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* Tradução a partir do texto “Performative Acts and Gender Constitution, An Essay in Phenomenology
and Feminist Theory”, publicado em The Performance Studies Reader, Henry Bial (ed.), 2004,
Routledge: Londres e Nova Iorque, pp. 154-166.
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1 N.T.: A tradução desta frase tão citada de Simone de Beauvoir está conforme tradução portuguesa
desta obra da autoria de Sérgio Milliet (Amadora: Bertrand, 1976).
2 Para uma discussão adicional sobre a contribuição feminista para a teoria fenomenológica, ver a
minha obra “Variations on Sex and Gender: Beauvoir’s The Second Sex,” Yale French Studies 172
(1986).
Actos performativos e contituição do género... | Judith Butler 71
7 Ver Michel Foucault, The History of Sexuality: An Introduction, tradução para o inglês de Robert Hurley
(Nova Iorque: Random House, 1980), 154: “a noção de ‘sexo’ tornou possível reunir, numa unidade
artiÄcial, elementos anatómicos, funções biológicas, comportamentos, sensações e prazeres, e
permite-nos fazer uso desta unidade Äctícia como um princípio causal.”
8 Ver Claude Lévi-Strauss, The Elementary Structures of Kinship (Boston: Beacon Press, 1965).
9 Gayle Rubin, “The TrafÄc in Women: Notes on the ‘Political Economy’ of Sex, “in Toward an Anthropology
of Women, (ed.) Rayna R. Reiter (Nova Iorque: Monthly Review Press, 1975), pp.178-85.
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10 Ver o meu ensaio “Variations on Sex and Gender: Beauvoir, Witting, and Foucault”, in Feminism
as Critique, (ed.) Seyla Benhabib e Drucila Cornell (Londres: Basil Blackwell, 1987 [distribuído por
University of Minnesota Press]).
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terra, mas note-se que a relação entre actos e condições não é unilateral
nem espontânea. Há contextos e convenções sociais nos quais certos actos
não só se tornam possíveis como também concebíveis enquanto actos.
A transformação das relações sociais torna-se, então, uma questão de
transformar as condições sociais hegemónicas, e não os actos individuais
que são gerados por essas condições. Na verdade, corremos o risco de
apenas nos debruçarmos sobre os reflexos indirectos, senão secundários,
dessas condições, se nos restringirmos a uma política de actos.
Mas o sentido teatral de um “acto” obriga a uma revisão das supo-
sições individualistas que subjazem a uma visão mais restrita dos actos
constitutivos num discurso fenomenológico. Dada a duração temporal
de toda a performance, os “actos” são uma experiência partilhada e uma
“acção colectiva”. Da mesma maneira que na teoria feminista a própria
categoria do pessoal é expandida por forma a incluir estruturas políticas,
também existe uma visão mais teatralizada dos actos, e de facto menos
individual, que vai de algum modo aniquilar a crítica que acusa a teoria
dos actos de ser “demasiado existencialista”. O acto que é o género, o acto
que são os agentes corporalizados, na medida em que são dramática e
activamente corporalizados, e, de facto, na medida em que vestem certas
significações culturais, não é, evidentemente, um acto individual. Certa-
mente, há maneiras idiossincráticas e individuais de fazer o género que
assumimos, mas o facto de o fazermos, e de o fazermos de acordo com
certas sanções e proscrições, não é evidentemente uma questão totalmente
individual. Aqui, mais uma vez não pretendo minimizar o efeito de certas
normas de género que têm origem no seio da família e são incutidas através
de certos meios de punição e de recompensa familiares e que, como conse-
quência, podem ser construídas como normas profundamente individuais,
mas mesmo assim as relações familiares recapitulam, individualizam e
especificam, relações culturais preexistentes; aquelas raramente são, se
alguma vez o são, radicalmente originais. O acto que fazemos, o acto que
representamos é, num certo sentido, um acto que tem vindo a decorrer
antes de entrarmos em cena. Por isso, o género é um acto que tem sido
ensaiado, um pouco como um guião que sobrevive aos próprios actores
que fazem uso dele, mas que requer actores concretos para, mais uma vez,
ser actualizado e reproduzido como realidade. Os componentes complexos
que integram um acto devem ser distinguidos por forma a compreender
o tipo de actuação concordante que o género invariavelmente é.
