirorante ~ Foi o sexual que inventou o jazigo de familia © a casa... Bearniz — Quero ser um espeticulo para mim mesmal A Ovrra — Es uma flor irascivel. O Hierorante — Sé é possivel um acordo no sexual, © Porra — A poesia é desacordo entre os conceitos. Beatriz — Um terreno fofo, Poetal O Porras — Perco-me no paul do movimento. O Humorante — O poeta mergulha na percepgio... O Porta — $6 a cicuta de Sécrates salvaré o mundo. O Hirrorante — A data mais importante da histéria € a que pds o homem entre a aco e Deus! O Porta — Entre o seu ser animal e o seu ser social. A Ovtra — Eu sou o Alter ego. O Porta — Eu, 0 oposta de Beatriz... a raiz dialética de seu ‘ser. Bratniz — Progrido para a morte nos teus bragos. E te encon- tro no seio tumultuoso da natureza. Sou um elemento dela como a lua num ramo de 4rvore. O Hurorante — O homem compreendeu a responsabilidade econémica de matar. © Porra — O sonho £é-o acordado criar a primeira jaula. 18 O Hieroranre — A primeira ética. A Ourna — A jaula de si mesmo... O Hierorante — Os vegetarianos querem retroceder na pri- mitiva diregio. Comer da Arvore da Vida, em pratos industriais. Beatriz — Em jaulas... O Porra — Por que insistes? Beatriz — Nao ha argumento que demova o amor... A Ovtra — No amor s6 existe o que ha de pior no homem. O Porta — & a volta do troglodita — violenta e periédica. O Hurorante — Para garantir a espécie enjaulada, O sexual € 0 radical da vida. Sua esséncia é a brutalidade. O amor é a quebra de toda ética, de toda evolugio. .. A Ovtra — E a pessoa distinta que escuta atras da porta, viola correspondéncia, manda cartas anénimas e mata nos jornais... Eu nunca fiz isso... Bearniz — O amor é 0 quero-porque-quero. .. A OurRA — Quem gritou? Beara — Nio foi aqui. O Porra ~ Tua madrugada serd assim. A Outra ~ Es 0 pressdgio, poetal O Porta — Sou a classe média. Entre a bigorna e o martelo, fiquei o som! O Hierorante — Alma que esguicha enclausurada, Beatriz — Sem mim morrerias calado. © Porta — Viverei na Agora. Viverei no social: Libertado! Bratriz — Sou a raiz da vida, onde toda revolugdo desemboca, se espraia e para. O Porta — Um dia se abriré na praga publica 0 meu abscesso fechado!l Expor-me-ei perante as largas massas... A OvrRa ~ E 0 sexo? O inimigo interior! O Porta — Deixarei os pequenos protestos - 0 chapéu grande, a cabeleira faustosa: falarei a linguagem compreenstvel da metralha. Beatriz — Existe uma frente unica... 19 'O Hirnorante — O pais oficial de Freud... © Porta — Nao haverd progresso humano, enquanto houver a frente tnica sexual. . Beare — Nunca a tua febre amorosa deixou o meu corpo, Poetal © Porta — Porque me retempero no teu titero materno. Beatriz — Tenho medo. O Porta — No mundo sem classes o animal humano progrediré sem medo. A Envermema — Sabes 0 que é medo? O Hienorante — £ 0 sentimento inaugural. © Poeta.— £ o sentimento de inseguranga do feto na vida aquosa da geragao. A Ourra — Vi uma luz, O- Porta — E-a lua sobre o mar inexistente que nos rodeia. Beatnz — Estou obscura como uma idéia religiosa. O Porta — Es a noite, Carrego nos meus ombros 0 teu dese- quilibrio glandular. A Ouraa — A cogueira mora em tua histeria! Beatriz — Horror! horror! Resqlve a minha questo econémica antes que eu morra em plena mocidade! A Ours — Alguém entrou? Censurarei quem for... O Hirorante — Pela porta que nio existe. A Enrenmema SonAmputa (Levantando-se.) — & a hora métrica. Beatriz — Merego todas as coisas lindas da vida... As coisas _ Jindas da morte. © Hieroranre — No plano da sociedade esquizofrénica. O.Porta —Toda a minha produgio hd de ser protesto e embe- lezamento enquanto nio puder despejar sobre as bruta- lidades coletivas a poténcia dos meus sonhos! A Ourra — Emparedado! Criaste uma grande doengal Brataiz — Meu tapinl O Poera — A construgdo do romantismo habita este quarto... Bearaiz — Que sou eu? 20 O Porra — A psique irreconhecivel... O Hirorante — O nascimento da alma. O Porra — O subterraneo que a sociedade ordena, Um dia serei reconduzido 4 atmosfera... BeArriz — Estamos fora do social! O Porta — A policia s6 me permite esbravejar no teu dramé- tico interior. O Hurorante — Poetal O Poera — Eles tomaram o Estado, eu fiquei com a mulher, Criei uma alma de cova. Por isso busco o drama e busco 0 teu cheiro, Bestar — Cantas a tua missa de corpo presentel Porta — Minha vida reduzida, prisioneira, entumulada, Beatrrz — Sou a mulher de marmore dos cemitérios. O Huenorante — Pise baixo... devagar. A EnverMema — Um golpe de jiu:jitsu, pronto. oO Porra (Num grito longo.) — Tu me mastigas noite tene- sal A Enfermeira senta-se, O Hirrorants — Consumatuml! O Porta — Guerra 4 sua alma. A Enrenmetra -- E preciso desfazer todo sinal do drama... O Hierorante — Nao ha perigo. Recomponhamos 0 cadaver. E um piedoso dever. Juntemos os seus membros esparsos, os cabelos, os dentes. Beatriz — Meu amor. © Porta — N&o € possivel mais... Beatriz — Por qué? © Porra — O professor te dissociou, Fujamos. Nao ha crime airida vis{ivel. A Enrermema — Na aurora virfio buscar os restos do ché da meia-noite. Brarrw — O amor é 0 quero-porque-quero da vida. O Hwrorante — O criador do irremediével. aL © Porta — Que diz agora o teu coragio? Para justificar-tel Beatriz — Vive do medo de te ter perdido! © Porta — Quebraste o elo. Beata — Nao poderei fazer nada sem ti, sem o teu calor, a tua adoragio. © Porta ~ Quebraste a porta fechada. .. O Hirrorante — Complexo de que fago a mascara. O Porta ~ E eu a ruptura... © Hueroranre — Darei sempre a visio oficial. O Porta — Enquanto eu bradar o canto noturno do emparer dado. Um canto desconexo. Interior como o sangue. As comunicagbes cortadas com a vidal Beatriz (Chorando.) — Desfiguraste-me sob as tintas efusivas do amor. © Porra — Fizeram-me abandonar a Agora para viver sobre mim mesmo de mil recursos Femprodutives. Eu quero voltar A Agora. O Hirnorante — A realidade molesta os humanos, © Porta — Eu sou um valor sem mercados. Criaram o senti- mento € o tornaram um valor ‘excluido da troca. Beatniz — Es 0 augtrio, poetal O Porras — Encontrarfo aqui a tua imagem silenciosa, Beatniz. — Eu sou a lealdade sem sentido! O Porta — No bem como no mal. Beataz. — Nao te deixo... O Porra — Melancolial Feita de luar e de onda noturnal Quem te definird? © Hurroranrs — No pais do Ego... Beatriz — Por que acreditas em mim? O Hienorante — Es insolivel sem a censura. Beatniz — Tanto algodio e tanto sanguel © Hunoranre — Vou pata o pafs sem dor. Longe das con- juragdes e das éperas! O Porras — Ficarfs nesse garfo gelado, 22 Beatnz — Socorro! O Hinorante — Ninguém te ouvird no pais do individuot O Porra — Quando 2 morte resvala por nés, a vida torna-se grandiosa. Beatriz, — Dé-me um epitéfio, poetal © Porta — Diante do espelho, és sempre a Vitéria de Samo, tricia, com os olhos e os cabelos presos a um horizonte sem fundo. Beatriz — Fujamos, Foi a outra que morreul O Hirrorante — Sopra para sempre 0 comutador notumno. O Porra — Meu alibi! Meu secular alibi! TELA 29 QUADRO O pais da gramatica Personagens dramaticos O Porra Beatriz Hordcio O Cremavor O Hirrorante © Jo Uma Roura pe HomeM Grupo Dr CREMADORES Grupo pe ConsERVADORES DE CapAVER Morros Vivos O Tourists Precoce O Poticia PoricLora A