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A Crise Na Educação

Hannah Arendt

«The crisis in Education» foi pela primeira vez publicado na Partisan Review,
25, 4 (1957), pp. 493-513. Publicado em versão alemã em Fragwürdige
Traditionsbestände im Politischen Denken der Gegenwart, Frankfurt:
Europäische Verlagsanstalt, 1957, o texto veio a ser de novo reimpresso em
Between Past and Future: Six Exercises in Political Thought, New York:
Viking Press, 1961, pp. 173-196, de onde o traduzimos. (N. T.)

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como regra geral da nossa época que tudo o
I que pode acontecer num país pode também,
num futuro previsível, acontecer em qualquer
outro país.
A crise geral que se abate sobre o mundo
moderno e que atinge quase todas as áreas da
Para além destas razões de ordem geral que
vida humana manifesta-se diferentemente nos
levam o homem comum a interessar-se por
vários países, alargando-se a diversos
problemas que se colocam em domínios acerca
domínios e revestindo-se de diferentes formas.
dos quais, de uma perspectiva especializada,
Na América, um dos aspectos mais
ele nada sabe (e este é sem dúvida o meu
característicos e reveladores é a crise periódica
caso quando falo da crise na educação, uma
da educação a qual, pelo menos na última
vez que não sou educadora profissional), há
década, se converteu num problema político de
ainda uma outra razão, porventura mais
primeira grandeza de que os jornais falam
convincente, que leva o homem comum a
quase diariamente. Na verdade, não é
preocupar-se com uma situação crítica em que
necessária grande imaginação para se
não se encontra imediatamente envolvido.
avaliarem os perigos decorrentes de uma baixa
Referimo-nos à oportunidade, fornecida pela
constante dos padrões elementares ao longo
própria crise — a qual tem sempre como efeito
de todo o sistema escolar. Os vãos e
fazer cair máscaras e destruir pressupostos —
inumeráveis esforços das autoridades
de explorar e investigar tudo aquilo que ficou
responsáveis pelo controlo da situação
descoberto na essência do problema, essência
mostram bem toda a gravidade do problema.
que, na educação, é a natalidade, o facto de os
No entanto, quando se compara esta crise na
seres humanos nascerem no mundo. O
educação com as experiências políticas de
desaparecimento dos pressupostos significa
outros países no século XX, a onda
simplesmente que se perderam as respostas
revolucionária posterior à Primeira Guerra
que vulgarmente se aceitam sem sequer nos
Mundial, os campos de concentração e
apercebermos de que, na sua origem, essas
extermínio, ou mesmo o profundo mal-estar
respostas eram respostas a questões. Ora, a
que, sob a aparência de prosperidade, se
crise força-nos a regressar às próprias
espalhou por toda a Europa depois do fim da
questões e exige de nós respostas, novas ou
Segunda Guerra Mundial, toma-se difícil
antigas, mas, em qualquer caso, respostas sob
dedicar-se se na educação toda a atenção que
a forma de juízos diretos. Uma crise só se torna
ela merece. Com efeito, é tentador considerá-la
desastrosa quando lhe pretendemos responder
como um mero fenômeno local, desligada dos
com ideias feitas, quer dizer, com preconceitos.
problemas mais importantes do século,
Atitude que não apenas agudiza a crise como
fenômeno cuja responsabilidade seria
faz perder a experiência da realidade e a
necessário atribuir a determinados aspectos
oportunidade de reflexão que a crise
particulares da vida dos Estados Unidos, sem
proporciona.
equivalência noutros pontos do mundo.
Numa crise, por mais claro que um problema
Mas, se isso fosse verdade, a crise no nosso
de ordem geral se possa apresentar, é sempre
sistema escolar não se teria transformado
impossível isolar completamente o elemento
numa questão política e as autoridades
universal das circunstâncias concretas em que
responsáveis pela educação não teriam sido,
esse problema aparece. Ainda que a crise na
como foram, incapazes de tratar o problema a
educação possa afetar o mundo inteiro, é
tempo. Sem dúvida que, para além da
significativo que seja na América que ela
espinhosa questão de saber porque razão o
assume a forma mais extrema. A razão para tal
Joãozinho não sabe ler, a crise na educação
decorre talvez do facto de, apenas na América,
envolve muitos outros aspectos. Somos
uma crise na educação se poder tomar
sempre tentados a admitir que estamos perante
verdadeiramente um fator político. Na verdade,
problemas específicos, perfeitamente
a educação desempenha na América um papel
delimitados pela história e pelas fronteiras
diferente, de natureza política,
nacionais, que só dizem respeito a quem por
incomparavelmente mais importante do que
eles é diretamente atingido. Ora, é
nos outros países. A explicação técnica
precisamente essa crença que hoje em dia se
consiste obviamente no facto de a América ter
revela falsa. Pelo contrário, podemos tomar
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sido sempre uma terra de imigrantes. Nestas O extraordinário entusiasmo por tudo aquilo
circunstâncias, é óbvio que só a escolarização, que é novo, visível em quase todos os
a educação e a americanização dos filhos dos aspectos da vida quotidiana americana, bem
imigrantes pode realizar essa tarefa assim como a correspondente confiança numa
imensamente difícil de fundir os mais variados «perfectibilidade indefinida» — aquilo que
grupos étnicos — fusão nunca completamente Tocqueville considerou ser o credo do «homem
bem sucedida mas que, para lá de todas as vulgar não instruído» e que, enquanto tal,
expectativas, está continuamente a ser precede em quase uma centena de anos um
realizada. Na medida em que, para a maioria desenvolvimento semelhante nos outros países
dessas crianças, o inglês não é a sua língua- ocidentais — poderiam explicar a maior
mãe mas a língua que têm que aprender na atenção que sempre foi prestada e o maior
escola, as escolas são necessariamente significado que, na América, sempre foi
levadas a assumir funções que, em qualquer atribuído aos recém-chegados pelo
estado-nação, seriam naturalmente nascimento, isto é, às crianças. Crianças às
desempenhadas em casa. quais, desde o momento em que abandonavam
a infância e estavam prestes a entrar na
Mais decisivo, no que respeita à nossa análise, comunidade dos adultos enquanto jovens, os
no entanto o papel que a contínua imigração Gregos chamavam muito simplesmente oi neoi
desempenha na consciência e estrutura política — os novos. Há ainda um fato adicional que se
do país. A América não é simplesmente um revelou decisivo para o significado da
país colonial que necessita de imigrantes para educação: o facto de este pathos da novidade,
povoar o seu território mas cuja estrutura se bem que consideravelmente anterior ao
política se manteria independente deles. Na século XVIII, só se ter desenvolvido conceitual
América, o fator determinante foi sempre a e politicamente no nosso século. Foi a partir
divisa impressa em cada nota de dólar: Novus desta fonte que se constituiu um ideal de
Ordo Seculorum, Uma Nova Ordem do Mundo. educação, mesclado de rousseauismo — e, de
Os imigrantes, os recém-chegados, constituem facto, influenciado diretamente por Rousseau
para o país a garantia de que ele representa de — de acordo com o qual a educação se
fato a nova ordem. O sentido desta nova transformou num instrumento da política e a
ordem, desta criação de um novo mundo em própria atividade política foi concebida como
oposição ao antigo, era, e continua a ser, abolir uma forma de educação.
