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A REVOLUCAO DE 1930 E A ULTURA AntOnio Candido pitt wee bi em c= "Nos patses subdesenvelvides, 0 equipa ERMA ple" mento cultural se limita geralmente a magio estavam clazos nos anos 20, quan- do muitos deles se definiram e manic festaram, Mas como fenémenos isolados, Mo efreulas muito pequenos e classes médias 1229 rudimentares. Com freguencia consiste em apenas. alguns poucos difusores consumidores, ligados pela educasdo aos Imecanismos culturais de nagdes mais de senvolvidas. Esses desventurados eleitos (hese unhappy few) formam o tinico piblico dispontvel para os produtos servigos culturais". — C, Wright Mills vuem viven nos anos 30 sabe qual foi a atmosfera de fer- Yor que os caracterizou no pla no da cultura, sem falar de ou- ‘ros, O movimento de outubro nao foi ‘um comego absoluto nem uma causa pri- meira © mecanica, porque na histéria rio ha dessas coisas, Mas foi um eixo ¢ tum catalisador: um eixo em toro do qual girou de certo modo a cultura bra sileira, catalisando elementos disperses para dispé-los numa configuragio nova Neste. sentido foi um marco hist6rico, dagueles que fazem sentir Vivamente que hhouve um “antes” diferente de um “de- pois”, Em grande parte porque gerou ‘um movimento de unificagao cultural, projetando na escala da nagdo fates que antes ocorriam no ambito das regives. [A este aspecto integrador é preciso jun- {ar outzo, igualmente importante: 0 Sur gimento de condigées para realizar, di- fundir e “normalizar” uma série de as. piragées, inovagées, pressentimentos ge- rados no decénio de 1920, que tinha si- do uma sementeira de grandes ¢ intime- ras mudancas Com efeito, os fermentos de transfor- parecendo arbitrdrios e sem necessida- Ge real, vistos pela maioria da opinido com desconfianga © mesmo animo agres- sivo. Depois de 1930 eles se tornaram AUG certo ponto "normais", como [alos de cultura com os quais a sociedade aprende @ conviver e, em muitos casos, passa a accitar ¢ apreciar. Pode-se dizer portanto, que sofferam um processo de rotinizagio", mais ou menos no senti- do em que Max Weber usou esta pala yea para estudar as transformayoes do earisma. Nao se pode, € claro, falar em socializagio ou coletivizagao da cultura artistica e intelectual, porque no Brasil as stias manifestagdes em nivel erudito so Go restritas quantitativamente, que vio pouco além da pequena minoria qy as pode fruir. Mas levando em conta es- @ contingéncia, devida ao desnivel de uma sociedade (errivelmente espoliado- ra, nao ha divida que depois de 1930 houve alaggamento de participagio den- two do Ambito existente, que por sua vez se ampliou, Isto ocorteu em diversos set tuugdo publica, vida artistica ¢ literéia, estudos histéricos © sociais, meios de di- fusio cultural como o livro © 0 radio (que teve desenvolvimente espetaclar), Tudo ligado a uma correlagao nova en- tte, de um lado, o intelectual ¢ o artista do outro, a sociedade e 0 estado — de~ vido 4s novas condigdes econdmico-so- ciais. E também & surpreendente toma- da de conscigncia ideolégica de intelec~ tuais ¢ artistas, numa radicalizagio que antes era quase inexistente, Os anos 30 z AREVOLUCKO DE 1930.8 A CULTURA 8 foram de engajamento politico, religio- soe social no campo da cultura. Mesmo ‘5 que nao se definiam explicitamente, ¢ até 05 que nao tinham consciéneia clara do fato, manifestaram na sua obra esse tipo de insergdo ideoldgica, que dé con- torno especial & fisionomia do perfodo. caso do ensino € significative. Nao foi o movimento revoli- ciondrio de 30 que comesou as reformas; mas ele propiciou a sua extensio por todo 0 pais. Antes hou- vera reformas locais, iniciadas pela de Sampaio Doria em So Paulo (1920), que introduziu a modernizagao dos mé todos pedagégicos e procurou tomar rea lidade © ensino primario obrigatério, com notavel incremento de escolas ru. rais, Outras reformas localizadas foram as de Lourenco Filho no Cearé (1924), a de Francisco Campos em Minas (1927), a de Fernando de Azevedo no entio Distrito Federal (1928). Todas clas visavam a renovagio pedagogica con- substanciada na designa¢ao de “escola nova", que representava.posig# avan- ada no liberalismo educacional, ¢ que por isso foi combatida as vezes vielen tamente pela Igreja, entao muito aferra- dda ndo apenas a0 ensino religioso, mas a métodos Uadicionais. Ora, 4 escola pt bilica leiga pretendia formar mais 0 “ci- dadio" do que o "fiel", com base num aprendizado pela experigncia e a obser vagio que descartava 0 dogmatismo, Is to pareceu & maioria dos cat6licos o pr prio mal, porque segundo eles favorecia perigosamente o individualismo raciona- Tista ou uma concepea0 materialista iconoclasta, Nao faltoa quem falasse em "polchevizagao do ensino" a propésito da reforma corajosa ¢ brilhante de Fer~ nando de Azevedo, As idéias e aspiragées dos grupos re formadores nos anos 20 se encontram no lio A educagdn publica em Sao Paulo (2937), que contém os resultadas do in guérito feito por Femando de Azevedo em 1926 ¢ publicado entao em jornal. Nele podemos ver inclusive 0 grande de- sejo de criar a universidade, cimentada e coroada pelas faculdades de filosotia, cigneias, letras e educagio — 0 que ocor- reria depois de 1930. © Governo Provisério instalado nesse ano criow imediatamente o Ministério de EdueagZo ¢ Satie, conftado a0 reforma- dor da instrugio publica em Minas, Fran cisco Campos. Este promoveu ato conti ‘nuo, mas agora em escala nacional, a re~ forma que traz 0 seu nome e procurava eslabelecer em todo 0 pafs algumas das idéias e experitncias da