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Art time (excerto)

Peter Osborne

Tradução Alice Garambone

Memória ou História?

A dominância da memória cultural como um tema interpretativo nas ciências humanas


anglófonas, estabelecidas durante a década de 1990, mais recentemente se estendeu
para a arte contemporânea. Particularmente marcante – dentro do discurso e crítica
curatorial e a auto-descrição artística – é a combinação de reivindicações a memória
cultural com reivindicações a contemporaneidade. Reivindicações a contemporaneidade
são frequentemente agora feitas não meramente por, mas como reivindações a memória
cultura, de uma forma que sobrecarrega outras possibilidades tanto para interpretar tanto
esse tipo de trabalho quanto para marcar sua contemporaneidade. Como resultado, o
presente histórico está sendo artisticamente definido, mais e mais, de uma maneira que
olha primariamente para trás, como um tempo de memória, de recuperação, no próprio
ato de articular sua distância ou separação do passado que é ser lembrado. Obras
contemporâneas estão sendo entendidas e valorizadas como artefatos de lembrança,
enquanto a lembrança é reduzida a, ou identificada com, a memória ou recordação, e
ligada ao testemunho.

Ao mesmo tempo, como parte dessa operação, a memória está efetivamente


sendo identificada com a própria experiência histórica. As reivindicações da memória,
desse modo, se tornaram uma das ferramentas principais para a autenticação existencial
e legitimação política no discurso da arte. Em particular, a “culturalização" da memória
funciona como um meio para a culturalização das diferenças políticas. Ela naturaliza
essas diferenças como uma “segunda natureza” cada vez mais hermética. Desse modo,
a memória está em perigo de se tornar um meio do esquecimento – um esquecimento
do passado como ativo dentro do, em contraste com a sua separação, presente – de
uma maneira reativa.1

1 Para a ideia de que “esquecer é essencial para qualquer tipo de ação”, ver Friedrich Nietzsche,
“The Uses and Disadvantages of History for Life”, em Untimely Meditations, trad. R.J. Hollingdale,
Cambridge: Cambridge University Press, 1997, pp. 57-123: p. 62. Para a distinção de Nietzsche
entre as forças ativas e reativas, ver Gilles Deleuze, Nietzsche and Philosophy (1962), trad. Hugh
Tomlinson, Londres: Athlone Press, 1983, cap. 2. Nesse conceito, o esquecimento reativo serve à
reprodução do status quo, enquanto ativamente operando o esquecimento, por outro lado, serve
“vida”, e é uma condição da possibilidade de sua transformação.
Essas questões surgem em dois níveis diferentes de análise. Primeiramente, num
nível geral-teórico, há uma distinção convencional entre a memória e a História. Essa
distinção é aqui reafirmada, afiada e aplicada ao presente histórico – um presente que
sugere uma disjunção radical entre as formas da subjetividade social requerida para algo
como a “memória cultura” e os sujeitos sociais (ou “coletivos especulativos”) em jogo na
arte historicamente contemporânea dos novos tipos de espaço de arte transnacional. Em
segundo aspecto, em um nível artístico, existe um requerimento pela interpretação crítica
de obras específicas. Eu realizarei isso aqui através de uma breve comparação crítica de
três recentes trabalhos de vídeo que, enquanto cada um toma eventos históricos
específicos como seus assuntos (as guerras libanesas, 1975-2001; o sequestro e estupro
das mulheres ao longo de um período de sessenta anos da História indiana; e as revoltas
comunais no estado de Gujarat na Índia em 2002), representam abordagens alternativas
as questões em jogo.