a pobreza e a opressão. Mas,
simultaneamente, a magnificência desta nova O papel desempenhado pela educação em
ordem consiste no facto de, desde o princípio, todas as utopias políticas, desde a Antiguidade
ela se não ter desligado do mundo exterior para até aos nossos dias, mostra bem como pode
o confrontar com um modelo perfeito — como parecer natural querer começar um mundo
sempre acontece na criação de utopias — em novo com aqueles que são novos por
se não ter arrogado pretensões imperialistas, nascimento e por natureza. No que diz respeito
nem ter sido pregada como se de um à política há aqui, obviamente, uma grave
evangelho se tratasse. Ao contrário, a relação incompreensão: em vez de um indivíduo se
que esta república, que tinha como projeto juntar aos seus semelhantes assumindo o
abolir a pobreza e a opressão, estabeleceu esforço de os persuadir e correndo o risco de
com o mundo exterior caracterizou-se, desde o falhar, opta por uma intervenção ditatorial,
início, pelo bom acolhimento dado a todos os baseada na superioridade do adulto,
pobres e oprimidos da Terra. Nas palavras de procurando produzir o novo como um fait
John Adams em 1765, antes portanto da accompli, quer dizer, como se o novo já
Declaração de Independência: «Vejo sempre a existisse. É por esta razão que, na Europa, a
Constituição da América como o começo de um crença de que é necessário começar pelas
grande plano ou projeto da Providência com crianças se se pretendem produzir novas
vista à iluminação e emancipação de todos os condições tem sido monopólio principalmente
povos oprimidos da Terra.» Foi em dos movimentos revolucionários com
concordância com esta intenção ou lei tendências tirânicas, movimentos esses que,
fundamental que a América iniciou a sua quando chegam ao poder, retiram os filhos aos
existência histórica e política. pais e, muito simplesmente, tratam de os
endoutrinar. Ora, a educação não pode

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desempenhar nenhum papel na política porque verdade, a expressão «Novo Mundo» só ganha
na política se lida sempre com pessoas já sentido face a um Mundo Antigo, mundo que,
educadas. Aqueles que se propõem educar se bem que admirável por outras razões, foi
adultos, o que realmente pretendem é agir rejeitado por não ter podido encontrar solução
como seus guardiões e afastá-los da atividade para os problemas da pobreza e da opressão.
política. Como não é possível educar adultos, a
palavra «educação» tem uma ressonância Ora, no que diz respeito à educação ela
perversa em política — há uma pretensão de mesma, só no nosso século é que a ilusão
educação quando, afinal, o propósito real é a emergente do pathos do novo produziu as suas
coerção sem uso da força. Quem quiser mais sérias consequências. Em primeiro lugar,
seriamente criar uma nova ordem política permitiu que essa mistura de modernas teorias
através da educação, quer dizer, sem usar nem educativas provenientes da Europa Central, e
a força e o constrangimento nem a persuasão, que consiste numa espantosa salganhada de
tem que aderir à terrível conclusão platônica: coisas com sentido e sem sentido,
banir todos os velhos do novo estado a fundar. revolucionasse todo o sistema de educação
Mesmo no caso em que se pretendem educar sob a bandeira do progresso. Aquilo que na
as crianças para virem a ser cidadãos de um Europa não passou de uma experiência,
amanhã utópico, o que efetivamente se passa testada aqui e além, em algumas escolas e
é que se lhes está a negar o seu papel futuro instituições educativas isoladas, estendendo
no corpo político pois que, do ponto de vista depois, gradualmente, a sua influência a alguns
dos novos, por mais novidades que o mundo setores, produziu na América, de há cerca de
adulto lhes possa propor, elas serão sempre vinte e cinco anos a esta parte e, por assim
mais velhas que eles próprios. Faz parte da dizer, de um dia para o outro, uma
natureza da condição humana que cada nova transformação completa no que diz respeito às
geração cresça no interior de um mundo velho, tradições e aos métodos estabelecidos de
de tal forma que, preparar uma nova geração ensino e de aprendizagem.
para um mundo novo, só pode significar que se
deseja recusar àqueles que chegam de novo a Não entrarei em detalhes e deixarei de lado as
sua própria possibilidade de inovar. escolas privadas, muito especialmente o
sistema de escolas paroquiais católicas
Nada disto acontece na América e é romanas. O fato mais significativo é que, em
justamente por isso que, aqui, é tão difícil julgar virtude de certas teorias, boas ou más, todas
corretamente estas questões. O papel político as regras da saudável razão humana foram
que a educação efetivamente representa numa postas de parte. Um procedimento como este
terra de imigrantes, o facto de que a escola não tem sempre uma significação grande e
serve apenas para americanizar as crianças perniciosa, em especial num país cuja vida
mas tem também efeitos sobre os seus pais, o política repousa tão fortemente no senso
fato ainda que, aqui, se de ajudam comum. Quando, nas questões políticas, a sã
efetivamente as pessoas a abandonar um razão humana falha ou desiste da tentativa de
mundo velho e a entrar num novo, tudo isto dá encontrar respostas, estamos frente a uma
força à ilusão de que o novo mundo está a ser crise. Este tipo de razão é afinal o senso
efetivamente construído através da educação comum em virtude do qual nós, e os nossos
das crianças. É claro que não é esta a cinco sentidos individuais, nos adaptamos a um
verdadeira situação. O mundo em que as mundo único e comum a todos e aí nos
crianças estão a ser introduzidas, mesmo na movemos. O desaparecimento do senso
América, é um mundo velho, quer dizer, um comum que hoje se verifica é pois o sinal mais
mundo preexistente, construído pelos vivos e seguro da atual crise. Em todas as crises é
pelos mortos, um mundo que só é novo para destruída uma parcela do mundo, algo portanto
aqueles que nele entraram recentemente pela que nos é comum a todos. Qual varinha
imigração. Mas a ilusão é aqui mais forte do mágica, o fracasso do senso comum aponta
que a realidade porque emerge diretamente de para o lugar onde se produz essa destruição.