pedagogia © da filesofia educacional dos “escola-novis- las", Assim, a inlegragio e a generaliza- edo, jf mencionadas, eram promovidas, como resposta @ todo'o movimento reno- vador dos anos 20, Os ideais dos educadores, desabrocha- dos depois de 1930, pressupunham de tum lado a difusio da instrugdo elemen- tar que, conjugada ao voto secreto (um dos principais t6picos no programa da Alianga Liberal), deveria formar cida- 20s capazes de escolher bem os seus di- rigentes; de outro lado, pressupunham a redefinigio ¢ 0 aumento das carreiras de nivel superior, visando renovar a for- magdo das elites dirigentes e seus qua- dros. téenicos; mas. agora, com_maiores ‘oportunidades de diversificagio © classi- flcarao social. Tratava-se de ampliar e ‘melhorar" 0 recrutamento da massa vo- ante, e de enriquecer a composigao da clite votada. Portanto, ndo era uma re- yolueao educacional, mas wma reforma ampla, pois no que concerne a0 grosso a populaséo a siluacio pouco se alterou. Nés sabemos que (a0 contririo do que pensavam aqueles liberais) as reformas ha educagio néo geram mudangas essen- ciais na sociedade, porque nio modificam a sua estrutura e 0 saber continua mais fou menos como privilégio. Si as revo- lugdes verdadeiras que possibilitam as reformas do ensino em profundidade, de manera a tornd-lo acessivel a todos, pro- movendo a igualitarizagio das oportini- dades, Na América Latina, até hoje isto s6 ocorreu em Cuba a partir de 1959, Quanto 20 Brasil, quinze ow vinte anos apés 0 movimento revolucionério de 1930, © apesar do progresso. havido, as ‘oportunidades mais modestas ainda exam inrisérias, bastando mencionar que no Secénio de 1940 os indices mais altos de escolarizagao primétia (isto 6, 0 mimero de criangas em idade escolar frequen tando efetivamente escolas) eram os de Santa Catazina e Séo Paulo, respectiva- mente 42% ¢ 40%. Mas houve sem dvida aumento pon- derdvel de escolus médias, bem como do ensino técnico sistematizado. Ea situa- eo se tornou mais favorivel no ensino Superior, onde a criagio das universida- des (a partir da de S20 Paulo em 1934) alterou 0 esquema tradicional das elites, A pritica anterior de criar faculdades isoladas fazia com que cada uma adgui- NOVOS ESTUDOS Ni 4 ee fie $0) ae Bris ee ABRIL DE 1986 risse importincia equivalente a0 papel dos seus graduados na vida politica administrativa do pais, onde os diplo- mas de bacharel em direito, doutor em medicina © engenheiro conferiam uma espécie de nobreza funcional na socieda- de de mentalidade ainda meio estamen- lal, empurrando para baixo a arraia mi dda das outras escolas superiares. No de- e&nio de 1920 foram fundadas algumas universidades nominais, isto é, que ape- nas davam um nome nove a justaposicao de unidades preexistentes. As que se fun- ddaram no decénio de 1930 estabeleceram um padrio inédito, pela idéia organica que pressupunham'e que dependia das novas faculdades de filosofia, Equipadas para a pesquisa nas cigncias fisicas, natu fais ¢ bumanas, estas liraram um pouco dda aura “cientifica” das grandes escolas profissionais ¢ dignificaram as "peque- as’ (farmécia, odontologia, agronomia, veterinétia), atuando como elemento aglutinador. Esborou-se entio um “siste- ma", onde as partes deveriam funcionar em vista do todo, com atenuagao das hie- rarquias ¢ ampliagao dos grupos de elite com formasio superior. Houve assim tuma espécie de "democratizagio” dentro dos setores privilegiados. com ascensto ddos seus estratos menos favorecidas. Sem conlar que algumas faculdades de filoso- fia © economia (estas, mais recentes) eferuaram uma relativa radicalizagao das titudes © concepedes, devido a difusio das cigncias sociais e humanas, que leva- ram 0 espitito critico a dominios onde reinavam a tradigao e 0 dagmatismo, fas artes e na literatura foram ‘mais flagrantes do que em qualquer outze campo cultu- ral a “normalizagao" © a "ge- neralizagiéo” dos fermentos renovadores, gue nos anos 20 tinam assumido 0 ca: riter excepcional, restrito ¢ contunden- te préprio das vanguardas, ferindo de modo cru os hébitos estabelecidos. Nos anos 30 houve sob este aspecto uma per- da de auréola do modernismo, propor- cional 4 sua relativa incorporagao aos bbitos artisticos ¢ literizios.” Nao es- guegamos que o Hino da Revolugio de 1930 € de Villa Lobos, misico de van- guarda que encontrou grande apoio na fera de Vargas", quando foi de algum modo oficializado e dirigiu 0 movimento de canto coral. De 1931 6 0 38.° Salio da Escola Na- sional de Belas Artes, organizado por Lécio Costa, que chamou pela primeira ver para esse certame os artistas de van- guarda, provocando reagées de escanda- Izada ‘indignacdo academica.’ A Licio Costa ¢ Oscar Niemeyer seria confiado por Gustavo Capanema 0 projeto do edi- Ticio do Ministério de i de, em cujas paredes| pintou os seus murais © para cuja entra- da se encomendou a Bruno Giorgi o mo- aumento da mocidade. Houve portanto na arguitetura uma espécie de sangao oficial do modernismo, que correspondia A aceilagio progressiva pelo gosto mé- dio, a partir das primeiras residéncias tragadas por Warchavchik ¢ Rino Levi nos anos 20, 0 "estilo futurista” néo apenas se difundiria, mas receberia a consagracdo do mau gosto nas inumerd- veis casas quadradas, brilhantes de mi- cea, que se espalharam por todo o pats. ‘Tomando por amostra a literatura, ve- sificam-se nela alguns tragos que, embo- ra caracteristicos do perfodo aberto pelo movimento revolucionério, sie na maio- a “alvalizagdes" (no sentido de "pas- sagem da poténcia a0 ato") daquilo que se esbogara ou