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4ª prova - Vívian

ANTROPOLÍTICA
Nº 8 1º semestre 2000

ISSN 1414-7378
Antropolítica Niterói n. 8 p. 134 1-100 1. sem. 2000

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4ª prova - Vívian

© 2001 Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da UFF


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A636 Antropolítica : revista contemporânea de Antropologia e Ciência Política. — n. 1


(2. sem. 95) - — Niterói : EdUFF, 1995.
v. : il. ; 23 cm.
Semestral.
Publicação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da
Universidade Federal Fluminense.
ISSN 1414-7378
1. Antropologia Social. 2. Ciência Política. I. Universidade Federal Fluminense.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política.
CDD 300

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4ª prova - Vívian

SUMÁRIO

ARTIGOS

PROLEGÔMENOS SOBRE A VIOLÊNCIA, A POLÍCIA E O ESTADO NA


ERA DA GLOBALIZAÇÃO ................................................................... 7
Daniel dos Santos
GABRIEL TARDE: LE MONDE COMME FEERIE ................................................ 23
Isaac Joseph
ESTRATÉGIAS COLETIVAS E LÓGICAS DE CONSTRUÇÃO DAS ORGANI-
ZAÇÕES DE AGRICULTORES NO NORDESTE SEMI-ÁRIDO ............. 41
Eric Sabourini
CARTÓRIOS: ONDE A TRADIÇÃO TEM REGISTRO PÚBLICO ................ 59
Ana Paula Mendes de Miranda

DO PEQUI À SOJA: EXPANSÃO DA AGRICULTURA E INCORPORAÇÃO DO


BRASIL CENTRAL ................................................................................... 77
Antônio José Escobar Brussi
RESENHA
TERRA SOB ÁGUA – SOCIEDADE E NATUREZA
NAS VÁRZEAS AMAZÔNICAS ........................................................ 107
José Augusto Drummond

DISSERTAÇÕES (INFORMAÇÕES PARA ATUALIZAÇÃO)........................................... 113

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ARTIGOS

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ECONOMI
A 7

EPROLEGÔMENOS SOBRE A VIOLÊNCIA, 1

POAL
POLÍCIA
ÍT IC EA
O ESTADO NA ERA DA
NA GLOBALIZAÇÃO*
DANIEL DOS SANTOS**
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TOR
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IGR
AF A
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BRASI
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R A
A relação entre o Estado e a sociedade é uma questão central,
sobretudo quando o absolutismo do primeiro, sob o manto da de-
mocracia parlamentar representativa, tende a revelar-se uma das
características da sua ação no contexto da globalização (passagem
do “Estado Social ao Estado penal”). O que, em termos de repre-
sentações sociais, é definido como contrapartida ao recurso cada
vez maior de estratégias públicas disciplinares e repressivas, ao uso
e abuso de instituições como a polícia e a prisão, a formalização
dos direitos humanos, do Estado de Direito e do mercado. Este
artigo tem como objetivo elaborar alguns dos elementos prelimina-
res necessários para aprofundar e alargar uma análise possível
desta questão.
Palavras-chave: violência; polícia; Estado; democracia; sociedade

[...] a coação e, em última instância, a violên-


cia são instrumentos específicos do Estado.
Existe uma relação orgânica entre o Estado e
a violência. Esta ligação é irredutível; é
constitutiva do Estado. [...] O Estado, afirma
Nietzsche, é a espécie mais fria dos monstros
frios. Ele mente friamente; e eis a mentira que
escapa da sua boca: “Eu, o Estado, sou o Povo”
(MULLER, 1995, p. 138).

A VIOLÊNCIA
Agir sobre alguém ou fazê-lo agir con- dos cidadãos como uma violência. Esta per-
tra a própria vontade, pouco importan- cepção, mesmo de “senso comum”, é
do os meios utilizados para tanto – a reveladora das ambigüidades que envolvem
coação, a intimidação ou a força –, não a noção de violência, nos campos da ciência
é sempre percebido pela maior parte e do político.

* Tradução: Cecília Campello do Amaral Mello B camello@momentus.com.br.


** Universidade de Ottawa.
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Confunde-se freqüentemente a violência jeto de estudo é, concreta e globalmente,
com o ato pelo qual ela se exerce, mas tam- antes de tudo, algo árduo. Nessas circuns-
bém com as “disposições naturais” dos in- tâncias, referimo-nos constantemente ao
divíduos em exprimir brutalmente seus direito e às normas objetivas e positivas,
sentimentos e convicções, a atração pelas para deduzir um conjunto de valores
coisas e, até mesmo, a impossibilidade de mensuráveis e mais facilmente aceitos
resistir a elas. Constata-se, assim, que a vio- como universais.
lência dificilmente pode ser reduzida a
uma única fonte ou forma, pois ela é sem- No cerne da nossa percepção sobre a vio-
pre plural quanto aos contornos ou ao con- lência, está o fato de que nós a entende-
teúdo. Conseqüentemente, é difícil abor- mos, no sentido durkheimiano
dar este fenômeno que persegue a huma- (DURKHEIM, 1897), como um poder
nidade desde suas origens, ainda que os “normal” que pode ser exercido contra
resultados e as conseqüências sejam de alguém, inclusive nós mesmos, ou
uma amplitude e de uma gravidade assus- contra alguma coisa. Apenas definimos
tadoras, nos planos individual e coletivo. este poder como uma forma de violência
quando ele ultrapassa certos limites defi-
Podemos caracterizar a violência pela for- nidos pelo Estado e seu poder legislativo,
ça impetuosa que ela exerce, por exem- quando ele perturba uma ordem determi-
plo, a violência do vento, ou pelos impul- nada da vida e das relações sociais, a or-
sos que não controlamos. Podemos tam- dem jurídica estatal. Ele é, segundo
bém designá-la como o que é próprio da Jankelevitch (1960, p. 1991), “contempo-
fraqueza, que “não tem freqüentemente râneo da desordem e mesmo posterior a
outro sintoma que não seja a violência; fra- ela, criatura da desordem, filho da desor-
ca e brutal, e brutal justamente porque dem, da qual ele próprio é expressão...” e
fraca” (JANKELEVITCH, 1960, p.190). oposto à força “fundadora e regeneradora
Desde Freud (1963, 1968a, 1968b), a vio- da ordem legal”:
lência também está associada à
agressividade e à saúde mental dos indiví- A força, que está a meio caminho entre
duos. Quando recalcamos nossos instintos o direito e a violência, é violência em
relação ao direito, mas direito em rela-
agressivos, na falta de saídas social e mo- ção à violência; é capaz a fortiori, de fun-
ralmente “aceitáveis” à sua energia, nós os dar o direito, de estabelecer as normas,
dirigimos contra nós mesmos com mais de criar o valor e o ideal [...]
freqüência do que pensamos. (JANKELEVITCH, 1960, p. 186).
Dito isto, deve-se acrescentar que este
As contribuições de diferentes disciplinas mesmo poder pode adquirir valores con-
científicas chegaram freqüentemente a traditórios, quando é entendido fora do
resultados semelhantes. As explicações quadro jurídico estatal. Assim, deve-se con-
dadas a este estado de coisas, ainda que siderar a possibilidade de duas percepções
variadas, desembocam na constatação e de julgamentos múltiplos e plurais. Se a
desconcertante de que apreender tal ob- percepção estatal tende a se apresentar

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como uniforme e única, a das sociedades luta, mesmo num regime ditatorial, mas
civis não pode pretender a homoge- por uma “encruzilhada” aberta na qual se
neidade e a universalidade. Ela é, por na- cruzam ordens múltiplas de condições, si-
tureza, múltipla e plural, por conseqüên- tuações, interesses e aspirações diferentes
cia, contraditória. As sociedades civis não e diversas.
são definidas por uma ordem social abso-

AS VIOLÊNCIAS
Segundo o momento e o ponto de vista É preciso notar que as sociedades civis
pode-se desvendar duas lógicas que orien- constroem também definições da violên-
tam o discurso sobre a violência. Encon- cia e colocam limites que lhes são próprios.
tramos aí a lógica do Estado, cujo discurso Contudo, estas definições e limites se dis-
se apresenta como resultado da razão uni- tinguem, por sua natureza e aplicação,
versal e do saber/conhecimento do “bem daqueles que emanam da ordem jurídica
supremo”. Este discurso “resolve” a ques- do Estado. Facilitando o trabalho dos pes-
tão da legitimidade confundindo-a, ao quisadores, o Estado e seu direito reduzi-
menos em aparência, com a questão da le- ram seu campo de estudo. Do lado das so-
galidade. A segunda lógica é a das socieda- ciedades civis, o domínio da violência
des civis. Seu discurso é antes de tudo rela- aumenta e torna-se mais complexo e cer-
tivo, daí necessariamente múltiplo. Ele se tamente mais complicado, isto é, mais di-
apresenta sem homogeneidade, seja como fícil de se apreender, medir e explicar.
um discurso fragmentado, seja como o re-
sultado do compromisso da pluralidade de Num dos casos, a qualificação da violência
razões e de saberes. Ainda que este dis- é função da definição dada, em particular,
curso não resolva a questão da legalidade pelas leis penais. Seu conteúdo indica ge-
que é da ordem da lógica do Estado, ele ralmente uma diversidade de comporta-
consegue, às vezes, distinguir a legalida- mentos e ações físicas, e leva desigualmente
de da legitimidade, que também é plural. rumo a soluções possíveis, dentro dos qua-
Assim, é preciso fazer um esforço suple- dros do direito estatal (direito penal, di-
mentar para articular as realidades frag- reito civil, direito administrativo etc.). Em
mentadas que coabitam as sociedades civis. relação a este último, é importante circuns-
crever sua intervenção a partir de uma res-
As duas lógicas estão interligadas, já que não ponsabilidade jurídica e não moral, interven-
cobrem realidades separadas nem funcio- ção que se dirige antes aos indivíduos do
nam sem comunicação com o exterior. que às instituições. A violência é, então,
Ainda que sejam complementares, a lógi- uma questão de agressão física: assaltos,
ca do Estado busca freqüentemente im- pancada, ferimentos, golpes e maus-tra-
por-se àquela das sociedades civis, o que tos. São fatos que deixam traços materiais
pode provocar oposições e enfren- quando vem o momento de destacar, ob-
tamentos. servar e analisar as ações e os comporta-
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mentos em questão. Trata-se, em primei- poder político e as relações tecidas nas so-
ra instância, da sua qualificação e identifi- ciedades civis. Nós nos referimos aqui às
cação. Esses traços constituem os hard facts,² relações entre os agentes do Estado – prin-
evidências empíricas e provas utilizáveis e cipalmente as forças da polícia – e os cida-
demonstráveis, segundo os gabaritos for- dãos, que os primeiros devem servir e pro-
mais do direito e da ciência, frente aos tri- teger. Esta situação, por um lado marcada
bunais e quando da apresentação das pes- pelo poder da arrogância, e, por outro,
quisas científicas. pela fraqueza da humilhação, obriga-nos
a reexaminar a noção de Estado de direi-
No outro caso, as definições e os limites to nos quadros da democracia represen-
variam segundo a interação entre os indi- tativa. Encontramo-nos, então, frente a
víduos, os grupos e as classes sociais, o grau uma forma insidiosa de violência, que não
de heterogeneidade das sociedades civis e deixa quase nenhum traço, mas que é fre-
as relações de força entre seus componen- qüente, diríamos até mesmo quase gene-
tes. As soluções dadas a este problema so- ralizada. A violência física atinge os espíri-
cial – a violência – dependem da tos e choca os olhares, incita os cidadãos a
pluralidade das definições e dos limites que conceberem posições extremas, isto é, a
aí encontramos. Nas sociedades civis, as in- vingança, que está longe de constituir uma
tervenções que visam a comportamentos solução satisfatória. O risco e o perigo as-
violentos não estão unicamente circunscri- sim desencadeados ameaçam a fragilida-
tas por uma responsabilidade normativa de das democracias, em particular o seu
positiva e objetiva, comparável ao direito desenvolvimento para além da esfera po-
estatal: acrescenta-se aí uma dose de lítica, pois:
normatividade subjetiva, acompanhada de
uma responsabilidade moral, cujo caráter A calma dos indivíduos e das socieda-
normativo é, às vezes, mais vago ou me- des se obtém pelas forças coercitivas
(políticas, mas também civis) de uma
nos claro. Portanto, podemos dizer que violência tal, que ela deixa de ser ne-
cessária e passa despercebida. Para
há violência quando, numa situação de obrigar as paixões a se exprimirem so-
interação, um ou mais atores agem de mente nos quartos, na intimidade ou
maneira direta ou indireta, concentra- nas catástrofes [...] para jugular os gri-
da ou distribuída, atentando contra um tos de sofrimento (ou de amor), as quei-
ou mais outros (atores) em graus variá- xas da miséria, os gemidos dos velhos,
veis, seja contra sua integridade física, a cólera dos pobres; para adormecer os
seja contra sua integridade moral, seja que são assassinados durante suas vi-
contra suas posses, seja contra suas par- das; […] para dissimular que “o infer-
ticipações simbólicas e culturais no está vazio, todos os demônios estão
(MICHAUD, 1978, p. 20). aqui” – que longa, terrivelmente lon-
ga, tradição de leis clandestinas!
Neste contexto, emerge uma situação par- (FORRESTER, 1980, p. 11-12).
ticular, porém freqüente, ainda no senti-
do durkheimiano de normalidade: ela diz As definições jurídicas mais divulgadas
respeito às relações entre o exercício do aplicam-se, em princípio, a todos os cida-

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dãos. Mas as leis, elas próprias, criam ex- sentido mais amplo, ultrapassa o simples
ceções, tais como nas áreas do esporte, exercício do poder político. Ele multiplica
medicina, mercado de trabalho e polícia, as estratégias, os mecanismos e as táticas
em diferentes níveis. Essas exceções são disciplinares, coercitivas e repressivas, que
criadas também na área da violência, as- visam mais à segurança do Estado do que à
sim como em todas as que se reportam às segurança dos cidadãos. Estes últimos deixam
formas de apreensão da violência, às re- de ser membros de uma nação, vivendo
gras processuais para tratá-la e às sanções. entre eles e formando uma comunidade,
Certos Estados acrescentam limites às ex- para se tornarem sujeitos do Estado, subme-
ceções, outros não. Esta situação nos re- tidos a um “interesse superior” que os do-
mete à questão dos direitos da pessoa hu- mina. Assim, obtém-se a tranqüilidade do
mana, ao levantar problemas importantes, poder político e não a da sociedade.
sendo os mais significativos aqueles que
dizem respeito à fronteira da legitimida- Esta emancipação do poder político tem
de dos atos assim tratados e ao confronto conseqüências graves, na medida em que
das duas lógicas (a lógica estatal em oposi- a maior intervenção do Estado conduz a
ção à lógica social). uma maior uniformidade e a uma “seme-
lhança, não somente dos meios que ele utiliza
A ética do poder político está mais preo- para agir, mas de tudo o que realiza”. O Esta-
cupada em ajustar a sociedade e a nação a do opõe-se, assim, às aspirações das socie-
seus interesses e objetivos específicos do dades civis, à pluralidade de suas ativida-
que em preservar e desenvolver o bem- des e à sua variedade (HUMBOLDT,
estar físico e moral de seus cidadãos. O 1792/1990).
espírito da governamentalidade, em seu

O MUNDO GLOBAL

Os direitos da pessoa humana ficam, as- vamos somente que nossa vida cotidiana
sim, reduzidos a um formalismo jurídico contemporânea traz a marca da violência.
monístico: estão inscritos nas declarações Ela adotou certamente formas e conteú-
nacionais e universais e são regulados por dos diferentes, como conseqüência do de-
tribunais nacionais e internacionais, dos senvolvimento tecnológico sem preceden-
quais estão excluídas as sociedades civis. tes que caracteriza o nosso século. Da Pri-
O século XX parece terrivelmente marca- meira Guerra Mundial à Guerra do Gol-
do pela violência, ainda que, ao longo dos fo, passando por Angola, pela Iugoslávia
diferentes períodos históricos, a humani- e por Ruanda, o potencial destruidor da
dade tenha percorrido momentos igual- violência coletiva e individual é sem para-
mente violentos. Não entraremos aqui lelos.
numa polêmica quantitativa estéril, obser-

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Esta situação é por vezes interpretada e teses, pela ditadura, sobretudo das armas,
analisada de maneira resignada, das forças armadas, da polícia do Estado
enfatizando o derrotismo e a irrespon- ou de grupos sociais que representam in-
sabilidade: de um lado nós, do outro, eles. teresses diversos e específicos (comprado-
Segundo John Keane (1996), o mundo res, especuladores, warlords, exército, po-
global se divide em dois campos. O pri- lícia, crime organizado etc.). Quanto mais
meiro deles seria a zona democrática, o mun- fracas são as sociedades civis, mais instável
do “próspero” das democracias parlamen- é o “poder político” e menos paz social
tares, uma comunidade onde o desfrute existe.
relativo da paz e da segurança está asse-
gurado. Esta comunidade possui Estados Esta perspectiva não é totalmente falsa,
fortes e um poder militar e policial apa- mas enganadora. Os “portos de paz” que
rentemente bem organizado, a tal pon- a zona democrática constitui são também
to que esses aparelhos do Estado não são habitados por situações de conflito violen-
mais alvos dos debates democráticos nacio- tas e inquietantes, pelo menos no plano
nais. A segurança nacional é área reserva- do discurso e da lógica do Estado. A
da ao Estado. Este poder deixa de ser um globalização tem um conteúdo econômi-
“instrumento político” e torna-se a garan- co, mas também social, político, cultural,
tia da paz social e da ausência de guerra, comunicacional e jurídico. Ela implica “por
ainda que por vezes se assemelhe a uma um lado, a difusão social e, por outro, a
ilusão. Esta zona contém apenas 1/7 da partilha de direcção” (DELMAS-MARTY,
população mundial. 1998, p. 14). A atitude tradicional dos Es-
tados desta zona em relação ao comporta-
O restante do planeta, logo, 6/7 da popu- mento desviante, particularmente, aquele
lação do globo, compõe a zona do outro. definido pelo direito penal como próprio
Aqui encaramos uma realidade provavel- das “classes perigosas”, ressurge atualmen-
mente sem igual na história humana. Eles te com força: a guerra contra o crime tem to-
se caracterizam por uma violência cotidia- mado ares de uma guerra contra os pobres (Actes
na anárquica vinda de todas as direções, de la recherche en sciences sociales, 1998;
pela guerra – e seu conjunto de desgra- Wacquant, 1999). Ainda que traduza um
ças, dentre as quais não se deve ignorar o certo “pânico” frente à “contaminação”
warlordism³ – pela ausência concreta de possível de suas sociedades, esta atitude
normas que existem apenas no papel, pela coloca os Estados da zona democrática em
ausência de esperança... Esta zona é, as- face da contradição mundial do trabalho:4
sim, mais vulnerável às catástrofes natu- a produção de armas, o controle do tráfi-
rais e às perturbações políticas e econômi- co de drogas e de órgãos, a corrupção dos
cas, tais como, inundações, seca, fome, poderes etc. derivam dos seus domínios.
corrupção, golpes de Estado. Em poucas
palavras, a zona do outro define-se, na me- A pauperização das populações da zona
lhor das hipóteses, por uma democracia do outro, o saque de suas riquezas pela
de fachada e simbólica; na pior das hipó- aliança entre as elites dirigentes, os

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warlords, os grupos do crime organizado, Ela também é indizível porque, apesar da
suas redes e os conglomerados econômi- manifestação midiática dos especialistas
cos mundiais, a pilhagem da nação pela (cientistas, policiais, políticos etc.), justifi-
classe política local e a instrumentalização cam-se mal tais acontecimentos e perma-
quase ilimitada do Estado, ocasionam mo- nece-se sem novas soluções, a não ser as
vimentos populacionais em direção à zona fórmulas já esgotadas. Entretanto, assiste-
democrática, cujas conseqüências, suficien- se ao crescimento fulgurante do mercado
temente conhecidas, tornam-se cada vez privado da segurança, do qual as polícias
mais difíceis de serem resolvidas. O au- estatais também participam.
mento dos preconceitos raciais, os proble-
mas de identidade e de enraizamento en- A violência se desloca e se aproxima cada
gendram um crescimento generalizado vez mais dos “portos da paz”, ela atravessa
das tensões sociais, das possibilidades de as sociedades de uma ponta a outra. A comu-
conflitos e de violência e, por conseguin- nicação é um aspecto interessante e pri-
te, de políticas repressivas facilmente mordial da mundialização. Da imprensa
antidemocráticas (Actes de la recherche en escrita à televisão, passando pela auto-es-
sciences sociales, 1999). trada da informação (Internet), todas as
redes de comunicação participam desta
Esta situação da zona democrática asseme- percepção sobre o crescimento e a proxi-
lha-se cada vez mais a uma entropia social midade da violência. Um outro aspecto da
com um caráter anômico resolutamente mundialização diz respeito à tendência a
pronunciado. Do ponto de vista das repre- suprimir as fronteiras e, sobretudo, a co-
sentações sociais, uma tal imagem leva as locar em causa a noção tradicional de
sociedades civis desta zona a se preocupa- territorialidade. Notemos, porém, que esta
rem com a violência, mais do que aquelas tendência é atualmente sobretudo econô-
sociedades civis da zona do outro, onde é mica (o mercado). No nível político,
necessária e visivelmente mais instável. encontramo-nos em face de uma situação
Este fenômeno deve-se, em parte, à retó- de impasse (em vias de tornar-se caótica),
rica estatal, às campanhas das forças poli- cujos indícios descobrimos na ausência
ciais, das instituições sociais e dos políti- crescente de autoridade moral e política.
cos, mas também, à realidade de todos os Os únicos valores que contam são os do
dias e à maneira como a mídia a represen- aumento do lucro a todo custo. É o reino
ta. Enquanto as empresas de seguro au- dos deal makers.5 Todos os meios são bons e
mentam barbaramente seus prêmios para úteis, pouco importa se os resultados agra-
a segurança, assistimos a um recrudesci- vam as condições de existência e de bem-
mento de uma violência indizível, porque estar das sociedades civis e, dentre estas,
contraditória, extrema e gratuita: assassi- as condições dos mais desprovidos, tanto
natos em série, crimes contra crianças, vio- numa zona quanto na outra.
lência nas escolas dirigidas contra jovens e
professores, violência familiar e conjugal, A Comunidade européia produz leis
violência do “crime organizado” etc. regrando o espaço econômico e jurídico

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dos Estados membros. Este processo é mais sivo, punitivo, estigmatizante e disciplinar
lento no domínio do direito penal e sem dos seus aparelhos, pois não mais pos-
nenhuma legitimidade, já que ela não res- suem base real na sociedade. Há, aqui,
peita a soberania dos seus povos. Estes es- um problema sério de legitimidade, de
tão de fora de todo processo verdadeiro autoridade e de moralidade; um deslize
de tomada de decisões. Quando as demo- em direção a um absolutismo político cego,
cracias parlamentares agem desta forma, que leva à oposição e possivelmente ao
a legalidade das decisões por elas toma- enfrentamento entre as duas lógicas da
das tem somente a força do poder repres- violência.