uma experiência americana básica: a de que é
possível fundar uma nova ordem e, mais ainda, De qualquer forma, a resposta à questão de
a de que é possível fundá-la com a consciência saber porque razão o Joãozinho não sabe ler
profunda de um continuum histórico. Na ou à questão mais geral de saber porque é que

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os níveis escolares da escola americana média favorecidas. Mas, se olharmos para Inglaterra,
permanecem tanto aquém dos níveis médios onde, como se sabe, a educação secundária foi
atuais de todos os países da Europa não também recentemente estendida a todas as
consiste, infelizmente, em dizer que este país é classes sociais, percebemos que não pode ser
jovem e, por isso, não alcançou ainda os essa a explicação. Na Inglaterra, foi instituído
padrões do Velho Mundo. Pelo contrário, neste um exame difícil no fim da escola primária, ou
domínio, este país é o mais «avançado» e o seja, para alunos de onze anos, exame esse
mais moderno do mundo. O que é verdade em que permite selecionar cerca de dez por cento
dois sentidos: em nenhum outro país se de alunos considerados capazes de prosseguir
puseram com tanta acuidade os problemas de estudos secundários. Ainda que, mesmo em
educação de uma sociedade de massas, e em Inglaterra, o rigor desta seleção tenha sido
nenhum outro foram aceites de forma tão servil aceito com protestos, na América, isso seria
e acrítica as mais modernas teorias completamente impossível. Na Inglaterra, o que
pedagógicas. Assim, a crise na educação se pretende é instaurar uma «meritocracia»,
americana anuncia, por um lado, o fracasso da mais uma vez claramente correspondente a
educação progressista e, por outro, constitui uma oligarquia, não agora de riqueza ou
um problema extremamente difícil porque surge nascimento, mas de talento. Ainda que na
no seio de uma sociedade de massas e em Inglaterra se não esteja disso plenamente
resposta às suas exigências. consciente, isso significa que o país, mesmo
sob um regime socialista, continuará a ser
Neste sentido, devemos ter presente um outro governado como desde sempre tem sido, ou
fator mais geral que, se não constituiu a causa seja, não como uma monarquia ou como uma
da crise, a agravou em elevado grau: refiro-me democracia, mas como uma oligarquia ou
ao papel que o conceito de igualdade aristocracia — esta última entendida como
desempenha e sempre desempenhou na vida sendo melhores os mais dotados, o que está
americana. Trata-se de uma noção na qual longe de constituir uma certeza. Na América,
está envolvida muito mais do que a igualdade uma divisão quase física deste tipo, entre
perante a lei; mais também do que o crianças dotadas e não dotadas, seria
nivelamento das distinções de classe; mais intolerável. A meritocracia não contradiz menos
mesmo do que aquilo que a expressão o princípio da igualdade, de uma democracia
«igualdade de oportunidades» designa, embora igualitária, do que qualquer outra oligarquia.
esta tenha aqui grande significado uma vez
que, na perspectiva americana, o direito à Deste modo, o que faz com que a crise da
educação é um direito civil inalienável. Este educação seja tão especialmente aguda entre
último ponto foi aliás decisivo para a nós é o temperamento político do país, o qual
estruturação do sistema escolar público no luta, por si próprio, por igualar ou apagar tanto
qual, só excepcionalmente, existem escolas quanto possível a diferença entre novos e
secundárias de tipo europeu. Porque a velhos, entre dotados e não dotados, enfim,
escolaridade obrigatória se estende até aos entre crianças e adultos, em particular, entre
dezasseis anos, todas as crianças devem alunos e professores. É óbvio que este
frequentar a escola secundária a qual, portanto, nivelamento só pode ser efetivamente
surge como uma espécie de continuação da alcançado à custa da autoridade do professor e
escola primária. Ora, a falta de um ensino em detrimento dos estudantes mais dotados.
verdadeiramente secundário tem uma série de No entanto, é igualmente óbvio para quem
efeitos em cadeia: a preparação para a alguma vez esteve em contato com o sistema
universidade tem que ser dada pelas próprias educativo americano que esta dificuldade,
universidades, o que faz com que os curricula enraizada na atitude política do país, tem
destas sofram, por essa razão, de uma também grandes vantagens, não apenas do
sobrecarga crônica, o que, por sua vez, afeta a ponto de vista humano, mas no plano da
qualidade do trabalho que aí se faz. educação. De qualquer forma, estes factores
gerais não podem explicar a crise em que nos
À primeira vista, pode parecer que esta encontramos no presente nem justificar as
anomalia reside na natureza mesma de uma medidas que a precipitaram.
sociedade de massas na qual a educação
deixou de ser privilégio das classes

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crianças, elas são simples e definitivamente
II incapazes.
Estas medidas catastróficas podem ser Emancipada face à autoridade dos adultos, a
esquematicamente explicadas por intermédio criança não foi portanto libertada mas antes
de três ideias-base, porventura demasiado submetida a uma autoridade muito mais feroz e
familiares. A primeira é a de que existe um verdadeiramente tirânica: a tirania da maioria.
mundo da criança e uma sociedade formada Em qualquer caso, o que daí resulta é que as
pelas crianças; que estas são seres autônomos crianças são, por assim dizer, banidas do
e que, na medida do possível, se devem deixar mundo dos adultos. Elas ficam, ou entregues a
governar por si próprias. O papel dos adultos si mesmas, ou à tirania do seu grupo, grupo
deve então consistir em limitar-se a assistir a contra o qual, tendo em vista a sua
esse processo. É o grupo das crianças ele superioridade numérica, se não podem revoltar;
mesmo que detém a autoridade que vai permitir grupo com o qual, porque são crianças, não
dizer a cada criança o que ela deve e não deve podem discutir; enfim, grupo do qual não
fazer. Entre outras consequências, isto cria podem escapar-se para qualquer outro mundo
uma situação na qual o adulto, não só se porque o mundo dos adultos lhes está vedado.
encontra desamparado face à criança tomada A reação das crianças a esta pressão tende a
individualmente, como fica privado de todo o ser ou o conformismo ou a delinquência juvenil
contato com ela. Quanto muito, pode dizer-lhe e, na maior parte das vezes, uma mistura das
que faça o que lhe apetecer e, depois, impedir duas coisas.
que aconteça o pior. As relações reais e
normais entre crianças e adultos — relações A segunda ideia-base a tomar em consideração
que decorrem do fato de, no mundo, viverem na presente crise tem a ver com o ensino. Sob
em conjunto e simultaneamente pessoas de influência da psicologia moderna e das
todas as idades — estão portanto hoje doutrinas pragmáticas, a pedagogia tornou-se
quebradas. uma ciência do ensino em geral ao ponto de se
desligar completamente da matéria a ensinar.