definira nos anos 20. E © caso do enfraquecimento. progressive da literatura académica; da aceitagio onsciente ou inconsciente das inovagoes formais ¢ teméticas; do alargamento das literaturas regionais" 4 escala nacional da polarizagao idealégica. Até 1930 a literatura predominante © mais aceita se ajustava a uma ideologia de permanéncia, representada sobzetudo pelo purismo gramatical, que tendia no limite a cristalizar a lingua e adotar co- mo modelo a literatura portuguesa. Isto correspondia as expectativas oficiais de uma cultura de fachada, feita para ser vista pelos estrangeiros, como era em parte a da Reptblica Velha. Ela tina encontrado 0 seu propagandista no Bario do Rio Branco, o seu modelo no estilo dde Rui Barbosa ¢ a sua instituigao sim- bélica na Academia Brasileira de Letras, ainda preponderante no decénio de 1920 fapesar dos ataques dos modernistas (estes pareciam, ent@o, uma excentricidade tran- sitéria), Mas a partir de 1930 a Acade- mia foi-se tornando o que € hoje: um clube de intelectuais e similares, sem maior repercussao ou influéneia no vivo do movimento literdrio. A incorporagio das inovagées formais © temiticas do modernismo ocorreu em dois niveis: um nivel especifico, no qual clas foram adotadas, alterando essencial- mente a fisionomia da obra; e um nivel 2» [AREVOLUEAO DE 180 A CULTURA + onauss tm i Ss cn 1 kena sgenérico, no qual elas estimulavam a re- jeiedo dos velhos padrdes. Gracas a isto, rio decénio de 1930 0 inconfarmismo € 0 anticonvencionalismo se tomaram um di- reito, no uma transgressdo, fato noté- ro mesmo nos que ignoravam, repeliam fou passavam longe do modernismo, Na verdade, quase todos os escritores de qualidade acabaram escrevendo como be- neficidrios da libertacio operada pelos modernistas, que acarretava a depuracao antioratéria da linguagem, com a busca de uma simplificagao crescente ¢ dos tor- neios cologuiais que rompem o tipo an- terior de artificialismo, Assim, a excrita de um Graciliano Ramos ou de um Dic- nélio Machado ("elassicas" de algum mo- do), embora nao sofrendo a influéncia modemista, pode ser aceita como "nor mal” porque a sua despojada secura tinha sido fambém assegurada pela libertagao gue o modernismo efetuot, Na poesia a libertagao foi mais geral f atuante, na medida em que os modes ttadicionais ficaram invidveis © pratica- mente todos os poetas que tinham alga ‘ma coisa a dizer entraram pelo verso li- ‘re ou a livre utilizacdo dos metos, ajus- tando-os a0 anti-sentimentalismo © 3 an- lignfase. Os decénios de 1930 ¢ 1940 assistizam A consolidagio ¢ difusio da poética modernista, ¢ também & produ ‘io madura de alguns dos seus préceres, Gomo por exemplo Manuel Bandeira ¢ Mario de Andrade. Essas coisas repercutiram na instrusio, ¢ as reformas educacionais favoreceram ‘a modernizagao na eseolha de textos pa- rao ensino, ¢ na mancira de os tratar Embora s6 nos nossos dias a literatura realmente contempordnea tenha predo- rminado nesse setor, as coisas comegaram ‘a mudar nos anos de 1930, podendo ser- vir de exemplo a Antologia da lingua portuguesa, de Estevio Cruz (1933), ex- Celente e inovadora (nas primeiras edi- ges), apesar do cunho ideologicamente Conservader Bla foi a primeira a incluir autores considerados modernistas (Alceu Amo- roso Lima, Agripino Grieco, Graga Ara- ha, Mério de Andrade, Manuel Ban- eira, Jorge de Lima), juntando aos tex- {os subsfdios importantes para a andise Gragas a isto, pela primeira vez os auto- res ¢ as teorias da vanguarda foram pro- postos em dose apreciavel a professores ¢ alunos do curso secundirio, ficando as sim em pé de igualdade com os da tradi- co literéria da lingua, ‘Trago interessante ligado as condiges especificas do decénio de 1930 foi a ex- tensio das literaturas regionais, © sua transformagio em modalidades expressi- vas cuje Ambito ¢ significado se toma- ram nacionais, como se fossem coextensi- vos a propria literatura brasileira © caso do "romance do Nordeste’ considerado naquela altura pela média da opiniio como o romance por exce- encia, A sua voga provém em parte do fato de radicar na linba da fieeao regional (embora _nio "regionalista", no sentido piloresco), feita agora com uma liber- dade de narragao ¢ linguagem antes des- conhecida, Mas deriva também do fate de todo 0 pais ter tomado consciéncia de uma parte vital, o Nordeste, represen- tado na sua realidade viva pela literatu Coisa igual se pode dizer da produeao do Rio Grande do Sul, tanto a “gaticha quanto @ oulra, modernista ou simples- mente urbana, Num estudo sugestivo, Ligia Chiappini Moraes Leite mostrou como a projecao politica do Estado, de- pois e por causa do movimento revelu- Gionério de 1930, acartetou a projecio triunfal da sua literatura, conhecida © accita por todo o pais, em cuja vida in- {electual o Rio Grande tinha sido até entao uma presenga episédica © margi- nal, porque relativamente fechada sobre Foi com efeito notivel a interpenetra- gio literéria em todo o Brasil depois de 30, quando um jovem, digamos do inte- rior de Minas, Ja vivendo numa expe- rigncia feérica ¢ real « Bahia de Jorge Amado, a Paraiba ou o Recife de José Lins do Rego. a Aracaju de Amando Fontes, a Amazénia de Abguar Bastos, Belo Horizonte de Ciro dos Anjos, a Porto Alegre de Erico Verissime ou Dio- nélio Machado, a cidade cujo rio imita- va o Reno, de Viana Moog. Foi como se a literatura tivesse desenvolvide pare 0 Ieitor uma visio renovada, nio-coaven- sional, do seu pals, visto como um con- junto diversifieado mas solidsio. ‘omo decorténcia do movimen- to revolucionério © das suas