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11 Ver Victor Turner, Dramas, Fields, and Metaphors (Ithaca: Cornell University Press, 1974). Clifford
Geertz sugere em “Blurred Genres: the ReÄguration of Thought”, in Local Knowledge, Further Essays
in Interpretive Anthropology (Nova Iorque: Basic Books, 1983), que a metáfora teatral é usada pela
teoria social recente de duas maneiras diferentes, frequentemente opostas. Teóricos do ritual como
Victor Turner concentram-se numa noção de drama social de vários tipos como forma de resolver
conÅitos internos a uma cultura, regenerando a coesão social. Por outro lado, abordagens de acções
simbólicas inÅuenciadas por Äguras tão diversas como, Emily Durkheim, Kenneth Burke e Michel
Foucault debruçam-se sobre a forma como a autoridade política e as questões de legitimação são
tematizadas e resolvidas em termos de signiÄcado encenado. O próprio Geertz sugere que a tensão
pode ser vista dialecticamente; o seu estudo sobre a organização política em Bali como um “estado-
-teatro” é um caso exemplar. Em termos de uma interpretação explicitamente feminista de género
como acto performativo, parece-me evidente que uma explicação do género como performance
pública ritualizada deve ser articulada com uma análise das sanções e tabus políticos, segundo
os quais essa performance pode ou não ocorrer dentro da esfera pública, livre de consequências
punitivas.
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12 Bruce Wilshire, Role-Playing and Identity: The Limits of Theatre as Metaphor (Boston: Kegan Paul,
1981).
13 Richard Schechner, Between Theatre and Anthropology (FiladélÄa: University of Pennsylvania Press,
1985). Ver, principalmente, “News, Sex, and Performance”, pp. 295-324.
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14 Em Mother Camp (Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1974), a antropóloga Esther Newton apresenta uma
etnograÄa urbana dos drag queens, na qual sugere que todos os géneros devem ser compreendidos
segundo o modelo dos drag. Em Gender: An Ethnomethodological Approach (Chicago: University
of Chicago Press, 1978), Suzanne J. Kessler e Wendy McKenna defendem que o género é uma
“realização” que requer capacidade de construir o corpo num artifício socialmente legitimado.
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15 Ver Erving Goffman, The Presentation of Self in Everyday Life (Garden City: Doubleday, 1959).
16 Ver Michel Foucault, Herculine Barbin: The Journals of a Nineteenth Century French Hermaphrodite,
tradução para o inglês por Richard McDougall (Nova Iorque: Pantheon Books, 1984) para uma
interessante apresentação do horror evocado pelos corpos intersexuados. A introdução de Foucault
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Esta teoria de género não tenta ser uma teoria abrangente sobre o que o
género é, ou o modo como este se constrói, nem prescreve um explícito
programa político feminista. Na verdade até posso imaginar esta perspec-
tiva de género a ser utilizada por um número discrepante de estratégias
políticas. Alguns dos meus amigos podem culpar-me por isto, e insistir
que qualquer teoria da constituição de géneros tem pressupostos e impli-
cações políticas, e que é impossível separar uma teoria de género de uma
filosofia política do feminismo. De facto, defenderia que são essencial-
mente interesses políticos que criam o próprio fenómeno social do género,
e que sem uma crítica radical da sua constituição, a teoria feminista não
consegue apreender o modo como um princípio de opressão estrutura as
categorias ontológicas através das quais o género é concebido.
Gayatri Spivak argumentou que as feministas precisam de se apoiar
num essencialismo operacional, numa falsa ontologia de mulheres como
categoria universal, a fim de avançar com um programa político feminis-
ta.17 Ela sabe que a categoria “mulheres” não é completamente expressiva,
e que a multiplicidade e descontinuidade do seu referente desdenha e
rebela-se contra a univocidade do signo, mas Spivak sugere que esta
ontologia poderia ser usada com fins estratégicos. Penso que Kristeva
sugere algo semelhante quando defende que as feministas usem a cate-
goria “mulheres” como uma ferramenta política, sem atribuir ao termo
integridade ontológica, e acrescenta que em rigor não se pode dizer que
a categoria “mulheres” exista.18 Naturalmente, reivindicar que as mulhe-
res não existem tem implicações políticas que preocupam as feministas,
principalmente à luz dos persuasivos argumentos apresentados por Mary
Anne Warren no seu livro, Gendericide.19 Warren defende que certas
políticas sociais relativas ao controlo da população e à tecnologia repro-
deixa claro que a delimitação médica do sexo unívoco é mais uma maneira perversa de pôr em
prática o discurso da “identidade verdadeira”. Ver ainda Robert Edgerton in American Anthropology
sobre as variações transculturais nas reacções aos corpos hermafroditas.
17 Observações no Centro de Humanidades, Wesleyan University, Spring, 1985.
18 Julia Kristeva, “Woman Can Never be DeÄned,” tradução para o inglês por Marilyn A. August, in New
French Feminisms, (ed.) Elaine Marks e Isabelle de Courtivron (Nova Iorque: Schocken, 1981).
19 Mary Anne Warren, Gendericide: The Implications of Sex Selection (New Jersey: Rowman e Allanheld,
1985).
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20 Ibid., Michel Foucault, Discipline and Punish: The Birth of the Prison, tradução para inglês por Alan
Sheridan (Nova Iorque: Vintage Books, 1978).
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