cena representa uma praca onde vém desembocar odrias ruas. Um grupo de gente internacional passa ao fundo. © Terista Precoce — Faz favor. Quem sio aqueles? © Porfcia — Um russo, um alemao, um japonés, um italiano, um nacional... © Turtsra — Que sio? © Poricia — Nomes comuns. & a grande reserva humana de onde se tira para a ago, o sujeito... © Tunisra — Sao vivos? © Poticta — Vivos todos. Um grupo de gente amortalhada atravessa a cena. © Turista — E aqueles? O Poticia — Sao os mortos. © Turista — Vivem juntos? Vivos e mortos? O Poricia — O mundo é um diciondrio. Palavras vivas e vocd- bulos mortos. Nao se atracam porque sémos severos vigi- 29 lantes, Fechamo-los em regras indiscutiveis ¢ fixas, Faze- mos mesmo que estes que sio a serenidade tomem o lugar daqueles que sio 2 raiva e o fermento, Fundamos para isso as academias... os museus... os cédigos. .. O Turtsta ~ E os vivos reclamam? O Poricia — Mais do que isso. Querem que os outros desapa- recam para sempre. Mas se isso acontecesse naa haveria mais os céus da literatura, as Aguas paradas da poesia, os lagos imdveis do sonho. Tudo que ¢ classica, isto ¢, 0 que se ensina nas classes... © Terisra — Com quem tenho a honra de falar? O Poxicia — Com a policia poliglota. O Tortsta — Oh! que prazer! O senhor sou eu mesmo na voz passiva. Na minha qualidade de turista falo sete linguas, nesta idade! E nfo tenho mais governante! O Poticra — Também falo sete linguas, todas mortas. A minha fungdo-é- mesmo -essa, maté-las; Todo-o mew glossario.é de frases feitas... © Tonisra — As mesmas que eu emprego. Nés dois, s6 consa- guimos catalogar o mundo, esfriélo, pé-lo em vitrine! O Potfcia — Somos os guardiaes de uma terra sem surpresas. © Tonista — E querem transformé-lat Absurdo! Nao é melhor assim? Sabemos onde estdo a torre de Pisa, as Pirdmides, 0 Santo Sepulcro, os cabarés... © Poricra — Nossa desgraga seria imensa se subvertessem a ordem estabelecida nos Bedekers. Desconheceriamos as Redras novas da vida, os feitos calorosos da rebeldia, Nao istinguiriamos mais fronteiras e alfandegas... Perderia- mos 0 pao e a fimgao. O Tourist — E.nés, 0s ricos, os ociosos, onde passear as nossas neurastenias, os nossos reumatismos? Onde? Perderiamos toda autoridade. Vozes ao fundo, Os Cremapores — Abaixo os mortos! Limpemos a terra! Abaixo! O Poricta — De um tempo para c4, nfo sei porque agravou-se a contenda. Creio que os vivos cresceram, agora querem 30 se emancipar. Os mortos’ os agrilhoam 4 industria. E eles querem ocupar fabricas, cidades e 0 mundo... Ingratos. Nao sabem que, sem os mortos, eles nao teriam tudo, em- prego, salarios, assisténcia... O Tvnista — E patrées. Que seria do mundo sem os patrées? O Poticra — Eles querem queimar todos os cadaveres, os mais respeitaveis, os que fazem a fortuna das empresas funera- rias mais dignas, como a imprensa, a politica... O Turisra — Acabami querendo queimar o cadéver da curiosi- dade, que sou eul Saem da cena conversando, Vozes ao Funpo — Abaixo a autoridade dos aciosos! Abaixo! Queremos o verbo criador da acao. © Porta (Entra conversando com Horacio.) — Deixei-a para sempre... Sinto-me atual. Longe da Apassionata. Horcio — Pisas de novo a tetra dos que se embugam nas regras do bom viver... O Porta — Renovo-me na rua. HorAcio — £ o pafs da gramatica. Nele acharés 0 teu elemento formal. O Posra — Ainda guardo a esperanga trigica de vé-la... Hordcio — Voltas a essa mulher como um criminoso! © Pozra — Porque sou o culpado. HorActo — Deixaste-a? © Pozra — Fui andando cada vez mais para o lado das estrelas ¢ ela ficou no meio da misica... Horacio — Estas marcado por ela... O Porra — Sinto-a como a culpa, como a esperanca... Sem ela a vida é deserta, 0 mundo é uma trégica planicie sem descanso! Ela é a caverna do individto... Onde me acolho sem nada esperar, sem nada desejar... Hordcio — Ela te imobi e amortalha, Tumulto... Um pequeno Exército da Salvagaéo penetra na praga e se instala para um comicio musical e pacifico. 31 Um homem gordo traz uma tabuleta onde se 16 “Deus Pétria e Familia”. £ 0 Hierofante. Sons finebres seguem o bando fardado. Hordcio — S40 os mortos que manifestam. .. O Poera — Conhego aquele homem da tabuleta. Horicio — Sio os conservadores de cadaver... Tumulto do outro lado da cena. Um grupo de exaltados, em roupa pobre, protesta contra o comicio. Homens ¢ mulheres invadem a cena. Os Creatapores — Limpemos o mundo! Abaixo os mortos! Eles comem a comida dos vivost Abaixol O Hreroranre — Materialistas! © Caemapor — Ao contrario! Somos a constante idealista que faz uvangar a humanidade! © Porta (Apontanio Beatriz que apurece com passos mecdi- dos, estética sob um véu.) — Ei-la! Que gestos solenes! (Aproximando-se ¢ falando-the.) Voltas ao meu caminho? Beatriz — Todos os esforgos me abandonaram! Onde estou? O Poera — No pais da Ordenagio... Beatriz — Os homens abateram as florestas. Expulsaram os espiritos da terra! Substituiram as drvores pelas armagdes metilicas. A natnreza foi vencida pela mecanical O Porras — Desfizeste tua fragil e confusa capa ética. Deixaste a sociedade dos humanos.. . Beatriz — Me reconheces? © Porra — Ainda trago no corpo o perfume lascivo de tuas calgas! Beatnsz — Sou virgem de novo. Nao vés este véu? © Porta (Retira-o,) — Ba mdscara de um ente que se dis- persal O teu indspito ser se desagregal Bearaiz — Ao contrério, encontrei a minha unidade! Horicio (Chamando-0.) — Deixa-al Nio vés que hubitas de nove com ela os subterraneos da vida interior? 32 O Poera — Ela é o meu drama. Hondcio — O empresdrio da tua morte. Deixa-a! © Porta — Nao. O coragio acorda de repente. E comega o trabalho irracional. Corrosivo de todo debate... A cons- ciéncia torna-se um estado sentimental e a justica foge do mundo... Oh! drama! Desenvolvimento do préprio ser universal! Eu te busco! Brarmz — Porque crias em mim pesados encargos assim! E 0 sentimento de culpa! Desenvolvido na célula de um circo. O sentimento espetacular da culpal A disciplina das feras, as grandes quedas sem rede, 0 amor pelo palhago. Honicro, — Foge! Nao vés uma a uma as ficgdes da vida inte. rior’ © Porra — Por que fugit? Para depois me arrastar pelos locais em que a acompanhei? Me acoitar & sombra de seus gestos idos, procurando nos cenérios, encontrados a dois, a som- bra de seu ser, a lembranga de sua voz? Ficarei perdido no mundo terrivel da rua... Novo tumulto. Os Cremapores — Fora! Fora os exploradores da vida! Lim- paremos o mundo! Bratnrz — Quem séo esses desordeiros? O Porta — E a vanguarda que luta pela libertagao humana. Beatriz (Sufocada.) — Quanta gente! Nao posso, no posto me habituar. Esses homens procurando mulheres esperan- do homens... O Porta — Pareces perencer a um pais assexuado. Que sentes? Tens os olhos longinquos, a boca voluntariosa crispadal Os Cremapores — Fogo nesses podres! Abaixo o despotismo dos mortos. A miisica toca um tango. O Hierofante procura 0 Evan- gelho. O Hierorante — In illo tempore! Os Cremapores — Fora Fora! 33 O tumulto cresce. Juntam-se aos cremadores galicismos, solecismos, barbarismos. Do lado dos mortos cerram co- lunas, graves interjeigées, adjetivos lustrosos e senhorlais arcaismos, Cono pas Intenyergoes — Oh! Ah! Ih! Os Cremanones — Fora a estupidez das interjeigdes! O HuzroranTe — Massa desprezivel de pronomes mal coloca- dos! O Cremapor — Fora! Quinhentistas! Falais uma lingua estra- nha as novas catadupas humanas! O Hierorante — Somos o vernaculo das caravelas. . . O Cremapor — No século do aviio! Os Cremanones — Somos a lingua falada pelo rédio... Queima essa tabuleta, Os Consevavores — Babel! Babel! Os Cremaporxs — Nao! Somos os fundamentos do esperanto, a lingua de uma humanidade unal © Hierorante — Nio pode! Nao pode! Quem podera destruir uma frase feita? Os Cremapores — Fora as frases feitas, as frases ocas! Fora as frases mortas! Os Consevapones — Chama o Juiz! Chama o Juiz! A Murtpdo — O Juiz! A charanga toca. Vozes — Ai vem 0 Juiz. Ele julgarél Os Conservapores — E um grande gramiatico! Os Cremavonrs — E um Juiz de classe, Os Consenvaponrs — Viva 0 Juiz! Viva 0 nosso querido Juiz! O Juiz agradece a manifestacéo. Formam-se em torno dele semicirculos irados. O Cremapor — Conhecemos 0 julgamento! E contra nds! O Juiz — Silencio! Julgarei segundo os canones. of Vozes — Os cdnones mortos. O. Juz —. Comegai a exposig’o do pleito. Sou todo ouvidos! Que: Deus e Jesus Cristo me inspirem e me garantam o céu, O Hierorante — Culto aos mortos! Culto aos mortos! Onde ja se viu destruir um cadaver! Senhor Juiz, A humanidade Jevou séculos para construir esta frase: “Deus, Patria Familia”. Como derroga-la? Como e por qué? Beatriz — Como fala bem esse velho! O Cnemapor — O que nos traz & cena é a fome. Mais que qualquer vocagio. Muito mais que a vontade de repre- sentar. £ 0 problema da comida! A produgo da terra é desviada dos vivos para os mortos. Nés trabalhamos para alimentar cadéveres, Mais eles absorvem a produgio, mais aniquilam os vives. Tudo que produzimos vai para sua boca insaciada, Eles possuem armas e dirigem exércitos iludidos pela ignorancia e pela fé religiosa. Os Cxremapores — Rebelemo-nos! Vozes — Fagamos a limpeza do mundo! Os Cremapores — Queimemos os cadiveres que infestam a terra! Vozrs — Sim! A cremagéo! A cremagio! Os Cremanores — £ preciso destruir os mortos que paralisam a vidal Vours ~ Vamos queimé-los! © Juiz — Esperai! Esperai a sentenga. Tragam aqui o livro: Bi-blos. Tudo esté no Livro. (Colocam diante dele um grande livro aberto. Ele vira as pdginas.) Vamos ver. De-vo-ta-mento.. .. Puri-fi-ca-gaol Adiante! Vi-ver para os outros! Nao! Est& aqui! Achei (Lé num grande berro.) Os-mor-tos-go-ver-nam os vi-vos! (Aclamagées. Protestos.) Os ConservaporEs — Muito bem! Muito bem! O Hunoranre — Devemos obedecer os nossos maiores, E se- guir o que est4 escrito... Vozes — Julgail Julgail © Juz — Os mortos governam os vivos, Premissa maior! Pre- missa menor... os cremadores sao excessivamente vivos! Ergo! Ergo! Devem ser... Conclusaiol governados... Os Conservapores — Governados por nés! Vozes — Muito bem! Muito bem! Ournas Vozes — Fora! Idiotal Vendido! Cadaver! © Hizrorante — Eis um silogismo irrefutavell O Porra — Essa légica tem servido de fundamento a todos os crimes histéricos. Os Consenvapores — E extraordindria a perspicdcia dos livros! O Poera — Fora o velho argé dos filisteus! © Cremapor — Rebelemo-nos, Um dia sairemos de nossos laboratérios subterraneos... Para limpar o mundo de toda putrefagaol As Intenyeigxs — Ah! Oh! Ib! A charonga dos conservadores de caddver forma um sé- quito e conduz o Juiz em triunfo, Os Consenvapones (Retirando-se.) — Abaixo os solecismus! Abaixo os barbarismos! Abaixol Uma Roura DE HoMeM (Passando.) — Boa tarde, lindal Beatmiz — Boa tarde, O Porta — Quem é? Beatuz — Um conhecido. Estive ontem com ele... © Porta — Impossivel. Bearaiz — Sim. Pediu-me que fosse sual Falou-me da eterni- dade. Mas lembrei-me de tuas palavras. Recusei, Ele dis- se: — Nao insistol Sei que serds minhal O vorrs — Mas é um morto, querida! Beatriz — Mortol? O Porra — Sim. Tu nao morreste querida... Nao podias ter te avistado intimamente com ele, que nio existe. Por acaso no notaste as suas roupas despegadas do corpo, E um morto, Nao sabes? Braraz — Aqui na cidade? © Porra — Sim, meu amor. Os mortos ainda infestam a terra viva, Metade da populagdo desta praga é de gente morta, Bearniz ~ Se eu tivesse morrido, serias um necréfilo! © Porta — Ter-te-ia abandonado! Beatriz — Nao podes abandonar-me! Nasci da selegdo de ti mesmo! (Declamando.) Comecei a palpitar com a tua re- ligido infantil, com a tua cultura adolescentel Fui o cofre herdldico das tuas tradigdes, a cuna de tua gente! O Poera — Como te encontro mudada! Nao te recordas senao de evocagdes e cadeias! Beatruz — Tu te tornaste um puro estimulo mecdnico. Nao acodes aos chamados de tua alma! O Porta — Os acentos de minha dor nao te penetram mais. Nao quebram a mudez do teu mundo de Pedra. Estas pertur- bada, os olhos longinquos, a boca voluntariosa crispada. Bearwz (Depois de um siléncio evocativo.) — Pertengo as re- gides da amnésia. © Porras — No entanto nio poderei fazer mais nada sem ti! Sem teu calor e tua adoragio. Beatriz — Amo-te ainda, Vem comigo, Nada pode conter a vida.. © Porta — A morte... Beatriz — Nunca a tua febre amorosa deixou 0 meu corpo. A charanga dos conservadores de caddver passa ao fundo. Bearriz — Vamos com eles, Poeta! O Porta ~ Nao. Beatriz — Vamos! O Porra — Queres seguit Bearmuz — O Juiz decidiu,. © Porta — O Juiz é um morto também. Bearniz — Somos todos mortos! O Porta ~ Vem para 0 outro lado! Minha agéo herdica e pré- tica te salvara, a musica da morte? a A Voz pe uM Cremabor — & preciso mudar 0 mundo! A Voz po Hirrorante — £ preciso conservar as instituigdes! A Voz be um Cremapor — E preciso queimar os cadaveres que infestam a terra. Eles tiram os alimentos dos vivos. Vozes — Querem mudar a superestrutura, Uma Voz — O comportamento, Ovrna Voz — A reflexiologia. Brarnz — A raiz de tudo é 0 sexual. O amor é 0 quero-porque- quero da vida. Nessa frente Gnica a humanidade hesita. .. Vem. O Porra — Nao, o social domina os humanos. Vem conosco. Vem com os liberadores do grande conflitol Braraiz — Como és cindido. O que os homens querem ¢ isso, 86 issol (Coloca as mdos recatadamente sobre 0 sexo.) O Porta — Es a morte, o abismo final; 0 longe da terra. Brarruz — Sou a imagem do sexual. © Porta — Estas detormada, longinqua, inexata... Pareces despegada dos ossos, como aquele que te cumprimentou. Beata — Tenho um encontro marcado com ele. © Porra — Impossivel. & um morto! A charanga do exército da morte toma conta da cena len- tamente. Beatriz centraliza-o, Vozes — Culto aos mortos! Culto aos mortos! Passagem para um grande enterro... (Saem levando-a.) O Porta — Forga de resisténcia ao mundo que comega... HonAcio — Onde vais? Que tens? O Porta — Estou como quem perdeu um brinquedo querido... espera... HorAcio — Deixa-al O Porta — Horacio, nao escalpeles minha dor! Estou marcado por ela, Hordcio — Onde vais? O Porra — Salvé-lal 38 Hordcio — Como? O Porta — Pelo primeiro aviio... Numa folha morta passarei a garganta cerrada da outra vida, (Sai correndo atrés do cortejo, cuja charanga ainda se ouve.) HorAcio — Insensato! Poeta! Guardar-te-do para sempre os den- tes fechados da morte! TELA 39 3.