A POLÍCIA E O ESTADO
A polícia e o Estado precedem historica- to das lutas políticas. Contudo, ela apre-
mente a criação dos regimes democráti- senta-se também como uma instituição que
cos modernos. O desenvolvimento e a evo- cria e desenvolve valores, regras, interes-
lução destes últimos raramente questiona- ses e objetivos, isto é, uma cultura própria.
ram a existência de uma ou de outro. Ao Ela mantém relações ambíguas, contradi-
contrário. À beira do século XXI, tem-se a tórias e complexas com o poder político e
impressão de que os regimes democráti- com as sociedades civis.
cos reforçaram a idéia e a presença cotidi-
ana de ambos, o que, à primeira vista, pode A polícia, como aparelho do Estado demo-
parecer contraditório frente ao movimen- crático, não deve ser “política”, isto é, ser-
to em direção à globalização. Inicialmen- vir a interesses particulares, mas sim, pro-
te, a polícia e sua institucionalização eram teger o bem comum e o bem-estar de todos os
percebidas e encaradas como um bem co- cidadãos, respeitando os direitos da pessoa
mum, parte do patrimônio social, cujo ob- e a justiça social. Somente no sentido do
jetivo era a “proteção da sociedade” (cida- respeito dos direitos da pessoa humana é
dãos e propriedade). No final do que a polícia exerceria uma função políti-
século XX, a representação que se faz da ca. Hélas,6 quem define o mandato da polícia,
polícia é a de um serviço burocrático esta- suas tarefas, seus regulamentos? Quem avalia
tal ou de uma força repressiva e coerciti- seu trabalho, seus êxitos e seus insucessos? Quem
va, mesmo se esta função representa me- controla a polícia? A quem ela presta contas?...
nos de 30% das tarefas policiais. Seu prin- O Estado e as sociedades civis vivem obce-
cipal objetivo deixou de ser a proteção da cados por estas questões, em particular as
sociedade, para ser, sobretudo, a proteção que dizem respeito à definição das funções
do Estado e de interesses políticos e econômicos da polícia e suas responsabilidades. Con-
particulares. tudo, enquanto instituição estatal, a polí-
cia freqüentemente soube jogar com essas
A polícia tornou-se um elemento essencial questões e com as posições dos diferentes
da gestão do Estado e do exercício da au- tendência está condicionada pela divisão
toridade, ao mesmo tempo em que é obje- mundial do trabalho);
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atores sociais, para daí tirar partido. En- 5 Não existe uma forma única de organi-
tre outros fatores, a globalização conduz, zação das forças de polícia, mas várias (ex.: cen-
com mais ou menos felicidade, a uma cer- tralização x descentralização, em cada país
ta normalização – entendida como uma e entre os países e segundo os tipos e fun-
tendência para a homogeneidade e uni- ções de polícia);
formidade – da cultura, dos hábitos, das
normas e das instituições (estrutura men- 6 Não existe um só e único objeto (de ação)
tal dominante). A polícia não escapa a esse da polícia bem como sua função não visa unica-
fenômeno. Porém, tal movimento parece mente a um só objetivo (a pluralidade quase si-
criar, ao mesmo tempo, um certo número multânea de objetivos, funções e objetos ca-
de dificuldades resultantes do estado atu- racteriza a polícia como uma instituição cada
al das relações entre o global e o local, pois: vez mais multifacetada e não ultra-especializa-
da – ela é militar, política, profissional e civil;
1 Não existe uma polícia, mas diferentes po- comunitária; coercitiva; preventiva e repres-
lícias (no interior de cada país e entre os paí- siva; de vigilância; de informação e do risco;
ses; polícia estatal e polícia privada etc.); de segurança pública, do Estado, das empre-
sas, etc. Tal situação conduz, freqüentemente,
2 Existem instituições policiais exercendo à concorrência e à competição, ou à ausência
funções não-policiais e vice-versa (agentes da al- de colaboração entre forças policiais tanto
fândega, agentes fiscais, assistentes sociais, em termos nacionais quanto internacionais).
guardas de prisão, guarda-costas, segurança
privada etc.) ou instituições policiais idênticas mas Some-se a isto o fato de que a democracia
com atribuições distintas; moderna tornou-se formal e processual, a
ponto de confundir os meios com os fins,
3 Na América do Norte, atualmente, as polí- criando, assim, muito freqüentemente, um
cias privadas são dez vezes mais numerosas que a mundo quase abstrato e normativo
polícia do Estado (no reino da globalização, tra- (BÉNÉTON, 1997). Ela se afasta do mundo
ta-se de uma tendência que se alastra por to- concreto da sociedade existente, das relações
dos os lugares, mas que assume muitas vezes sociais reais, um mundo que é preciso cobrir
uma “cor” local); com um véu denso e obscuro, um mundo
que não se deve expor à luz. Devido a isto,
4 Há um aumento na utilização de novas seremos acusados, na melhor das hipóteses,
tecnologias como instrumento de trabalho das polí- de utópicos ou de irrealistas e, na pior, de
cias estatais e privadas e como meio de vigilância e estraga-prazeres ou subversivos. Os atores so-
controle (utilizados tanto pela polícia, quanto ciais deixam de existir em movimento para se
por cidadãos privados, sobretudo aqueles em transformarem em estatuetas. Acelera-se a
situação hierárquica superior; por empresas entrada num mundo cada vez mais reificado
e por instituições públicas e privadas; pelas onde o ser vivo torna-se uma coisa, uma
diferentes instâncias do poder político, desde mercadoria.
os municípios ao Estado central: no en- Nesse mundo, o Estado e a polícia são nor-
tanto, esta tendência está condicionada malmente responsáveis perante si mesmos,
pela divisão do trabalho);
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mas raramente perante as sociedades ci- constituam como organização criminal –,
vis, a não ser que estas consigam assegu- e de assegurar que “todo cidadão é igual
rar para si a criação de regras processuais perante a lei”. As forças da polícia devem-
e formais e instituições que garantam a se submeter a um controle severo de suas
aparência de controle civil. ações e à imposição de limites claros à uti-
lização da violência ou aos abusos de po-
Quais são as diferenças, então, entre um der.
regime democrático e um regime ditato-
rial? No primeiro, a função da polícia é con- Apesar desta profissionalização, o dilema
trolar, vigiar e reprimir certos grupos que ainda permanece: como assegurar o res-
podem parecer suspeitos ou ameaçadores peito aos direitos dos cidadãos e, ao mes-
para a ordem normativa formal democrá- mo tempo, a estabilidade do Estado? As
tica. No segundo, assiste-se à utilização to- sociedades civis exigem serem protegidas
tal das forças policiais como um instrumen- tanto das ações dos criminosos, quanto dos
to político e de busca de um conformismo abusos e da violência da polícia e do Esta-
“físico”. Numa democracia, ilegalidades, do. Este último impõe à polícia o estabele-
abusos de poder e violências policiais po- cimento de uma ordem pública que ele
dem ser entendidos como um crime (ra- define e a manutenção da sua proteção a
ramente), um delito (raramente), uma in- qualquer preço, mesmo em detrimento
fração moral, ética ou disciplinar (mais dos cidadãos. Isto ocorre no mesmo mo-
freqüentemente) e, finalmente, como um mento em que a globalização exige dos
Estados nacionais e de suas polícias uma
“acidente” (muito mais freqüentemente).
atitude claramente dirigida de “flexibili-
Porém, se o trabalho policial é considera-
dade” (em relação às grandes empresas) e
do, sobretudo, como undercover,7 a polícia de repressão (em relação aos indivíduos e
e o Estado reagem por um covering up.8 É aos grupos sociais marginalizados).
preciso, portanto, que às queixas dos ci-
dadãos, some-se o trabalho da mídia, para Levando-se em conta as representações so-
que estas diferentes situações sejam expos- ciais que as sociedades civis fazem da polí-
tas e possam ultrapassar o “acidente”. cia e de suas funções, suas demandas cons-
Num regime ditatorial, os diferentes ro- tituem um paradoxo: por um lado, uma
teiros considerados frente à “utilização de polícia mais severa, mais repressiva e mais
uma força despropositada” (violência po- violenta e, por outro, mais humana, mais
licial) raramente ultrapassam o estado da próxima dos cidadãos e mais respeitosa dos
categoria de acidente. Quando isto ocor- direitos da pessoa. Essas demandas das
re, é algo excepcional. sociedades civis estão relacionadas, em cer-
A profissionalização da polícia represen- ta medida, com o sentimento de insegu-
ta, em teoria, a submissão desta às regras rança, real ou abstrato, que se manifesta,
do direito, aos direitos dos cidadãos e às de forma confusa e tumultuada pela
regras que regem o ato de prestação de explosão de emoções, de percepções e de
contas e de responsabilidade. O objetivo representações de crimes e de perdas de
da repressão policial deve ser impedir a valores concretos, traduzidos pelas incivi-
ação dos indivíduos criminosos – e não de lidades e pelo “medo”, segundo um
grupos sociais, a não ser quando estes se desenvolvimento particular:
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Pode-se situar no período de 1965 a 1975 A estratégia de luta contra o crime, fun-
as tentativas modernas de reforma da po- dada sobre o modelo tradicional de polí-
lícia na América do Norte. Elas foram o cia, foi extremamente ineficaz. A guerra
resultado das lutas de grupos minoritários, contra o crime aparece como algo utópico e
sobretudo os afro-americanos (negros) e sem resultados, deixando de lado o que
os latinos. A polícia revelou-se incapaz de normalmente afeta mais os cidadãos: a
respeitar os direitos constitucionais destes manutenção da ordem cotidiana e outros
grupos e, menos ainda, de estabelecer re- problemas, tais como desordens urbanas
lações democráticas com eles. Segundo a e incivilidades, critérios da avaliação que
maioria dos observadores e dos pesquisa- os cidadãos fazem sobre sua qualidade de
dores deste período da história da polícia vida cotidiana. A crise financeira do Estado
norte-americana, esta demonstrou, naque- revela também uma outra incapacidade,
la época, toda a sua incompetência profissio- verdadeira ou falsa: o Estado-nação pa-
nal, seu caráter violento e antidemocrático. Esta rece incapaz de continuar a financiar –
situação também revelou uma crise aguda num nível em que as sociedades civis pos-
da função policial, ligada a fatores estru- sam considerar justo, eqüitativo e aceitá-
turais, isto é, uma crise de legitimidade e vel – os serviços que deve à sua popula-
uma crise de eficiência. ção.
• identificação de um “crime” e construção do “mêdo/pânico” (cidadãos, mídia de massa)
• ligação entre o crime identificado e a realidade (representações, “peritos”, grupos sociais)
• construção conceitual (intelectuais e pesquisadores)
• responsabilização (atores políticos, institucionais a mídia de massa)
• manifestações no espaço público (movimentos sociais, grupos de pressão e partidos políticos)
• políticas criminais mais repressivas, visando a alvos precisos, principalmente jovens, drogados, “vagabundos”,
pobres, minorias, imigrantes, assistidos sociais, etc. (programas eleitorais, partidos políticos, governo e agentes
políticos do Estado)

Finalmente, como já indicamos, o cresci- anos, assiste-se a uma nova tentativa de


mento real ou imaginário do sentimento reforma, tendo em vista criar uma polícia
de insegurança que parece acompanhar a “próxima do público” (a polícia comuni-
globalização pode ser compreendido como tária, para os norte-americanos, a polícia
decorrente de uma política do Estado cujo de proximidade, para os europeus), visan-
objetivo é o controle social, ou como um do a responder principalmente a duas
conjunto de percepções, sentimentos, questões problemáticas da polícia, a saber,
emoções e representações, na maior parte sua eficácia e sua imagem, e não necessa-
dos casos contraditórias, mas próprias às riamente uma atuação visando à promo-
sociedades civis. ção da democracia.
Essas tentativas de reforma são, antes de Uma refere-se à qualidade profissional da
tudo, uma questão pragmática e, caso ne- polícia; a outra, à legitimidade do seu tra-
cessário, técnica e profissional. Elas nun- balho. Lembremo-nos que a função re-
ca serão reconhecidas pelos principais ato- pressiva ocupa, com freqüência, menos de
res como uma questão política. Porém, os 30% das tarefas policiais! Nesse meio-tem-
pilares da globalização da economia deri- po, seu trabalho de vigilância
vam do político: democracia, Estado de e de construção de bancos
direito e direitos da pessoa. Nesses últimos
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de dados (arquivos de informação) cresce E, no entanto, o “direito” e a violência nas
paralelamente ao mercado privado da se- mãos dos policiais são “legais”, enquanto que
gurança, da vigilância eletrônica e da in- nas mãos dos cidadãos eles tornam-se ilegais...
formação sobre o risco. É esta dimensão Esta questão da legitimidade/legalidade se
crescente, somando-se ao trabalho da po- refere, entre outros, ao debate sobre o
lícia estatal, que as novas tecnologias da monopólio da violência legítima, que, desde
informação e da vigilância vêm reforçan- Max Weber, desenrola-se nas ciências so-
do. Ela se refere à coleta de informações e ciais, em particular no campo da sociolo-
à constituição de arquivos que permitam gia do Estado e da sociologia da polícia.
a vigilância e a gestão do risco (“perigo”) Aliás, tratando-se da sociologia da polícia,
por agências de polícia públicas e priva- tanto os pesquisadores quanto os cidadãos
das, com o objetivo de informar os clien- mostram-se incapazes de atacar frontal-
tes do mercado da segurança (ERICSON;
mente este monopólio, sobretudo quan-
HAGERTY, 1997). A função da polícia não
do trata-se de pôr em questão os poderes
se especializou; ela se expandiu.
discricionários da polícia, em particular as
inúmeras, porém vagas, referências à quan-
O caso hoje célebre da cidade de Nova tidade de força que os policiais estão autoriza-
Iorque, com suas políticas repressivas, uti- dos a usar durante o exercício de suas funções.
lizando a polícia como principal instru-
mento, provocou “estatisticamente” uma O enfraquecimento do Estado-nação no
queda substancial das taxas de crimi- nível econômico como conseqüência da
nalidade, mas também registrou um cres-
globalização parece ter tido, como primeiro
cimento comparável de queixas dos cida-
efeito, o fortalecimento da sua função re-
dãos contra a cidade e sua polícia, por abu-
pressiva e coercitiva, isto é, o uso excessivo
so de poder e, sobretudo, por violência.
Alguns casos foram amplamente divulga- do direito e da justiça penal em geral e o
dos na imprensa, como o estupro de um monopólio da violência “legítima” em par-
cidadão negro haitiano por um grupo de ticular. Numa economia “flexível”, isto é, que
policiais da cidade, seguido de uma falsa outorga às empresas um direito excessivo de
acusação, e o de um imigrante malinês, demissão de trabalhadores, e repressiva –
também negro, morto a tiros na saída do produção de riqueza e de pobreza sem igual
seu edifício. “Parece” que os policiais ati- na história moderna – o que o Estado
raram 41 vezes; o imigrante foi atingido “globalizado” (ou inserido no contexto da
por duas dezenas de tiros. Havia sido fal- globalização) retira com uma mão – a justiça e a
samente acusado de estupro. Tudo isso proteção sociais – ele dá com a outra – a violência
parece indicar, como em centenas de ou- da polícia e da prisão, em particular, e a exclusão
tros casos, que os negros, considerados social, em geral. Tudo isso em nome do mer-
como um grupo de risco, são um dos al- cado livre, dos direitos formais da pessoa
vos preferidos da repressão e da violência e do Estado de direito, como fundamen-
policial de Nova Iorque! O direito à vio- tos de uma democracia e de uma felicida-
lência se caracteriza, portanto, por um de globais.
movimento em espiral que não parece ter
mais fim.
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NOTAS
1 Trata-se de construir um esboço sobre esta ques- 4 Observar o jogo de palavras – o autor refere-se
tão com base numa série de elementos, noções e ironicamente à divisão mundial do trabalho como
princípios preliminares, que nos permitirão, mais “contradição mundial do trabalho”. [N. da T.]
tarde, aprofundar nossa análise.
5 Em inglês, no original. Deal makers, fazedores de
2 “Hard facts”: fatos concretos.
negócios. [N. da T.]
3 “Warlordism”, em inglês no original. O termo é
6 “Hélas” é uma interjeição intraduzível, que expri-
uma forma geralmente pejorativa de se desig-
me queixa, dor ou lamentação. [N. da T.]
nar comandantes ou generais que comandam
grupos de pessoas lutando contra outros grupos 7 Em inglês, no original: undercover, secreto.
dentro de um país. A tradução aproximada seria [N. da T.]
algo como “mandonismo”. [N. da T.]
8 Em inglês, no original. Covering up, encobrimento.
[N. da T.]

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GABRIEL TARDE: LE MONDE COMME FEERIE *

ISAAC JOSEPH* *

On tente de montrer, dans ce texte, l’originalité de l’oeuvre de Gabriel


Tarde, sociologue français méconnu du fait de l’influence
durkheimienne dans la discipline. La pensée de Tarde s’organise
autour de trois concepts qui sont au centre de trois ouvrages majeurs:
l’imitation, l’opposition et l’adaptation. La logique sociale que ces
trois concepts mettent en lumière est une logique de la
communication. Elle considère non pas les faits sociaux comme des
choses (comme le proposait Durkheim) mais toute chose comme une
société, c’est-à-dire comme une construction sociale faite de croyances
et de désirs. Loin des métaphores mécanistes ou organicistes du
social à l’oeuvre dans la sociologie dominante de son temps, Tarde
est moderne parce qu’il comprend le social à partir de la conversation
et des phénomènes publics, comme une féérie de la différenciation
et de la diversité.
MOTS CLÉF: public, association, croyance.

Il y a deux grandes erreurs l’erreur des sociologies “panoramiques” et


sociologiques, dit Tarde : deux grands des sociologies du développement il faut
leurres. Le leurre panoramique qui nous accepter que la logique sociale n’est pas une
fait croire que l’ordre des faits n’est logique de la totalisation. Le rite spécial dont
perceptible que si l’on sort de leur détail parle Tarde n’est pas un phénomène social
essentiellement irrégulier pour “s’élever total parce que la logique qui l’anime est une
très haut jusqu’à embrasser d’une vue logique de l’adaptation c’est-à-dire, dans son
panoramique de grands ensembles”; et langage, une logique de l’invention et de la
le leurre historique qui consiste à enfermer coproduction du sens. La logique d’un fait
les faits sociaux dans des formules de social, c’est la modalité selon laquelle il est
développement. Ce sont des leurres producteur de liens. Voilà pourquoi les faits
parce qu’il y a, dit Tarde, plus de logique sociaux n’ont rien de naturel. Au contraire
dans une phrase que dans un discours, ils sont parfaitement énigmatiques, ce sont
dans un “rite spécial que dans tout un des adaptations toujours inventives. Un
credo”. Mais pour bien comprendre rapport social n’est jamais le rapport d’une
*
Une première version de ce texte est parue dans le numéro spécial de la revue Critique, n° 445-446, Juin-
Juillet 1984, intitulé: «Aux sources de la sociologie». On y reconnaîtra sans peine l’influence de Gilles
Deleuze et de sa découverte, dans l’oeuvre de Tarde, d’un programme de recherche pour la microsociologie.
Outre quelques corrections, la dernière partie du texte a été légèrement remaniée.