Faz também parte da essência desta primeira O professor — assim nos é explicado — é
ideia-base tomar em consideração unicamente aquele que é capaz de ensinar qualquer coisa.
o grupo e não a criança enquanto,indivíduo. No A formação que recebe é em ensino e não no
interior do grupo, a criança está, bem domínio de um assunto particular. Como
entendido, numa situação pior do que a veremos adiante, esta atitude está,
anterior. Na verdade, a autoridade de um naturalmente, ligada a uma concepção
grupo, ainda que seja a de um grupo de elementar do que é aprender. Para além disso,
crianças, é sempre consideravelmente mais esta atitude tem como consequência o facto de,
forte e muito mais tirânica que a de um único no decurso dos últimos decênios, a formação
indivíduo, por mais severo que este possa ser. dos professores na sua própria disciplina ter
Se nos colocarmos no ponto de vista da sido grandemente negligenciada, sobretudo
criança tomada individualmente, apercebemo- nas escolas secundárias. Porque o professor
nos de como são praticamente nulas as não tem necessidade de conhecer a sua
hipóteses que ela tem de se revoltar, ou de própria disciplina, acontece frequentemente
fazer qualquer coisa por sua própria iniciativa. que ele sabe pouco mais do que os seus
A criança já não se encontra na situação de alunos. O que daqui decorre é que, não
uma luta desigual com alguém que, sem somente os alunos são abandonados aos seus
dúvida, tinha sobre ela uma superioridade próprios meios, como ao professor é retirada a
absoluta — situação na qual, no entanto, ela fonte mais legítima da sua autoridade enquanto
podia contar com a solidariedade das outras professor. Pense-se o que se pensar, o
crianças, quer dizer, dos seus pares — mas professor é ainda aquele que sabe mais e que
antes na situação, por definição sem é mais competente. Em consequência, o
esperança, de alguém que pertence à minoria professor não autoritário, aquele que, contando
de um só face à absoluta maioria de todos os com a autoridade que a sua competência lhe
outros. São bem poucos os adultos que poderia conferir, quereria abster-se de todo o
conseguem suportar uma tal situação, mesmo autoritarismo, deixa de poder existir.
quando ela não é reforçada por
constrangimentos exteriores. Quanto às
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Foi uma moderna teoria da aprendizagem que estreita ligação entre estes dois pontos: a
permitiu à pedagogia e às escolas normais substituição do aprender pelo fazer e do
desempenhar este pernicioso papel na atual trabalho pelo jogo. A criança deve aprender
crise da educação. Essa teoria é, muito falando, quer dizer, fazendo, e não pelo estudo
simplesmente, a aplicação lógica da nossa da gramática e da sintaxe. Noutros termos, a
terceira ideia-base, ideia que foi durante criança deve aprender uma língua estrangeira
séculos sustentada no mundo moderno e que tal como aprendeu a sua língua materna, como
encontrou a sua expressão conceptual que jogando e na continuidade sem ruptura da
sistemática no pragmatismo. Essa ideia-base é sua existência habitual. Deixando de lado a
a de que se não pode saber e compreender questão de saber se isso é ou não possível —
senão aquilo que se faz por si próprio. A e, em certa medida, é possível desde que se
aplicação à educação desta ideia é tão mantenha a criança todo o dia num ambiente
primitiva quanto evidente: substituir, tanto onde se não fale senão a língua estrangeira —
quanto possível, o aprender pelo fazer. é perfeitamente claro que este método procura
Considera-se pouco importante que o professor deliberadamente manter a criança mais velha,
domine a sua disciplina porque se pretende tanto quanto possível, num nível infantil. Aquilo
compelir o professor ao exercício de uma que, precisamente, deveria preparar a criança
atividade de constante aprendizagem para que, para o mundo dos adultos, o hábito adquirido
como se diz, não transmita um «saber morto» pouco a pouco de trabalhar em vez de jogar, é
mas, ao contrário, demonstre constantemente suprimido em favor da autonomia do mundo da
como se adquire esse saber. A intenção infância.
confessada não é a de ensinar um saber mas a
de inculcar um saber-fazer. O resultado é uma Qualquer que seja a ligação existente entre o
espécie de transformação das instituições de fazer e o saber, ou qualquer que seja a
ensino geral em institutos profissionais. Tais validade da fórmula pragmática, a sua
institutos tiveram grande sucesso quando se aplicação à educação, isto é, ao modo como a
tratava de aprender a conduzir uma viatura, criança aprende, tende a fazer da infância um
coser à máquina ou mais importante ainda para absoluto, exatamente de modo similar àquele
«a arte de viver» — comportar-se bem em que observamos a propósito da primeira ideia-
sociedade ou ser popular, mas revelaram-se base. Também aqui, sob pretexto de respeitar
incapazes de levar as crianças a adquirir a independência da criança, ela é excluída do
conhecimentos requeridos por um normal mundo dos adultos para ser artificialmente
programa de estudos. mantida no seu, tanto quanto este pode ser
designado um mundo. Ora, esta forma de
Esta descrição peca, não tanto pelo seu manter a criança afastada é artificial porque,
exagero evidente em favor da argumentação por um lado, quebra as relações naturais entre
em causa, como pela sua insuficiência em dar crianças e adultos, as quais, entre outras
conta do modo como, neste processo, se tem coisas, consistem em aprender e ensinar, e
tentado iludir, tanto quanto possível, a distinção porque, ao mesmo tempo, vai contra o facto de
entre trabalho e jogo em benefício deste último. a criança ser um ser humano em plena
Considera-se o jogo como o mais vivo modo de evolução e a infância ser uma fase transitória,
expressão e a maneira mais apropriada para a uma preparação para a idade adulta.
criança de se conduzir no mundo, a única
forma de atividade que brota espontaneamente Na América, a crise atual resulta do
da sua existência de criança. Só aquilo que se reconhecimento do carácter destrutivo destes
pode aprender através do jogo corresponde à três pressupostos e do esforço desesperado
sua vivacidade. Afirma-se que a atividade que está a ser feito para reformar todo o
característica da criança consiste em jogar. sistema de educação, isto é, para o transformar
Aprender, no velho sentido da palavra, completamente. Mas, ao fazer isto, o que se
forçando a criança a adotar uma atitude de está efetivamente a fazer — com exceção dos
passividade, obrigá-la-ia a abandonar a sua planos relativos a um aumento imediato das
própria iniciativa que se não manifesta senão facilidades de ensino das ciências físicas e da
no jogo. tecnologia — nada mais é do que uma
restauração: o ensino será outra vez conduzido
O ensino das línguas ilustra diretamente a com autoridade; nas horas de aula deixar-se-á

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de jogar e far-se-á de novo trabalho sério; dar- devir. Ela é um novo ser humano e está a
se-á maior importância aos conhecimentos caminho de devir um ser humano. Este duplo
prescritos pelo curriculum do que às atividades aspecto nem é evidente nem se aplica às
extracurriculares. Fala-se mesmo em formas da vida animal. Corresponde a um
transformar o atual curriculum de formação de duplo modo de relação — a relação ao mundo,
professores, de forma a que os próprios por um lado, e, por outro, a relação à vida. A
professores tenham que aprender alguma coisa criança partilha o estado de devir com todos os
antes de serem colocados junto das crianças. seres vivos. Se se considera a vida e a sua
evolução, a criança é um ser humano em devir,
Não se justifica estarmos aqui a equacionar as tal como o gatinho é um gato em devir. Mas a
refonnas propostas, aliás ainda em discussão, criança só é nova em relação a um mundo que
e que apenas têm interesse para a América. já existia antes dela, que continuará depois da
Acresce que não tenho capacidade para sua morte e no qual ela deve passar a sua
discutir as questões mais técnicas — ainda vida. Se a criança não fosse um recém-
que, a longo prazo, essas possam ser as as chegado ao mundo dos homens mas somente
mais importantes — acerca de como reformar uma criatura viva ainda não desenvolvida, a
os curricula da escola primária e secundária em educação seria unicamente uma das funções
todos os países, de modo a adaptá-los às da vida. Então, ela consistiria apenas na
necessidades inteiramente novas do mundo manutenção da vida e naquelas tarefas de
atual. Há, porém, uma dupla questão que é ensino e prática de vida que todos os animais
para mim importante: que aspectos do mundo assumem em relação aos seus filhos.