° QUADRO O pais da anestesia Personagens dramdticos Beatriz, O Poera O Hierorante A Cranga pe EsMALTE Sevs Pars © Attera CompLeTo O RapiopatautHa, acompanhado de uma motocicleta A Dama pas CAMELIAS A Sentora MINIsTRA CaronTE O Urnvsu bE Epcar A cena representa um recinto sobre uma paisagem de alu- minio e carvéo. A dircita um aerodromo que serve de necrotério. Ao centro um jazigo de familia. A esquerda a drvore desgalhada da Vida, em forma de cruz, onde arde pregado um facho. Um grupo de cadéveres recen- tes esté conversando nos degraus do jazigo. Passagem la- teral para a platéia, onde a primeira fila de cadeiras se conservard vazia. © RapiopatRuLHa — Ouve-se ja 0 ruido do motor! A Dama pas Camitias — Escutem! O AtLeta Compteto — Nio é! A Sennona Ministra — E uma mosca. O Hirrorante — Nao. O Arteta CompieTo — Agora él A Dama Das Caménias — Nao. A Senora Ministra — A mosca. O Hierorante — O autogiro de Caronte... A Sennona Ministra — E uma mosca no interior do meu nariz! 45 Siléncio, A Sexton, Mrvisrra ~ Gostaria de conhecer 0 Poeta... © RanioraTRuta — Ele vem de autogiro. O Hirorante — Nao, E Caronte que vem de autogiro, trazen- do a morta! A Dama vas Cansiiias — Quem 6? O Hiuerorantre — Beatriz. A Sennora Ministra — FE ele? O Herrorante — O Poeta vem de planador. $6 assim penetra- rd nestas paragens. .. A Sennora Ministra — O motor. O Hrerorante — A mosca. © Pat (Pondo a cabega pela ogiva do jazigo.) — Siléncio! Eu habito um lugar silencioso ou nao? Eu me matei para ou- vir a solidao. Para estar sé! Nao viver em sociedade. Em nenhuma sociedade, E me encontro assediado de intrigas. cumulado de vis preocupagées. O Hienorante — Faco sentir que 0 vizinho esta num cemitério de primeira. Nao ha melhor. © Par — Por isso ¢ que ew niio queria embarcar no autogiro. Sildncio. © Hienoranty — O motor... A Dama pas CaMétias — O Poeta... A Senxors Ministra — A mosca... O Urubu de Edgar atravessa a cena ao fundo. © Rawopatrenna — Ougo vores... A Dama pas Camiuias — E a mosca azul... O Hierorante — E o Urubu de Edgar. O Rapiopatrutna — Silénciol O Hirrorsnte — Fiquemos concentrados como perfumes. 46 Berreiro no jazigo. A CRIANGA ve Esmatre — Ail Ail (Espia pela vigia.) Os Canivenes — Que é isso? Que é isso? O Hierorante — Uma cena de familia. A Senwora MrnisTra — Que pessoal escandaloso! A Dama pas Caméntas — Brigam sempre. Nunca pensei que fosse assim no seio da sociedade honrdda! O Hierorante — Gente catdlica. E extremamente conceituada. © drama que os trouxe para cA teve a mais tétrica reper- cusséo nos meios distintos. A Senaora Muxistra — Como foi? O Hiexorante — Gas! Suicidio coletivo. A Dama pas Caméuias — E ninguém escapou? A Crianga (Pela vigia.) — Esse sujeito, além de me ter suici- dado, néo quer me dar doce! O Par — Cala a boca! A Gnianga — Depois diz que é pail O Par — O amante de tua mie te dava doces! A Cruanga — ff por isso que eu gostava dele. .. O Pat — Cinico, bastardo, filho de uma... Pancadaria, urros, choros. A Dama pas Cam#uiss — Esta arvore nado tem sombra. O RaproparRutHa — Gastou o que tinha em sessenta séculos! A SenHora Ministra — Por que a trouxeram para cA?... O Huroranre — & uma pega de museu. Como nés. A Dama DAs CAMELIAs — Foi ela que fez a queda do primeiro pai. © Hnporante — A queda... Quando o troglodita desceu da arvore... caiu. E se tornou o homem... A Dama pas Camétias — E a Arvore da Vida O Arteta Compcero — Da vida espiritual. A tinica que me in- teressa... 47 A Sextiona Ministra — Quem é esse sujeito? O Rapioparrutna — £ um atleta completo. A Dama pas CAmitras — Mas nfo tem frutas essa Arvore? © Hresoranre — Tinha uma, Comerem. Foi com seus galhos que se acendeu o primeiro fogo... F, com ela toda, se far& a tiltima fogueira. .. A Senora Minsstna — Entio é wma incendiéria? O Hirrorante —'Nela costumamos festejar o Natal dos fale- cidos... A-Crianga (Pela vigia.) — Eu quero um brinquedo. .. O Par — Vai pedir ao amante de tua mie. A Mig — Ele nunca me passou as doencas que trouxeste para casa, A Dama pas Camétias — Conte-nos a histéria da queda de Adio... O Hirrorante — Levou um tombo... Quando se levantou do solo estava criada a propriedade privada... A Senior, Mexistaa — Foi dessa Arvore que ele despencou... O RapropaTRuLHA — Entéo que somos? © Hierorants — O contetido das mitologias. O AtteTa Comptero — O alimento espiritual dos mortos! A Sennora Mrinistaa — O sustentaculo das religiées! O Hienorante — Depois que 0 ouro nos expulsou da Idade de Ouro... exploramos a fabula... © Rapropatautna — E 0 trabalho da terra, A Dama pas Camétias — Ent&o foi um choque Fisico que pro- duziu 0 homem? O Hirrorante — Nao. Foi um choque econémico, Caindo da Arvore, ele perdeu os frutos com que se alimentava. A Sexnona Mimisrma — Engate o radio, Seu Patrulha. © Rapioparautna — Nao posso. $6 tenho na minha motocicle- ta uma estago emissora. A Senora Ministra — Que pena! A gente podia até ouvir. a terra... Escutar a Giovinezza... Ir as corridas de longe, A. Danta pas Caménsas — No meu tempo eu adorava as cor- ridas. 8 A Senora Ministra — Oh! as corridas! Longchamps! O Derby de Epsom! Eu tinha um coronel que me pagava 0 taxi o dia inteiro, s6 para namorar os meus bragos .nas corridas. Era um homem casado, muito sério! O Urubu de Edgar passa ao fundo. A Dama pas CaMEéLias — Quem é esse passarinho? © Amer Comptero — £ 0 espirito da Arvore. A Dama pas Cascitras — Como é que se chama? © Hirrorante — O Urubu de Edgar. A Senxora Ministra — Quem é mesmo o dono? O HirroraNnte — Um literato, Edgar Poe. A Dama pas Camétias — Para que serve um bicho desses? O Hirrorante — £ quem fornece certidées de dbito. A Dama pas Camiéuias.— Onde que ele mora? O Hiekorante — No interior oco da cruz. A Senora Ministra — © vida chata! O HieroranTe — Que vos falta aqui? A Dama pas Camézias — A primavera! Passaros coloridos! Gri- tos dalma! Namorados! A Senora Minisrra — Vamos inventar um joguinho? O Hirorante — Jogaremos golfe com as nossas caveiras. .. O Arztera Comp.ero — Faltam as esteques. O RapiopaTRuLHa — Jogaremos com as nossas proprias tibias. A Senora Ministra — Nao. Melhor é ler a mao. Um brinque- do de sociedade. .. © Aneta Comptero — O Hierofante sabe ler. A Sennora Mauistra — Disseram uma vez que eu ia morrer aos oitenta anos... Me blefaram. O Hiroraxte — Aqui ¢ impossivel ler-se a mio de alguém. A Dama pas Camétias — Por qué? O Hienoranre — Porque nao temos mais linhas nas maos tu- mefactas.. (Todos examinam as préprias maos.) Esta tudo 49 esgargado pela morféia Ienta ¢ definitiva da morte. Vive- mos na negacao. O Amiera Comprero ~ Na eternidade. O Hienoranre — No além do espaco, A Sennora Ministra — O poeta nao vird até aqui atras da mortal A Daa pas Canitias ~ Vird. Eu que fui mulher da vida, sei que ele vira. A Sexnora Ministra — Quem é a senhora? A Daata pas Camitias — Nao vé? (Mostrando as flores que a envolvem.) Sou a Dama das Camélias. A Sennona Ministaa — Pois eu fui a senhora legitima de um ministro... O Arteta Comprero — Nao adiantou nada. Apodreceu como eu. Eis aqui o que resta de um atleta completo. A Sennora Ministra — O! patrulhal Liga o rddio na motoci- cleta, Fala a Nirvana-emissoral Vamos desmoralizar toda vida. O Hieroranre — Nao! O Attera CompLeto — Por qué? O Hierorante — Estas coisas mecinicas nao convém ao nosso estado onfrico. A