ceausas, mas também do que acontecia mais ov menos no mesmo sentido na Europa ¢ nos Esta- dos Unidos, houve nos anos 30 uma espécie de convivio intimo entre a lite- ratura ¢ as ideologias politicas ¢ religion sas, Isto, que antes eta excepcional no Brasil, se generalizou naquela altura a onto de haver polarizagao dos intelec- Novos EsTUDOs N4 ee Means Beh Bk Seat ie presto ea eyo ABRIL DE 1984 tuais nos casos mais definidos ¢ explici- tos, a saber, 0s que oplavam pelo co ‘munismo ou o fascismo. Mesmo quando io ocortia esta definigdo extrema, © ‘mesmo quando 0s intelectuais nao tinham consciéncia clara dos matizes ideolégicos, hhouve penetracio difusa das preocups Ges socials ¢ Teligiosas nos textos, como viria a ocorrer de novo nos nossos dias, cem termos diversos e maior intensidade Naguela altura o catolicismo se tornou uma fé renovada, um estado de espitito fe uma dimensio esiélica, "Deus esté na moda”, disse com razdo André Gide em relaga0 ao que ocorria na Franga ¢ era verdade também para o Brasil. Os anos de 1930 viram frulificar as sementes Tangadas por Jackson de Figueiredo no decénio anterior, com a fundagao da re- vista Ordem (1921), do Centro Dom Vi tal (1922) e a momentosa conversdo de Alceu Amoroso Lima em 1928, De 1932 € a Acio Caldlica, feita para suscilar a militancia dos leigos, ¢ da mesma época sfo as primeiras Equipes Sociais, inspi- radas pelo professor ¢ critico francés Ro- bert Garric, que orientou o trabalho des- sas misses leigas nas favelas do Rio de Janeizo, ‘Além do engajamento espiritual © so- ial dos intelectuais catélicos, houve na literatura algo mais difuso ¢ insinuante: a busca de uma tonalidade espiritualista de tensfo € mistério, que sugerisse, de tum lado, 0 inefével, de outro, o fervor: © que aparece em autores tio diversos quanto Octavio de Faria, Liicio Cardoso, Comnélio Pena, na ficgio; ou Augusto Frederico Schmidt, Jorge de Lima, Muri- lo Mendes, primeizo Vinicius de Mo- raes, na poesia. Na eritica e no ensaio isto se traduziu num gosto paralelo pela ssquisa da “esséncia", 0 "sentido", a ‘a “mensagem”, ‘drama” — numa espécie de jo amplificadora e ardente. Muitas vezes 0 espiritualismo catélico levou no Brasil dos anos 30 & simpatia pelas solugdes politicas de direita, e mes- ‘mo fascistas, como foi o caso do Inte- gralismo, cujo fundador, Plinio Salgado, modemista e participante do movimento esiético renovador, aliow a doutrinagio a uma atividade literéria de certo inte- resse. E 6 curioso notar que as opgées desse tipo foram favorecidas pela combi- ago de catolicismo, simbolismo e semi- modermismo nacionalista, como nos casos de Tasso da Silveira, Andrade Muricy, Mansueto Bernardi e, com alguma varia~ go de componentes, o citado Schmidt. dncia", 0 Sem o sentimentalismo desta corrente, antes com dureza polémica, destacou-se 4 linha critica e politica de Octavio de Faria, autor de importantes ensaios pa rafascislas. J4 outros te6ricos de direita nada Gnbam de religioso, como Oliveira Viana e Avevedo Amaral Simetricamente, os anos 30 viram um grande interesse pelas correntes de es- querda, como se pode ver no éxito da AAlianga Nacional Libertadora e certo es- pio genérico de radicalismo, que pro- Yocou as repressdes posteriores a0 le- vante de 1935 ¢ serviu como uma das justificativas do golpe de 1937, Muita gente se interessou pela experiéncia da Unito Soviética, e as livearias pululavam de livrgs a respeito, estrangciros © na- cionais.’ Hstes, devidos a observadores entusiastas, como Caio Prado Junior simpaticos, como Mauricio de Medeiros, ou reticentes, como Gondim dz Fonse~ ca, Editoras pequenas ¢ esforgadas di- vulgavam obras sobre anarquisme, mar- xismo, sindicalismo, movimento oper: Ho. Algumas, de grande éxito, como a Histiria do socialismo e das lutas sociais, de Max Beer, 0 ABC do comunismo, de Bukarin, ou 0 famoso Dez dias que aba- laram mundo, de John Reed. Ao lado, tuadugdes de narradores engajados na esquerda, como Boris Pilniak, Panai Is- trati, Tia Ehrenburg, Fiodor Gladkov, Michael Gold, Upton Sinclair, Jack London. Surgem entdo os primeiros livros bra- sileiros de orientagao marxista: 0 polé- mico Maud, de Castro Rebelo (1932), © sobretudo Evolupdo politica do Brasil, de Caio Prado Kinior (1934). E assim como o espixitualismo atingiu largos se- {ores ndo-religiosos, o marxismo reper- ccutiu em ensaistas, estudiosos, ficcionis- tas que néo eram socialistas nem comu- nistas, mas se impregnaram da atmosfe- ra “social” do tempo. Daf a voga de no- des como "Iuta de classes", "espolia- G20", “mais valia", "moral “burguesa’, proletariado”, ligados & insatisfagao dic fusa com o sistema social dominaate. Fo- ram muitos os escritores declaradamente de esquerda, como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Ab- guar Bastos, Dionélio Machado, Oswald de Andrade: ou simpatizantes, como Mé- rio de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego (este, ex-in- tegralista); ov que nfo eram uma coisa em oulra, mas manifestaram a referida consciéncia "social", que os punha um rau além do liberalismo que os anima- 3 AREVOLUCKO DE 1990 EA CULTURA va no plano consciente, como rico Ve- Hssimo, Amando Fontes, Guilhermine César. alvez essa radicalizagao ainda tenha sido. mais nitida num certo sentido préprio daquela fase, que consistia em procurar uma atitude de anilise ¢ critica em face do que se chamava incansavelmente a 'realidade brasileira" (um dos concei- tos-chave do momento). Ela se encamou nos "estudos brasileiros" de histéria, politica, sociologia, antropologia, que ti Veram incremento