Antropolítica Niterói, n. 8, p. 23–40, 1. sem. 2000

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copie à son modèle, c’est la réponse à une phénomène de socialité par excellence, et
question et au fond de toute association de l’espace-journal, l’espace social de notre
entre les hommes il y a une association modernité.
d’idées.
Pour commencer “mettons nous en
Si on ne voit dans Tarde que le présence d’un grand objet, le ciel étoilé, la
contemporain de Le Bon, on risque donc mer, une forêt, une foule, une ville” (TAR-
de passer à côté de ce qui fait son actualité: DE, 1898). Et, ne confondons pas: le ciel
Tarde ne s’intéresse pas à la psychologie étoilé de Tarde n’est pas celui de Kant. Ce
des foules mais au social en tant qu’il est qui est premier, “ce dont les faits sont faits”,
affranchi de la proximité, en tant qu’il ce n’est pas le spectacle du firmament ni
relève d’une physique ondulatoire. La un “faisceau de formules explicatives”.
formation des opinions n’a rien à voir avec C’est une “féerie d’idées”. Et une féerie
les stratégies de la suggestion. Un public n’est pas une scène, c’est l’enchantement
est un fait social tout à fait étranger aux devant deux séries de phénomènes: les
métaphores de la foule. Tout le monde est grandes révolutions comme les
assis, “chacun chez soi, lisant le même promenades circulaires du soleil et de la
journal et dispersé sur un vaste territoire”. lune et quelques exceptions: étoiles erran-
tes, planètes capricieuses, dont les
Quel est donc le lien social entre ces déplacement sont variés et inégaux.
hommes qui se sont détachés des foules ? Le seul a priori est donc celui de
Quelle est la nature du lien social qui fait l’indétermination du réel et les êtres qui
les publics ? Voilà la question de Tarde. nous entourent sont des émergences. De
Anticipons la réponse : “Ce lien, c’est avec sorte que le réel n’est pas la synthèse du
la simultanéité de leur conviction ou de leur divers et qu’il n’est marqué du signe
passion, la conscience possédée par chacun d’aucune nécessité.
d’eux que cette idée ou cette volonté est
partagée au même moment par un grand La différence est le seul côté substantiel
nombre d’hommes.” (TARDE, 1989, p. 32) des choses et c’est le deuxième principe
Le lien social n’est donc pas organique ou de la métaphysique de Tarde qui veut
panoramique, il est cérébral et micro- qu’exister, ce soit différer ou, et c’est la
physique. Ce n’est pas la reproduction même chose, qui affirme le caractère
d’une histoire, c’est la réflexion d’une infinitésimal du réel. A titre de
actualité. conséquence pour une philosophie des
sciences sociales, cela signifie que la bonne
Si Tarde a eu plus de succès dan la question n’est pas : “l’individu est-il libre
sociologie américaine qu’en France, c’est ou non ?”, mais “l’individu est-il réel ou
sans doute parce qu’il pressentait cette non?” (TARDE, 1890, p. 17). A supposer
pensée du social qui s’est épanouie autour donc que l’on veuille, pour des raisons
de R. Park (1972) et de l’école de Chica- diverses, aller à contre-courant de ceux qui
go; 1 pensée qui fait du journal le entendent “désenchanter le monde”, on

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ne pourra pas dire que le monde est un Le principe de discontinuité opposera Tarde
spectacle ordonné dans l’infiniment petit. à l’évolutionnisme darwinien qui refuse de
Mauvaise piste de l’atomisme. Ou alors il concevoir la différenciation au sein des
faudrait penser une merveille, le clinamen; organismes. (Les variations spécifiques,
importer le féerique. Pourtant l’atomisme chez Darwin, sont pour Tarde “des
est tout de même le point de départ divergences sans but, des rebellions sans
commode d’une physique du réel programme, des fantaisies désordonnées”).
(psychologique ou sociale, peu importe: il Il permet également de dégager la
s’agit d’une physique ontologique). Il faut méthode e xplicative des mythes qui
d’abord se convaincre de la richesse du l’encombrent: mythes des “tendances
réel, de l’infinité de ses formes, de la générales” ou de la “force des choses” en
démultiplication des ressources ; Tarde fait politique, mythe du progrès perpétuel.
partie de ces philosophes qui conçoivent Le principe d’intégration de l’infini dans le
le réel comme devenir toujours en excès.² fini est l’opérateur d’une rupture avec
Voilà pourquoi il faut considérer la forêt toutes les théories qui tendent à donner
comme le paradigme du réel. La forêt, une image divisible de la réalité – individu,
c’est d’abord l’opposé de l’arbre et c’est cellule, atome. Il interdit par conséquent
aussi le règne de l’infiniment petit. La
de cantonner l’analyse des phénomènes
richesse du réel doit d’abord être conçue
microsociologiques à un “domaine” de la
à partir des phénomènes de contiguïté, de
sociologie. Les concepts de la micro-
rencontres aléatoires et innombrables.
sociologie ont un “territoire”, dirait Kant;
C’est-à-dire à partir de rapports. Voilà
ce sont des concepts régulateurs, mais ils
aussipourquoi la théorie de la croyance et
du désir qui entend fonder une ne sont constitutifs d’aucun domaine
microsociologie originale ne correspond particulier. Il n’y a pas de domaine propre
qu’à une psychologie pauvre. Ce qui à la microsociologie. Tout dans le réel va
intéresse Tarde, le niveau d’analyse auquel du petit au grand, alors que “dans le mon-
il s’arrête est toujours un rapport; la de des idées, miroir restreint du premier,
répétition, l’opposition et l’adaptation ou tout va du grand au petit et, par les progrès
leurs formes sociologiques – l’imitation, de l’analyse, n’atteint qu’en dernier lieu
l’hésitation et l’invention – sont des les faits élémentaires véritablement
principes d’organisation du réel qui explicatifs” (TARDE, 1898, p. 88-89) La
conjuguent d’une part, une priorité du microphysique du réel se définit comme
discontinu sur le continu – c’est la diversité théorie des phénomènes en tant qu’ils sont
et non l’uniformité qui est au coeur des infinitésimaux.
choses – et, d’autre part, une intégration
de l’infini dans le fini.

1 IMITATION: “TOUTE CHOSE EST UNE SOCIETE”


Ce qui compte dans cette physique, encore l’élément différentiel qui peut se produire
une fois, ce n’est pas l’individu mais entre deux individus (interpsychologie) ou
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dans l’individu (la petite idée comme vue sociologique universel”. Tout se
invention infinitésimale; l’hésitation ramène dans le monde physique à
comme opposition infinitésimale). Dans les l’ondulation, tout se ramène dans le mon-
deux cas, la question n’est pas seulement de social à l’imitation. On peut donc
de savoir comment naissent ces renverser la proposition selon laquelle les
phénomènes, mais de savoir comment ils faits sociaux subissent les lois d’un système
se propagent, interfèrent, se conjuguent. mécanique ou organique et affirmer que
La physique du réel est une physique les faits mécaniques sont sociaux.
ondulatoire et l’ondulation est l’équivalent Sociomorphisme: tout phénomène de la
dans le monde physique de la génération nature est un fait d’association, la socialité
dans le monde vivant et de l’imitation dans est la réalité universelle et la socialité
le monde humain. absolue se définit par la transmission
instantanée (et non par la transparence
Donc, contrairement à Durkheim, on ne totale). “Pour bien entendre la socialité
se donnera pas une société toute faite. Il relative, la seule qui nous soit présentée à
faut décomposer les grands objets suivant des degrés divers par les faits sociaux, il
les trois catégories de la répétition, de faut imaginer par hypothèse la socialité
l’opposition, de l’adaptation. Il faut absolue, parfaite. Elle consisterait en une
retrouver “les actes individuels dont les vie urbaine si intense que la transmission
faits sont faits” (TARDE, 1979, p. 1). Et à à tous les cerveaux de la cité d’une bonne
titre de principe corollaire, on ne idée apparue quelque part au sein de l’un
confondra pas amplification et homogé- d’eux y serait instantanée” (TARDE, 1979,
néisation. L’amplification est le passage p. 75). On peut penser bien sûr aux foules
d’un ordre de différences à un autre. et aux phénomènes de contagion, mais il
faudra aussi analyser ces formes sociales
Multiplicité et hétérogénéité des formes moins pauvres, les publics qui intègrent
donc, mais aussi continuité et simplicité des l’harmonie des différences et qui ne
processus ondulatoires. De ce point de vue, fonctionnent pas à l’unisson. Les formes
l’épistémologie sur laquelle se fonde Tar- sociales sur lesquelles il faut réfléchir ne
de est encore classique; les lois de l’univers sont pas celles qui sont liées à la fusion des
renvoient à un principe unique. Tout substances, mais celles qui naissent de la
phénomène est d’abord propagation et réduction du temps à l’instant : associations
association. Et l’association elle-même unilatérales à ondulation rapide et
procède d’une propagation. associations contractuelles à ondulation
convergente.
Au commencement était la propagation.
“Toute chose est une société et tout Considérer donc les faits comme des
phénomène est un fait social” (TARDE, sociétés et la socialité comme association.
1998b). Tarde fonde en effet sa Ce privilège de l’association se retrouve
cosmogonie sur un associationnisme dans la hiérarchie des catégories où
généralisé, c’est-à-dire sur “un point de l’opposition est subordonnée à la

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répétition. C’est en effet parce que les for- sa négation, mais, un peu moins rarement,
ces physiques se propagent par répétition elle la rencontre, chose bien différente”
ondulatoire qu’elles interfèrent. Et “leurs (TARDE, 1897, p. 398). L’attrait du drame,
interférences-chocs ne semblent servir qu’à comme le propre d’un événement
leurs interférences-alliances, leurs historique, tient seulement à “l’irrégularité
combinaisons” (TARDE, 1898, p. 105): Les expressive” qui fait la singularité et le
guerres, les concurrences, les polémiques pittoresque d’une situation. L’opposition,
se nourrissent des entrecroisements de dans le drame, n’est là que pour accentuer
rayonnements imitatifs. A son tour donc, esthétiquement une réalité associative.
la répétition est subordonnée à l’invention L’opposition, dans l’histoire, n’est là que
qui n’est jamais qu’une adaptation à un pour stimuler une adaptation, c’est-à-dire
milieu lui-même constitué d’autres ondes une invention militaire, industrielle ou
ou rayonnements imitatifs. Toute scientifique. Enfin, l’adaptation ne se
invention est une “co-adaptation”, une fonde pas sur le seul intérêt. Adaptation
interférence-combinaison et les de luxe, pour “la beauté du monde”. Qu’il
adaptations sont des rapports de s’agisse de vie quotidienne ou d’histoire,
coproduction créatrice. Ce sont donc ne pas réduire donc le socius à un rapport
toujours de petites variations (inventions) de forces et l’association à la soumission.
qui se propagent, de petites différences Au contraire, tout porte à croire, dit Tar-
inventives. de, qu’il y a eu “des dépenses inouïes
d’amour et d’amour malheureux à
Si l’on tient compte des interactions en tant l’origine de toutes les grandes civilisations”.
qu’elles produisent des unanimités ou des En effet, ce ne sont pas des modèles de
conspirations, on s’apercevra que le drame comportements qui se propagent dans le
est le miroir esthétique de la logique sociale rayonnement imitatif, ce sont des
en oeuvre. L’intérêt que nous prenons convictions. Ce sont les impulsions les plus
dans le drame à la lutte des désirs ou des intérieures et les plus spirituelles qui
idées opposées consiste à “voir mettre en suscitent le plus d’imitation. Le croyant
relief, moins par des combats acharnés que communique sa foi avant de communiquer
par des situations singulières, son dogme ou encore l’imitation des idées
l’individualité réaliste de caractères précède celle de leur expression. Bref,
profondément originaux” (TARDE, 1897, l’imitation va du dedans au dehors.
p. 420). Le drame accentue des variations
et des différences. Il ne s’agit donc pas de Dans la mesure où ce ne sont pas des for-
dogmatiser la concurrence ou la guerre en mes comportementales qui se propagent
les proclamant raison supérieure, comme le mieux sur les rayons imitatifs, on
le fait la dialectique hégélienne. Il faut, au comprend que la proximité spatiale ait peu
contraire, se défaire des mythologies du d’importance – elle ne caractérise que les
combat et de la concurrence. “Une foules – par rapport à la simultanéité des
affirmation suscite habituellement sa convictions. De ce côté-ci, on peut songer
répétition, elle ne suscite que très rarement en effet à une expansion indéfinie des

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processus imitatifs, à condition d’accepter appelait économistes et qui étaient à nos
une alternance entre les moments sociologues actuels ce que les alchimistes
d’imitation et les moments d’invention. ont été jadis aux chimistes ou les
Ainsi, les interférences ne doivent pas être astrologues aux astronomes, avaient
considérées comme des obstacles au accrédité, il est vrai, cette erreur que la
rayonnement. Au contraire, l’imitativité société consiste essentiellement dans un
complète “implique la faculté de résister à échange de services ; à ce point de vue,
un e xemple isolé, à une influence tout à fait démodé du reste, le lien social
particulière” (TARDE, 1890b). C’est ce qui ne serait jamais plus étroit qu’entre l’âne
fait la différence entre les effets de et l’ânier, le boeuf et le bouvier, le mouton
conviction et les états hypnotiques et c’est et la bergère. La société, nous le savons
ce qui explique que l’imitation, loin maintenant, consiste dans un échange de
d’étouffer l’individu, tende à l’exalter: reflets” (TARDE, 1980b, p. 77-78).
l’individu est un être d’emprunt et de
combinaison alors que l’homme des foules Toute mémoire sociale s’inscrit dans un
est pris dans rapport d’identification. C’est espace d’échange de reflets. La sociologie,
d’ailleurs parce que les effets de conviction celle de l’anticipation féerique ou de la
interfèrent que l’amplification d’un fiction théorique, sera l’étude des effets de
processus ne conduit pas à son communication. Elle devra étudier
homogénéisation. “l’action de contact ou à distance – et à des
distances croissantes ou décroissantes
On se retrouve, alors, à l’opposé d’une suivant les temps” (TARDE, 1895b,
théorie de la manipulation. L a p. 134), science de la circulation des
caractéristique du fait social n’est pas d’être opinions dans les publics ou les foules, et,
imposée du dehors par la contrainte. Ni fondamentalement, sciences des conversa-
même par l’obligation ou l’identification : tions comparées. Après la catastrophe
“ce serait ne reconnaître en fait de liens glaciaire du XXVe siècle, c’est-à-dire après
sociaux que les rapports du maître au sujet, “l’apoplexie solaire”, l’échange de reflets
du professeur à l’élève, des parents aux sera réduit à la portion congrue; il ne sera
enfants, sans avoir nul égard aux libres plus qu’échange de singeries, mais pour
relations des égaux entre eux” (TARDE, le moment et tant que certains s’évertuent
1893, p. xi). Dans un essai de sociologie- encore à distribuer la rareté comme
fiction, Fragment d’histoire future (TARDE, principe d’analyse, il faut défendre l’idée
1980b), Tarde imagine un historien que la société est plutôt “une mutuelle
s’interrogeant sur le sens de ces fossiles de détermination d’engagements et de
la vie sociale que sont le paysan et l’ouvrier. consentements, de droits et de devoirs”
“Le rapport de l’ouvrier à son patron, de (TARDE, 1979, p. 66).
la classe ouvrière aux autres classes de la
population, et de ces classes entre elles, Il n’y a aucun principe structurant
était-ce un rapport vraiment social ? Pas immanent à l’univers de la répétition, il
le moins du monde. Des sophistes qu’on n’y a que cette “idole métaphysique” (TAR-

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DE, 1979, p. 66) que l’on appelle génie exemples ou, de manière plus imagée, le
d’un peuple ou d’une race, génie d’une principe du château d’eau. Ce principe
langue ou d’une religion. “Le génie veut qu’au moment où il hésite entre deux
sémitique, par exemple, était réputé séries d’exemples – deux manières de
absolument réfractaire au polythéisme, au parler, deux idées, deux croyances, deux
système analytique des langues modernes, façons d’agir – un individu peut surmonter
au gouvernement parlementaire” son embarras (c’est-à-dire passer d’une
(TARDE, 1898, p. 43-45). A partir de là, opposition sociale infinitésimale à une
dit Tarde, on n’est pas loin de soutenir la invention-adaptation infinitésimale aussi),
thèse d’une distinction entre les races en s’appuyant sur une “présomption de
inventives et les races serviles, mais de plus, supériorité”. Supériorité du patricien sur le
on conteste la possibilité d’un prosélytisme plébéien, du citadin sur le rural, du
conquérant, on nie le processus par lequel parisien sur le provincial, selon “une
un “génie populaire franchit ses limites et cascade de l’imitation” qui va de haut en
se montre capable notamment bas de l’échelle sociale (TARDE, 1898,
d’européaniser la Chine et le Japon”. On p. 53).
refuse ainsi de voir que le génie d’un
peuple n’est que la synthèse anonyme de Simplement il y a, à toute époque, une
ses originalités personnelles, “qu’il est supériorité reconnue, parfois à tort, et un
fonction et non facteur des génies échange inégal des exemples qui a pour
individuels, infiniment nombreux; il en est effet “d’acheminer le monde social vers un
la photographie composite, il ne doit en état de nivellement comparable à cette
être le masque”. On ne peut donc pas uniformité universelle de température que
solidifier ou substantifier les interactions la loi du rayonnement calorifique des corps
élémentaires, les faits de communication tend à établir”. Toute hiérarchie sociale
que le sociologue se donne pour objets. On obéit à un principe thermodynamique de
ne peut pas rendre compactes les fonctions circulation des flux du chaud vers le froid
de répétition ou d’imitation en les et elle a pour métaphore le château d’eau
rabattant sur un territoire. Le privilège parce qu’elle assure une fonction
explicatif de la conscience collective, d’expansion du système et qu’elle lutte
comme le privilège du local, du contre les forces de nivellement. Telle est
morphologique, sont tributaires d’une la fonction des noblesses d’ancien régime
métaphysique de l’identité et de la et des capitales d’aujourd’hui. “Ainsi le
substance. Ils ne peuvent donc convenir à moraliste d’aujourd’hui, pour prédire
une logique de la communication fondée quelle sera la moralité de demain, doit
sur la différence et l’interaction. avoir l’oeil sur les exemples donnés par
Autrement dit, les faits sociaux ne sont pas les grandes villes, comme le moraliste
des choses mais des emprunts. d’hier se préoccupait avec raison de ce qui
se passait au sein des cours, des salons ou
Deuxième principe structurant des châteaux” (TARDE, 1890a, p. 324-
extralogique, l’échange inégal des 328).

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2 OPPOSITION: LA BIFURCATION ANTHROPOLIGIQUE

Le principe de l’échange inégal des interprétations ultra-militaires de la vie


exemples est incapable de faire qu’une universelle” (TARDE, 1897, p. 423).
société prenne corps. A peine parvient-il
à assurer, de l’extérieur, l’expansion des Reste que jusqu’ici les faits sociaux (et les
rayonnements imitatifs. A vrai dire, il n’y sociétés) ne sont que des associations ou,
a peut-être pas de principe immanent ce qui revient au même, des mémoires. A
d’organisation du social chez Tarde. C’est son tour, la mémoire sociale demande à
que la société n’est ni un organisme, ni être structurée suivant deux axes : la
même une organisation. croyance et le désir seront l’équivalent des
formes a priori de la sensibilité chez Kant,
Il faut d’abord cesser de comparer les l’espace comme domaine de la crédibilité,
sociétés à des organismes pour commencer le temps comme champ du désir et de la
à les comparer entre elles (TARDE, 1898, volonté, comme “optatif catégorique”.
p. 51). On s’apercevra alors que ce sont Enfin, on découvrira ainsi que le vrai
des cerveaux. Plus une société se civilise, rythme de l’univers, comme celui de la
plus elle s’apparente à un cerveau, c’est-à- “ritournelle initiale” qui monte et
dire à un organe capable de mémoire redescend une gamme de notes, n’est que
(imitation) et d’opinion (interférence et “la tendance alternative du néant à l’infini
adaptation). D’autre part, à mesure qu’une (expansion) ou de l’infini au néant
société se civilise, elle se désorganise. Ce (concentration), plutôt que le passage... du
sont les sociétés animales qui, en effet, oui au non ou du non au oui” (TARDE,
méritent le mieux d’être appelées des 1897, p. 172, 188, 293).
organismes sociaux. Dans une société
d’abeilles ou de fourmis, l’individu est un La véritable opposition sociale est un duel
simple organe ou cellule qui s’immole au logique. Elle se laisse appréhender dans
tout. Les cités antiques où règne l’esclavage l’expérience de l’indécision pratique et
leur sont comparables. Par contre, dans les dans celle du jugement hésitant. Qu’est-
nations modernes, ce n’est qu’en temps de ce qui se passe dans l’esprit d’un soldat
guerre que les sociétés ont un caractère hésitant entre l’obéissance et
organique marqué (TARDE, 1893, p. 127- l’insoumission? Ou chez tous ceux qui
133). hésitent entre adapter ou répéter une
nouvelle locution, un nouveau rite, une
Mauvaise triade donc : celle de la solidarité nouvelle école d’art? Ces hésitations qui
organique, de l’opposition antagonique et donnent toute leur intensité au remords
de l’affirmation identitaire. Triade de la et au regret ou qui, plus généralement,
dialectique hégélienne ou des philosophies marquent la résistance aux emprises d’un
s’inspirant du darwinisme social, et en rayonnement imitatif et à l’orientation de
règle générale, de toutes “les son expansion ultérieure, sont les vraies

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oppositions sociales élémentaires. Les Il faut donc admettre la dualité de la
vraies oppositions ne sont pas des croyance et du désir, leur indépendance
contradictions mais des rencontres. “Cette réciproque, leur nature “magnétique” et
hésitation, cette petite bataille interne, qui le fait que cette “bifurcation” interne est à
se reproduit à des millions d’exemplaires la fois la source de toute innovation et une
à chaque moment de la vie d’un peuple, forme de résistance proprement
est l’opposition infinitésimale et infiniment anthropologique. C’est elle, “et nullement
féconde de l’histoire; elle introduit en quelque fiction politique telle que la
sociologie une révolution tranquille et prétendue séparation des pouvoirs, ou les
profonde” (TARDE, 1898, p. 68). soi-disant garanties constitutionnelles, qui
explique pourquoi il y a des limites à
Si l’on ne prend en compte que les l’oppression des esclaves par les maîtres,
représentations qui s’affrontent dans ces des peuples par les gouvernements, des
moments d’hésitation, on risque de revenir minorités par les majorités, dans le cas
au couple de l’affirmation et de la négation même où le pouvoir des oppresseurs est
et négliger ainsi les “degrés de conviction”. sans borne et où leur désir, conforme à leur
Or, ce qui se propage encore une fois, ce intérêt, est de l’e xercer en entier”
ne sont ni des sensations ni des (TARDE, 1890a, p. 28). Par conséquent,
représentations qui n’ont pas d’intensité les équilibres les plus stables dans les jeux
par elles-mêmes, contrairement à ce que de domination sont ceux qui sont fondés
prétend la psychophysique ; ce sont des sur la prédominance des forces les plus
forces, quantifiables en principe. subjectives. Autrement dit, ce ne sont pas
Autrement dit, les représentations ne les servitudes qui sont volontaires mais les
tirent leur intensité que de leur crédibilité assujettissements, les allégeances. Par
et de leur désidérabilité et il peut se faire exemple, l’une des formes les plus subtiles
par exemple que les convictions qui se et “civilisées” de la vie sociale, la
propagent soient à la fois fortes et conversation, doit beaucoup histori-
aveugles. Servant de support à des quement aux visites rituelles que l’on
représentations qualitativemen thétéro- rendait à son suzerain ou à son supérieur
gènes, il y a donc des croyances et des pour porter des présents. Il fallait alors
désirs dont seule la quantité varie. Dans échanger des remerciements protecteurs
l’instant pratique, dans l’instant de la et des compliments. Derrière la
décision, ces quantités sont jusqu’à un conversation, institution obligatoire, il y a
certain point mesurables et la conclusion donc la prière, forme très subjective
victorieuse dans “ces combats singuliers puisqu’elle n’est qu’une succession de
dont nous sommes à la fois les champs de monologues. Faiblesse de l’ondulation,
bataille et souvent les victimes est celle qui désert de la conversation rituelle. Aucune
s’appuie sur les désirs et les croyances les bifurcation ici entre croyance et désir
plus énergétiques” (TARDE, 1890a, p. 27- puisqu’il n’y a même pas interférence. Au
28). contraire, les conversations attentives, les
conversations duels, celles dont la vitesse