Sennona Ministna — Mas a irradiagSo nos interessa. © Amera Comprero — um desabafo espiritual. .. A Sexuona Minisrna — Um passatempo... A Dama pas CaMELias — Trouxemos conosco todos os recal- ques terrenos, A SeNHona Mrnistna — Ou no habitamos o pais sem censura... A Dana pas Camétias — O autogiro esta se aproximando. O poeta vird atras... O Hierorante — Agora é. O RapropatRutns — Viva Caronte! Os Morros (Manifestando.) — Viva! Viva o iniciador! Viva! A Senora Ministra — Siléncio! © Hamoranre — Que reine entre nés 9 siléncio que convém wos mortos, 50 Permanecem todos estaticos como figuras de cera. O Uru- bu de Edgar se imobiliza junto @ drvore esgalhada, Escu- ta-se 0 ruido de um motor. Um autogiro desce vertical- mente, ¢ dele sai Caronte trazendo nos bragos um carpo de mulher amortalhado num grande renard argenté. O Hosxoranre — Esta morta? ‘ Canonte — Nao insistiu em ficar. O Hieroranre — Os mortos no insistem. Caronte (Depositando o corpo sobre a mesa de mérmore do necrotério.) — O servigo terreno me reclama. (Parte no au- togira. ) O Atueza Compteto — Sinto dores reumiticas. O Huzrorante — Cuidado, O Avtera Compteto — Por qué? O Hiexoranre — O Poeta pode chegar a qualquer momento. © Attera Compieto — Mas sinto dores fulgurantest A Senna Munistaa — Vocé tem ai uma bolsa de gua quente? A Dama pas Camiitias — Sinto um frio enorme no peito! O Huerorante — £ a presenga dos sopros augurais da terra. A Dama pas Caméxias — O Poeta. O Hurnoranre — Ele virt cantando a grandeza do agir... A Senniona Mivisrra — Quem é que faz 0 discurso de recepgio? Q RapioraTRuLHa — A motocicleta... O Hieroranre — Tornaste-vos ridiculos & aproximagio da vida. A Dama pas Camétias — Tornamo-nos humanos. O Poxra (Procura na cena.) — Beatriz! Beatriz! Retificadora de meus caminhos! Que tive longe de ti? Cachos de des- gragas, Ofereco-te o terreno alagado de meu sentimento! Sem desejar nada de ti, de teu corpo sepulcral, oferego-te © meu coragao. (Descerra o renard.) Beatrizl Beatriz — Sacrilégio... O Porta — Beatriz! 51 Beararz — Dizes tio bem o meu nome! Por que tudo que te dou de emogao, de forga criadora, nfo pées em tua arte estancada? O Porras — Falas de novo a dinguagem da vida! Queres de novo dar existéncia ao pocma de meu encontro! Beata — Que fizeste Poetal Nao podes penetrar no pais que eu habito, Nao podes perscrutar minha sagrada imtimida- de com os autématos! O Porta — Lacera-me de novo a angistia criadora. Venha de uma noite cheia de passos ¢ de vultos, a noite sem ti! Beata — Que se passa l4 embaixo onde hé a cluva? O Porta — A chova coiteira de tragédias! Beatriz — O Ego e a Gramitica. O Porta — Pareces anestesiada num lengol de argila! Beatriz — Interrompeste o meu sono, Poeta! Es a incorregiu! O Porta — Como falas diferente! Trazes no facies os sinais da decomposig’o de tua unidade! Beatnz — Pelo contrario. .. O Porta — Es a mascara de um ser que se dispersa. Teus olhos deliram enquanto a tua boca amarga sorti. Tens os cabelos do homem de Neandertal, coroados de espinhos! BraTRiz — Sou o primeiro degrau da vida espirituall O Porra — O que me chama ¢ o drama. Drama, desenvolvimen- to do proprio ser universal Beanz — Quero plata... O Porta — Dissimetria, minha criadora dissimetrial Beatriz — Tu me abriste de novo os caminhos incocrentes da terra Poeta! © Poeta aproxima-se quieto e sombrio. O Hierorante — Formaremos um comicio de protesto! O amor quer fazé-la voltar ao pais ordenado e terrivel da rua. O RapropaTRuLia’ — Onde nos reuniremos? A Dama pas Camétias — Vamos para a platéia, assim nfo per- deremos a grande cena. 52 O RapioparauLHa — Vamos! A Sennora Ministra — Que curiosidade... eu sintol © Atteta Compteto — Para a platéia! Quero ver como um poeta ama! O HisroranTe — Ordena o cortejo, Radiopatrulha, seguir-te- emos em ordem alfabética. O Raptoratrutua — Debout les morts! Os caddveres se organizam dificultosamente. Animados pelo barulho da motocicleta, conduzem-se em ritmo mole atrds do Radiopatrutha que desce da cena, O Hunorante (Deixando o paleo.) — De que serve aqui o sub- consciente?... Onde se unem os dois planos, o latente e o manifesto? Os mortos colocum-se na primeira fila do teatro, othando, Beatriz — Ama-me por favor! O Porta — Esa agresséo, o Eros e a morte. Sigo-te e desapa- reces! Bearara — Todo esforgo é inutil. O Porra — Angistia! Ansiedade! Divisio! Resolve! Vives de novo para a minha vida ow partiste para sempre? Bearniz — Todos os meus gestos séo de amor! O Porta — Fala do sol, da manha e da terra!... Beatriz — Estamos no pais propicio 4s mensagens... O Porra — Eras a felicidade! Me diminuias como uma crian- ga em ti! Bearnuz — Chorei todas as lagrimas! Hoje sé resta o rimel ne- gro destilado de meus olhos sem fundo! : © Porta — Teus cabelos me envolvem! Sinto-me ensopado de estrelas Algidas. Quero a manhal Quero o soll Beatriz — Escalaste escadarias, montanhas e o mar! Para atin- gir este horizonte sem fim! O Porra — Sorri! De dentro de teus cabelos noturnos! Beatriz, — Sejamos a mesma afligao no mesmo leitol O Porta — Quero o marfim quente de teu corpo. Mas os teus olhos se evaporam! Que boca angustiadal Beatriz — Sem ti me falta o apoio terreno. . © Porta — Sinto-me rodeado da angiistia das 4guas! Onde estou? Beatriz — Es o feto humano que voltou 4 eternidadel O Porta — Sou a tua mensagem sexual! Beatriz — Nao mais podes acordar em mim 0 dio erético... O Porta — Para onde me conduziste? Beatriz — Habito o pais letargico onde nao penetra a dor! O Porta — Onde esta a tua boca antiga? Por que esse rictus? Oh! os teus dentes! Nao quero ver mais os teus dentes. Onde estéo os teus labios molhados e vivos? Foges com a boca repleta de dentes! Cessa o teu riso parado! Ouve-se 0 uivo demorado de um cao. O Rapiopatnunna (Na platéia.) — Debout les morts! O cortejo forma-se de novo e dirige-se para o palco, © Porta — Que uivo terrivell Parece um coragao baleado... Beatniz — S6 por uma mulher, um cérebro uiva assim. Os mortos alinham-se ao fundo da cena, O Urubu de Ed- gar abre as asas sob a drvore, O Poera— A tua mio termina em reta! O teu brago esta rigida e retol A noite tenebrosa de teus cabelos nao mais resti- tuiré a manha radiosa.. . © Unuau ve Epcar (Aproximando-se ¢ tomando a axila de Bea- triz.) — O amor nao penetra o crinio dos mortos! O Porra — Mortal Beijei inttil a labareda extinta de teu cor- pol Por isso guardavas dentro do peito uma humanidade diversa, atraente e terrivel! A DaMa pas Camétias ~ Olhem, Beatriz permanece quieta e sensacionall O Hieroranre — $6 se ama no plano da criagao! © Porra — Eu trouxe o amor para o nada! Beatriz — Para a aurora da vidal ° Post — Queimarei a tua carne dadivosal Nao se poupa o nada! O Urvav ps Epcar — Socorro! Socorro! Fogo! Os mortos se movimentam, O Porta ~— Nao penetrei 4-toa neste pafs, onde ha uma Arvore e um facho, Se a forga criadora de minha paixdo nao te toca, é porque nao existes! Ouve-se uma sereia estridente! O Huzrorante — O sinal dos cremadores! Acode-nos, espirito da Arvorel O Unusv pe Epcar — Deus! © Porta — Reconhego-te, empresa funerdérial! Na matéria do meu cérebro ficara 0 teu epitatio, Nunca mais! (/oma ao fuche e comega a incendiar a Arvore da Vida.) Nao mais estes simbolos