notivel, refletide nas ccolegées dedicadas a cles, Antes de qual- quer outra a "Brasiliana’, fundada e di- rigida por Fernando de Azevedo na Com- panhia Editora Nacional; ¢ ainda: “Co- legdo azul", da editora Schmidt; "Pro- blemas politicos contemporineos” ¢ ‘Documentos brasileiros’, de José Olympio (esta, dirigida primeiro por Gil- berto Freyre © depois por Octavio Tar quinio de Sousa, ainda existe sob a dire {do de Afonso Arinos de Melo Franco); "Biblioteca de divulgagio cientifica’, dic rigida por Artur Ramos na Editora Civi- lizagao Brasileira, etc Deixando de lado o cunho mais con- servador de algumas destas colegées ¢ de obras isoladas, digamos que a radica lizagdo propriamente dita, critica © "pro- sgressista”, teve como tragos mais salien- fes, além da "conscigneia social", a ansia de reinterpretar 0 passado nacional, 0 in- teresse pelos estudos sobre 0 negro ¢ 0 empenho em explicar os fatos politicos do momento. Quanto ao negro, so mencionar a iniciativa cultural dos proprios "homens de cor”, que inclusive riaram entio uma imprensa muito ativa, rio raro ligada a organizagées, como a Frente Negra Brasileira. No dominio dos, estudes foi decisiva a conteibuicio de Gilberto Freyre, a partir de Casa Gran- de e Senzala (1933) © do 1.° Congresso Afro-Brasileito, que ele organizou no Re cife em 1934, Antes houvera os traba- Thos da escola de Nina Rodrigues na Baia, sobretudo os de Artur Ramos, que se tornou a grande autoridade nama tézia Com referéncia & interpretagéo hist6- rica, 0 livro de Gilberto Freyre (apesar do. peso saudosista de uma visio arist crética) funcionou como fermento radic lizante, modificando © enfoque racista © convencional reinante até entio, sobre- tudo pela escola inovadora dos instru- mentos de anélise, bem como das do- cumentos ¢ fatos a estudar (papéis {ntimos, jornais; moda. alimentagao, ma- neiras, vida sexual, etc). Discreta mas segura foi a contribuigio de Sérgio Buar- que de Holanda em Rafzes do Brasil (1935), que efetuou uma critica muito aguda das solugées autoritrias do. pas- sado ¢ do presente, ao mesmo tempo que quebrava o sentimentalismo lus6filo asivel em Gilberto Freyre) © punha em vida a capacidade das elites para 0 pel que se arrogavam, e que era um dos temas dominantes do momento © aparecimento de Formasdo do Bre sil Contempordneo, de Caio Prado Té- nior, em 1942, foi uma espécie de culmi- nagao desse movimento cultural pois, ba- seando-se no marxismo, deu realce & vi- da econdmica ¢ chamou a atengae para as formas oprimidas do trabalho de um ngulo esiriamente econémico, Ao mes- tempo desmistificava a aura que en- volvia certos conceitos como "patti cado” ou “elite rural", apresentando uma visio ae mesmo tempo abjetiva ¢ radical, que encama as tendéncias mais avangadas do pensamento renovador dos anos 30. Lembre-se nesta chave o papel dos re- cém-fundados cursos superiores de filo- sofia, ciéucias sociais, histéria, letas, them como a difusio do ensino da socio- logis no nivel médio, Isto contribuiu pa- ra desenvolver 0 espirito analitico nos estudos sobre 0 Brasil, com incremento do interesse pelos grupos alé entio me- nnos estudados, ov estudados com ilusées Neste campo foi decisiva a contribuig de professores e pesquisadores estran- ‘geiros, temporéria ou definitivamente 1a dicados no Brasil, como Samuel Lowrie, Claude Lévi-Strauss, Donald Pierson, Roger Bastide, Herbert Baldus, Pierre Deffontaines, Pierre Monbeig, ‘Jacques Lambert, Emilio Willems, ete 5 mudangas na educa literatura © nos estudos brasi- leiros repercutiram na indds- tia do livro, desde © projeto gréfico até a difusdo; mas sobretudo quanto & matéria preferencial das suas péginas, cada vez mais receptivas 0s au- ores novos integrados nas tendéncias do momento, Pode-se dizer que, reciproca- mente, essas tendéncias foram estimula- das pelo livro renovado, na medida em Novos ESTUDOS N4 ue os autores procuravam se ajustar & preferéncia da moda e dos editores — como, por exemplo, o "romance social © 0s estudos brasileiros. (Em meados do decénio de 1930 Plinio Barreto péde eserever que assim como na geragio an {erior os jovens procuravam se_afirmar através de um livro inaugural de versos, fs de entao tendiam a fazé-lo por meio do ensaio de cunho sociolégico.) Ainda aqui estamos ante um processo comecado nos anos 20, quando Monteiro Lobato fundou e desenvolveu a sua od tora, marcada por alguns tragos inovado- res: preferéncia quase exclusiva por au tores brasileiros do. presente; interesse ppelos problemas da hora; busca de uma fisionomia material propria, diferente dos tradicionais padroes franceses e por- tugueses; esforgo para vender por pre- gos acessiveis sem quebra da qualidade editorial. Mas s6 depois de 1930 se ge- neralizaria em grande escala este desejo de nacionalizar 0 livro e torné-lo instru- mento da cultura mais viva do pais. As editoras procuraram inclusive ciiar uma literatura didatica ajustada aos novos programas e aos ideais das reformas edu cacionais. Consolidou-se deste modo o livro escolar brasileiro para o nivel mé- dio, atento is necessidades imediatas da nossa cultura e procurando substituir a Classica bibliogralia estrangeira do po colegées de RTD. ¢ LC, série Royal Readers, histéria de Raposo Botelho, matemética de Comberousse, fisica de Ganot (ou do seu mau adaptador portu- gués Nobre), quimica de Bazin, geologia de Lapparent, histéria natural de Pizon, ete, etc. A abrigacao do curso seriado {anterior 4 Reforma Campos) propiciou © aparecimento de séries de livros para as diferentes matérias, que antes existiam