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est un signe de civilisation, se nourrissent Cette opposition est sociale et non
d’ondulations fortes, ou suffisamment psychologique, elle ne concerne pas deux
variables et irrégulières dans l’expression perceptions ou deux jugements sensitifs
pour s’apparenter au chant. La contradictoires, mais deux rayons d’exemples.
conversation devient alors l’art des Les moments d’hésitation sont des noeuds,
bifurcations et des harmonies et, pour faire des points de suture du rayonnement
l’histoire de cet art, il faut tenir compte imitatif. Ou bien ces noeuds cèdent sans
aussi bien de la diplomatie italienne, de la lutte interne, ou bien ils se renforcent pour
cour française, de la sophistique repousser le rayon d’exemple et ils sont
athénienne, des débats romains. A chaque alors les points de départ d’une nouvelle
fois, on suppose des égaux, ou des pairs contagion, d’un nouveau dogmatisme
(pares aut facit aut invenit), comme l’amitié. devenu plus intolérant et plus intense à
Mais il ne s’agit pas du tout de s’interroger mesure qu’il se répand. Rivalité de
sur la vérité de cette supposition ou de langues, rivalité de religions. Rivalités de
cette comparaison puisqu’il ne s’agit que courants de croyance.
de caractériser des flux. Par contre, on
peut déduire de cette présomption d’égalité Qu’y a-t-il de pire pour une société, se
que les bonnes propagations ou les bonnes demande Tarde : être divisée en partis et
assimilations supposent ce moment où la en sectes qui se combattent à coup de
bifurcation de la croyance et du désir est dogmes et de programmes, ou “être
vécue comme hésitation, intimidation. Ce composée d’individus en paix les uns avec
sont des moments de désubjectivation, de les autres, mais individuellement en lutte
suspens subjectif qui rappellent que tout chacun avec soi, en proie au scepticisme, à
fait réel de communication sociale compor- l’irrésolution, au découragement ?” (TAR-
te une part d’opacité intrinsèque (TARDE, DE, 1989, p. 85-86). La paix de surface
1989, p. 86-111). ou les guerres de religion, “l’arène de la
concurrence industrielle ou de la
La sociologie, qu’elle se donne pour objet compétition politique” ou “le malaise
des phénomènes interindividuels profond des âmes anxieuses, indécises,
(interpsychologie) ou des phénomènes découragées?” “Ce serait le dilemme offert
intra-individuels (intra-cérébraux), sera aux derniers rêveurs – dont je suis – de
non pas l’analyse des systèmes de repré- paix perpétuelle.” Dilemme qui se résout
sentations sociales comme le voulait par le mouvement propre du
Durkheim, mais l’étude des courants de rayonnement imitatif auquel les guerres,
croyances (Logique sociale) dans les elles aussi, sont soumises. Même les crises
langues, les mythes, les religions, les vont s’élargissant et aboutissent à des
sciences et la philosophie, et l’étude des “conflits grandioses mais sans férocité
courants de désirs (Téléologie sociale) dans aucune, entre des colosses nationaux que
les lois, les moeurs, les institutions et les leur grandeur même rend pacifiques”.³
industries. Tarde emprunte à la thermodynamique
le principe d’irréversibilité pour soutenir

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une thèse de philosophie de l’Histoire mondanité donc, comme morale
selon laquelle les guerres et les crises sont provisoire, du juste milieu, dans une
orientées vers la paix. Comme pour le évolution historique travaillée par les effets
passage de l’unilatéral au réciproque (du pervers de la mondialisation.
décret au contrat; du dogme à la libre
pensée; de la cour à l’urbanité) ou de Au-delà de ce point, la béatitude
l’expansion imitative à la mutualité, qui esthétique, la cérébralisation radicale de
caractérisent l’évolution de la société, il y la vie sociale, la capacité de dépasser une
a, de manière aussi irréversible, un misanthropie générale et de ré-enchanter
mouvement équivalent qui caractérise les le monde en étant attentif à “ce principe
organisations et les guerres et qui va du essentiel si volatile, la singularité profonde
“petit au grand, du petit très nombreux et fugitive des personnes, leur manière
au grand très rare”. C’est même parce que d’être, de penser, de sentir, qui n’est qu’une
tel est le sens historique de cette fois et n’est qu’un instant” (TARDE, 1979,
irréversibilité – la “mondialisation” des p. 424).
conflits – que Tarde tient à la microso-
ciologie, qui elle va du grand au petit, dans On retrouve ce même aboutissement, ce
“le monde des idées, miroir inversé du même lien esthétique de l’individualisation
premier”. et de la socialisation dans la critique que
fait Tarde des thèses durkheimiennes sur
Il y a pourtant un point où cette la division du travail. Premièrement, il ne
mondialisation s’arrête, avec le “retour de faut pas opposer solidarité organique et
l’esprit de nationalité” (étroitement lié au solidarité mécanique; la division du travail
militarisme). Ce point est aussi celui où le n’est rien sans la communauté des
flux de l’imitation a ses rivages, et où le croyances et des sentiments. “L’assimilation
besoin de sociabilité diminue (TARDE, des individus par contagion imitative et
1979, p. 423-424). En ce point, leur différenciation par coopération
s’équilibrent deux mouvements: celui où laborieuse – leur assimilation comme
la communication est en défaut et celui où consommateurs de livres et de journaux,
elle est en excès. Le penchant à imiter de vêtements, d’aliments, de plaisirs même
l’étranger, dit Tarde, “ne va pas croissant et de satisfactions quelconques, et leur
à mesure que les relations avec lui vont se différenciation comme producteurs –, vont
multipliant [...] Quand on le connaît trop, progressant parallèlement et non pas l’une
pour pouvoir continuer à l’admirer ou à aux dépens de l’autre”. Il arrive même que
l’envier, on cesse de prendre modèle sur la solidarité organique précède la solidarité
lui.” Le point au-delà duquel la mécanique, dans le cas des échanges
communication risque de faire elle-même internationaux. Tout lien social se fortifie
interférence, de devenir bruit, est donc donc des similitudes et en produit toujours
celui “où l’on est assez rapproché pour de nouvelles. Deuxièmement, il faut, à titre
avoir toute l’illusion du décor et pas assez de postulat théorique, accorder aux
pour apercevoir les coulisses”. L a différences la primauté sur les similitudes.

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Elles en sont l’origine de fait et le raison, et le savant a tort [...] En consacrant
fondement esthétique et scientifique. La de la sorte une portion de notre temps et
curiosité scientifique et le monde de la vie de notre pensée toujours moindre aux
s’attachent à “l’étincelante fantaisie” plus occupations qui nous spécialisent
qu’aux routines héréditaires. Contre “les professionnellement et une proportion
empiétements d’un socialisme mal toujours plus grande à celles qui nous
compris”, il faut donc répéter qu’exister, humanisent, qui tout en nous assimilant,
c’est différer et que la différenciation nous diversifient chacun dans notre sens
sociale a une histoire bien plus ancienne individuel, nous mettons la division du
que celle que Durkheim lui prête. Par travail à son véritable rang, nous affirmons
exemple, dans l’Antiquité, la grande sa subordination nécessaire à notre
division du travail était religieuse et surtout socialisation et à notre individualisation
linguistique: elle séparait les parleurs et les simultanément croissantes. Qu’on me
auditeurs, le scribe et les lecteurs. En ce pardonne ces deux barbarismes”.
sens, la première corporation sociale a été (TARDE, 1998a, p. 191-192).
le corps oratoire. Or, quel est le destin de
ces premières versions de la division du On voit le fossé qui sépare Tarde de ses
travail? Elles s’atténuent progressivement contemporains darwiniens ou
par un passage de l’unilatéral au durkheimiens. Le monde qu’il décrit, non
réciproque. Dans le cas de la langue et de seulement ne laisse à l’opposition que la
son usage, on peut parler d’un “passage portion congrue - c’est l’adaptation qui
de la division à l’uniformisation du travail”, donne son sens à la crise et le contrat qui
selon un processus inverse de celui que succède logiquement à la domination –
décrit Durkheim puisque tout le monde mais de plus, c’est un monde qui a une
finit par être tour à tour producteur et courbure particulière, proprement
consommateur de la parole. Troisiè- féerique, puisqu’elle va de la diversité
mement enfin, cette victoire de la empirique à la singularité esthétique. C’est
cela l’originalité de Tarde: penser le
réciprocité va de pair avec une multiplica-
mouvement qui va de la différence à la
tion des modèles, “de sorte que plus ils
singularité comme un mouvement à la fois
s’imitent socialement, plus ils se
socio-historique et microsociologique. On
différencient individuellement. Différen- peut estimer que cette pensée est tributaire
ciation de luxe celle-là, bien différente de de sa position qui lui permet de maintenir
la différenciation utile qui produit et entière l’illusion du décor. Mais on peut
requiert la division du travail. Mais celle- songer aussi aux tentatives actuelles pour
ci n’aura été que l’instrument inconscient fonder une “sociologie des circonstances”
et nécessaire de celle-là, qui est sa raison ou pour substituer à la notion d’intérêt
d’être. Toute évolution est suspendue à celle de face ou de visage, pour
l’attrait de ce cachet unique qui spécialise comprendre que le discours de Tarde
tout être vivant non pour le travail, mais parvient à éviter les apories d’une science
pour le plaisir, non pour l’utilité, mais pour de l’individu tout en n’étant pas un simple
la beauté du monde. L’artiste a donc “wishful thinking”.

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3 ADAPTATION: LA SIMULTANEITE DES CONVICTIONS

Il faut se garder de tout malentendu sur compositions qui, à leur tour s’ajustent au
la notion d’adaptation. C’est à la fois la plus milieu. S’il faut remonter de l’adaptation
importante des trois catégories à la fois du vivant à la formation d’agrégats, c’est
physiques et sociales que distingue Tarde que ce procès de composition nous
et c’est le troisième moment de sa logique. rapproche du creuset du chimiste. C’est
L’adaptation n’est rien d’autre que le là, par ailleurs que les “cause-finaliers”
moment de l’invention, c’est-à-dire de la (TARDE, 1898, p. 121) doivent chercher
coproduction. C’est toujours cette idée la sagesse du monde et non plus dans
d’une simultanéité créatrice, créatrice de flux, l’immense coupole des cieux et c’est ainsi
de liens, de publics. L’espace social de qu’ils admettront qu’il n’y a pas une fin
l’invention, marqué par la circulation des dans la nature, mais “une multitude infinie
croyances et des désirs, ne saurait être de fins qui cherchent à s’utiliser les unes
désaffecté: il est magnétisé. Dans le les autres” (TARDE, 1898, p. 122). Dans
vocabulaire des ondes et des flux, l’univers du vivant, la forme première de
l’adaptation est d’abord une conjonction; cette composition des fins, c’est “l’ovule
mais cette conjonction est particulière. Si fécondé, l’intersection vivante de lignées
l’imitativité était complète, dit Tarde, les qui se sont rencontrées là, en un
figures sociales prépondérantes seraient croisement parfois heureux”. Dans le
les figures de la fascination et relèveraient domaine social, les adaptations
de ce qu’il appelle une théorie de élémentaires – réponses (en paroles ou en
l’irresponsabilité. Or les courants de fait) à des questions (verbales ou tacites) –
croyance de la logique sociale qui se ma- sont des phénomènes interactionnels ou
nifeste dans les mythes, les religions, les intra-individuels. A la limite (micro), et à
langues, les sciences et la philosophie, ou l’opposé d’une philosophie de l’histoire,
les courants de désirs qui construisent la les adaptations sociales élémentaires, dit
téléologie sociale des lois, des moeurs et Tarde, sont à chercher “dans le cerveau
des institutions, sont des rencontres. même” (TARDE, 1898, p. 129) dans le
Accouplements logiques ou interférences génie individuel de l’inventeur. Non pas
heureuses, bonheurs d’expression ou qu’il faille prendre le contrepied de ceux
petites révoltes individuelles contre la qui s’opposent à la théorie des causes
morale courante, ces courants s’inscrivent individuelles en histoire pour rappeller le
dans des flux particuliers qui ne sont pas rôle des grands hommes. Ce n’est pas
imitatifs et uniformisants mais inventifs et d’eux qu’il s’agit, mais des grandes idées,
systématisants. “souvent apparues en de très petits
hommes, et même de petites idées,
Dans l’univers physique, les adaptations d’infinitésimales innovations apportées par
sont des équilibres mobiles (le bassin d’un chacun de nous à l’oeuvre commune”
fleuve ou le mouvement des nuages). Ces (TARDE, 1898, p. 145-146). Inventions
équilibres forment des agrégats ou des ordinaires donc, à chercher par exemple
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dans le parler ordinaire de telle ou telle ou formules démocratiques. Avec ce type
province pour comprendre les mutations de lien, ce n’est pas la division du travail
d’une langue. Adaptations multiples et des économistes qui progresse, c’est la
précises, nullement arbitraires ou coordination de différents cercles sociaux
totalisantes. Contre Durkheim qui voit qui se propage. “Ce que veut la chose
dans l’imposition le ressort de la chose sociale avant tout, comme la chose vitale,
sociale, Tarde (1898, p. 150) veut remonter c’est se propager et non s’organiser”
de “l’impériosité actuelle” à la “persuasivité (TARDE, 1979, p. 80).
antérieure”. Ceci a plusieurs
conséquences: méthodologique d’abord,
Puisque le public est la forme la plus haute
puisque le sociologue devra procéder par
de la socialité, la plus complexe et la plus
“monographies narratives” (à distinguer
différenciée, on peut reconstituer la
des “monographies descriptives”), les
logique de l’adaptation comme une
seules qui lui permettront de saisir le
phénoménologie clinique de l’esprit qui
travail des adaptations. “Ce sont les
s’articulerait autour de trois figures :
changements sociaux qu’il s’agit de suspendre
l’idiot, le somnambule et le timide.
sur le vif et par le menu pour comprendre
Phénoménologie de l’adaptation que l’on
les états sociaux et l’inverse n’est pas vrai”
peut lire comme une série d’agencements
(TARDE, 1898, p. 153, nota 1).
d’énonciations individuelles et
Conséquences cliniques aussi, si l’on veut
d’énonciations collectives (la foule, la
comprendre la nature des inadaptations.
relation spéculaire, l’expérience du
C’est parce que les adaptations sont
public).
multiples et précises, parce qu’à une
question donnée, mille réponses sont
Première figure, la plus pauvre: l’homme
possibles, que “les inadaptations sociales
des foules. Figure primaire de la
se révèlent douloureuses, énigmatiques, communication des esprits puisqu’elle as-
justification de tant de plaintes” (TARDE, simile celle-ci à la contagion. L’homme des
1898, p. 150). Aux multiples inventions foules est mutilé. Il ne dispose pas de cette
ordinaires constitutives du changement bifurcation anthropologique qui lui
systématique, correspondent donc des permettrait de ne pas être le pur et simple
inadaptations singulières, toujours jouet des rayonnements imitatifs. Il subit
émergentes et circonstanciées. Consé- la loi de la répétition, sa manière
quences enfin sur le lien social et sa d’intégrer l’infini dans le fini est
dynamique. La conformité des croyances précisément infinitive. Foules
se produit toujours “peu à peu et de intolérantes, mono-idéiques; individus
proche en proche”, par contagion plus que fonctionnant au courant continu, n’ayant
par coopération mutuelle. C’est une guère de croyances et énormément de
coproduction plus qu’un réel rapport de convictions, se nourrissant de contacts
réciprocité. A titre d’exemple: le lien so- physiques, de répétition du semblable sans
cial “entre Européens de diverses complication. L’idiotie de l’homme des
nationalités”: il s’appuie sur des procédures foules est au fondement de toutes les for-
de toutes sortes, formalités de la politesse mes sociales proches de l’unisson. S’il faut
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donc diagnostiquer l’ère des foules, on imitatif, mais la fixation ne s’obtient que
peut rappeler le principe selon lequel le par procuration. Le somnambule est
procès de civilisation diffère d’une irresponsable par lui-même; seule
contagion (intuition équivalente chez Park l’emprise qu’il subit et qui est de type
qui se réfère aux “catastrophes” hypnotique peut faire qu’il soit plus qu’un
migratoires comme élément de automate, “une personne qui a son
discontinuité du procès) et en conclure que caractère, ses aversions, ses préférences”.
la foule est un groupe social primaire. Les On est là, dit Tarde, au point de jonction
courants d’opinion ne naissent pas dans expérimental de la psychologie et de la
les rassemblements de rue. Ils sont créés, sociologie. D’une psychologie simplifiée,
au contraire, par des gens qui ne se mais non mécaniste, et d’une sociologie
coudoient pas, ne se voient ni ne également élémentaire des associations
s’entendent. Notre âge n’est pas “l’ère des unilatérales. Etat social naissant tout de
foules”. Un rapport social implique dans même. “N’avoir que des idées suggérées
son concept la répétition du différent ; c’est et les croire spontanées: telle est l’illusion
une assimilation compliquée qui renvoie propre au somnambule et aussi bien à
non à un unisson mais à un accord. Certes, l’homme social” (TARDE, 1979, p. 83).
travaillé par les lois de l’opposition, l’esprit Forme d’adaptation si l’on veut qui
des foules engendre l’esprit de secte. Mais n’aboutit qu’au transitivisme. Forme
il s’agit là de son semblable, objectivement d’adaptation spéculaire par “échange de
et théoriquement subordonné, une forme reflets”. Au contraire, “l’imitativité
sociale qui cumule des désirs semblables complète, la faculté de subir des influences
et des croyances semblables. Pareillement de tous genres et de toutes parts, impli-
nulles dans le cas de la foule, pareillement que la faculté de résister à un exemple
sophistiquées dans celui de la secte. On isolé, à une influence particulière”.
peut donc faire l’aller retour du grand au
petit et du petit au grand avec la même Mais la figure la plus importante, celle qui
carte, les mêmes formes de mobilisation convient à l’analyse des publics, c’est le
identitaires (unilatérales et non timide., celui qui est momentanément
réciproques). Ce sont des formes démagnétisé et qui fait l’expérience de la
d’identification, mais elles ne sont ni dépossession de soi: “paralysie momentanée
socialisantes ni individualisantes. Elles
de l’esprit, de la langue et des bras,
n’inventent rien (TARDE, 1890a, p. 319).
perturbation profonde de tout l’être”.
Deuxième figure: le somnambule. L’esprit L’intimidé s’échappe à lui-même et tend à
du somnambule est “un firmament éteint devenir maniable et malléable par autrui.
à une étoile près”, ou alors, selon une autre “Mais au contraire de l’homme des foules ou
métaphore c’est l’état mental du citadin, du somnambule, il nage à contre-courant. Du
engourdi et surexcité tout à la fois, c’est coup, il s’immobilise gauchement, assez fort
l’être social lui-même comme être de pour neutraliser l’impulsion externe, mais non
fascination. Premier ancrage dans le flux pour reconquérir son impulsion propre”

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(TARDE, 1979, p. 93). C’est de cet équilibre regard d’autrui et de son action. De plus, dans
précaire et gauche que peuvent surgir les la formation des publics, la fonction
véritables adaptations, celles qui tentent de d’amplification ne recouvre pas
conjuguer activement les interférences parce nécessairement la fonction d’homo-
qu’elles se trouvent au point de rencontre de généisation. Au contraire, le premier
deux rayons d’exemples. La timidité est “un public, celui des lecteurs de la Bible après
état social naissant, qui se produit toutes les l’invention de l’imprimerie, a eu la
fois qu’on passe d’une société à une autre, ou sensation de former un corps social
qu’on entre dans la vie sociale extérieure au nouveau, détaché de l’Eglise. Ainsi, et parce
sortir de la famille”. La timidité, c’est donc la que l’on peut appartenir à plusieurs
figure même de la transition, qui convient publics alors qu’on ne peut appartenir
particulièrement à une socialisation conçue qu’à une seule foule, le public est une for-
comme désorganisation progressive. Notre me sociale qui conjugue socialisation et
âge, dans la mesure où il multiplie les occasions
différenciation. Conformément au
de croisements et d’interférences des publics,
principe de la cascade, il relance le
serait ainsi l’âge des tyrannies de
l’intimidation. rayonnement imitatif en le démultipliant
toujours plus, comme une “force à la fois
Mais, en même temps, l’expérience de la dissolvante et régénératrice” (TARDE,
timidité est l’expérience publique par 1989, p. 46).
excellence et, à ce titre, elle est la marque des
adaptations les plus fécondes, c’est-à-dire des Le programme que propose la sociologie
seules adaptations qui soient inventives. Le de Tarde est explicite: monographies
public lui-même, comme forme dispersée de narrative ou conversations comparées sont
la foule, est contemporain de l’invention de là pour rappeler que la socialisation est
la presse qui rend possible la lecture toujours un drame, et que la forme dramatique
quotidienne et simultanée d’un même est celle qui correspond le mieux à cette
ensemble d’informations, d’une même série résolution adaptative telle qu’elle est vécue dans
de rayonnements imitatifs. Cette simultanéité l’intimidation. On comprend pourquoi il ne
de conviction qui caractérise une opinion peut pas y avoir de bonne méthode des
publique telle qu’elle est constituée par la récits de vie. Le récit est une forme pauvre,
presse, explique que “la formation d’un public qui néglige ce “temps d’individualisme
suppose une évolution mentale et sociale bien momentané, de dissolution sociale en
plus avancée que la formation d’une foule” attendant une réorganisation sociale”.
(TARDE, 1989, p. 38-39). En effet, un public L’évolution sociale se traduit donc par une
suppose l’action d’une suggestion à distance évolution parallèle en littérature: du récit
qui n’est possible que chez des individus qui au drame, ce qui est pris en compte, c’est
ont déjà l’habitude de la vie sociale intense, de le concours et le conflit de deux croyances
la vie urbaine. Les citadins disposent, en ou de deux désirs. Le drame met en scène
quelque sorte, d’une pré-connaissance du cette bifurcation essentielle dans la théorie
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microsociologique et qui se manifeste dans dans l’unité de temps la forme structurante de
un moment d’hésitation, dans l’expérience la communication sociale comme
de la timidité en public. Ainsi se confirme coproduction (ou co-adaptation) simultanée
finalement la rigueur d’un regard de désirs et de croyances. Affranchis de
sociologique qui, fasciné par la féerie du divers, l’espace, délocalisés, les publics demeurent
tente de retrouver dans l’unité de situation et attachés au temps de l’irrésolution et de
l’invention, c’est-à-dire à l’actualité.
ABSTRACT
There are two big sociological mistakes, says Tarde: two big lures. The
panoramic lure that makes us believe that the order of the facts is only
audible if one comes out of their essentially irregular detail” to rise very
loud as far as kissing a panoramic view of big wholes”; and the historic
lure that consists in locking the social facts in formulas of development
in. These are lures because there is, says Tarde, more of logic in a sentence
that in a speech, in a” special ritual that in a whole creed”. But to really
understand the mistake of the “panoramic” sociologies and the sociologies
of the development it is necessary to accept that the social logic is not a
logic of the addition. The special ritual of which speaks Tarde is not a
total social phenomenon because the logic that enlivens it is a logic of the
adaptation that wants to say, in his/her/its language, a logic of the
invention and the coproduction of the sense. The logic of a social
fact, it is the mode according to which he/it is producer of ties. Here
is why the social facts don’t have anything natural. On the contrary
they are perfectly enigmatic, these are always adaptations inventive.
A social report is never the report of a copy to his/her/its model, it is
the answer to a question and there is an association of ideas in the
bottom of all association between the men.
If one doesn’t see in Tarde that the contemporary of The Good, one
risks to pass next to what makes his/her/its actuality therefore: Tar-
de is not interested to the psychology of the crowds but proximity is
freed to the social as it, of an undulatory physics raises as it. The
formation of the opinions doesn’t have anything to see with the
strategies of the suggestion. A public is quite a social fact foreign to
the metaphors of the crowd. Everybody is seated”, each at home,
reading the same newspaper and dispersed on a vast territory“.