dialéticos do sexual perturbario a marcha uo homem terreno. Foge ave do Paraisol © Urusu pe Epcar — Os cemitérios sao combustiveis. Nao ha salvagaol A Sennora MinistRa — Sempre disse que essa yela ai era um perigol © ‘Rapiorarauiia ~ O incéndio seré a cegueira de Caronte. © Atzta Compero — Errarao pelo espago infinito nossos ir mos sem carne, A Dama pas Camétias — Sinto se inflamarem os meus pulmoes... O Atuera Compiero — Talvez sejamos purificados! A Sennora Ministra — Nao. Cristo-Rei nao deixaral O RapiopaTrutHa — O pais dos mortos 6 donde se alimenta toda religiio... O Hrenorante — Mas os cremadores mataram os deuses... Jo- garam fora os mitos initeis. Bearaez — Poetal Permanece para sempre dentro de mim! Sé ie O Porta — Devoro-te trecho noturno de minha vidal Serei fiel para com os arrebéis do futuro. .. O Hierorante — O erro do homem é pensar que é 0 fim do barbante... O barbante nao tem fim. O Urvsy ve Epcar — A humanidade continuaré trégica e ingé- nua... $6a morte é a etapa atingida, O Poera (Passa o facho aceso ao corpo de Beatriz, frouxamen- te coberto pelo renard argenté.) — Todo mistério ser4 acla- rado. Basta que o homem queime a propria almal Um imenso clardo se anuncia no fundo. A Senora MinisTRa — Fujamos para o pais da chuva... O Porra — A noite nao tera mais passos nem vultos! © Hurorante — O dilivio de fogo nos seguirél Brearriz — Sexual! Sexuall O Poera — Incendiarei os teus cabelos noturnos! A tua boca aquosal A aurora de teus seios! Flamba tudo nas mdos herdicas do Poeta. O Hunoranre (Aproximando-se da platéia.) — Respeitével pUblicol Nao vos pedimos palmas, pedimos bombeiros! Se auiserdes salvar as vossas tradigdes e a vossa moral, ide chamar os bombeiros ou se preferirdes a policial Somos como vés mesmos, um imenso caddver gangrenado! Sal- vai nossas podridées ¢ talvez vos salvareis da fogueira ace- sa do mundo] 56 O rei da vela Peca em trés atos A Alvaro Moreyra e Eugénia Alvaro Moreyra na dura criagéo de um enjeitado — 9 teatro nacional, O.A, Sao Paulo, junho, 1937, 59 Personagens draméaticos ABeLARDo I Apezanpo IT Hetoisa DE Lesnos Joana conhecida por JoXo pos Divas Tord Fauta-po-Conpe CononeL BeLARMINO Dona Cesanina Dona PoLoguinHa Pexpicoro: O AMERICANO O CuenTe O IwretecruaL PinoTe A SeCRETARIA Devepores, DEVEDORAS O Ponto 61 12 Ato Em Sdo Paulo. Escritério de usura de Abelardo & Abe- lardo. Um retrato da Gioconda, Caixas amontoadas. Um diva fuiurista. Uma secretdria Luis XV. Um castigal de latéo. Um telefone. Sinal de alarma. Um mostrudrio de velas de todos os tamanhos e de todas as cores, Porta enorme de ferro a di- reita correndo sobre rodas horizontalmente e deixando ver no interior as grades de uma jaula, O Prontudrio, pega de ga- vetas, com os seguintes rdtulos: MALANDROS — IMPON- TUAIS — PRONTOS ~— PROTESTADOS. — Na outra divisio: PENHORAS — LIQUIDACOES — SUICIDIOS — TANGAS, Pela ampla janela entra 0 barulho da manhé na cidade e sai o das mdquinas de escrever da ante-sala. 63 ABELARDO 1, ABELARDO 11 £ CLIENTE. AsELARDO 1 (Sentado em conversa com o Cliente. Aperta um botio, ouve-se um forte barulho de campainka.) — Va- mos ver... Axetarpo 1 (Veste botas e um completo de domador de fe- ras. Usa pastinha e enormes bigodes retorcidos. Mondécu- lo. Um revélver a cinta.) — Pronto Seu Abelardo. AseLanpo 1 — Traga 0 dossier desse homem. AprLarpo 1 — Pois nfo! O seu nome? Cuenre (Embaracado, 0 chapéu na mao, uma gravata de corda no pescogo magro.) — Manoel Pitanga de Moraes. ABELARDO 0 — Profissio? Curnre — Eu era proprietério quando vim aqui pela primei- za vez, Depois fui dois anos funciondrio da Estrada de Ferro Sorocabana. O empréstimo, o primeiro, creio que foi feito para o parto. Quando nasceu a menina... Apetarno 1 — Ja sei, Esté nos tmpontuais, (Entrega o dos- sier reclamado e sai.) 65 ABELARDO 1 (Examina,) — Veja! Isto nfo é comercial Seu Pi- tanga! O senhor fez o primero empréstimo em fins de 29. Liquidou em maio de 1931. Fez outro em junho de 31, estamos em 1933. Reformou sempre. Ha dois meses suspendeu o servigo de juros... Nao é comercial... O Crmyre — Exatamente. Procurej 0 senhor a segunda vez por causa da demora de pagamento na Estrada, com a Re- volugo de 30. A primeira foi para o parto. A crianga ja ti- nha dois anos. E a Revolugio em 30... Foi um mau su- cesso que complicou tude... ABELARDO 1 — O senhor sabe, o sistema da casa é reformar. Mas nao poddemos trabalhar com quem no paga juros... Vivemos di lisso, O senhor cometeu a maior falta contra a seguranca do nosso negécio e o sistema da casa... O Cumnre — H& dois meses somente que nie posso pagar juros. Apetanpo 1 — Dois meses. O senhor acha que € pouco? O Cutente — Por isso mesmo é que eu quero liquidar. Entrar num acordo. A fim de nao ser penhorado. Que diabot O senhor tem auxiliado tanta gente. & o amigo de todo mundo,.. Por que comigo nfo ha de fazer um acordo? Ape1arpo 1 — Aqui niio hé acordo, meu amigo. H4 pagamentot O Cutenre — Mas eu me acho numa situagao triste. Nao pos- so pagar tudo, Seu Abelardo. Talvez. consiga um adian- tamento para liquidar... ABELARDO I — Apesar da sua impontualidade, examinaremos as suas propostas.. . © Cutente — Mas eu fui pontual dois anos e meio. Paguei en- quanto pude! A minha divida era de um conto de réis. $6 de juros eu the trouxe aqui nesta sala mais de dois contos e quinhentos. E até agora nao me utilize da lei contra a usura... ABELARpo 1 (Intferrompendo.o, brutal.) ~— Ah! meu amigo. Utilize-se dessa coisa imoral e iniqua. Se fala de lei de usura, estamos com as negociagées rotas... Saia daquil O Cutente — Ora, Seu Abelardo. O senhor me conhece. Eu sou incapazl 66 AzeLarp 1 — Nao me fale nessa monstruosidade porque eu o mando executar hoje mesmo. Tomo-lhe até a roupa ouviu? A camisa do corpo. O Curnre — Eu no vou me aproveitar, Seu Abelardo, Que- ro Ihe pagar. Mas quero também Ihe propor um acor- do, A minha situagao é triste... Nao tenho culpa de ter sido dispensado. Empreguei-me outra vez, Despediram- me por economia. Nao ponho minha filhinha na escola Porque nao posso comprar sapatos para ela. Nao hei le morrer de fome também. As vezes no temos o que comer em casa, Minha mulher agora caiu doente. No entanto, sou um homem habilitado, Tenho procurado inu- tilmente emprego por toda a parte. $6 tenho recebido nios enormes. Do tamanho do céul Agora, aprendi escri- turagdo, estou fazendo umas escritas. Uns biscates. Hei de arribar... Quero ver se adiantam para lhe pagar. AprLarwo 1 — Mas, enfim, 0 que é que o senhor me propoe? O Ciienre — Uma pequena redugao no capital. ABELAKDO I — No capitall O senhor est4 maluco! Reduzir 0 capital? Nunca! O Cuenre — Mas eu ja paguei mais do dobro do que levei daqui... ABELARDO I — Me diga uma coisa, Seu Pitanga. Fui cu que fui procuré-lo para assinar este papagaio? Foi o meu au- tomével que parou diante do seu casebre para pedir que aceitasse 0 meu dinheiro? Com que direito o senhor me propée uma redugdo no capital que eu lhe emprestei? O Cuuente {Desnorteado.) — Eu ja paguei duas vezes... ApeLanpo I — Suma-se daquil (Levanta-se.) Saia ou chamo a policia, £ sé dar o sina) de crime neste aparelho, A po- licia ainda existe... O Cunre — Para defender os capitalistas! E os seus crimes! AsrLarpo 1 — Para defender 0 meu dinheiro, Ser4 executado hoje mesmo. (Toca a campanhia.) Abelardo! Dé ordens para executé-lof Rua! Vamos. Fuzile-o. E o sistema da casa. O Cuenre — Eu sou um covardel (Vai chorando.) O senhor abusa de um fraco, de um covarde! 