sobretudo para o ensino primétio de por- lugugs e histéria patria, Neste sentido destaca-se a atividade da Companhia Bditora Nacional, de Paulo, sucestora de Monteiro Lobato & Cia, Conservadora em literatura, public cou apenas os novos menos avangados (Guitherme de Almeida, Cassiano Ricar- do, Menotti del Picchia, Ribeiro Couto) ‘Mas foi longe noutros terrenos, como se comprova pela famosa "Biblioteca Peda- g6gica Brasileira”, talvez 0 mais notével empreendimento editorial que © pals co- nheceu até hoje. Ideada ¢ durante mvito tempo dirigida por Femando de Azeve- do, abrangia colegdes de livros didaticos, atualidades pedagogicas, divalgagio cien- tifica, literatura infantil e estudos brasi- leicos. Bstestltimos constitiram a "Bra- sila’, ainda em atividade, que foi um marco decisive néo apenas pela ree ‘io de cléssicos estrangeiros € nacionais, mas pelo estimulo aos contemporancos. Tmportante foi 4 atuacio da Editors Gobo, de Porto Alegre, que passou do livro didatico para a hteratura, divulgan- do os novos valores do Rio Grande do Sule uma quantidade de autores estrane ciros contemporineos. tudo isso com a Golaboragio de Erico’ Verissimo como onselbeizo editorial ¢ tradutor. A. Glo- bo distrbuia gratuitamente, a titulo de propaganda, 0 folheto periddico Preto ¢ Branco, que desempenhou uma boa ta refa de popularizacdo cultural pelo pals afora, gragas as noticias informativas © sritcas sobre cseritores brasieitos © es tangeizos editados pela casa. No. getal, gente pouco difundida antes, como Jo- Seph Conrad, Thomas Mann, Somerset Maugham, Aldous Husley, Lion Feuch- twanger, William Faulkner, Charles Morgan, Rosamond Lehman, Sinclair Le- wis, Emst Glasser, etc, ele. Mais tarde cla chegasia aos empreendimentos monue Imeniais que foram a taducao da Come dia Humana, de Balzac (sob a dtesa0 de Paulo Rénai) e de A busca do tempo perdido, de Marcel Proust No Rio algumas pequenas editoras exerceram papel importante: Adersen, Schmidt, Ariel (que publicava 0 famoso Boletim), seguidas logo depeis por uma grande editors, sob vies aspectos mais Caracteristica do perfodo — José Olym- pio. Estas casas Gonfiaram abertamente ho autor nacional jovem , asim, perme tram a difusio da literature moderna Confiaram também nos jovens artistas aque trouxeram pera as capas e ilustra- Bes as conguistas das artes visuais do Alecénio anterior, incorporando i sensi- bilidade média 0 que antes ficara conte ado aos. amadores esclarecidos. Assim, insensivelmente 0 leitor se familisrizou com o cubismo, 6 primitivismo, o suzrea- lismo, as estlizagdes do realismo — nas capas de Santa Rose, Cicero Diss, Jorge de Lima, Cornélio Pena, Fulvio Pea- hacchi, Clovis Graciano, Jodo Fahzion Edgard Koctz © autres, para clas © av teas editoras, Nos anos 20 isto ocorrera cm eseala bem restita, através de algu- dnas capas de Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Brecheret, Flivio de Carvalho para uss poucos livros de Maio de Ane dade, Oswald de Andrade, Raul Bopp No’ centro deste movimento, Toss Olympio pode Ser considerado veidadei- 3 AREVOLUCAO DE 1st0 BACULTURA u 10 heréi cultural, pelo arrojo e a ampli tude com que estimulou e editou os no- ‘vos, bem como pelo estilo das capas de suas edigdes, criadas sobretudo por San- ta Rosa em suas diversas fases. A man- cha colorida com 0 desenho central em branco ¢ preto se tornou nos anos 30, por todo 6 pais, 0 simbolo da renovaca0 incorporada ao gosto publico. Como uma espécie de iha artesanal graficamente conservadora nessa onda de industrializasio © alualizasio edito- rial, funcionou em Belo Horizonte, por iniciativa de Eduardo Frieizo, a princi- pio a Pindorama, depois a Amigos do Livro, mantidas por cotizagées mensais que davam direito a edicao periédica de tum volume, Deste modo foram editadas flgumas obras importantes de Carlos Drummond de Andrade, Joao Alphon- sus, Emilio Moura, Ciro dos Anjos etc © mancira geral a repercussio do movimento revolucionério de 1930 na cultura foi posi- tiva, Comparada com a de an- es a situagio nova representow grande progresso, embora tenba sido pouco, em face do que se esperaria de uma verda- deira revolugio. Se pensarmos no "povo pobre" (como ditia Joaquim Manuel de Macedo}, ou seja, na maioria absoluta dda nagio, foi quase nada, Mesmo pondo centre parénteses as modificagées que po- deviam ter ocorrido na estrutura econé- ica ¢ social, para ele o que se imptnha cra a implantagao real da instrugio pri- imiria, com porsibilidade de acesvo futu- 10 a0 outros aniveis; ¢ ela continuou a atingi-lo apenas de raspio. Mas se pen- sarmos nas camadas intermedidrias (que aumentaram de volume ¢ participagie social depois de 1930), a melhora foi sensivel gracas a difusio do ensino mé- dio © técnico, que aumentou as suas pos- sibilidades dé afirmagao e realizacao, de acordo com as necessidades novas do de- senvolvimento econémico. Se, finalmen- te, pensarmos nas chamadas elites, veri- ficaremos 0 grande ineremento de’ opor- tunidades para ampliar e aprofundar a cexperigncia cultural, inclusive com agui- sigio de um corte progressista por alguns dos seus setores. Este fato nfo poderia deixar de repercutir na sociedade por causa do papel que as elites desempe- nhavam, muito grande devide extrema privasao cultural do pais. A qualidade ¢ rau de conscigncia dos detentores da altura ¢ do saber tornavam-se elemen- tos de peso, porque eles podiam assu- 2 funcdo de “delegados” da coletivi- dade, De um lado isto servia de pretexto para manter posigées privilegiadas, com A consequente sujeigao das camadas do- minadas (que nao