NOTES
1
Dans sa thèse publiée en allemand, Masse und Hume et Smith et s’inspire largement de Tarde
Publikum (1972), Robert Park compare la théorie dans son analyse de la foule et du public comme
de l’imitation à la théorie de la sympathie chez formes de socialité émergente. Rappelons
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également que Tarde est, avec Simmel et strictement proportionnés à leurs causes, la
Durkheim, un des auteurs de référence nature, qui est prodigue, met dans la cause
majeurs du fameux manuel de sociologie de bien plus qu’il n’est requis pour produire l’effet.
Robert Park et Ernest Burgess, Introduction to Tandis que notre devise à nous est Juste ce qu’il
the Science of Sociology, Chicago University Press faut, celle de la nature est Plus qu’il ne faut, trop
(1921), qui sera la bible de la discipline pour de ceci, trop de cela, trop de tout, la réalité,
deux générations d’étudiants américains des telle que la voit James, est redondante et
années 20-40. surabondante.” (“H. Bergson sur le
2
“Tandis que notre intelligence avec ses habitudes pragmatisme de William James”, in La Pensée
d’économie se représente les effets comme et le mouvant, Paris, P.U.F., p. 240).
3
Ibid., p. 88-89

REFERENCES
PARK, Robert. The crowd and the public. Chicago: University of Chicago Press, 1972.
______; BURGESS, Ernest. Introduction to the science of sociology. Chicago: Chicago
University Press, 1921.
TARDE, Gabriel. Archives d’Anthropologie criminelle. Paris: Alcan, 1904a.
________. Genive: Slatkine, 1980a.
TARDE, Gabriel. Essais et mélanges sociologignes. Lyon: Storck et Maloine, 1895a.
________. Paris: Synthélabo, 1998a. (Les empêcheurs de penser en rand).
TARDE, Gabriel. Fragment d’histoire future. In: ______. Archives d’anthropologie
criminelle. Paris, Alcan, 1904c.
________. Genive: Slatkine, 1980b.
TARDE, Gabriel. La logigue sociale. Paris: Alcan, 1893a.
________. Les lois de l’imitation. Paris: Alcan, 1890b.
________. Genive: Slatkine, 1979.
________. Les lois sociales. Paris: Alcan, 1898.
TARDE, Gabriel. Monodologie et sociologie. In: ______. Essais et mélanges sociologigues.
Lyon: Storck et Maloine, 1895b.
______.______. Paris: Synthélabo, 1998b. (Les empêcheurs de penser em rond).
TARDE, Gabriel. L’opinion et la foule. Paris, Alcan, 1904b.
______.______. Paris: PUF, 1989.
TARDE, Gabriel. L’opposition universelle. Paris: Alcan, 1897.
________. La pensée et le mouvemant. Paris: PUF,¿
________. La philosophie pénale. Lyon: Storck et Moloine, 1890a.
TARDE, Gabriel. Préface. In: ______. La ligogue sociale. Paris: Alcan, 1893b, p. xi.

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ESTRATÉGIAS COLETIVAS E LÓGICAS


DE CONSTRUÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES DE
AGRICULTORES NO NORDESTE SEMI-ÁRIDO
ERIC SABOURIN*
Este trabalho procura sistematizar as dinâmicas de organização
dos agricultores familiares do Nordeste brasileiro, a partir de exem-
plos em vários municípios do Sertão nordestino. A primeira parte
trata da origem e das lógicas das diferentes formas de organização
dos produtores existindo hoje. Na segunda parte, são identificadas
as transformações dessas organizações nas duas últimas décadas.
São analisadas, em particular, três principais tendências de estra-
tégia coletiva em matéria de coordenação e organização dos agri-
cultores familiares da região. O texto conclui com observações so-
bre a institucionalização do processo de organização dos produto-
res e sobre a necessidade de reconhecer os fundamentos
socioeconômicos da reciprocidade, junto com os paradigmas mais
clássicos do interesse individual e do holismo.
Palavras-chave: agricultura familiar, ação coletiva, reciprocidade
camponesa, organização de produtores, associações, Nordeste.

INTRODUÇÃO
No Sertão nordestino, a criação de asso- criação de organizações que deviam facili-
ciações de agricultores familiares é recen- tar o acesso dos “pequenos produtores” à
te. Teve início nos anos 80, com a inter- inovação, ao crédito e aos investimentos
venção do Estado, nas trilhas das comuni- comunitários. Novas estruturas de organi-
dades de base da Igreja Católica, por inter- zação voluntária foram-se agregando às
médio dos programas especiais de luta formas preexistentes de organização rural
contra a seca (Pólo-Nordeste, Projeto Ser- nordestina. Essa superposição coloca a
tanejo, Programa de Apoio ao Pequeno questão das lógicas de coordenação da ação
Produtor Rural – o PAPP, ou Projeto São coletiva e dos instrumentos teóricos dispo-
José). Tratava-se de promover a “partici- níveis para abordá-la.
pação” da população rural por meio da

*
Engenheiro agrônomo e doutor em Antropologia, pesquisador do CIRAD Tera (Centro de Cooperação
Internacional em Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento); professor visitante na Universidade
Federal da Paraíba, Campina Grande-PB (Programa de Pós-graduação em Sociologia). Consultor do
Programa Nacional de Pesquisa sobre Agricultura Familiar da Embrapa e da AS-PTA Nordeste (Assesso-
ria, Serviços a Projetos de Agricultura Alternativa).

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Crozier e Friedberg (1977, p. 13-30) lem- O individualismo (metodológico) pre-
bram que a ação coletiva ou “ação organi- tende que todas as ações, regras ou ins-
tituições provêm dos cálculos mais ou
zada” não é um fenômeno natural, mas menos conscientes e racionais efetuados
“uma construção social cuja existência co- pelos indivíduos. O holismo [...] colo-
loca diversos problemas, a começar pela ca, ao contrário, que a ação dos indiví-
explicação das suas condições de emergên- duos (ou dos grupos, das classes, das
ordens) não passa da expressão de uma
cia e de permanência”.1 Em outros termos, totalidade preexistente e determinante
a ação coletiva trata de elaborações sociais [...] que coloca uma série de obrigações,
como as regras, as normas ou as conven- constrangimentos ou dívidas.
ções. Segundo os mesmos autores, a orga-
nização constitui um instrumento da ação O terceiro paradigma, o da reciprocidade
coletiva que pode ser definida em relação ou da dádiva, é, segundo Caillé (1998,
a um conjunto de ações; mas cabe distin- p. 76),
guir os principais motores dessa ação co-
letiva. incompreensível para os dois preceden-
tes [...]. O primeiro dissolve a dádiva
no interesse – individual ou coletivo –
Na visão inspirada do individualismo e o segundo na obrigação[...]. O
metodológico de Olson (1978, p. 22) ou paradigma da dádiva não nega a exis-
de Reynaud (1993), a ação coletiva (defesa tência desses dois momentos, da indi-
dos interesses comuns de um grupo, promoção vidualidade ou da totalidade, mas não
aceita considerá-los como os únicos da-
de um objetivo coletivo) apenas é realizada dos de base.
por obrigação imperativa ou quando as-
sociada a benefícios (ou interesses) indivi- Caille prossegue: “O paradigma da reci-
duais dos membros do grupo. Para os eco- procidade faz da dádiva (e do seu símbolo
nomistas, como Livet e Thevenot (1994, político), o operador privilegiado, especí-
p. 139), a noção de ação coletiva é amplia- fico da criação dos laços sociais.”
da à “atuação de várias pessoas [...] quan-
do a conjunção dos seus atos permite cons- Para caracterizar os diversas modos de
tatar uma certa ordem, uma certa coorde- construção das organizações de produto-
nação”, o que qualifica pouco a natureza res na realidade nordestina, recorrer-se-
das dinâmicas consideradas que vão do á, portanto, à identificação das formas de
utilitarismo radical até as abordagens combinação ou de oposição entre as lógi-
convencionalistas. cas associadas a esses três paradigmas: in-
teresse individual, obrigações sociais e re-
Caillé (1998, p. 76) sintetiza a controvér- ciprocidade. As análises são ilustradas por
sia entre as diversas teorias pretendendo diversos casos de organização de agricul-
explicar as lógicas que regem o compor- tores nos municípios de Pintadas e
tamento dos indivíduos e dos grupos. Se- Massaroca (BA), Petrolina, (PE) e Tauá
gundo Caille, elas se repartem no seio de (CE). Com a exceção dos pequenos colo-
três paradigmas, dois deles amplamente
nos dos perímetros irrigados públicos de
reconhecidos, mas redutores, e um tercei-
Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), trata-se de
ro de entendimento mais complexo.
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pequenos criadores e agricultores familia- ferências públicas (frentes de emergência,
res do Sertão, reunidos em comunidades. créditos subsidiados, aposentadoria) e pri-
Parcialmente ou totalmente integrados ao vadas (remessas de familiares assalariados
mercado, vivem principalmente da pecu- ou migrantes). A primeira parte do texto
ária mista (caprinos e ovinos ou pequenas trata da diversidade das formas de orga-
unidades de bovinos leiteiros) e da nização desses pequenos produtores do
policultura de sequeiro (consórcios milho- Sertão. Optou-se por tratar o tema a par-
feijão-mandioca e cultivos forrageiros). tir de um ponto de vista comparativo mais
Durante os períodos de seca prolongada, geral, considerando as várias formas de
a renda familiar é complementada pela organização possíveis, em vez de exami-
pluriatividade (migração temporária, nar alguns poucos casos em maior profun-
assalariamento diarista, empregos nas pre- didade. A segunda parte analisa as princi-
feituras locais, mineração, pequeno comér- pais estratégias coletivas de coordenação
cio de produtos caseiros etc.) ou por trans- no seio dessas organizações e entre elas.

1 A DIVERSIDADE DA ORGANIZAÇÃO DOS PRODUTOS

No Sertão nordestino, mudança técnica e Entende-se por reciprocidade a dinâmica


mudança social são estreitamente associa- de dádiva e de redistribuição criadora de
das ao processo de organização dos atores sociabilidade (lien social), identificada por
locais e, no caso que nos interessa, dos agri- Mauss (1950/1977, p. 145-279) como pres-
cultores familiares. Se a criação das coo- tação total e verificada em todas as socieda-
perativas e associações de produtores no des humanas desde que Levi-Strauss
Nordeste é recente, esse é também o caso (1960/1977, p. xlvi-lii), mostrou que as es-
das comunidades (AMMAN, 1985, p. 27). truturas elementares do parentesco são
De fato, as mudanças sociais não depen- ordenadas pelo princípio de reciprocida-
dem unicamente das organizações formais, de. Segundo Caille (1998, p. 76), o
mas também da estruturação de relações paradigma da reciprocidade ou da dádi-
interpessoais que asseguram um papel de va aplica-se “a toda ação ou prestação efe-
interface entre a sociedade local e a socie- tuada sem expectativa imediata ou sem
dade global (BERTHOMÉ;MERCOIRET, certeza de retorno, com vista a criar, man-
1997, p. 11). Existe, portanto, uma rela- ter ou reproduzir a sociabilidade (lien soci-
ção entre as formas da ação coletiva e as al) e comportando, portanto, uma dimen-
instituições ou relações onde essas ações são de gratuidade” (tradução nossa).
são definidas e implementadas. No Sertão
do Nordeste, a família, o sítio, a comuni- Temple (1999, p. 3) distingue, assim, o in-
dade rural, as redes de proximidade já tercâmbio ou a troca da reciprocidade: “A
existiam antes da criação das organizações operação de intercâmbio corresponde a
formais e continuam sendo, em grande uma permutação de objetos, enquanto a
parte, regidos pela reciprocidade campo- estrutura de reciprocidade constitui uma
nesa. relação reversível entre sujeitos.”
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O sindicato, a cooperativa ou a associação dos, pertencem à categoria das organiza-
de produtores, formalizados num quadro ções profissionais de agricultores, geral-
jurídico reconhecido pela sociedade nacio- mente regida pelas lógicas do interesse in-
nal e regulados por estatutos padroniza- dividual ou coletivo.

1.1 ESTRUTURAS INFORMAIS E PERMANÊNCIA


DA RECIPROCIDADE CAMPONESA
Na zona rural do Sertão, as comunidades, O uso do termo comunidade é recente,
as redes de proximidade, as relações fami- tendo sido introduzido pela ação pasto-
liares e interfamiliares, as prestações de ral da Igreja Católica durante os anos
ajuda mútua constituem formas de relacio- 1960-70, através das Comunidades Eclesiás-
namento e de organização reguladas pela ticas de Base. A comunidade reúne ainda
reciprocidade camponesa (SABOURIN, “as famílias que rezam juntas” e não ape-
2000). O funcionamento das organizações nas as da religião católica. A comunidade
informais vem do reconhecimento pelo de Caldeirão do Tibério, por exemplo, só
grupo local de regras transmitidas de uma tem famílias evangélicas. Permaneceu o
geração a outra e garantidas pela autori- termo comunidade, mais “moderno” que
dade dos chefes de família. Desenvolvem- sítio, na medida em que foi reutilizado pe-
se, a partir delas, os exemplos da organi- los programas de “ação comunitária”
zação em sítios ou comunidades, das pres- implementados pelo Estado durante os
tações de ajuda mútua, o “mutirão”, e das anos 70-80 (AMMAN, 1985).
redes de proximidade.
A comunidade, tradicionalmente dirigida
· As comunidades: O exemplo do distrito de por um conselho informal de chefes de
Massaroca - Juazeiro (BA) família, gerencia o acesso à terra (pasta-
gens comunitárias, práticas de meia), a
Os sítios ou comunidades reúnem, geral- redistribuição ou o intercâmbio de traba-
mente, produtores e moradores ocupan- lho (o mutirão, a troca de dias) e a solida-
do as terras de uma antiga fazenda dividi- riedade interfamiliar. Esta manifesta-se
da por heranças sucessivas ou por transa- por meio da doação de alimentos ou aju-
ções. Muitas vezes, a comunidade mante- da sem retorno automático, nos casos de
ve o nome da fazenda de origem. Os mem- má colheita, acidente ou doença numa das
bros do sítio ou da comunidade são então famílias. Essas práticas foram limitadas pe-
descendentes de um antepassado comum, las secas repetidas dos últimos anos e se
fundador ou ex-proprietário da fazenda. reproduzem nos momentos de relativa
Na comunidade de Lagoinha, em 1991, so- abundância. É quando são pagas as pro-
bre 110 habitantes, apenas sete pessoas não messas feitas ao santo padroeiro da comu-
eram descendentes do fundador da Fazen- nidade ou a um dos santos populares no
da Lagoinha (TONNEAU, 1994, p. 164). Nordeste (São Gonçalo, São Cristóvão),

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pelas danças ou “rodas” para as quais são A regulação das diversas formas de mutirão
convidados vizinhos, amigos e parentes da é característica da lógica de reciprocida-
família que organiza a festa (LANNA, de. Trata-se de solidariedade na produ-
1995, p. 187-190). A lógica do sistema de ção e de redistribuição da força de traba-
reciprocidade não considera a produção lho no seio da comunidade. Esta não é
exclusiva de valores de uso ou de bens co- obrigatoriamente igualitária, já que o re-
letivos, mas a criação do ser, da sociabili- torno não é imediato e não tem nem uma
dade. Se para “ser socialmente” precisa dar; contagem nem uma necessária simetria das
para dar, precisa produzir. Assim, a reci- prestações. Até pode existir certa concor-
procidade é marcada e respeitada de ma- rência na redistribuição de alimentos ou
neira privilegiada entre aqueles que par- bebidas entre as famílias, já que a prodi-
galidade confere prestígio e fama que são
ticipam das mesmas estruturas de produ-
fontes de autoridade ou de poder nos sis-
ção ou de parentesco.
temas regidos pela reciprocidade
(TEMPLE ; CHABAL, 1995, p. 17-30).
· O mutirão Temple (1983, p. 27-28), a partir de ob-
servações entre comunidades camponesas
O termo mutirão2 pode designar dois ti- da América do Sul, já propunha conside-
pos de ajuda mútua: uma tem a ver com rar a reciprocidade não como uma “con-
os bens comuns e coletivos (construção ou tra-dádiva” igualitária (a dualidade da tro-
manutenção de estradas, escolas, barra- ca, segundo Polanyi, 1957), mas como “a
gens, cisternas); a outra com os convites obrigação para cada um de reproduzir a
de trabalho em benefício de uma família, dádiva, como forma de organização da
geralmente, para trabalhos pesados redistribuição econômica”.
(desmatar uma parcela, fazer uma cerca,
construir uma casa etc.). O mutirão é tam- · As redes sociotécnicas de proximidade
bém chamado batalhão em Massaroca, bo-
léia ou balaio3 em outras zonas da Bahia. Os estudos conduzidos em Pintadas e
Em Pintadas (BA), utiliza-se o termo boi Massaroca confirmam tanto a existência de
roubado. Antes, o produtor beneficiado cos- produção e de intercâmbio de conheci-
tumava matar um boi. Hoje, ele fornece, mentos entre produtores quanto a impor-
sobretudo, cachaça ou cerveja. Esta práti- tância da observação mútua e do diálogo
ca é associada à festa para motivar uma técnico em matéria de inovação agrícola e
ajuda recíproca. A participação de todas organizacional (SABOURIN et al., 1999,
as famílias da comunidade é desejada: os p. 148-150). As relações interpessoais con-
homens jovens e adultos para os trabalhos tribuem, entre outras coisas, para a comu-
mais duros, as crianças e as jovens para a nicação de idéias, informações, práticas e
limpeza das fontes de água e caldeirões, técnicas. Essas relações privilegiadas de
as mulheres para a raspa da mandioca na diálogo técnico ou de ajuda mútua entre
“farinhada”. produtores desenham estruturas chama-
das de redes sociotécnicas (CALLON,
1989).

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As redes de diálogo técnico passam, geral- criança desde o nascimento. A dádiva é
mente, por agricultores “experimen- também associada às relações afetivas pri-
tadores”, considerados como competentes vilegiadas como o compadrio. O apadri-
pelos seus vizinhos (DARRE, 1996, p. 85- nhamento recíproco das crianças entre
90). Em Massaroca, os produtores marcam duas famílias sem laço de parentesco é uma
uma diferença entre competência em ma- forma de aliança extremamente forte, que
téria de criação e de agricultura (plantação, permite multiplicar as redes interpessoais
roça). As referências tradicionalmente “vei- além da esfera local, das classes sociais e
culadas” pelos vaqueiros e diaristas são das categorias profissionais (LANNA,
hoje transportadas pelos que mais viajam: 1995, p. 197). A dádiva generalizada (ofe-
dirigentes associativos, comerciantes, agri- recida a todos) é verificada nos convites
cultores pluriativos e agentes externos (téc- para as festas locais e religiosas (pagamento
nicos, padres e vereadores). As idéias, as de promessas, celebração dos santos pa-
informações e os fatos e objetos técnicos droeiros), para as festas familiares (batis-
circulam com relativa facilidade por esses mo, matrimônio, funerais) ou domésticas
canais. Inovações como a palma forrageira (matança de um animal).
(Opuntia sp.) e a algaroba (Prosopis juliflora),
introduzidas na região por grandes cria- A lógica da reciprocidade motiva uma par-
dores, tiveram em Massaroca-BA uma di- te importante da produção, da sua trans-
fusão rápida, via relações interpessoais missão, mas também, do manejo dos re-
entre agricultores, conformando uma rede cursos e dos fatores de produção. O aces-
supracomunitária. so gratuito à água dos açudes, às terras de
vazante, às pastagens comuns do “fundo
· Organização dos produtores e reciprocida- de pasto”, à mão-de-obra da comunidade
de camponesa ou do grupo local (por meio do convite de
trabalho ou do mutirão), constitui uma
Diversos autores brasileiros evidenciaram redistribuição dos fatores de produção. A
a permanência ou a modernização das es- constituição dos dotes (animais, terras ou
truturas de reciprocidade em comunida- dinheiro), a realização das festas familia-
des de agricultores e de pescadores do Sul res e religiosas, a hospitalidade (estendida
e do Nordeste (WOORTMAN, 1995; aos rebanhos dos vizinhos em caso de seca)
LANNA, 1995; NOGUEIRA, 1999, NO- representam tantas formas de dádiva que
GUEIRA ; MENDES, 2000). No Sertão levam ao crescimento da produção, na
nordestino, observa-se a permanência de medida das possibilidades das famílias e
relações de reciprocidade através dos me- das condições do clima. Esses custos, bem
canismos de dádiva, de ajuda mútua e de superiores ao nível médio de consumo de
convites. A dádiva interfamiliar é simétri- uma família, explicam também, em parte,
ca. Manifesta-se pelo dote das filhas e pe- as dinâmicas de extensão patrimonial, de
las dotações para a instalação dos jovens, procura de novas terras para cultivar, de
essencialmente constituídas por animais adoção dos cultivos comerciais ou também
acompanhados da sua descendência as estratégias de pluriatividade e de mi-
(crias), reservados e atribuídos a cada grações. Além das formas de
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complementaridade (ajuda mútua) ou de mentares), correspondendo a lógicas es-
interesse coletivo (solidariedade, festa co- pecíficas de motivação da produção e da
letiva) que motivam a permanência des- inovação. Por exemplo: no caso do
sas práticas de origem camponesa, eviden- mutirão, os dias não são contados. Na tro-
cia-se a força da dádiva4 e da redistribuição ca de dias, eles são contados e devolvidos
como motor da economia. Essa produção para a outra família, às vezes, para efetu-
socialmente motivada constitui um fator ar o mesmo tipo de trabalho. Alguns agri-
de desenvolvimento econômico que vai cultores pagam um diarista, em vez de as-
além da satisfação das necessidades ele- sumir diretamente a prestação.
mentares da população (subsistência) ou
da aquisição de bens materiais via troca. A A integração ao mercado e à sociedade
motivação social da produção pode ser tão global (administração, escola, igrejas, ser-
potente como o interesse pelo lucro e a viços técnicos) levou a sociedade rural nor-
acumulação por meio do intercâmbio destina, dos sítios e das comunidades, a
“mercantil” (TEMPLE ; CHABAL, 1995, dotar-se de novas estruturas de represen-
p. 41-50). Pode-se, assim, distinguir redes tação e de cooperação, sem, portanto,
de reciprocidade e redes de intercâmbio abandonar (pelo menos completamente)
(algumas podendo ser mistas ou comple- os valores e formas de organização cam-
ponesa fundadas pela reciprocidade.