atual e da sua crise se revelaram efetivamente
na crise da educação, isto é, quais são as No entanto, pela concepção e pelo nascimento,
verdadeiras razões pelas quais, durante os pais humanos, não apenas dão vida aos
décadas, foi possível falar e agir em tão seus filhos como, ao mesmo tempo, os
flagrante contradição com o senso comum? E, introduzem no mundo. Pela educação, os pais
em segundo lugar, que podemos aprender com assumem por isso uma dupla responsabilidade
esta crise acerca da essência da educação, — pela vida e pelo desenvolvimento da criança,
não no sentido em que podemos sempre mas também pelo continuidade do mundo.
aprender com os nossos erros o que não se Estas duas responsabilidades não coincidem
deve fazer, mas no sentido da reflexão sobre o de modo algum e podem mesmo entrar em
papel que a educação desempenha em todas conflito. Num certo sentido, a responsabilidade
as civilizações, ou seja, da obrigação que a de desenvolvimento da criança vai contra a
existência de crianças coloca a todas as responsabilidade pelo mundo: a criança tem
sociedades humanas. Começaremos com esta necessidade de ser especialmente protegida e
segunda questão. cuidada para evitar que o mundo a possa
destruir. Mas, por outro lado, esse mundo tem
necessidade de uma proteção que o impeça de
III ser devastado e destruído pela vaga de recém-
chegados que, sobre si, se espalha a cada
nova geração.
Uma crise na educação suscitaria sempre
graves problemas mesmo se não fosse; como Porque a criança tem necessidade de ser
no caso presente, o reflexo de uma crise muito protegida contra o mundo, o seu lugar
mais geral e da instabilidade da sociedade tradicional é no seio da família. É lá que, ao
moderna. E isto porque a educação é uma das abrigo de quatro muros, os adultos regressam
atividades mais elementares e mais cada dia do mundo exterior e se unem na
necessárias da sociedade humana a qual não segurança da vida privada. Esses quatro
permanece nunca tal como é mas antes se muros, ao abrigo dos quais se desenrola a vida
renova sem cessar pelo nascimento, pela familiar, constituem uma proteção contra o
chegada de novos seres humanos. Acresce mundo e, em particular, contra o aspecto
que, esses recém-chegados não atingiram a público do mundo. Delimitam um lugar seguro
sua maturidade, estão ainda em devir. Assim, a sem o qual nenhuma coisa viva pode
criança, objecto da educação, apresenta-se ao prosperar. Isto é válido, não somente para a
educador sob um duplo aspecto: ela é nova vida da criança, mas também para a vida em
num mundo que lhe é estranho, e ela está em
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geral — por todo o lado em que esta é retirados do mundo dos adultos. Como foi
constantemente exposta ao mundo sem a então possível que as mais elementares
proteção da intimidade e da segurança condições da vida, necessárias para o
privadas, a sua qualidade vital é destruída. No crescimento e desenvolvimento da criança,
mundo público, comum a todos, as pessoas tivessem sido ignoradas ou, simplesmente, não
contam, e também conta a obra, quer dizer, a tivessem sido reconhecidas como tal? Como
obra produzida pelas nossas mãos, a obra pela pôde acontecer que a criança fosse exposta
qual cada um de nós contribui para o nosso àquilo que, mais do que qualquer outra coisa,
mundo comum. Mas, aí, a vida enquanto vida caracteriza o mundo dos adultos, quer dizer, o
não conta. O mundo não se pode interessar por seu aspecto público, e isto no preciso momento
ela e ela tem que se esconder e proteger do em que se tinha tomado consciência de que o
mundo. erro de toda a educação passada tinha
consistido em considerar a criança como nada
Tudo o que vive, e não apenas a vida mais que um pequeno adulto?
vegetativa, emerge da obscuridade. Por mais
forte que seja a sua tendência para se orientar A razão para este estranho estado de coisas
para a luz, aquilo que é vivo necessita da não tem diretamente a ver com a educação.
segurança da obscuridade para alcançar a Deve antes ser procurada nos juízos e nos
maturidade. Talvez esta seja a razão pela qual prejuízos sobre a natureza vida privada e do
os filhos de pais famosos geralmente se saem mundo público, na sua mútua relação
mal. A celebridade penetra nas quatro paredes, característica da sociedade moderna desde o
invade o espaço privado, trazendo consigo, em início dos tempos modernos e que os
especial nas condições atuais, a luz implacável educadores aceitaram quando — relativamente
do domínio público que invade toda a vida tarde — decidiram modernizar a educação com
privada de tal forma que as crianças deixam de base nessas evidências, sem se darem conta
ter um lugar seguro em que possam crescer. É das consequências que elas teriam sobre a
exatamente esta mesma destruição do espaço vida das crianças. É particularidade da
de vida real que ocorre quando se procuram sociedade moderna, de nenhum modo
transformar as próprias crianças numa espécie evidente, considerar a vida, quer dizer, a vida
de mundo. Entre esses grupos homogêneos de na terra dos indivíduos e das famílias, como o
crianças emerge então uma espécie de vida maior dos bens. É por essa razão que, ao
pública e, independentemente do facto de essa contrário de todos os séculos precedentes, a
vida não ser real e de toda essa tentativa ser sociedade moderna emancipou a vida, e todas
uma espécie de fraude, permanece o facto as atividades que têm a ver com a sua
desastroso de as crianças — isto é, os seres preservação e enriquecimento, do segredo da
humanos em processo de devir, ainda não intimidade para a expor à luz do mundo
completados — serem forçadas, por essa público. É este o verdadeiro significado da
razão, a expor-se à luz de uma existência emancipação das mulheres e dos
pública. trabalhadores, não certamente enquanto
pessoas, mas na medida em que preenchem
Que a educação moderna, na medida em que uma função no processo vital da sociedade.