cram cultas, nem "pre- paradas" para dirigit 0 seu destino, se- guado a ideologia reinante). Mas’ sob © ponto de vista estritamente cultural, podia ser oportunidade de servir como Yvefculo possivel para manifestar os in- teresses € necessidades de expressio des- tas camadas, Desde 0 pensador politico gue formula um ideério radical, até 0 artista que constr6i estruturas por meio das quais se manifesta o humano, acima dos interesses de classe, muitos setores ddas elites puderam (e podem) encontrar uma alta justificativa para a sua ativi- dade, Além disso, depois de 1930 se esbo- ou uma mentalidade mais democratica a respeito da cultura, que comesou a ser vista, pelo menos em ese, como direito de todos, contrastande com a visio de tipo aristocritico que sempre havia pre~ dominado no Brasil, com uma tangiili- dade de conscigncia que ndo perturbava a paz de espirito de quase ninguém. Pa- ra esta visio tradicional, as formas ele~ vadas de cultura erudita eram destin. das apenas as elites, como equipamen- to (que se transformava em direito) pa ra. a "missio" que hes competia, em lugar do povo e em seu nome. © novo modo de ver, mesmo discre- tamente manifestado, pressupunba uma ‘desaristocratizagao" (com perdio da md palavra) tinha aspectos radicals que rio cessariam de se reforgar até nossos dias, desvendando cada vez mais as con- tuadigées entre as formulagdes idealistas dda cultura e a terrivel realidade da sua fruigdo ultrz-restrita, Por extensio, hou- ve maior conscigncia a respeito das con- tuadigdes da pr6pria sociedade, podendo- se dizer que sob este aspecto os anos 30 abrem a fase moderna nas concepgses de cultura no Brasil Uma das consequéncias foi o conceito de intelectual ¢ artista como opositer, ou seja, que o seu lugar é no lado oposto da ordem estabelecida; © que faz parte da sua natureza adotar uma posicdo cri tica em face dos regimes autoritarios € dda mentalidade conservadora No entanto, este processo foi cheio de paradoxos, inclusive porque o intelec- tual co artista foram intensamente cooptados pelos governos posteriores a Novos EsTuDOs N.+4 eda Ba Beta htt pa ABRIL DE 1984 1930, devido ao grande aumento das ati- vidades estatais ¢ as exigéncias de uma crescente racionalizagio burocritica. Nem sempre foi ficil a colaboragao sem sub- missio de um intelectual, cujo grupo se radicalizava, com um Estado de cuno cada ver mais autoritério, Resultaram tenses e acomodagdes, com ineremento da diviséo de paptis no. mesmo indivi- duo. Sérgio Miceli estudou os aspectos externos desta situaco num livro pio- nneiro — a0 qual seria preciso todavia acrescentar que 0 servigo publico nao ignificou e nao significa necessariamen- te identificagao com as ideologias ¢ inte- resses dominantes,’ E que uma anélise mais completa mostra como o artista © fo excritor aparentemente cooptados $0 capazes, pela prépria natureza da sua atividade, de desenvolver_antagonismos objetivos, nao meramente subjetives, com relagdo a ordem estabelecida. A sua margem de oposigao vem da elasticida- de maior ov menor do sistema dominan- te, que os pode tolerar sem que eles dei- xem com isto de exercer a sua fungao corrosiva, Assim, durante a ditadura do Estado Novo, depois de 1937, Candido Portinari, cumprindo encomenda oficial pinto no Ministério de Educagio os fa. oso murais que, pela concepsio, (e- rio e t6enica, cram a negagao do regi- ‘me opressor, a0 mostrarem como repre- sentante da produgio o trabalhador, nao © patrio: © negro, nio 0 branco; © a0 fazé-lo conforme uma fatura que afirma- vva a inovagio criadora contra as normas ttadicionais, de agrado dos poderes. Eo aque sugere Annateresa Fabris numa ani- lise precisa e matizada,* 34 vimos também que muitos intelec- twais significativos daquele- momento, ‘mesmo sem qualquer definigdo ideolégi- ca explicita, participavam dum upo de ‘conscigncia critica identificada aos temas fe alitudes radicais. E que, apesar das dis- ‘repancias (dentro de cada individuo) en- ‘ke estas e os automatismos conservado- res, engrossaram 0 que se poderia cha- mar o “espirito dos anos 30". Sobretu- do levando em conta que gracas a eles se instalon no Brasil uma situagio de ambigtidade que levaria aos esforgos pa ra superé-la ‘Mencionemos, para terminar, algumas consequéncias formals da "consciéncia social” dos escrtores ¢ artistas, que foi bastante caracteristica daquele momen- to, mesmo antes do Congresso de Karkov (1934) ter apresentado 0 "realismo so cialista” como padrio, Trala-se do seguinte: a preocupas absorvente com os. "problemas' ment boragio formal, o que foi negative. Posto em absoluto primeiro plano, 0 ‘problema podia relegar para segundo a sua organizasio esiética, e € 0 que sen- times lendo muitos escriteres e eriticos da época, Chega-se a pensar que para cles nao era necessério, e talver até fos- se prejudicial, fundir de maneira vélida a “matéria" com os requisitos da "fatu- ra", pois esta poderia atrapalhar even- walmente 0 impacto human da outra (quando na verdade é a sua condisi0) Esta atitude, bem caracteristica dos anos 30, se explica em boa parte pela referida passagem do “projeto estético’ 0 "projeto ideoldgico” no proceso mo- dernista (Lafetd) e por af contrasta com a posigdo dos modemnistas do decénio de 1920, baseada no esforso para discernir fa correlagao ms tura. Leia-se, por exemple. a nota prévia de Jorge Amado a Cacau (1953): (da da alma, da sociedade) levou veres a certo desdém pela ela- Tentei contar neste livro,, com um ‘minimo de literatura para um méximo de honestidade, a vida dos trabalha- dores de cacau do