1.2 AS ORGANIZAÇÕES PROFISSIONAIS DOS AGRICULTORES

As organizações formais dos produtores cato, a cooperativa e a associação de pro-


correspondem a novas estruturas dutores.
socioprofissionais de caráter econômico
(produtivo ou classista). Ninguém torna- · O sindicato de agricultores familiares
se membro da associação por essência ou
por nascimento, como no caso do sítio Os primeiros Sindicatos dos Trabalhado-
ou da comunidade, mas por escolha livre res Rurais (STR) do Nordeste apareceram
e voluntária e através de uma relação nos 50 e no início dos anos 60 na zona da
contratual de intercâmbio (pagamento da Mata. Na região semi-árida, a maioria foi
cota). Sua regulação é, portanto, domina- criada durante o regime militar e emanci-
da pela lógica utilitarista do interesse (in- pada nos anos 80. Para desviar os sindica-
dividual ou coletivo) ou pela lógica da obri- tos de sua função de reivindicação, sem ter
gação social ou política (constrangimento, de proibi-los, o Estado transferiu para eles
dívida). Por exemplo, nos perímetros irri- a gestão da assistência médica no meio
gados, a adesão dos colonos à cooperativa rural. A nova Constituição (1988) não mu-
é, muitas vezes, obrigatória. No Sertão, dou esta prática, confiando de novo aos
encontram-se as três formas clássicas de STRs a administração local da aposenta-
organização profissional agrícola: o sindi- doria rural. Onde os conflitos fundiários e

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trabalhistas dos anos 70-80 provocaram o terceiro tipo de tutela. No distrito de
lutas coletivas, os STRs adquiriram uma Marruás, em Tauá (CE), a Cooperativa dos
capacidade de mobilização e a legitimida- Pequenos Produtores dos Inhamuns
de da representação dos produtores fami- (Coopepi) foi financiada e administrada
liares. Conseguiram, assim, promover pro- durante anos por uma ONG suíça.
jetos, planos ou conselhos de desenvolvi-
mento rural, ou participar da administra- Em tais condições, quando os camponeses
ção municipal, como em Pintadas (BA) e são afastados da administração, a coope-
Tauá (CE). rativa torna-se uma nova autoridade
gestionária dos bens comuns (água, perí-
· As cooperativas agrícolas metro irrigado), um novo intermediário
para o acesso ao mercado (leite, frutas, al-
godão). Ela pode até ser percebida como
As primeiras cooperativas de produtores
um novo patrão.
criadas no Sertão reuniram grandes ou
médios proprietários. Foi o caso dos pro-
dutores de algodão no Ceará e na Paraíba, · As associações de produtores
dos produtores de leite do Agreste da
Bahia, Pernambuco ou Sergipe. Os agri- Dada a sua flexibilidade, a associação de
cultores familiares conservam amargas produtores constitui o modelo de organi-
lembranças das cooperativas. Elas são, ge- zação local que foi mais desenvolvido nos
ralmente, associadas a interesses políticos últimos 20 anos. Trata-se, também, para o
ou clientelistas, a sistemas de gestão pro- Estado ou para a prefeitura municipal, de
pícios ao desvio de fundos, cujo controle um meio de redistribuição clientelista via
sempre escapou aos pequenos produtores. políticos locais. As associações foram cria-
A cooperativa leiteira de Tauá (CE), por das essencialmente para captar recursos e/
exemplo, quase sempre fechada por falta ou para assegurar a defesa de interesses
de leite, foi financiada em 1987 pelo mi- comuns ou a gestão de bens coletivos.
nistro da Irrigação que era oriundo deste A maioria das associações nasceu da con-
município. Os agricultores costumam di-
junção de três fatores: a) a necessidade
zer que “cada cooperativa tem dono”.
para as comunidades de dotar-se de re-
Nas regiões estudadas, todas as coopera- presentações jurídicas; b) a intervenção de
tivas encontradas são associadas a uma tu- atores externos: Igreja, ONGs, extensão,
tela externa. Nos perímetros irrigados de projetos públicos; c) a existência de aju-
Petrolina e Juazeiro, as cooperativas foram das e financiamentos reservados a proje-
criadas diretamente pelo Estado. Nos pro- tos associativos ou comunitários, geral-
jetos de reforma agrária, como Lagoa do mente com finalidade produtiva.
Angico, em Petrolina, ou no Assentamen-
to 2 de Maio, em Madalena (CE), prevale- A associação é uma sociedade civil sem fim
ceu o modelo cooperativo do Movimento de lucro, baseada na adesão voluntária.
dos Trabalhadores Sem-Terra. O gerente Reúne, muitas vezes, o conjunto dos mem-
é geralmente um quadro do MST envia- bros de uma comunidade (ou só os chefes
do do Sul do Brasil. As ONGs conformam de família), mas em torno de um objetivo
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específico, de um projeto econômico: aces- nidade) e a sociedade externa: o merca-
so ao financiamento de equipamentos co- do, a administração, a cidade. Às vezes, a
letivos (escola, água, eletricidade, posto de mudança de sistema de organização leva
saúde), comercialização ou processamento a uma confusão de valores e à adoção de
dos produtos, apropriação fundiária. As lógicas e estratégias de natureza diferen-
associações devem redigir e publicar seus te, ou até oposta. Foi o caso com a instala-
estatutos no Diário Oficial, eleger e reno- ção de camponeses criadores nos períme-
var uma diretoria e um conselho fiscal. Na tros irrigados do Vale do São Francisco.
realidade, as regras são readaptadas pela Confrontados com a lógica da integração
comunidade ou pelos líderes. As eleições ao mercado pela produção intensiva de
são arranjadas anteriormente. As decisões frutas ou verduras, eles devem realizar
importantes são tomadas antes das reu-
uma mutação, não só do seu sistema pro-
niões formais e públicas no quadro das re-
dutivo, mas do seu sistema de valores e de
lações de proximidade e de poder entre
referências, ou abandonar a irrigação
os grupos familiares e as comunidades lo-
(SABOURIN et al., 1998, p. 13). No pri-
cais.
meiro perímetro irrigado da região, Be-
· Complementaridade e contradição entre bedouro (Petrolina-PE), houve um confli-
lógicas to entre a lógica da concorrência no mer-
cado e aquela do desenvolvimento da re-
Observa-se uma grande diversidade das ciprocidade. Uma parte dos produtores
formas de cooperação e de organização instalados pelo Estado continua
devida à permanência de práticas campo- privilegiando uma lógica camponesa. Sa-
nesas e à adaptação permanente de novas tisfeitos com um sistema de criação e um
formas de coordenação da ação coletiva. negócio familiar de gado, sustentado por
A criação de organizações de produtores forragens irrigadas, procuram prestígio
pode corresponder à modernização da local via prêmios nas vaquejadas. Esta si-
reciprocidade camponesa ou, ao contrá- tuação manteve-se provocando a maior
rio, privilegiar o desenvolvimento do in- preocupação dos poderes públicos que de-
tercâmbio mercantil, via constituição de sejavam impor a produção de mangas e
cooperativas, por exemplo. uvas, considerada mais lucrativa, de ma-
O primeiro caso é verificado com as asso- neira a assegurar o funcionamento da co-
ciações comunitárias de Massaroca-BA, operativa que comercializa frutas, mas não
criadas para garantir o manejo dos “fun- gado ou troféus.
dos de pasto”, num contexto de especula-
ção fundiária; o segundo, com as coope- Portanto, às vezes, longe de trazer só solu-
rativas dos perímetros irrigados de ções, as novas formas de organização
Petrolina e Juazeiro. criam, também, novos problemas, na me-
dida em que ignoram ou desrespeitam as
Em todo caso, as novas organizações são regras da reciprocidade ou funcionam se-
destinadas a manejar a interface entre o gundo os princípios contraditórios da
mundo doméstico local (a família, a comu- concorrência e do intercâmbio.

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2 TRANSFORMAÇÃO DAS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO


E TENDÊNCIAS DE EVOLUÇÃO

Paralelamente ao desenvolvimento da a organização é um processo de cria-


agricultura familiar, podem ser evidencia- ção coletiva por meio do qual os mem-
bros de uma coletividade aprendem
das transformações permanentes das ins- juntos, ou seja, inventam e fixam jun-
tituições de produtores, associadas às for- tos novas maneiras de jogar os jogos
mas de recomposição das referidas lógi- sociais da cooperação e do conflito e
cas. As principais tendências de evolução [...] adquirem as capacidades de conhe-
cimento, de relacionamento e de orga-
observadas são marcadas por estratégias nização correspondentes (traduzido do
específicas em termos de coordenação co- francês pelo autor).
letiva. Correspondem a processos de
formalização das organizações, de diversi- Os “motores” dessas evoluções são exami-
ficação das atividades, de representação nados de maneira a identificar as princi-
pública e de conquista de autonomia por pais estratégias que caracterizam as for-
parte das comunidades rurais. Como afir- mas de coordenação entre produtores e
mam Crozier e Friedberg (1977, p. 79): entre suas organizações.

2.1 A FORMALIZAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES

A formalização das organizações de pro- Massaroca, por exemplo, foram criadas


dutores, além da dinâmica associativa des- para administrar os “fundos de pasto”, no
crita anteriormente, tem a ver com dois contexto da especulação fundiária e da
principais fatores. Primeiro, as comunida- invasão de terras (grilhagem).
des rurais passam por uma necessidade
crescente de interfaces jurídicas com a so- As funções de reivindicação ou de negocia-
ciedade nacional (acesso aos financiamen- ção das instituições camponesas não desa-
tos e ao apoio institucional, escola etc.). Por parecem durante essas evoluções, mas
outra parte, em um contexto novo e, mui- podem ser desvirtuadas ou alteradas. A
tas vezes, conflituoso de acesso aos recur- habilidade dos responsáveis do Comitê de
sos produtivos (terra, água etc.), tais arti- Massaroca, por exemplo, é saber jogar
culações tornam-se necessárias, inclusive entre “moderno e tradicional”, isto é, “as-
para legitimar práticas camponesas de re- sociação formal/comunidade camponesa”
ciprocidade ou normas sociais ancestrais para captar apoios diversificados. Da co-
como o mutirão, o uso comunitário de pas- munidade e das relações de proximidade,
tagens (o fundo de pasto) ou o manejo co- das alianças individuais, dos apadrin-
letivo da água (açudes, cisternas, poços hamentos políticos e das redes familiares
etc.). As associações comunitárias de nasce o acesso às redistribuições políticas

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estaduais e federais, por exemplo, duran- gerenciadas por tutelas (SABOURIN et al.,
te as grandes secas. Por outro lado, a asso- 1998, p. 13). De fato, independentemen-
ciação de produtores facilita o acesso a cré- te da influência externa ou do uso de mo-
ditos subsidiados via relações com as insti- delos fixados pela legislação (associação ci-
tuições técnicas de apoio ao desenvolvi- vil, cooperativa etc.), precisa-se de novas
mento (SABOURIN et al., 1996, regras, na medida em que troca-se de
p. 104). “mundo” ou de princípio de justificação
(BOLTANSKI; THÉVENOT, 1991). O
O segundo tipo de interface tem a ver com mutirão é uma instituição camponesa do
o acesso a mercados diversificados e com mundo doméstico marcada pela divisão
as novas exigências em termos de quali- entre sexos, a gerontocracia e a reciproci-
dade dos produtos. Nos perímetros irri- dade ampliada. As suas regras não têm
gados de Petrolina e Juazeiro, a má admi- nada a ver com o sistema de contabilidade
nistração das cooperativas levou à desva- das prestações de trabalho do motorista do
lorização da produção de uva e de melão. caminhão ou de serviços do trator, dita-
Houve, portanto, uma rejeição do mode- das pela necessidade de amortização do
lo cooperativo pelos “colonos”. Observou- equipamento e pela legislação trabalhista,
se a recomposição de estruturas de ajuda isto é, por regulações industriais e mer-
mútua para a comercialização ou o cantis. Ocorre, assim, uma criação e vali-
processamento das frutas por pequenos dação de novos estatutos fixados pela
grupos de proximidade. Isto constitui, em institucionalização progressiva das formas
face do fracasso da lógica “mercantil” da de ação coletiva. É essencial reconhecer as
cooperativa, uma reorganização a partir diferenças entre associação e comunidade,
da lógica de confiança e dos valores do entre cooperativa e mutirão, entre presi-
mundo “doméstico”. Mas, para perenizar dente eleito e líder comunitário, entre se-
essas experiências, ter acesso aos financia- cretário do conselho de vigilância e patriar-
mentos bancários e aos mercados nacio- ca do sítio. A mudança de estruturas e de
nais (Ceasa), os colonos são obrigados a modos de regulação pode levar a uma con-
criar de novo associações ou cooperativas. fusão dos valores de reciprocidade cam-
Porém, diferentemente do modelo ante- ponesa e à adoção não-controlada de ló-
rior, essas não são mais impostas ou gicas e estratégias de natureza diferente
(mercantis, industriais etc.).

2.2 DIVERSIFICAÇÃO DAS ATIVIDADES E ESPECIALIZAÇÃO DAS


FUNÇÕES

A profissão de agricultor ou de criador se mente em torno da redistribuição do aces-


transforma, o contexto socioeconômico e so aos fatores de produção (terras, traba-
as instituições também. Assim, as institui- lho e técnicas), não mais permitem respon-
ções camponesas, estabelecidas essencial- der ao conjunto das exigências da ativida-
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de agropecuária e aos processos de inter- Rural de Massaroca (SABOURIN et al.,
venção dos poderes públicos. As organi- 1996, p. 144). A diversificação das ativi-
zações devem, portanto, assumir novas dades é assim associada à multiplicação das
funções: defesa dos interesses profissionais instituições e, portanto, dos centros de
e gestão da aposentadoria pelos sindica- poder. A responsável por uma escola pri-
tos, abastecimento em insumos e mária isolada não tem muito peso em face
comercialização de produtos pelas coope- do Presidente do Comitê, porém o mes-
rativas, acesso aos financiamentos e admi- mo não ocorre com o diretor do Centro
nistração de equipamentos coletivos, no de Formação Rural.
caso das associações.
Da mesma maneira, durante o período
As nove associações e o Comitê de militar, o Sindicato dos Trabalhadores
Massaroca sustentam, desde 1990, um pro- Rurais constituía, geralmente, a única for-
jeto de desenvolvimento local que, depois ma de representação dos produtores.
de priorizar o apoio à pecuária e à A partir dos anos 1980, a tendência foi
implementação de recursos hídricos, inves- criar associações específicas para o apoio
tiu nos setores da educação, da saúde de à produção agropecuária. Paralelamente
base e interessa-se, hoje, pela transforma- à diversificação das necessidades, obser-
ção da produção. A diretoria do Comitê va-se um processo de especialização das
que dirigia o conjunto do projeto local teve funções das organizações de produtores.
de aceitar progressivamente a criação de É também o caso das cooperativas de co-
novas estruturas para administrar áreas lonos do Vale do São Francisco, centradas
específicas. Certos grupos de interesse em funções de abastecimento e de
temáticos transformaram-se em comissões comercialização e dos Distritos de Irriga-
permanentes para a educação, a gestão dos ção, criados para assumir o manejo da
equipamentos coletivos, o crédito e o pro- água e a administração dos perímetros ir-
jeto de irrigação. Em Lagoinha, a implan- rigados públicos. Um segundo patamar,
tação do ciclo complementar e de ativida- associado à diversificação, seria aquele da
des de educação permanente levou, final- “divisão” ou do desdobramento das orga-
mente, à criação do Centro de Formação nizações, gerando novas estruturas mais
especializadas e novos “estatutos”.

2.3 A AUTONOMIA E OS PROCESSOS DE REPRESENTAÇÃO DOS


PRODUTORES

Uma das novas funções do processo de mento local e regional. O fenômeno de-
organização dos produtores familiares tem termina a polarização das suas relações
a ver com seu posicionamento político e com o exterior. Encontra-se associado à
institucional em matéria de desenvolvi- necessidade de uma representação

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socioprofissional dos agricultores familia- mento. Num município grande e polari-
res e das comunidades, já que não existe zado por uma cidade de porte médio como
escala administrativa abaixo do município. Juazeiro, as associações somente conse-
Uma das estratégias passa pela dinâmica guem tratar do desenvolvimento do dis-
de união das associações comunitárias para trito ou da pequena região. Em Pintadas
mobilizar mais forças políticas. É traduzida e Tauá, as lideranças das organizações de
pela reunião de grupos de base em fede- produtores nasceram diretamente, na es-
rações: Comitê na escala do distrito em cala municipal, com o sindicato. Após vá-
Massaroca, Conselho ou Central a nível rias derrotas eleitorais na conquista da
municipal em Tauá e Pintadas. Prefeitura, conseguiram finalmente a ges-
tão do poder municipal, graças a alianças
O Comitê de Massaroca jamais aceitou negociadas na base de projetos de desen-
aumentar o números de associações volvimento da agricultura e da pecuária.
federadas, para não ter de partilhar re- Essas evoluções mostram uma real con-
cursos duramente conquistados. Durante quista de autonomia por meio das organi-
vários anos, não se preocupou em nego- zações de produtores.
ciar alianças ou cooperações com outras
organizações de produtores na escala do O conjunto das características observadas
município de Juazeiro (SABOURIN et al., permite formular a configuração de um
1996, p. 109). Entretanto, examinando o modelo de organização associando uma
processo desde os anos 1970, verifica-se estrutura federativa do tipo “planejadora”
uma evolução clara: a gestão comum do e estruturas de gestão descentralizadas. É
“fundo de pasto” dá lugar à criação da as- o papel do Comitê de Massaroca e dos seus
sociação comunitária (1983-1985); nove dirigentes manter uma visão ampla e po-
associações locais federam-se e criam o lítica da situação, captar informações, ar-
Comitê (1989); este integra a Unidade de ranjar recursos e referências novas e
Planejamento Agropecuário do Município intermediar alianças. Às comissões
de Juazeiro, organizada em 1990. A par- setoriais, às associações locais, aos grupos
tir de 1997, o Comitê negocia projetos de de interesse e de produção competem as
processamento dos produtos locais com as funções de manejo das ações coletivas, de
federações dos municípios vizinhos de gestão dos bens comuns e a articulação
Jaguarari e Uauá. com as ações individuais. Em Pintadas, o
Centro Comunitário de Serviços coorde-
Estas organizações federativas posicionam- na na escala municipal de 20 a 30 grupos
se em matéria de política de desenvolvi- de base.

CONCLUSÕES
O quadro de análise da construção da ação texto econômico e institucional. As trans-
coletiva permite articular mudanças so- formações organizativas observadas no
ciais, mudanças técnicas e evolução do con- Sertão nordestino são características de vá-
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rias dinâmicas de mudança. Traduzem di- Primeiro, desmintam o discurso dominan-
versas formas de manejo da transição de te das instituições de assistência quanto à
uma economia camponesa regulada pela ausência, à fraqueza ou à incapacidade de
reciprocidade para sistemas mistos, inte- organização dos agricultores do Nordes-
grados ao mercado regional e marcados te, habitual contraponto da seca para ex-
pelas regras da sociedade nacional. Além plicar o fracasso das políticas públicas.
da oposição clássica entre “comunidade”
e “sociedade” ou de esquemas redutores As formas de organização têm evoluído
do tipo subsistência x integração ao mer- rapidamente, procurando aproveitar,
cado ou pré-capitalista/capitalista, encon- quando aparecem, as novas possibilidades
tra-se uma diversidade de situações de de apoio externo, ou tentando trazer so-
convivência e de negociação entre valores luções a problemas vividos coletivamente.
e “mundos” diferentes, segundo a imagem A emergência rápida de uma nova forma
das “cidades” (doméstica, mercantil, industrial, de organização – a associação – e os suces-
cívica e inspirada) proposta por Boltanski e sos reais que encontrou não devem escon-
Thévenot (1991). der, também, desvios possíveis, quando
existe abuso da barganha por parte dos
Existe uma permanência, e até uma mo- agricultores como dos poderes públicos.
dernização, das relações de reciprocidade,
de maneira a garantir formas de coesão Observa-se, portanto, a convivência simul-
social ou de proximidade praticáveis em tânea e a recombinação permanente de
um contexto novo de modo a aproveitar várias lógicas organizativas num contexto
novas oportunidades. Tal aprendizagem social em mutação. Assim, a realização e a
não se realiza sem tensões e conflitos que combinação diversificada das três lógicas
limitam a coordenação. Os mesmos po- de construção da ação coletiva, inicialmen-
dem, também, encontrar soluções me- te identificadas, dão lugar a várias formas
diante a construção de novas regras: de estruturação dos produtores,
implementação de novas formas de orga- correspondendo a diversas funções e a di-
nização, definição de ações locais ou ferentes níveis de organização. Pode-se
territoriais. Este tipo de dispositivo permi- atribuir a cada uma dessas formas uma
te uma abertura para projetos maiores, capacidade de coordenação e de regulação
para uma escala de organização mais am- fundada nos comportamentos dos atores
pla (federação), assim como para alianças e nas externalidades que produzem. As-
específicas, técnicas e políticas (via redes sim, integração ao mercado e à sociedade
comerciais ou sociotécnicas). Neste senti- global (administração, escola, igrejas, ser-
do, existe uma atualização da dinâmica de viços técnicos) tem levado as comunida-
reciprocidade camponesa. des rurais a dotar-se de novas estruturas
de representação, de cooperação e de in-
Os casos e estratégias apresentados per- tercâmbio monetário, sem abandonar,
mitem orientar a intervenção das institui- portanto, as formas de organização e, so-
ções de pesquisa e de desenvolvimento. bretudo, os valores e as práticas da reci-
procidade camponesa.
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Os exemplos citados confirmam uma na- Não se trata de negar esta realidade e de
tureza diferente e até contraditória entre reivindicar a exclusividade de uma
a lógica econômica da reciprocidade e dialética ou de outra em termos de desen-
aquelas do livre-câmbio. Cada uma pode volvimento local ou regional; mas sim, de
ser verificada na realidade; portanto, as chamar para uma dupla referência, entre
duas podem se prevalecer de vantagens a reciprocidade e os paradigmas do inter-
respetivas e, sobretudo, de precedentes, câmbio (individualismo ou holismo).
alguns sendo, provavelmente irreversíveis.