Em considerar esse trabalho, uma forte distinção deve ser feita entre a noção
problemática da arte como memória cultural (que tenta suturar a arte à história por meio
de um tema social comum) e o uso do testemunho como um material artístico – um
elemento de construção – dentro da arte como uma experiência histórica reflexiva. Um
dos problemas principais com o uso do “modelo da memória” na arte contemporânea diz
respeito a uma falha recorrente em registrar mediações especificamente artísticas de
relações espaço-temporais; uma falha em distinguir a maneira que a arte funciona (e,
consequentemente, é) em diferentes tipos de espaço de arte; e consequentemente uma
falha em apreciar o tipo de trabalho requerido para se engajar criticamente com os novos
espaços de arte sociais transnacionais. A questão, então, em parte, é que conceitos, que
narrativas, que operações teoréticas precisam estar em jogo para que obras funcionem
criticamente em espaços transnacionais? Uma visão filosoficamente ingênua da memória
é uma das barreiras principais para a produção de uma arte crítica. Ela é a correlata
temporal de certos mal entendimentos prevalentes e empíricos da significância artística
do “site”, como um campo aparente de significado artístico, como discutido no capítulo
anterior.

É convencional, em histórias da História, como o História e memória de Jacques le


Goff,2 narrar a emergência da História como o resultado de uma separação crescente da
representação histórica da memória. Para ter certeza, a História tem sua origem e sua
base ontológica na unidade das memórias individuais e coletivas, como registradas na

2Jacques Le Goff, History and Memory, trad. Steve Randall e Elizabeth Claman, Nova Iorque:
Columbia University Press, 1992, “History”: pp. 101-216.
forma do épico e da estrutura da tradição, como transmissão direta, intersubjetiva e
transgeracional. Entretanto, a historiografia, a História dos historiadores e – mais digna
de nota para a situação atual – história em seu sentido moderno, pós-século-dezoito
histórico-mundial, começa com a fratura dessa unidade da memória individual e coletiva,
a multiplicação de reminiscências e a consequente necessidade de construções artificiais
do significado coletivo do passado através da montagem e interpretação das fontes
exteriores e documentárias. Logo a primazia do documento e do arquivo na historiografia
moderna.

Recentemente, porém, tem havido tentativas poderosas, mais frequentemente da


forma psicanalítica, de reinstituir uma concepção metaforicamente expandida da
memória como o meio da experiência histórica. “Trauma”, “melancolia" e “luto" foram
estendidos das categorias da vida psíquica individual para se tornar termos privilegiados
da experiência coletiva nos discursos de ambas histórias cultural e política. E esses
discursos, por sua vez, vieram a ter um papel cada vez mais central no discurso sobre a
arte contemporânea, onde eles são frequentemente usados para revalorizar a biografia
de artistas, e especialmente sua infância; muitas vezes servidos como um alibi político
para o ressurgimento de um individualismo artístico altamente Romântico, se legitimando
através de reivindicações a exemplaridade cultural.

A motivação para esse retorno a memória é para combater os efeitos existenciais


e políticos da alienação da representação histórica da experiência, consequente após o
colapso dos projetos políticos seculares histórico-mundiais (socialismo e comunismo), já
que a cultura da modernidade capitalista é caracterizada por uma abundância simultânea
de representações históricas e uma escassez de formas de consciência e experiência
histórica. Uma concepção expandida da, e papel para, a memória então oferece a
esperança (e muitas vezes faz a promessa) de curar essa fenda, de fazer História, ou
melhor, histórias particulares – e é o “particular" aqui que faz todo o trabalho – disponível
como experiência. A História só é “real" ou “vivida”, nessa visão, como memória. Isso é
uma inversão da genealogia do conceito de História.

A arte tem um papel importante aqui devido a suas relações culturalmente


privilegiadas a subjetividade e ao sentimento. É através da representação estética ou
reencenação de processos do “trauma”, “melancolia" e “luto”, se frequentemente
acredita, que esses processos podem ser mais efetivamente comunicados coletivamente
como experiência, e, se acredita, que essas experiências são experiências da História.
Esse tipo de representação frequentemente tem a função política explícita de sustentar
ou suportar coletividades culturais particulares existentes e frequentemente erodidas.
Mas talvez não seja isso, para colocar o caso em sua forma mais severa, nas palavras de
Gayatri Spivak: “O tempo para produzir historicamente “teoria” rasa descrevendo o
sentimento de migrantes em vocabulário pseudo-psicanalítico acabou.”3 Acabou,
politicamente, pois perdeu sua função progressiva passageira de chamar atenção para a
existência legítima desse tipo de comunidades e suas histórias, e se tornou o modo
discursivo primário de sua incorporação em regimes de gerenciamento político. Mais
importante, de um ponto de vista teorético, ele se apoia numa concepção profundamente
enganada do modo o qual o significado histórico é produzido, ambos na arte
contemporânea e de maneira mais geral, por várias razões relacionadas das quais vou
citar apenas três: 1. Ele não compreende o caráter construído da representação histórica.
2. Ele reduz a História a representações de eventos passados. 3. Ele assume um grupo
de relações entre subjetividades individuais, sujeitos sociais, a coletividade e o processo
da História, o qual, mesmo enquanto ideologicamente dominante, está passando por um
processo de erosão e transformação fundamentalmente históricas.