sul da Bahia © leitor fica com a impressie que thonestidade” € pouco compativel com literatura’, ¢ que esta (aqui, sindnime de claboragdo formal) tende a ser um embuste que atrapalha 0 enfoque certo dda realidade, Outros autores mostravam {er conscigncia dos requisitos da produ go literéria, mas na prética a sua eseri- {a permanecia no nivel cursive que pare cia ignoré-los — como Abguar Bastos, em cujo romance Safra (1937) hé um Iicido prefécio onde, depois de informar que vai descrever a vida dos apanhado- res de castanha da Amazénia, ponders: Porém, devo advertir 0 seguinte: um romance permite que se the adi- vinkem os planos, quando se trata de reconstituir qualquer fase da existén- ia humana. Mas evita que eles sur- jam, @ flor da texto, com um ar de deliberasao. Sintese de acontecimentos que néo perdem de vista o funda mais nobre ddas suas paisagens: eis 0 romance. As sim send, 0 seu material ndo $6 & in trinseco ao segredo da sua forma, co mo prothe uma seqincia de arte que ndo se revele muito naturalmente Desse modo 0 plano do livro, isto é, a 35 AREVOLUCKO DE 15D EACELTURA 36 sua intengdo social € a sux aparéncia frtistica, se misturam sem que um per- ceba o outro. Nao serd como a dgua © 0 azeite. Serd, antes, como a luz Estas consideragdes_mostram cons- cigncia clara do problema essencial na claboragao literatia; mas _comparadas com a realizagio, em seu autor © muitos ‘outros, ficam mais como alegagio ritual © 08 "planes", (isto €, os intuit, as con. vicgdes) acabam absorvendo 0 resto, co- mo uma "tese" a ser "ilustrada” pela fic gio. Poucos, naquele periodo, tiveram a Capacidade de corresponder a0 programa luagado por Abguar Bastos: Graciliano Ramos, Dionélio Machado, alguns mais. E pouguissimos puderam unir a formula. edo crllica adequada & realizacao cometa, como se observa num veterano do de- cénio precedente, Mario de Andrade. (© que houve mais foi preocupagao de iscutir a pertinéncia dos temas ¢ das alitudes ideolégicas, quase ninguém per- eebendo como uma coisa ¢ ovtra depen- dem da elaboragio formal (estrutural © estilistica), chave do acerlo em arte © literatura. E note-se que isto no foi pré- prio dos escritores ¢ artistas de esquerda, fou radicais no sentido amplo. Ocorreu também nos outros, inclusive os de di- reita, devido ao mesmo desvio obsessive rumo aos "problemas", bastando pensar tho aspecto pouco elaborado de obras am- biciosas ¢ nao desprovidas de forga, co- mo a de Octavio de Faria, que se tor ot um eritico acerbo do modemismo © dos temas "Sociais", defendendo a con- centragao nos de cunho religioso, moral f psicol6gico, que praticava no entanto com total insensibilidade em relagio aos aspectos de fatura. Tanto no caso da #0 espiritualista quanto do "romance focial", a imerséo nos "planos” (senti- do de Abguar Bastas) como aspecto do- ‘minante conduzia a0 espontineo, que no limite € 0 informe Na poesia hove fendmeno paralelo, amas diferente, que foi positive: a tensio entre © verso (elaborado segundo as re- ras) ¢ 0 do-verso (Livre, em vatios sen- fidos). Poetas como Drummond © Mu- silo Mendes pareciam reduzir 0 verso a uma forma nova de expressie, que in corporou as qualidades da prosa e funcio- now como instrumento adequado para exprimir 0 dilaceramento da conscién- cia estética, Sob este aspecto eles prolon- garam a experi@ncia modernista de apa- gamento das fronteiras entze os géneros, ‘que fora empreendida nos anos de 1920 sobretudo por Oswald de Andrade (cujo Serafim Ponte Grande, aliés, foi publi- ‘cado em 1933); © que nos anos 30 en- ‘controu manifestagio curios no irreal zado O Anjo, de Jorge de Lima (1934) © gosta, ou pelo menos @ toleranc pelo informe, 0 nao-artistico (em rela $40 a0s padroes da tradigio ou aos da ‘anguarda), levou por vezes a supervalo- rizar escritores que pareciam ter a vir~ tude do espontaneo; © a nao reconhecer devidamente certas obras de fatura quintada, mas desprovidas de idcologia fostensiva, como Os Ratos, de Dionélio Machado (1935) ou O Amanuense Bel- ‘miro, de Ciro das Anjos (1937). E tal- ‘vex um artista de grande nivel, como Graciliano Ramos, tenha sido mais valo- tizado pelo temitio, considerado incon- formista ¢ contundente, do que pela rara qualidade da fatura, que Ihe permitiu fa ‘er obras realmente validas Post Scriptum — Aqui foram abords- dos alguns aspectos da vida cultural pos- terior a 1930; mas haveria muitos ou- tos, relatives a teatro, rédio, cinema, rmisica, que escapam 4 minha competén- cia, Lembro apenas que na milsica po- pular ocorreu um processo equivalente de “generalizacao" e “normalizaeao", s6 gue a partir das esferas populares, rumo as camadas médias e superiores. Nos anos 30 ¢ 40, por exemplo, 0 samba e a marcha, antes praticamente confinados aos morros © subsrbios do Rio, con- {uistaram o pais e todas as classes, tor. ando-se um pfo-nosso quotidiano de consumo cultural, Enquanto nos anos 20 lum mestze supremo como Sinhé era de atuagio restrita, a partir de 1930 ganha- ram escala nacional homens como Noel Rosa, Ismael Silva, Almirante, Lamarti- re Babo, Joao da Babiana, Néssara, Joao de Barro © muitos outros. Eles foram © grande estimulo para o triunfo avasss- lador da masica poplar nos anos 60, in- clusive de sua interpenetragio com a poe- sia erudita, numa quebra de barzeiras gue é dos fatos mais importantes da nos- 4 cultura contemporinea e comesou @ se definir nos anos 30, com 0 intezesse pelas coisas brasileizas| que sucedeu 20 ‘movimento revolucionéri, ¥.2, 4p, 27-36, br 8 NOVOS ESTUDOS N. 4

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