NOTAS
1
Traduzido do original em francês pelo autor. 4
CAILLE (1998, p. 77) escreve: a dádiva, de certa
maneira, não é desinteressada. Simplesmente,
2
A palavra vem do tupi mutirum ou do Guarani, privilegia os interesses de amizade (aliança,
potyrom, que quer dizer colocar a mão na massa afetividade, solidariedade) e deprazer e/ou de
(BEAUREPAIRE, 1956). criatividade sobre o interesses instrumentais e so-
3
O balaio é uma unidade de medida de produtos bre a obrigação ou compulsão. A obstinação das
agrícolas numa cesta ou num lençol. religiões ou de numeroso filósofos em pocurar
uma dádiva plenamente desinteressada é, por-
tanto, sem objeto.

ABSTRACT
This paper aims to systematise smallholder’s organisation dynamics
in the semiarid region of Brazilian Northeast. The first part analyses
the origin and the logic’s of different forms of producer’s
organisation, based on examples in diverse situations of the
Northeast Sertão. In the second part, are identified and characterised
the main transformation of these organisations in the last twenty
years. Three main collective strategies trends are analysed in terms
of family farmers co-ordination and organisation. In conclusion,
the text evidences the institutionalisation of the organisation process
among the smallholders of the semiarid region. It also calls to
recognise the socio-economic importance of reciprocity beside the
two more classical paradigms of individualism (individual interest)
and holism.
Keywords: family agriculture, collective action, smallholder’s
organisation, peasant reciprocity, associations, Northeast.

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CARTÓRIOS: ONDE A TRADIÇÃO


TEM REGISTRO PÚBLICO1
ANA PAULA MENDES DE MIRANDA*

Buscou-se analisar o funcionamento de cartórios a partir do tra-


balho de campo realizado em Niterói e no Rio de Janeiro. Como
hipótese, considerou-se que frente a uma aparente desorganização
se sobrepunha um tipo de lógica, à qual só teriam acesso os funci-
onários, que desenvolveram uma tradição própria da escrita, or-
ganização e preservação de documentos públicos, consolidando-se
como uma espécie de poder paralelo. Conclui-se que esse processo
transforma a prestação do serviço numa dádiva, onde dar, receber
e retribuir são as regras que asseguram a qualidade do serviço
prestado.
Palavras-chave: cartórios, documentos públicos, informação, dá-
diva

Este artigo é o resultado das reflexões de- uma tradição3 ibérica/mediterrânea (BRAUDEL,
senvolvidas durante a pesquisa de Inicia- 1988; PERISTIANY, 1988), cuja caracte-
ção Científica acerca das práticas rística, destacada por Roberto Kant de
cartoriais, sob orientação do professor Lima (1991), é a existência de dois códigos
Roberto Kant de Lima e financiada pelo opostos mas complementares, onde um
CNPq durante o período de 1991-1993. sistema público de organização burocráti-
O material etnográfico que serve de base ca convive com um sistema privado basea-
para a análise foi coletado no 11o Cartó- do nas relações pessoais de amizade e pa-
rio de Registro de Imóveis do Rio de Ja- rentesco, e o sistema de produção de ver-
neiro, 10o Ofício de Niterói, 4o Ofício da dades possui características inquisitoriais e
3a Vara Cível, e na 1a Vara de Família do interpretativas.
Fórum de Niterói.2
Sendo o cartório uma instituição voltada
O objetivo desta pesquisa era explicitar a ao atendimento público, deveria garantir
lógica que rege os procedimentos de pro- que o direito de acesso às informações ar-
dução, guarda e circulação de documen- mazenadas fosse pleno. No entanto, pude
tos, e compreender a relação que man- constatar que este acesso é limitado e mo-
têm com o acesso à informação na socie- dificado por critérios implícitos às práticas
dade brasileira. Partiu-se da hipótese de de funcionamento da instituição, que alte-
que o cartório é uma instituição onde esse ram o caráter impessoal das regras públi-
processo se dá segundo a influência de cas, introduzindo elementos personalistas
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e particularizantes ao funcionamento do percebi que o meu trabalho seria desven-
serviço. dar quais eram os elementos que permiti-
riam ter acesso a essa lógica. O recurso uti-
O trabalho de campo baseou-se em entre- lizado, seguindo a metodologia emprega-
vistas e conversas informais com titulares da por Malinowski (1976), visava a coletar
de cartórios, advogados (principais usuá- dados concretos, isto é, experiências vivi-
rios de cartórios), funcionários da ativa e das durante o trabalho em cartório, para,
aposentados. As dificuldades encontradas posteriormente, analisá-los. Após o relato
durante a pesquisa foram várias. As entre- dos casos, os funcionários faziam comen-
vistas traziam uma limitação: era preciso tários que deixavam transparecer os ele-
romper a desconfiança inicial para então mentos que compunham esse código. Des-
possibilitar a aproximação entre se modo, foi possível inferir a existência
entrevistador e entrevistado, pois havia de um mecanismo comum que regia essas
sempre uma tentativa de “fuga” aos assun- práticas.
tos mais polêmicos, e uma preocupação
É importante ressaltar que para realizar o
com a não-divulgação do que era dito, que
trabalho de campo foi necessário que eu
diminuía um pouco quando lhes garantia
fosse apresentada a cada entrevistado sem-
o anonimato. As conversas informais, sem-
pre por uma terceira pessoa, um interme-
pre sem a utilização do gravador, eram
diário4 que já os conhecia, e que, às vezes,
mais proveitosas, as pessoas ficavam mais também já tinha sido entrevistado, crian-
tranqüilas, pois o que diziam não estava
do, assim, uma rede de relações. Isto foi
sendo registrado, assim falavam mais aber-
necessário, pois somente deste modo os en-
tamente sobre suas rotinas. Realizei tam-
trevistados sentiram que poderiam confiar
bém a observação da organização do es-
em mim. Após a apresentação, sempre in-
paço e da rotina do serviço, registradas em
dagavam se eu era jornalista ou estudante
um caderno de campo. Paralelamente efe-
de Direito. Quando explicava que estuda-
tuei pesquisa bibliográfica sobre o tema
va Ciências Sociais, que estava fazendo
deste trabalho.
uma pesquisa para a faculdade e queria
entender como funcionava o cartório, per-
Ao tentar analisar as práticas dos funcio-
cebia um certo alívio das pessoas ao ve-
nários dos cartórios, defrontei-me com um
rem que não iria denunciar nada. Só en-
problema básico: a não-existência de uma tão elas falavam abertamente sobre suas
percepção dos funcionários acerca das re-
práticas e sobre a estrutura do cartório.
presentações sobre suas práticas. Só então

A LEGALIZAÇÃO DOS DIREITOS – O DOCUMENTO CARTORIAL E


O ESTABELECIMENTO DA ORDEM

Historicamente, os cartórios surgiram para sos, que lhes garantiriam, formalmente, os


dar autenticidade aos contratos entre as seus respectivos direitos.
partes, nos quais se firmavam compromis-
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Nos livros de Direito, o surgimento do car- mônias e no registro escrito de documen-
tório está relacionado ao aparecimento da tos.
escrita enquanto instrumento fundamen-
tal ao registro dos atos sociais, em oposi- A utilização da escrita por parte do Esta-
ção aos acordos firmados oralmente. A es- do trouxe uma série de implicações para
crita se consolidou juridicamente, pois foi a vida social, representando um instru-
capaz de tornar explícito o que nem sem- mento de controle das relações espaciais e
pre era claro na comunicação oral, de temporais. Lawrence Rosen (1980-1981)
modo que a existência do registro escrito ressalta que os cartórios são capazes de
era entendida como a garantia de uma transformar acontecimentos em “fatos” à
única interpretação do pacto estabelecido. medida que os registram, pois ao registrar
determinadas coisas, tal como a proprie-
O processo da escrita foi fundamental para dade, o cartório passa a ter o poder de ins-
o estabelecimento de um Estado burocrá- taurar e controlar a ordem social.
tico,5 que se caracteriza por uma adminis-
tração especializada, onde as relações im- O uso da escrita também serviu para for-
pessoais devem prevalecer. malizar a relação da sociedade com a lei,
dando-lhe uma autonomia própria, tal
Esta burocracia se opõe à “administração como aos seus órgãos. Assim, a ordem ju-
patrimonial” (FREUND, 1975) – que se rídica organizou-se, especializou-se e se
define pela fusão entre as esferas privadas distanciou da sociedade.
e públicas, onde a honra6 das pessoas é
considerada um critério importante na As normas jurídicas já não residem na
escolha dos funcionários, e a administra- memória de qualquer indivíduo […]
mas podem ser literalmente enterradas
ção é baseada nas relações pessoalizadas. em documentos a ser exumados ape-
nas por especialistas na palavra escrita
Segundo Stuart Schwartz (1979), a buro- (GOODY, 1987, p. 165).
cracia, tanto em Portugal quanto na
Espanha, era caracterizada, no perío- O surgimento dos “especialistas na pala-
do colonial, pela presença de dois sis- vra escrita” diz respeito, no campo jurídi-
temas: o burocrático e o patrimonialista, o co, ao aparecimento daqueles que elabo-
que também ocorreu na América Latina ram os códigos, dos que os interpretam,
devido ao processo colonizador. dos que os aplicam e dos que utilizam os
“escritos jurídicos” para a regulamentação
A presença de uma “burocracia letrada” das ações e transações da sociedade. É o
(RAMA, 1985) serviu ainda como fator caso dos tabeliães e escrivães.
consolidativo na construção do Estado nos
processos de dominação colonial, pois aju- Ao analisar a organização do cartório,
dou a suplantar a diversidade das línguas pude perceber que há o desenvolvimento
nativas através da adoção de uma língua de meios próprios de proceder, o
pública oficial, que era utilizada em ceri- surgimento de especialistas com uma

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tradição própria da escrita, e, principal- reproduzi-los. A observação do funciona-
mente, um poder paralelo, que é o mono- mento do cartório é fundamental para o
pólio da gestão do patrimônio. Um exem- entendimento do sistema de resolução de
plo muito significativo, que representa a conflitos da sociedade brasileira, pois, mes-
exacerbação do poder que o registro es- mo sendo considerado órgão auxiliar do
crito possui em nossa sociedade, foi publi- Poder Judiciário, desempenha um gran-
cado no Jornal do Brasil (11/4/92), numa de papel no controle social através de seus
reportagem que contava o caso de um ar- métodos próprios, que produzem uma
tista que se tornara dono do Sistema Solar determinada ordem social em público, ao
ao registrá-lo em seu nome no 1o Cartório dirimir conflitos que teoricamente cabe-
de Notas de São José dos Campos. Apesar riam ao Poder Judiciário resolver.
de achar engraçado, o tabelião substituto
disse que não poderia deixar de registrá- A construção de uma classificação para os
lo, mesmo não acreditando que o docu- cartórios foi necessária para uma melhor
mento fosse reconhecido pelas autorida- compreensão de seu funcionamento, e,
des, pois sua função era apenas a de regis- inclusive, de suas contradições. Para isso,
trar o documento, e não garantir a veraci- utilizei como referência sua relação com o
dade de seu conteúdo. Mesmo sendo con- Estado e com “particulares”. Deste modo,
siderado absurdo, o registro foi realizado tratarei dos cartórios de registros públicos
de acordo com os trâmites legais. que pertencem ao Estado e têm como fun-
ção “fiscalizar” os atos dos cartórios não-
Para Angel Rama (1985), a palavra escrita oficializados ou cartórios “particulares”
é sempre acatada, mesmo que na realida- (que são uma concessão de serviço públi-
de não seja cumprida, o que expressa que co), e também dos cartórios que acumu-
a palavra escrita não emana da vida so- lam funções. 8 Devo ressaltar que essa
cial, mas lhe é imposta buscando seu tipologia foi “construída” ao longo do tra-
enquadramento em um molde que nem balho de campo, segundo as informações
sempre se adequava à realidade, é a ten- dadas pelos entrevistados, e a comparação
tativa de organizar a sociedade a partir dos entre o que era dito, o que se dizia que era
documentos escritos (códigos,7 contratos feito, e o que efetivamente era feito nos
etc.). cartórios.

O mundo do direito não equivale, pois, O Cartório de registros públicos9 é uma


ao mundo dos fatos sociais. Para entrar instituição criada pelo Estado para servir
no mundo do direito, os “fatos” têm que
ser submetidos a um tratamento lógi- de arquivo dos negócios realizados entre
co-formal, característico e próprio da particulares, ou entre particulares e o Es-
cultura jurídica e daqueles que a de- tado. O registro é a forma de perpetuar um
têm (KANT DE LIMA, 1991, p. 24). acordo e oficializar a sua existência atra-
Ao realizar as suas atribuições, o cartório vés de um documento. Deste modo, regis-
se utiliza dos mecanismos do “mundo do trar em cartório significa dar publicidade aos
direito”, mas não se restringe apenas a atos praticados. Esta publicidade é a garan-

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tia fundamental para assegurar a valida- co, isto é, uma forma de gestão indireta
de de um documento contra terceiros, pois dos serviços públicos, visto que o Estado
no caso da existência de dois contratos tem continua a ser o titular do serviço, mas o
validade aquele que tiver sido registrado entrega a um particular que arca com “os
primeiro, não sendo considerada a anti- riscos econômicos” da instituição. No car-
güidade do documento. tório “particular”, o recolhimento é feito
na conta do titular, que administra o di-
Para esclarecer, vejamos um exemplo dado nheiro para manter o cartório. Ao contrá-
por um entrevistado: uma pessoa “A” pro- rio, nos cartórios oficializados, o recolhi-
mete a venda de um imóvel a outra “B”, mento das custas é feito diretamente ao
posteriormente, “A” faz uma promessa de Estado, e seus funcionários são funcioná-
compra e venda com a terceira pessoa “C”. rios públicos.
“A” e “B”, e “A” e “C” lavram estas pro-
messas em tabeliães diferentes, asseguran- Para a concessão, é necessário um acordo
do a posse da coisa, mas apenas “C” foi prévio entre o Governo e o concessioná-
imediatamente registrá-lo no Cartório de rio, para estabelecer as condições do fun-
Registro de Imóveis, o que assegurou o do- cionamento da instituição. Estes regula-
mínio da propriedade. Quando “B” foi re- mentos visam garantir que os serviços se-
gistrar o imóvel, constatou que “C” era seu
jam prestados conforme as condições im-
novo proprietário, e que ele havia sido le-
postas pelo Governo, que pode consentir
sado por “A”.
que o concessionário os altere, e também
Neste caso, “B” poderia mover uma ação pode fazê-lo, unilateralmente, se o dese-
contra “A” para ressarcir-se do dano, mas jar. O Governo possui também o poder de
não recuperaria o domínio da coisa, já vale sancionar ou corrigir atos do concessioná-
o que foi registrado. Poderia também ga- rio, e até de anular a concessão, se este não
rantir que foi o outorgante (aquele que agir conforme o estabelecido no contrato.
prometeu um direito) quem lesou uma das
partes. Nesse sistema, o tabelião não teria Tradicionalmente, segundo o direito ad-
nenhuma responsabilidade, pois sua fun- ministrativo, a concessão de serviços pú-
ção é apenas legalizar o acordo, e não ve- blicos é usada como uma forma típica de
rificar a autenticidade de informações. exploração de serviços nos estados liberais,
A ação fiscalizadora do Cartório de Regis- contrários à interferência direta do Esta-
tros Públicos ocorre quando não é uma do na organização da sociedade e da eco-
mesma pessoa que ocupa as funções de nomia. No Brasil, entretanto, este tipo de
tabelião e titular do cartório. Muito embo- negociação está atrelado à necessidade do
ra isto ocorra com alguma freqüência, Estado em criar ou manter esta interferên-
principalmente em cidades do interior,10 cia, quando já existem relações mais “cor-
esta é uma das grandes causas de fraudes. diais” entre o Estado e a “sociedade”, ou
melhor, entre os governantes e uma fra-
O cartório “particular” ou não-oficializa- ção da sociedade, a quem sempre os
do é uma concessão de um serviço públi- governantes devem favores.

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De acordo com a tradição, narrada pelos sem ser o melhor colocado. Ele não res-
entrevistados, como forma de agradeci- peitou. E isso é feito de uma maneira
em que sempre favorece determinadas
mento, presenteava-se com uma conces- coisas. Eles sacramentam a ilegalidade.
são de cartório. Deste modo, assegurava-
se lealdade e gratificavam-se os bons ser- Na realidade, o “modelo liberal” não é ri-
viços. Isso sempre constituiu um eficaz gorosamente seguido, pois não se respei-
modo de controle político, pois quem con- ta o primado da impessoalidade. Ao con-
cede direitos de exploração como se esti- trário, o discurso liberal sofre um proces-
vesse dando um presente quer defender so de transformação e é usado para camu-
seus próprios interesses. flar os favores pessoais, sempre utilizando
subterfúgios para parecer dentro do dis-
Um entrevistado ressaltou que, no princí- curso legal e universal. O exemplo relata-
pio, a concessão era uma espécie de título do acima exemplifica o quanto a socieda-
hereditário, que com a morte do titular de brasileira é marcada por redes de rela-
passava para seus herdeiros. Com o tem- ções pessoais, que são instrumentos utili-
po, esse processo foi sendo criticado por zados muitas vezes para se chegar ao po-
um discurso moralizador do serviço pú- der.
blico, o que fez com que a hereditarieda-
de fosse substituída pela ascensão profissio- A tentativa de conciliação de interesses
nal. Porém isso não alterou totalmente a opostos pode também ser demonstrada
tradição, pois os titulares começaram a pela existência de cartórios que possuem
empregar seus parentes como escreven- mais de uma função, como é o caso do car-
tes, e estes, pela progressão funcional, che- tório do 10o Ofício de Niterói, que acumula
gavam ao posto de titular, assim sendo, a as funções de tabelionato e escrivania. É
hereditariedade no cartório estava assegu- necessário, portanto, fazer uma diferencia-
rada. ção entre as funções do tabelião e do es-
crivão.11 Segundo os entrevistados, tabe-
O cartório particular encerra uma contra- lião é aquele que lavra escritura, procura-
dição entre a concepção do que represen- ção, testamento; escrivão é aquele que es-
ta a concessão de serviços num discurso creve processo. Devo ressaltar as categori-
liberal e a sua efetiva prática, como as utilizadas por um entrevistado ao esta-
demostra-nos o exemplo dado por um belecer a diferenciação entre as funções:
entrevistado:
Existe uma diferença entre os cartórios
O titular do cartório particular é uma judiciais e não-judiciais. Os judiciais li-
escolha do governador. Então vão três dam com processos, e os não-judiciais
nomes: o mais antigo, o mais graduado cuidam de atividades que não precisam
e o que tem mais pontuação. Quando do judiciário, por exemplo, as escritu-
o governador […] fez a reclassificação, ras, procurações, testamentos.
eu tinha mais pontos do que o tabelião
e o substituto. Mas daquela lista o go-
vernador escolheu simplesmente um No direito brasileiro, a instituição do
outro qualquer, sem ser o mais antigo, tabelionato é, ainda hoje, com apenas

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algumas modificações, como era no perí- Os inventários ficam quase sempre no
odo colonial, no que se refere à definição nome do tabelião, ele não distribui para
ninguém, afinal os inventários rendem
do ofício e suas atribuições.12 muito porque têm muitas certidões,
essas coisas...
O tabelião é um titular do ofício de justi-
ça, que dá fé pública13 aos atos que lhe com- Já na escrivania, a distribuição dos proces-
petem, segundo a lei. Ele declara o que sos é, teoricamente, feita pela ordem de
aconteceu perante sua presença e das tes- entrada, mas, conforme nos disse um en-
temunhas, não garantindo que o conteú- trevistado, isso pode ser alterado, depen-
do das informações é verdadeiro, mas sim, dendo da situação, para beneficiar o fun-
que estas ocorreram conforme o estabele- cionário, ou para beneficiar o advogado.
cido pela lei. Vejamos os exemplos dados a respeito:

As funções do tabelião não se limitam a Há uma distribuição dentro do cartó-


ouvir as declarações das partes, redu- rio então nós somos cinco, você fica com
zi-las a escrito e colher as assinaturas o processo de final 1, o outro com 2 e
dos pactuantes e das testemunhas. 3, assim por diante. Quando você faz a
Exerce ele verdadeiro poder de polícia,14 autuação, o processo recebe um núme-
ao indagar da capacidade das pessoas ro na ordem, então todo aquele final vai
que o procuram para esses atos, ao que- ficar com fulano, que fica tomando con-
rer saber dos aspectos legais das cláu- ta do processo. Mas, às vezes, vem pela
sulas ou condições contratuais, ao per- ordem e o camarada só pega justiça
quirir da licitude do objeto […], e alta gratuita, e o outro pegou vários in-
responsabilidade, uma vez que é depo-
sitário da confiança do Estado e do público, ventários. Então, a gente conversa
não que fiquem envolvidas por e troca os processos para que o ou-
artiman1has ou ilegalidades (OLIVEI- tro possa ganhar um pouquinho.
RA, 1962, p. 87, grifos nossos). Na 3a Vara Cível, tem uma juíza du-
Segundo um entrevistado, o tabelionato rona, então todo advogado quer que
o processo vá para lá. A distribui-
funciona como um comércio como outro ção entre varas é por sorteio, mas
qualquer onde se tem de lutar pelos clien- nem sempre é assim, pois o advo-
tes. gado pede, dá um dinheiro, então é
o “dez por onde”.
No tabelionato você tem que ter boas A idéia de que o tabelionato é um comér-
relações. Veja, eu tenho um amigo cio como outro qualquer nos dá a impres-
que tem uma empresa imobiliária,
uma empresa construtora que vai são de que tudo é permitido, não há re-
botar um edifício para vender. O gras na distribuição do trabalho. Já em
edifício tem 80 apartamentos, são relação à escrivania, percebemos clara-
80 escrituras. Então eu trabalho mente que existe uma regra explícita, que
aquilo para mim.
é a ordem de entrada do processo, mas
Mas, segundo os funcionários, neste co- que essa regra pode ser flexível, depen-
mércio só quem ganha é o tabelião e o subs- dendo da situação e da pessoa. Nos casos
tituto, pois eles ficam com todos os traba- relatados, podemos observar que as regras
lhos que dão lucro. Por exemplo: foram ignoradas para beneficiar tanto aos

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próprios funcionários, quanto para aten- Este aspecto merece especial atenção por-
der à vontade de clientes. que, segundo os advogados, principais
usuários de cartórios, esta dupla função é
Esta diferenciação é fundamental, pois responsável por uma série de problemas,
permite explicitar que uma mesma ins- pois uma mesma pessoa lida ao mesmo
tituição lida, ao mesmo tempo, com tempo com interesses distintos, isto é, o ti-
dois tipos de relações sociais distintas tular do cartório, ao exercer o papel de
uma dentro da própria sociedade, ou- tabelião, é responsável pela “tutela admi-
tra entre a sociedade e o Estado, re- nistrativa dos interesses privados” (RIBEI-
presentado aqui pelo Judiciário. E cabe RO, 1955) e, ao assumir as atribuições de
ao cartório “resolver” os conflitos que escrivão, responsabiliza-se pelo andamento
advêm dessa dupla função. de processos judiciais. O risco dessa
dualidade é a não-garantia da observân-
cia dos sigilos processuais, o que coloca em
risco a “neutralidade” da Justiça.