tenta estabelecer um mundo próprio das
crianças, destrói as condições necessárias Ora, os últimos seres a serem tocados por este
para o seu desenvolvimento e crescimento, é processo de emancipação foram as crianças e
algo que parece óbvio. Porém, é de facto aquilo que para as mulheres e para os
estranho que esse pernicioso procedimento trabalhadores significou uma verdadeira
possa ser o resultado da educação moderna, libertação — porque, neste caso, não era
tanto mais que essa educação declarava ter apenas de trabalhadores e de mulheres que se
por único objectivo servir a criança e se tratava mas também de pessoas que, desse
rebelava contra os métodos do passado modo, podiam legitimamente pretender aceder
justamente por eles não tomarem na devida ao mundo público, isto é, passavam a ter o
conta a natureza profunda e as necessidades direito de o ver e de aí serem vistas, de falar e
da criança. O «século da criança», como lhe de serem ouvidas — constituiu um abandono e
podemos chamar, pretendia emancipar a uma traição no caso das crianças que estão
criança e libertá-la dos padrões de vida ainda num estádio em que o simples facto de

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viver e crescer tem mais importância que o desenvolvimento das suas qualidades e
fator da personalidade. Quanto mais características. De um ponto de vista geral e
completamente a sociedade moderna suprime essencial, é essa a qualidade única que
a diferença entre o que é público e o que é distingue cada ser humano de todos os outros,
privado, entre o que só se pode desenvolver à qualidade essa que faz com que ele não seja
sombra e o que reclama ser mostrado a todos apenas mais um estrangeiro no mundo, mas
na plena luz do mundo público, dito de outro alguma coisa que nunca antes tinha existido.
modo, quanto mais a sociedade moderna
introduz, entre o privado e o público, uma Na medida em que a criança não conhece
esfera social na qual o privado é tornado ainda o mundo, devemos introduzi-a nele
público e vice-versa, mais difíceis se tornam as gradualmente; na medida em que a criança é
coisas para as crianças, as quais, por natureza, nova, devemos zelar para que esse ser novo
necessitam da segurança de um abrigo para amadureça, inserindo-se no mundo tal como
poder amadurecer sem perturbações. ele é. No entanto, face aos jovens, os
educadores fazem sempre figura de
Por mais grave que seja o desrespeito que a representantes de um mundo do qual, embora
educação moderna manifesta pelas condições não tenha sido construído por eles, devem
do crescimento vital, a verdade é que tal não é assumir a responsabilidade, mesmo quando,
de modo algum intencional. O objetivo central secreta ou abertamente, o desejam diferente
de todos os esforços da educação moderna do que é. Esta responsabilidade não é
tem sido o bem-estar da criança. Facto que não arbitrariamente imposta aos educadores. Está
passa a ser menos verdadeiro se, ao contrário implícita no facto de os jovens serem
do que se esperava, os esforços feitos nem introduzidos pelos adultos num mundo em
sempre conseguiram promover o bem-estar da perpétua mudança. Quem se recusa a assumir
criança. A situação é inteiramente diferente a responsabilidade do mundo não deveria ter
quando a educação não se dirige às crianças filhos nem lhe deveria ser permitido participar
mas aos jovens, aos recém chegados e na sua educação.
estrangeiros, àqueles que nasceram num
mundo já existente mas que não conhecem. No caso da educação, a responsabilidade pelo
Essas tarefas são então, primária ainda que mundo toma a forma da autoridade. A
não exclusivamente, da responsabilidade das autoridade do educador e as competências do
escolas. São as escolas que têm que ver com o professor não são a mesma coisa. Ainda que
ensino e com a aprendizagem. O fracasso não haja autoridade sem uma certa
neste campo é hoje o mais grave problema na competência, esta, por mais elevada que seja,
América. Procuremos ver o que é que lhe está não poderá jamais, por si só, engendrar a
subjacente. autoridade. A competência do professor
consiste em conhecer o mundo e em ser capaz
Normalmente é na escola que a criança faz a de transmitir esse conhecimento aos outros.
sua primeira entrada no mundo. Ora, a escola Mas a sua autoridade funda-se no seu papel de
é, de modo algum, não o mundo, nem deve responsável pelo mundo. Face à criança, é um
pretender sê-lo. A escola é antes a instituição pouco como se ele fosse um representante dos
que se interpõe entre o domínio privado do lar habitantes adultos do mundo que lhe apontaria
e o mundo, de forma a tomar possível a as coisas dizendo: «Eis aqui o nosso mundo!»
transição da família para o mundo. Não é a
família mas o Estado, quer dizer, o mundo Todos sabemos como as coisas hoje estão no
público, que impõe a escolaridade. Desse que diz respeito à autoridade. Seja qual for a
modo, relativamente à criança, a escola atitude de cada um de nós relativamente a este
representa de certa forma o mundo, ainda que problema, é óbvio que a autoridade já não
o não seja verdadeiramente. Nessa etapa da desempenha nenhum papel na vida pública e
educação, uma vez mais, os adultos são privada — a violência e o terror exercidos pelos
responsáveis pela criança. A sua países totalitários nada têm a ver com a
responsabilidade, porém, não consiste tanto autoridade — ou, no melhor dos casos,
em zelar para que a criança cresça em boas desempenha um papel altamente contestado.
condições, mas em assegurar aquilo que No essencial, significa isto que se não pede já
normalmente se designa por livre a ninguém, ou se não confia já a alguém, a

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responsabilidade do que quer que seja. É que, tal conceito tem por base uma superioridade
em todo o lado onde a verdadeira autoridade absoluta, superioridade essa que nunca pode
existia, ela estava unida à responsabilidade existir entre adultos e que, do ponto de vista da
pelo curso das coisas no mundo. Nesse dignidade humana, nunca deveria existir. Em
sentido, se se retira a autoridade da vida segundo lugar, esse modelo infantil de
política e pública, isso pode querer significar autoridade está fundado numa superioridade
que, daí em diante, passa a ser exigida a cada puramente temporal o que, portanto, o toma
um uma igual responsabilidade pelo curso do autocontraditório se aplicado a relações que,
mundo. Mas, isso pode também querer dizer por natureza, não são temporais, como é o
que, consciente ou inconscientemente, as caso das relações entre governantes e
exigências do mundo e a sua necessidade de governados. Assim, a natureza desta questão
ordem estão a ser repudiadas; que a — quer dizer, tanto da presente crise de
responsabilidade pelo mundo está, toda ela, a autoridade como do nosso pensamento político
ser rejeitada, isto é, tanto a responsabilidade tradicional — implica que a perda de autoridade
de dar ordens como a de lhes obedecer. Não que se desencadeou na esfera política não
há dúvida de que, na moderna perda de alastre para a esfera privada. Não é certamente
autoridade, estas intenções desempenham por acaso que o lugar no qual a autoridade
ambas o seu papel e têm muitas vezes política foi pela primeira vez posta em causa,
trabalhado juntas, de forma simultânea e isto é, a América, seja o lugar onde a moderna
inextricável. crise da educação se faça sentir mais
fortemente.