67 Menos 0 CuleNTE. ABELARDO 1 — Néo faga entrar mais ninguém hoje, Abelardo. ABELaRDO m — A jaula est4 cheia. Seu Abelardot ABELARDO I — Mas esta cena basta para nos identificar peran- te o ptiblico, Nao preciso mais falar com nenhum dos meus clientes. So todos iguais, Sobretudo nao me traga pais que nfio podem comprar sapatos para os filhos. . . ApsLanvo u — Este esta se queixando de barriga cheia. Nao tem prole numerosa. S6 uma filha... Familia pequenal ABeLARDO 1 — Nao confunda, Seu Abelardo! Familia é uma cousa distinta. Prole é de proletario. A familia requer a propriedade ¢ vice-versa.’ Quem ndo tem propriedades deve ter prole. Para trabalhar, os filhos sio a fortuna do pobre... ABELARDO 1 — Mas hoje ninguém mais vai nisso... ABELARDO 1 — E a desordem social, o desemprego, a Russial Esse homem possuia uma casinha. Tinha o direito de ter uma familia. Perdeu a casa. Cavasse prolel Seu Abelardo, a familia e a propriedade sao duas garotas que freqiien- tam a mesma gargonniere, a mesma fara... quando o pao sobra... Mas quando o pio falta, uma sai pela porta € a outra voa pela janela... AseLARvo 1 — A familia é 0 ideal do homem! A propriedade também. E Dona Heloisa 6 um anjol ABELARDO 1 — Vocé sabe que no ha outro género no mer- cado. Eu ndo ia me casar com a irma mais moga que chamam por ai de garota da crise e de Joao dos Divas. Nem com o irm&o menor que todo mundo conhece por Tots Fruta-do-Condel AprLaRDo 1 — Um degenerado... ABELARDO 1 — Coisas que se compreendem e relevam numa velha familial Heloisa, apesar dos vicios que lhe apon- tam... Vocé sabe, toda a gente sabe, Heloisa de Lesbos! Fizeram piada quando comprei uma ilha no Rio, para nos casarmos. Disseram que era na Grécia. Apesar disso, ela ainda é a flor mais decente dessa velha 4rvore ban- deirante. Uma das familias fundamentais do Império. Aseranpo n — O velho esta de tanga. Entregou tudo aos credores, ABFLARDO 1 — Que importa? Para nés, homens adiantados que s6 conhecemos uma coisa fria, 0 valor do dinheiro, comprar esses restos de brasio ainda é negécio, faz vista num pais medieval como o nosso! O senhor sabe que Sao Paulo sé tem dez familias? Apxtanvo u — E o resto da populagdo? AprLaRDO 1 — O resto é prole. O que eu estou fazendo, 0 que o senhor quer fazer 6 deixar de ser prole para ser familia, comprar os velhos brasées, isso até parece teatro do século xix. Mas no Brasil ainda ¢ novo. ApeLarvo u — Se él A burguesia sé produziu um teatro de classe. A apresentagdo da classe. Hoje evoluimos. Chega- mos & espinafragio. ABELARDO I — Bem. Veja o bordereau... O Banco devolveu muita coisa? AprLaRpo 1 — Xu! Um colosso! Estamos no vinagre, Seu Abelardo! ABELARDO 1 — Vamos ABELARDO Ht (Lendo.) — Cinco contos setecentos e setenta, Dr. Carlos Magalhies de Moraes Benevides Fonseca. Chapa Unica... Reforma-se? Nao paga juros ha dois meses. AprLanpo 1 — Reforma-se. ApeLanpo 1 — Antunes & Lapa... trés contos,.. j4 protestei. Mangioni... Luiz. O bichciro... Dr. Jodo Carlos de Menezes Rocha... dois contos... ABELARDO I — Pro protesto. Apetarpo u — Bardo de Gama Lima, quinhentos mil-réis... ABELARDO 1 — Pro protestol ABELARDO 1 — Moura Melo... setecentos mil-réis. ABELARDO 1 — Pro protesto. ApeLarvo u — Abrado Calimério... dez contos. ABELARDO 1 — Pro protesto! Anutanvo 1 — Carlos Peres... Esta. ja foi pro pau ontem... 69 AveLanpo 1 — Ele nao pediu reforma? ABeLarpo 1 — Nio. ABeLaRvo 1 — E por qué? ApeLanvo 1 — Tomou dois copos de limonada com iodo. Esté aqui no jornal. (Procura.) Diz que est4 em estado de coma, na Santa Casa... ApeLarpo 1 — Mande o Benvindo fazer a penhora. Depressa. Antes que ele morra e a venda feche... ABELARDO 1 — Esta certo. Esta é... daquele funciondrio publico, o Pires Limpo... Ele esté limpo e de pires! Mandou a filha aqui. ABELARDO 1 — Bonita? ABELARDO 1 — Pancadao! Dezoito anos... Cada dente deste tamanho, ABELAKDO 1 — Mandou a filha? O més passado veio a mulher. ABELARDO 1 — Eu vi, Jeitosa... Mas muito faladeira. Queria saber onde 6 que 0 senhor morava, falou na compra da ilha no Rio, onde o senhor vai se casar. Que ia levar de avido uma porgio de gente de Sio Paulo. ApELARDO I (Batendo o pé numa grande caixa de papelao.) = Que € isto aqui? ABELARDO u — Formas de chapéu. (Mostra o castigal de latdo.) A penhora de M,"* Lanale. 86 tinha isso e aquele candelabro. Quase que nfo dé para pagar os tiras que ajudaram, ABELARDO I — E os méveis... ABELARDO 1 — Ficaram despedacados na rua. Eram duas pegas velhas, de ferro. Foi um escdndalo. O estado-maior teve que agir duro. O povo queria se opor. Juntou gente... AsrLARDo 1 — Que estado-maior? ABELARDO 1 — Os oficiais de justiga. .. ABELARDO 1 ~ Mas o exemplo ficoul ABELARDO u — E frutificard. ABELARDO 1 — A rua inteira sabe que penhorei porque néo me pagaram 200$000. A cidade inteira sabe. Talvez, gas- 70 tasse mais nisso... Que importa? Dura lex, aprendi isso na Faculdade de Direitol Ave. arpo 1 — Queria que o senhor visse a choradeiral A viiva berrava na janela: — Gli orfani! Gli orfani! Non abiamo piu lavoro! Aprsarbo 1 — O qué? ApeLarvo i — Ela queria dizer que os drfacs nado tinham mais 0 que comer. Tiramos os instrumentos de trabalho. ABELARDO 1 — Manhosa, .. Apstanvo u — $6 se pode prosperar A custa de muita des- graca. Mas de muita mesmo... ABELARDO 1 — Se nao for assim como garantirei os meus depositantes, Se nao tito do outro lado? Ofereco juros que os bancos no pagam. Os juros que sé alguns paga- vam nos bons tempos. 4 até 5 por cento ao ano! Apc1arpo 1 — Também o dinheiro corre para aquil.,. La embaixo a seco bancéria est& assim! ABELARDO I — Ofereco boas garantias. E também exijo boas garantias, quando empresto... ABELARDO 11 — A 5 e 10 por cento ao més... Por filantropial (O telefone.) E seu irmio, . ABeLARDO 1 — Meu advogado. Avy.anvo 1 (No fone.) — Sim senhor, Esta, (Para Abelardo.) Diz que entrou no Forum com trés executivos. Esté cha- mando o senhor... AveLarpo 1 (Ao fone.) — Como? Sou eu... Abelardo. O Teodoro? Quer se prevalecer da lei de usura! Grande bestal E pede reforma! Linche esse camaradu. Ponha flite nele e acenda um fésforol (Bate o fone.) Pro pau com esse bandido! Lei contra a usural Miserdveis] Bol- chevistas! Por isso é que o pais se arruina. E ha um miserdvel que quer se aproveitar dessa iniqii(dade. ABELARDO I — Leis sociais... ABELARDO 1 — Sucia de desonestos. Intervir nos juros. Cercear © sagrado direito de emprestar o meu dinheiro A taxa que eu quiser! E que todos aceitam. Mais! Que vém implorar aqui! Sou ew que vou buscé-los para assinar 71 papagaios? Ou sio eles que todos os dias enchem a minha sala de espera? Abra a jaula! Abelardo I! obedece de chicote em punho, A porta de ferro corre pesadamente. Mais Cuienres, Os clientes aparecem atropeladamente nas grades. E uma colegéo de crise, variada, expectante. Homens ¢ mu- Theres mantém-se quietos ante o enorme chicote de Abe- lardo H. ABEEARDO 1 — Rual Nem mais um negéciol Vou fechar esta