AS PRÁTICAS CARTORIAIS – A RECIPROCIDADE E O PODER NA


BUROCRACIA

Um velho escrivão, aqueles livros cesso constam, ou deveriam constar, das


empoeirados, grandes volumes de pa- fichas. Entretanto, por erro ou esqueci-
péis amontoados e toda uma burocra-
cia, pronta a complicar a vida do usuá-
mento,15 às vezes, as informações não es-
rio (SIVIERO, 1983, p. 9). tão à disposição. Por isso, é prática comum
dos advogados “pedirem para ver o pro-
Qualquer pessoa que já tenha ido a um cesso”, para conferir se os dados do pro-
cartório pôde verificar que o estereóti- cesso coincidem com os dados da ficha.
po apresentado na epígrafe acima se asse- Como isso representa uma “perda de tem-
melha bastante à realidade. Dentro deste po”, os cartórios são caracterizados pelos
quadro, pode-se imaginar o caos que re- advogados como uma “burocracia de bal-
presenta “pedir uma informação sobre um cão”, pois são “obrigados” a verificar o
processo”. A confusão é tanta, que não é processo encostados ao balcão, apenas aos
raro não se encontrar o processo. que são “conhecidos” é permitida a rega-
lia de fazê-lo em seus escritórios.
Quando um advogado, ou uma pessoa A observação do funcionamento do cartó-
qualquer, deseja informações sobre um rio permite supor que a esta aparente de-
processo em andamento vai ao cartó- sorganização se sobrepõe algum tipo de
rio. Com o número do processo, pede lógica, à qual só tem acesso os funcionári-
ao funcionário para verificar o que os. Isto os torna absolutamente indispen-
consta na ficha. A ficha é o controle do car- sáveis, pois, sem eles, a burocracia simples-
tório, todas as informações sobre o pro- mente não funciona.
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O funcionamento do cartório, portanto, só nimato e o início de uma alteração da hie-
é possível quando algum tipo de vínculo rarquia social.
não-oficial se estabelece entre o usuário e
o funcionário, criando-se uma relação de O nome de quem pede o serviço, quando
intimidade. Somente assim ocorre a cir- envolvido por um certo prestígio familiar,
culação da informação. É preciso saber a pode significar um caminho aberto sem a
quem se dirigir para se obter as informa- intermediação explícita do tradicional Q.I.
ções desejadas, é preciso saber com quem (quem indica) que, entretanto, em outros
se está falando. casos, é extremamente necessário e útil.

O cartório, cuja função seria dar publici- Conforme o prestígio, essa aproximação
dade aos documentos que mantém sob sua pode representar um adiamento no pra-
guarda, acaba por se transformar, devido zo ou um desconto significativo nos custos
a este processo, em uma instituição pos- adicionais ou, usando a linguagem
suidora e manipuladora de informações, cartorial, nos custos por fora, CPF.18 O
sendo necessária uma “informação espe- prestígio do usuário não está necessaria-
cial”, isto é, uma relação personalizada, mente relacionado a sua situação econô-
para se obter uma informação ou um ser- mica, mas sim ao valor moral que a amiza-
viço que, a rigor, deveria ser público. de possui na sociedade brasileira. Esta é
tão importante que supera o postulado da
Este processo define o tipo de troca,16 pois, igualdade dos homens perante a lei, con-
se o funcionário do cartório não presta um forme expressa o dito popular: “Aos ami-
gos tudo, aos inimigos a lei.”
serviço, mas sim, faz um favor, isto implica
uma forma de agradecimento: No caso, realmente aos amigos tudo é pos-
sível, até burlar os mecanismos legais de
que pode ser um presente, um convite um serviço, o cumprimento dos prazos ofi-
para uma cerveja e, também, o paga- ciais, tudo é esquecido em função da ami-
mento em espécie. Isso ocorre quando
o funcionário diz que será necessário o zade. Mas quando não se é um inimigo
pagamento de uma taxa adicional, ele (pois, segundo este critério, certamente
sempre alega que é para outra pessoa, não se conseguiria o que deseja), porém
mas quase sempre o dinheiro é para ele apenas um desconhecido, um cidadão co-
mesmo.
mum, sem um prestígio pessoal e sem ami-
A primeira aproximação do usuário e do gos no cartório, só resta “penar” sob o juízo
funcionário pode ser mediada por indica- da lei, e esperar que os prazos e taxas ofi-
ção de terceiros, o que sempre é uma boa ciais sejam respeitados. Ou, então, apelar
referência, pois o usuário deixa de ser um para o “bom senso” e tentar o tradicional
“anônimo” para ser “o conhecido de fula- “jeitinho”.
no”, o que já garante um melhor atendi-
mento.17 Este fato é importante, porque A forma como se pede o favor é fundamen-
representa a diferenciação da pessoa no tal. Segundo depoimentos, é necessário
meio social, o que significa o fim do ano- muito tato, demonstrando interesse pelo

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serviço e pela pessoa a quem se vai pedir o O escrevente tem na mão o “poder de
favor. Nunca se deve oferecer diretamen- agilizar” e o “poder de retardar” o anda-
te dinheiro, mas sim, alguma coisa que mento do processo, na realidade, ele lida
possa ser trocada por esse serviço. O favor com duas coisas preciosas em nossa socie-
é fundamental em nossa sociedade, pois é dade: a informação e o tempo. Segundo
o meio de burlar as normas burocráticas um entrevistado, o grande poder do es-
impessoais que caracterizam o serviço pú- crevente é que ele conhece os dois advo-
blico, a fim de se conseguir aquilo que se gados:
deseja.
O escrevente leva uma vantagem, ele
A burocracia é vista em nossa sociedade conhece os dois advogados. Eles comen-
tam com você aquilo que pretendem
como um aspecto negativo do serviço pú- fazer. Há um segredo, mas é um segre-
blico, que só existe para atrapalhar ou, do muito vago. Você pode não fazer uso
como se diz em linguagem cartorária, “cri- dele, mas pode fazer19 (grifos nossos).
am-se dificuldades para vender facilida-
des”. Deste modo, as brechas existentes na Dentre as formas de “atrasar” um proces-
legislação são sempre utilizadas para bur- so, é interessante destacarmos o embargo
lar a mesma. Como afirmou um entrevis- de gaveta. Para defini-lo, vejamos um exem-
tado: plo:

O sistema cartorário é cheio de regras, Tem advogado que pega uma ação de
mas há o jogo de interesses dos advo- despejo e diz para o cara dar para ele
gados. Eles aplicam todos os golpes, mas um tanto por mês. O camarada paga a
às vezes é dentro do direito dele. Por metade do aluguel, e ele não avança
exemplo: a organização permite que ele com o processo. Daquele dinheiro que
leve o processo para “vista”, mas ele tem ele recebe, ele dá para o escrevente a
o prazo para devolver, e ele simples- metade, e o escrevente faz o embargo de
mente não devolve. Então você entra gaveta. É o embargo mais perigoso que
com um mandado de busca e apreen- existe, porque o camarada guarda o
são, mas isso leva um ano, e ele fica com processo e ninguém mais bota os olhos
o processo esse tempo todo. Tem advo- em cima.
gado que só trabalha em cima dessas
coisas.
Uma outra forma citada de atrasar o pro-
Na verdade, os “jeitinhos” ou “favores” cesso é provocar a perda dos prazos:
podem servir tanto para adiantar
quanto para atrasar o andamento do O cara não tem cuidado, ele marca a
processo, isso depende, apenas, da audiência para o dia 25 de dezembro,
quando chega o dia é feriado, então tem
relação existente entre o funcionário e que marcar outra data, aí ele vai mar-
o advogado, ou até do funcionário e da car em junho do ano seguinte. Isso não
“parte”. Essa relação pode ser basea- é preguiça de procurar não, há inte-
da apenas na amizade, mas também resse de você fazer do processo um
pode ser originada pelo dinheiro. pula-pula. O juiz também tem interes-
se em que o cartório demore, se não
acumula muito trabalho para ele.

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Dei um destaque maior à forma como se construído por ambas as partes, através do
atrasam os processos, porque acredito que qual uma pessoa passa a se distinguir das
esses mecanismos possam ajudar a enten- demais, em função de uma atenção espe-
der um pouco melhor o porquê de a Jus- cial que ela destina a um funcionário e dos
tiça ser considerada lenta. privilégios que recebe quando necessita de
algum serviço.
A transformação da prestação de um ser-
viço em uma dádiva estabelece a “legali- A clientela dos cartórios é, basicamente, for-
zação” do princípio da troca: dar, receber mada por advogados, que utilizam mais
e retribuir se tornam, assim, obrigações constantemente estes serviços e, por isto,
sociais. O entendimento deste mecanismo merecem um tratamento diferenciado,
é fundamental para a interpretação dos desigual.21
códigos estabelecidos pela sociedade bra-
sileira, em que a hierarquia é dissimulada A personalização das relações chega ao
pelos valores de amizade, confiança gene- ponto de em alguns cartórios existirem
rosidade, em que o “conhecimento”20 se funcionários responsáveis por determina-
transforma em um critério classificatório dos processos. Dizem os funcionários que
da sociedade. a distribuição é feita pelo número de en-
trada do processo. Por exemplo, o primei-
Numa relação de troca, a dádiva não re- ro processo fica com o funcionário “A”, o
presenta apenas um agradecimento segundo, com o funcionário “B”, e assim
descompromissado, ao contrário, re- sucessivamente. A rigor, esse procedimento
presenta a oficialização do compromis- serviria para evitar o “tráfico de influên-
so entre quem dá e quem recebe, sig- cia” nos cartórios o que, na opinião de um
nificando a continuidade do vínculo entrevistado, nem sempre acontece:
estabelecido, pois o presente nunca
“paga” um favor prestado. É possível se dar um jeito e conseguir
que o processo fique com aquele funcio-
nário que já se conhece, que já é ami-
No fundo, da mesma forma como
essas dádivas são livres, elas não go. Mas também acontece de cair com
alguém que não goste de você, aí é ter-
são desinteressadas. São já contra-
rível, porque a gente sabe que vai ser
prestações, em sua maioria, e feitas ten-
difícil de conseguir alguma coisa.
do em vista não somente o pagamento
de serviços e coisas, mas também a ma- No cartório, o acesso às informações só se
nutenção de uma aliança proveitosa e concretiza após a identificação das pessoas
que não pode ser recusada (MAUSS,
1974, p. 173). que devem, de alguma forma, ter acesso a
elas, apesar de, teoricamente, esta insti-
O estabelecimento do vínculo, a partir da tuição ter como função dar publicidade
dádiva, e a idéia da contraprestação como àquilo que mantém sob domínio.22
base da aliança remetem ao surgimento de
uma outra categoria. A idéia de cliente A diferenciação de tratamento surge a par-
aparece como resultado de um processo, tir da diferenciação entre as “pessoas”:

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aquelas que, por laços de amizade e soli- damental para que sejam discutidos os
dariedade, merecem uma atenção especial, problemas causados pelos sistemas de va-
e os “indivíduos” que, por serem entida- lores sociais.
des anônimas, são merecedoras das regras,
também abstratas e impessoais. Tudo leva a crer, então, que as relações
entre a nossa “modernidade” – que se
faz certamente dentro da égide da ide-
Esta dicotomia entre pessoa e indivíduo23 ologia igualitária e individualista – e a
representa a existência de dois sistemas nossa moralidade (que parece
sociais distintos, a que cada uma dessas hierarquizante, complementar e
categorias corresponde: holismo – pessoa/ ‘holística’) são complexas e tendem a
individualismo – indivíduo. operar num jogo circular. Reforçando-
se o eixo da igualdade, nosso esqueleto
hierarquizante não desaparece automa-
Estes dois sistemas, embora bastante dis- ticamente, mas reforça-se e reage, in-
tintos, estão presentes na sociedade brasi- ventando e descobrindo novas formas
de manter-se (DA MATTA, 1983,
leira: o primeiro é expresso pela estrutu- p. 156).
ra hierárquica da sociedade; o segundo
está presente nos mecanismos universa- A explicitação deste conflito não significa
lizantes da legislação e da economia de a destruição do princípio da hierarquia,
mercado. ao contrário, representa a forma encon-
trada pela sociedade para a manutenção
Como resultado dessa característica dual da coexistência dos dois sistemas de valor.
da sociedade brasileira, o conflito entre Isto representa um problema para a An-
modernidade e moralidade se torna mais tropologia, pois a construção da “identi-
explícito, e a explicitação do confronto dade brasileira” está relacionada ao modo
entre modernidade e moralidade é fun- como a sociedade resolve e representa esta
contradição.

CONCLUSÃO
Com esta pesquisa, tentei compreender a organização cartorária é fundamentada
como uma determinada instituição, o car- no tratamento diferenciado dos casos, no
tório, cuja função é dar publicidade aos privilégio concedido a alguns de serem
documentos que mantêm sob o seu domí- atendidos de modo distinto dos demais.
nio, o faz na prática. O sistema judiciário brasileiro, assim como
outros setores da administração pública,
Conforme pude observar durante o tra- são caracterizados pela coexistência das
balho de campo, a organização burocráti- formas patrimonial e burocrática de orga-
ca do cartório nada tem a ver com a buro- nização.24 Este tipo de procedimento tem
cracia de que Weber (1979) trata, pois em a ver, segundo a nossa hipótese, com uma
vez de baseada na igualdade perante a lei, tradição ibérica, onde os domínios públi-

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co e privado se confundem, onde o “pes- para a compreensão da circulação das in-
soal e o individual estão presentes de for- formações: a apropriação privada da
ma implícita na produção, guarda e colo- informação que transforma as pessoas em
cação em circulação do saber e de seus “donos do saber”.
objetos (livros, documentos públicos, re-
gistros de propriedade etc.)” (KANT DE A idéia de que o uso dos computadores
LIMA, 1991a). Assim sendo, as relações de acabaria com essa apropriação do saber
favor não significam uma negação da ci- não é adequada, pois não considera que a
dadania, mas sim uma outra forma atra- lógica do sistema permite que as pessoas
vés da qual ela se constrói em nossa socie- se tornem as únicas detentoras do conhe-
dade, visto que “não há indicação de que cimento, que a circulação do saber seja
as relações contratuais sejam liberadoras dependente da “boa vontade” dos que o
da cidadania” (MOURA, 1988, p. 202) detém. De modo que a informação só en-
Por esses motivos, as práticas cartoriais de trará no arquivo do computador se o fun-
manipulação de informações não são ape- cionário quiser, já que, como disse um en-
nas uma mera técnica de armazenamento de trevistado: “nem tudo pode ser digitado
dados, mas sim constituem um poderoso senão todo mundo vai ter acesso”.
mecanismo de controle, à medida que não
tornam universalmente público o que Esta afirmação pode ser a síntese da idéia
mantém sob sua guarda. Durante o levan- que permeia este trabalho: a circulação da
tamento bibliográfico para esta pesquisa, informação não depende, apenas, da téc-
constatei que esta estrutura não era exclu- nica de armazenamento ou do modo como
siva do cartório. Considerei, então, que ela se organizam os dados, ela depende, prin-
poderia estar presente em outras instân- cipalmente, das tradições culturais envol-
cias de produção e consagração da verda- vidas. Assim, não basta apenas
de em nossa sociedade, podendo ser tam- informatizar os dados para que essa lógi-
bém estendida às bibliotecas e aos arqui- ca seja alterada, é preciso que essas práti-
vos públicos, locais mediadores ao acesso cas “privatizadoras” sejam explicitadas e
às informações,25 visto que as suas respec- discutidas.
tivas práticas de armazenamento de infor-
mações em muito se assemelham às dos A utilização de atos “fora-da-lei” (os jeitin-
cartórios. hos, os custos por fora) pelos funcionários
dos cartórios é interpretada por uns como
Com relação à técnica de armazenamento desvio da moral, originada pelas más con-
das informações, existe atualmente um dições de trabalho e os baixos salários.
discurso favorável à modernização do sis- Porém, outros acreditam que o que fazem
tema. A informatização surge como o ins- é bom, pois eles têm boa vontade em aju-
trumento capaz de resolver todos os pro- dar a quem precisa.
blemas relativos à circulação da informa-
ção. Porém, na sociedade brasileira, é pre- Este tipo de análise, fundada no senso co-
ciso se destacar um aspecto, fundamental mum da sociedade, remete a causa das

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ações sociais ao caráter individual (atribu- O aspecto individual pode contribuir mui-
to pessoal), não permitindo perceber que to como elemento onde se materializam
a lógica dessas ações transcende os limites (mas não surgem) as estruturas e as repre-
destas transações, pois está implícita na sentações da sociedade. Porém, ele não
própria organização da sociedade, na di- pode ser utilizado como instrumento para
ficuldade da alteração de uma estrutura a explicação de fatos sociais, pois, certa-
fortemente hierarquizante, mas que cons- mente, provocará uma visão limitada da
trói uma representação igualitária de si complexidade deste sistema simbólico.27
mesma.26

NOTAS
1
Agradeço à professora Laura Graziela F. F. Gomes
8
Sobre a história dos Cartórios ver Oliveira (s.d.),
e ao professor-orientador Roberto Kant de Lima, Ribeiro (1955), Serpa Lopes (1947) e Siviero
que muito contribuíram para este trabalho com (1983).
seus comentários e críticas, isentando-os, no en- 9
O Cartório de Registros Públicos se divide em Re-
tanto, de quaisquer erros que porventura perma- gistro Civil das Pessoas Naturais, Registro de Imó-
neçam no texto. Agradeço também aos funcioná- veis, Registro Civil das Pessoas Jurídicas e Regis-
rios dos Cartórios do 10o Ofício de Niterói, do 4o tro de Títulos e Documento.
Ofício da 3a Vara Cível, da 1a Vara de Família do
Fórum de Niterói e 11o Cartório de Registro de 10
É o caso do Cartório do 10o Ofício de Niterói.
Imóveis do Rio de Janeiro, bem como aos demais 11
Sobre tabelionato ver Oliveira (s.d.) e Ribeiro
entrevistados pela atenção dispensada.
(1955).
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Uma primeira versão deste trabalho foi apresenta- 12
Sobre tabelionato no período colonial ver Schwartz
da no Concurso Vasconcellos Torres de Iniciação
(1979).
Científica da UFF, no ano de 1992, tendo obtido
o 3o lugar (MIRANDA, 1993). 13
A fé pública representa a autoridade de uma ates-
tação. Através de uma assinatura com fé pública, o
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A categoria tradição é entendida aqui como “siste-
Estado impõe a certeza de que um determinado
ma de significação que empresta sentido às práti-
documento possui valor. A assinatura com fé pú-
cas e representações de um determinado grupo”
blica representa um compromisso com a honra,
(KANT DE LIMA, 1989, p. 65).
posto que a escrita de um documento é
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É interessante destacar o papel que os intermediá- declaratória, ou seja, tem um caráter pessoal, ver
rios exercem na sociedade brasileira, ver Da Matta Lefebvre (1992).
(1987). 14
Sobre a comparação entre cartório e polícia, ver
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Sobre a relação da escrita e burocracia, ver Goody Kant de Lima (1989).
(1987). 15
O “esquecimento” nem sempre é apenas uma fa-
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A honra (PITT-RIVERS, 1992) está ligada por de- lha de memória, muitas vezes está comprometi-
finição ao exercício de um poder pessoal que con- do com outros fatores. Segundo os funcionários,
tribui para a diferenciação e compartimentação as informações não constam da ficha devido ao
da sociedade. excesso de trabalho. Porém, segundo os advoga-
dos, a ausência das informações pode represen-
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A idéia de código remete à noção de um conheci- tar um “boicote”, pois, em alguns casos, isso pode
mento privativo, que ao ser decifrado torna-se representar a perda de prazos e a paralisação do
público (KANT DE LIMA, 1991).