Ora, na educação esta ambiguidade
relativamente à atual perda de autoridade não Na verdade, esta perda geral da autoridade
pode existir. As crianças não podem recusar a dificilmente poderia encontrar uma expressão
autoridade dos educadores, como se mais radical do que no seu alastramento para a
estivessem oprimidas por uma maioria adulta esfera pré-política, instância na qual a
— ainda que, efetivamente, a prática autoridade parece ser ditada pela própria
educacional moderna tenha tentado, de forma natureza, independente de todas as mudanças
absurda, lidar com as crianças como se se históricas e condicionalismos políticos. Por
tratasse de uma minoria oprimida que outro lado, a forma mais clara que o homem
necessita de ser libertada. Dizer que os adultos moderno tem ao seu dispor para manifestar o
abandonaram a autoridade só pode portanto seu descontentamento em relação ao mundo e
significar uma coisa: que os adultos se o seu desagrado relativamente às coisas tal
recusam a assumir a responsabilidade pelo como elas são consiste na recusa de,
mundo em que colocaram as crianças. relativamente aos seus filhos, assumir a
responsabilidade pelo mundo. No fundo, é
Há evidentemente uma estreita conexão entre como se os pais dissessem diariamente aos
a perda de autoridade na vida pública e privada seus filhos: «Neste mundo, nem mesmo nós
e. o seu desaparecimento nos domínios pré- estamos seguros em nossa casa. Como
políticos da família e da escola. Quanto mais, devemos mover-nos no mundo, que devemos
na esfera pública, a desconfiança na saber, que competências devemos adquirir,
autoridade se toma radical, maior é são mistérios também para nós. Vocês devem
naturalmente a probabilidade de que a esfera pois procurar desenvencilhar-se o melhor
privada permaneça imune. A isto se junta um possível por vós próprios. Em circunstância
facto adicional — e provavelmente decisivo. O alguma nos podem pedir contas. Somos
facto de que, desde tempos imemoriais, fomos inocentes e lavamos as mãos quanto ao vosso
habituados, pela nossa tradição de destino.»
pensamento político, a ver a autoridade dos
pais sobre os filhos e dos professores sobre os Como é óbvio, esta atitude nada tem a ver com
alunos como o modelo para compreender a o desejo revolucionário de uma nova ordem no
autoridade política. Ora, é precisamente nesse mundo — Novus Ordo Seclorum — que, em
modelo, cujas raízes se estendem até Platão e tempos, animou a América. É antes um
Aristóteles, que reside a origem da sintoma dessa indiferença moderna
extraordinária ambiguidade do conceito de relativamente ao mundo que se pode observar
autoridade em política. Em primeiro lugar um diariamente em toda a parte mas que, de forma

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especialmente radical e desesperada, se habitantes estão continuamente a mudar, o
manifesta nas atuais condições da nossa mundo corre o risco de se tomar tão mortal
sociedade de massas. E verdade que não foi como eles. Para preservar o mundo contra a
apenas na América que as modernas mortalidade dos seus criadores e habitantes, é
experiências educativas atingiram dimensões necessário constantemente restabelecê-lo de
verdadeiramente revolucionárias, o que, até novo. O problema é saber como educar de
certo ponto, veio aumentar a dificuldade de forma a que essa recolocação continue a ser
reconhecer a situação com clareza e está na possível, ainda que, de forma absoluta, nunca
origem de um certo grau de confusão na possa ser assegurada. A nossa esperança
discussão do problema. É que, contrariamente reside sempre na novidade que cada nova
a todos os comportamentos de tipo geração traz consigo. Mas, precisamente
revolucionário, há um fato que permanece porque só nisso podemos basear a nossa
indiscutível: nunca a América, enquanto esperança, destruímos tudo se tentarmos
realmente animada por esse espírito, sonhou controlar o novo que nós, os velhos,
iniciar a nova ordem por intermédio da pretendemos desse modo decidir como deverá
educação mantendo-se, pelo contrário, ser. É justamente para preservar o que é novo
conservadora nessa matéria. e revolucionário em cada criança que a
educação deve ser conservadora. Ela deve
Evitemos os mal-entendidos: penso que o proteger a novidade e introduzi-la como uma
conservadorismo, tomado enquanto coisa nova num mundo velho, mundo que, por
conservação, faz parte da essência mesma da mais revolucionárias que sejam as suas ações,
atividade educativa cuja tarefa é sempre do ponto de vista da geração seguinte, é
acarinhar e proteger alguma coisa — a criança sempre demasiado velho e está sempre
contra o mundo, o mundo contra a criança, o demasiado próximo da destruição.
novo contra o antigo, o antigo contra o novo. A
própria responsabilidade alargada pelo mundo
que a educação assume implica, como é óbvio,
uma atitude conservadora. Mas, isto só é valido
IV
para o domínio da educação, ou melhor, para
A verdadeira dificuldade da educação moderna
as relações entre crescidos e crianças e, de
reside pois no facto de, para lá de todas as
modo algum para o domínio político, onde
considerações da moda sobre um novo
agimos sempre entre e com adultos ou iguais.
conservadorismo, ser hoje extremamente difícil
Em política, a atitude conservadora — que
garantir esse mínimo de conservação e de
aceita o mundo tal como ele é unicamente luta
atitude de conservação sem a qual a educação
por preservar o status quo — só pode levar à
não é simplesmente possível. E há boas razões
destruição. E isto porque, nas suas grandes
para isso. A crise de autoridade na educação
linhas como nos seus detalhes, o mundo está
está intimamente ligada com a crise da
irrevogavelmente condenado à ação destrutiva
tradição, isto é, com a crise da nossa atitude
do tempo, a menos que os humanos estejam
face a tudo o que é passado. Para o educador,
determinados a intervir, a alterar, a criar o
este aspecto é especialmente difícil uma vez
novo. As palavras de Hamlet, «o tempo está
que é a ele que compete estabelecer a
fora dos gonzos. Oh! sorte maldita, que nos fez
mediação entre o antigo e o novo, razão pela
nascer para restabelecer o seu curso», são
qual a sua profissão exige de si um
verdadeiras para cada nova geração, ainda
extraordinário respeito pelo passado. Ao longo
que, desde o início do nosso século, porventura
dos séculos, isto é, durante o período da
tenham adquirido uma ainda validade maior do
civilização romano-cristã, o educador nunca
que anteriormente.
teve necessidade de tomar consciência desta
sua qualidade especial. A reverência
No fundo, estamos sempre a educar para um
relativamente ao passado era parte essencial
mundo que já está, ou está a ficar, fora dos
da estrutura romana de pensamento, estrutura
seus gonzos. Esta é a situação básica do
essa que o cristianismo não alterou nem
homem. O mundo é criado por mãos humanas
suprimiu antes estabeleceu sobre diferentes
para servir de casa aos humanos durante um
fundamentos.
tempo muito limitado. Porque o mundo é feito
por mortais, ele é perecível. Porque os seus
Pertencia à essência da atitude romana (ainda
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que o mesmo se não possa dizer de todas as livres de a ela regressar em qualquer momento.
civilizações ou sequer da civilização ocidental Isto significa que, no mundo moderno, onde
no seu conjunto) considerar o passado quer que a crise tenha eclodido, não podemos
enquanto passado como um modelo; em contentar-nos com continuar ou simplesmente
qualquer caso, tomar os antepassados como voltar atrás. Um tal retrocesso só nos faria
exemplos orientadores para os seus regressar à situação em que a crise emergiu.