bagunga, Vozes (Da jaula.) — Pelo amor de Deus! Por caridade! Eu nao posso pagar o aluguell Reforme! Vou a faléncial ApeLarvo 1 — Rual Ninguém mais pode trabalhar num pais destes! Com leis monstruosas! As Vozes — Eu tenho que fechar a fabrica! Nao poderei pagar os duzentos operdrios que ficario sem pao! Tenha pie- dade! Inclua os juros no capital! Damos excelentes ga- rantias! Asetarpo 1 (A Abelardo II.) — Feche esta portal Nao atendo ninguéml Abelardo II faz estalar o chicote de domador. As Vozxs -- Blefaremos 0 governo! Me salve! Me salvel ABELARDO t — Rua! Canalhas! L& fora sei como vocés me tra- tam! Abelardo II fé-los recuar das grades, brandindo o chicote € ameagando com o revdlver, Uma Voz ve Mutuer — Ai Jesus! Nao temos 0 que comer! Eu nfo saio daquil Espero até & noite! Estou arruinadal 72 As Vozes Innirapas (Abelardo Il: procura fechar a porta de ferro.) — Canalha! Sujo! Tirou 0 nosso sangue! Ladréol Nao saimos daqui! Um Iratiano — Pamarona! Momanjo isto capitalistal Usta Francesa — Sale cochon! Si c’est possible! Cont Um Russo Branco — Svoloch! Um Turco ~ Joge paga bateca! Non izacuta Joge... As Vozes (Em coro.) — Assassino! AprLanpo 1 — Feche! Atirel Abelardo Ht dé um tiro para o ar. Os clientes recuam gri- tando, Ele corre a porta de ferro ruidosamente, As Vozzs (Abafadas.) — Céol Rei da Vela! Péo-durol Ums Voz pe Mutuer (Gritando do outro lado da porta.) — Meu marido bebeu estricninal Ovtra — Minha mie tomou lisoll Ovrra — Meu pai se jogou do Viaduto! Avetarvo 1 — Lisol! Estricnina! Viaduto! E do que vocés pre- cisam, canalhas} Menos © Ciienve. Telefone. ‘ApeLanvo u (Atendendo.) — Aldl E 0 padre! Aquele da entre- vistal Esté, reverendol Vem ja... ABELARDO 1 — Mas vocé marcou? ABELARDO 11 — Nao marquei nada. Aprianno 1 (Toma o fone.) — Bom dia, reverendo! Sou eu mesmo. Abelardo... Ah! Com muitissima honra... Espe~ rarei vossa reverendissima, Pode ser as quatro horas? Entio,., sem divida... Beijo-Ihe as miost Sempre as suas ordens. (Depée o fone.) Este padre é engracado... Nao me larga... Eu nao sou eleitor.., Ele nag quer dinheiro. . . ABELARDO 1 — Quer a sua alma... 73 ABELARDO 1 — Evidentemente € um caso raro, Um homem preocupar-se comigo sem ser logo a vista... Quanto? ABELARDO 1 — Ele prefere tratar desde j4 do seu testamento. ABELARDO 1 — Iniitil, Eu morro ateu e casado. ABELARDO 11 — E isso mesmo que ele quer. A vitiva cuidard bastante de sua alma que tera ido... para 6 purgatério. ApeLarpo 1 — Diga-me uma coisa, Seu Abelardo, vocé é so lista? ABELARDO 1 ~ Son o primeiro socialista que aparece no Teatro Brasileiro, ABELARDO 1 — Eo que & que vocé quer? ABELARDO 1 — Sucedé-lo nessa mesa. ABELARDO 1 — Pelo que vejo o socialismo nos paises atrasados comega logo assim... Entrando num acordo com a pro- priedade... ABeLaRDO 1 — De fato... Estamos num pais semicolonial.. . ABELARDO 1 — Onde a gente pode ter idéias, mas nao é de ferro, ABELARDO 11 — Sim. Sem quebrar a tradigao. ABELARDO 1 — Se for preciso, 0 padre leva a sua alma também... Esta certo... Vamos examinar aquelas propastas. (Senta- se ¢ 1é.) Carmo Belatine, .. ABELARDO u — E aquele da fabrica de salsichas... O frigo- rifico... Que comprou o terreno da Lapa. ABELARDO 1 — Idade? ABELARPO U — Trinta € nove anos. ABELARDO 1 — Nivel de vida? ABELARDO 1 — Nivel baixo ainda. Faz a barba na terrina da sopa, com sabi de cozinha e gilete de segunda mio... ABELARDO 1 — Jé fala o portugués? ABELARDO 0 — Ainda atrapalha. ABELARDO 1 — Gasta menos do que tira dos trabalhadores? ABELARDO 11 — Muito menos! ApELARDO 1 — Tem filhos grandes? 74 Apr.anpo 1 — Pequenos ainda. Apearvo 1 — Em bons colégios? ABELARDO 0 — Sim. Oiseaux, Sion, Sao Bento. Apr.arno 1 — Bem. Tome nota. Emprestamos enquanto os pe- quenos estudarem, Quando as filhas comegarem o servigo militar nas garconniéres, e o pequeno tiver barata, e Ma- dame souber se vestir, emprestaremos entio de preferéncia & costureira de Madame. O velho ai tera mudado de nivel. Possuiré automével, casa no Jardim América, Cessaremos pouco a pouco todo o crédito. Nem mais um papagaio! Ele vird aqui caucionar os titulos dos comerciantes a quem fornece. Executarei tudo um dia. Levarei a fabrica, os capitais imobilizados e o ferro velho a praga. Avexanpo 11 — E a mulher dir& que foram os operarios que os arruinaram. AsrLanpo 1 — E foram de fato. Eu conto como fator essencial dessas coisas as exigéncias atuais do operariado. O salério- minimo. As férias. Que diabo. As tais leis sociais nio hao de ser s6 contra o capital... A®rLARDO 1 — Nao sao nao. Descanse. Eu entendo de socia~ lismo. Olhe, A lei de férias sé deu um resultado. Nao h4 mais salario de semana ou de més. E por dia de trabalho, ou por contrato. Somando bem, os domingos, feriados e dias de doenga eram mais que as férias de hoje. AveLarpo 1 — Bem. Guarde esta ficha nos Firmes. Feche 0 negécio, A mesma taxa. O sistema da casa. Chame a Se- cretéria n.° 3. Quero ditar uma carta, Abelardo II sai. ABELARDO 1 © SecnETARTA N.° 3, ¥ A SrcretArta (FE uma moga, longa, de doulos ¢ trancas enotmes e loiras, Veste-se pudicamente. Trax lépis e block-notes nq méo,) —£ para bater & mdquina, Seu Abelardo? ABELARDO 1 ~ No. Para estenografar. Nem isso. A senhora sabe redigir. Melhor do que eu. Faga uma carta, Sente-se af. (Sentam-se perto um do outro.) Dona Aida... Aida 75 loira... Aida de Wagner. Como é? Nao precisa de um Radamés? A SecretAnta — Preciso que o senhor melhore o meu ordenadn O custo da vida aumentou no Brasil de 30%. ABELARDO 1 — Tenho todo interesse pelo custo de sua vida... Mas a senhora sabe... As vidas hoje estio dificeis para todos... Nao é mais como antigamente... Que trangast... Eu acabo me enforcando nessas trangas!... Deixa? (Pro- cura tocar-lhe os cabclos.) A Srcaet4ria — Tenha modes, Seu Abelardo! ABELARDO 1 — Deixa? Malvada! A SecretAnra — Nunca. Eu sou romantica. Nao vendo o meu amor! A®ELARDO 1 — Vamos fazer um piquenique... (Aponta o div@ sob a Gioconda.),.. debaixo daquela mangueita? A SecrerAnia — Eu sou noiva, ABELARDO 1 — Eu também, A Secrethpta — Mas eu sou fiel.. . ABELARDO 1 — Bem! Depois niio venha fazer vales aqui, hein! Eu também sei ser fiel ao sistema da casa. VA !4. Redija! Nao. Tome nota, Olhe. F uma carta confidencial. A um tal Cristiano de Bensatde. Industrial no Rio. Metido a escritor. Redija sem erros de portugués, O homem foi critico literario e avangado, quando era pronto... Ele me escreveu propondo frente unica contra o operdrios. Res- ponda em tese (A secretéria toma nota,), insinue que é melhor ele ser um puro policial. Manter vigilancia rigo- rosa nas fabricas. Evitar a propaganda comunista. Denun- ciar ¢ perseguir os agitadores. Prender. Esse negécio de escrever livros de sociologia com anjos ¢ contraproducente. Ninguém mais cré. Fica ridjculo para nés, industriais avangados, Diante dos americanos e dos ingleses, Olhe, diga isto. Que a burguesia morre sem Deus. Recusa a extrema-ungao. Cite o exemplo do préprio Vaticano. Coisas concretas. A adesio politica da igreja contra um bilhao e ‘setecentos milhées de liras, 0 ensino religioso e a lei contra o divércio. Toma 14, dé c4. Nao vé que um alpinista como 76

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