descendentes; acreditar que toda a grandeza Além disso esse retrocesso seria simplesmente
reside no que foi e, portanto, que a velhice é a uma repetição ainda que talvez diferente na
idade da maior realização humana; que o forma — uma vez que o número de possíveis
velho, na medida em que é já quase um noções absurdas e caprichosas que podem ser
antepassado, pode servir como modelo para os apresentadas como a última palavra em ciência
vivos. Ora, tudo isto está em contradição, não é ilimitado. Por outro lado, a simples e
apenas com o nosso mundo e com os tempos irrefletida perseverança, quer atue no sentido
modernos a partir do Renascimento, mas da crise, quer adira à rotina que acredita
também, por exemplo, com a atitude grega ingenuamente que a crise não vai fazer
relativamente à vida. Quando Goethe diz que submergir a sua esfera particular de vida,
envelhecer é «afastar-se gradualmente do apenas pode, porque se rende ao curso do
mundo das aparências», o seu comentário está tempo, levar à ruína. Mais precisamente,
imbuído do espírito dos Gregos, para quem ser apenas pode fazer crescer a estranheza face
e aparecer coincidem. A atitude romana seria a ao mundo que nos ameça já de todos os lados.
de que é precisamente ao envelhecer e ao A reflexão sobre os princípios da educação
desaparecer lentamente da comunidade dos deve ter em conta este processo de estranheza
mortais que o homem alcança a sua forma de face ao mundo. Pode-se mesmo admitir que se
ser mais característica, mesmo se, em relação está aqui face a um processo automático,
ao mundo das aparências, estiver em processo desde que se não esqueça que o pensamento
de desaparecimento. É que, para o espírito e a ação humanos têm o poder de interromper
romano, só então o homem se aproxima desse e fazer parar este processo.
modo de existência em que pode passar a ser
uma autoridade para outros. No mundo moderno, o problema da educação
resulta pois do fato de, pela sua própria
Com o imperturbado fundo de uma tal tradição, natureza, a educação não poder fazer
na qual a educação tem uma função política (o economia nem da autoridade nem da tradição,
que constitui um caso único), é de facto sendo que, no entanto, essa mesma educação
relativamente fácil fazer o que deve ser feito se deve efetuar num mundo que deixou de ser
em matéria de educação sem sequer parar estruturado pela autoridade e unido pela
para refletir sobre o que se está realmente a tradição. Daqui resulta que, não apenas os
fazer. O ethos específico do princípio educativo professores e os educadores mas também
está então em completo acordo com as cada um de nós, na medida em que vivemos
convicções éticas e morais da sociedade no em conjunto num único mundo com as crianças
seu conjunto. Educar, nas palavras de Políbio, e os jovens, devemos adotar relativamente a
é apenas «permitir a alguém ser digno dos eles uma atitude radicalmente diferente
seus antepassados», tarefa na qual o educador daquela que temos uns com os outros. O
pode ser um «par na discussão» e um «par no domínio da educação deve ser radicalmente
trabalho» porque, também ele, ainda que num separado dos outros domínios, em especial da
nível diferente, passou a sua vida com os olhos vida política pública. Dessa forma, podemos
postos no passado. Camaradagem e aplicar exclusivamente ao domínio da
autoridade são assim, neste caso, dois lados educação o conceito de autoridade e a atitude
de uma mesma realidade e a autoridade do relativamente ao passado que lhe são
professor está firmemente fundada na apropriadas mas que, no mundo dos adultos,
autoridade mais ampla do passado enquanto deixaram de ter validade geral e já não podem
tal. Hoje, no entanto, já não estamos nesta pretender voltar a tê-la.
situação. Faz por isso pouco sentido agir como
se ainda aí estivéssemos, ou como se nos Na prática, a primeira consequência que daqui
tivéssemos afastado, por assim dizer, decorre é a compreensão clara de que a
acidentalmente, da direção correta e fôssemos função da escola é ensinar às crianças o que o

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mundo é e não iniciá-las na arte de viver. Uma mundo constantemente se renova. A educação
vez que o mundo é velho, sempre mais velho é assim o ponto em que se decide se se ama
do que nós, aprender implica, inevitavelmente, suficientemente o mundo para assumir
voltar-se para o passado, sem ter em conta responsabilidade por ele e, mais ainda, para o
quanto da nossa vida será consagrada ao salvar da ruína que seria inevitável sem a
presente. Em segundo lugar, há que perceber renovação, sem a chegada dos novos e dos
que o significado da linha traçada entre jovens. A educação é também o lugar em que
crianças e adultos é que não é possível educar se decide se se amam suficientemente as
adultos e que não se devem tratar as crianças nossas crianças para não as expulsar do nosso
como se fossem adultos. Porém, em mundo deixando-as entregues a si próprias,
circunstância alguma se deve permitir que esta para não lhes retirar a possibilidade de realizar
linha se transforme num muro que isole as qualquer coisa de novo, qualquer coisa que
crianças da comunidade dos adultos, como se não tínhamos previsto, para, ao invés,
elas não vivessem no mesmo mundo e como antecipadamente as preparar para a tarefa de
se a infância fosse um estado humano renovação de um mundo comum.
autônomo, capaz de viver segundo as suas
próprias leis. Não há uma regra geral que, em
cada caso, permita determinar o momento em
que desaparece a linha de demarcação entre a
infância e a adultez. Essa linha varia muitas
vezes em função da idade, de país para país,
de uma civilização para outra e mesmo de um
para outro indivíduo. Mas, diversamente do que
acontece com a aprendizagem, a educação
deve poder ter um termo previsível. Na nossa
civilização, esse momento final coincide, na
maior parte dos casos, com a aquisição de um
primeiro diploma de grau superior (mais do que
com um diploma de fim dos estudos
secundários), uma vez que a preparação para
a vida profissional nas universidades e
institutos técnicos, ainda que tendo a ver com a
educação, é no entanto uma espécie de
especialização. Enquanto tal, ela não aspira já
a introduzir o jovem no muno do como um todo,
mas apenas num sector particular e limitado do
mundo. Não é possível educar sem ao mesmo
tempo ensinar: uma educação sem ensino é
vazia e degenera com grande facilidade numa
retórica emocional e moral. Mas podemos
facilmente ensinar sem educar e podemos
continuar a aprender até ao fim dos nossos
dias sem que, por essa razão, nos tomemos
mais educados. Tudo isto são detalhes que
devem ser deixados à atenção dos
especialistas e dos pedagogos.

O que nos diz respeito a todos e,


consequentemente, não pode ser confiado à
pedagogia enquanto ciência especializada, é a
relação entre adultos e crianças em geral ou,
em termos ainda mais gerais e exatos, a nossa
relação com o facto da natalidade: o facto de
que todos chegamos ao mundo pelo
nas~imento e que é pelo nascimento que este

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