Cada uma dessas coisas envolve um repúdio ao escopo e a significância teórica


do objeto especulativo máximo da representação histórica, a unidade transgeracional do
humano, que é o horizonte transcendente ou condição da possibilidade da experiência: a
ideia da História, no sentido kantiano.4 A História é uma construção (em um sentido
construtivista), em primeiro lugar, porque deve ser montada de elementos que foram
rasgados da subjetividade de sujeitos individuais. Nesse sentido, a representação
histórica (em oposição à memória) é baseada no reconhecimento do caráter absoluto da
morte; a História pressupõe e é constituída pela morte. Isso é uma condição histórico-
ontológica que é presente ainda mais profundamente que os problemas epistemológicos
da representação que são associados com o rótulo “construtivismo social”, em
disciplinas como a Psicologia e a Sociologia, e que são os tipos de coisa que dão
ascensão a preocupações filosóficas sobre o relativismo e ceticismo. Na verdade, porque
seus elementos são do mundo, o construtivismo histórico é um tipo de realismo (um
realismo ontológico) – ele tem uma base indexical. De fato, a respeito disso, em um uso
dominante, o próprio conceito de memória foi metaforicamente transformado, através de
uma objetivação analógica, para se referir a capacidade de repetir que é independente da
subjetividade. Eu me refiro aqui a memória dos computadores, por exemplo; ou a

3 Gayatri Chakravorty Spivak, Death of a Discipline, p. 85.


4 Para uma discussão sobre as formas lógica e ontológica da unidade da História, ver Peter
Osborne, “One Time, One History?” em The Politics of Time, capítulo 2. A História, eu argumento
ali (p. 61), extendendo uma formulação de Derrida de sua crítica inicial de Levinas, é melhor
pensada como o movimento da diferença entre a totalidade e a infinidade.
“memória da hereditariedade” atribuída pela biologia pelos códigos genéticos. Essa não
é a memória em seu sentido primário e restaurado como a prática técnica de um sujeito,
ou uma arte, como descrito no famoso A arte da memória, de Frances Yates.5 É, porém,
próximo da sua base ontológica no corpo.

A restauração de um modelo de memória para a história é epistemologicamente


sofisticado sobre suas próprias limitações; ela reconhece a impossibilidade de preencher
o objetivo do historicismo (reconstruir os processos e eventos históricos “da maneira que
realmente eram”, no sentido de Ranke do século dezenove). Ela usa conceitos
psicanalíticos para diagnosticar o caráter fantástico da aspiração. Ainda assim ela é
casada à aspiração como um ideal para se aproximar através da compreensão da
necessidade dos seus desvios divergentes. Isso se torna plausível apenas através da
limitação do objeto da representação histórica para a relação temporal entre o presente e
o passado.

É uma virtude do modelo da memória que ele associa a História com os vivos, isso
é, com o presente, e não apenas o passado. De fato, é uma das funções principais do
conceito de memória “avivar" o passado, lhe dar vida dentro do presente. Porém, ainda é
demasiadamente temporalmente restrita em sua expansão do passado historicista,
incluindo “viver" uma relação com apenas o presente. Pois a História não é apenas uma
relação entre o presente e o passado,  ela também é igualmente sobre o futuro. É esse
momento especulativo futural que definitivamente separa o conceito da História da
memória. A História é sobre o futuro de pelo menos duas maneiras. De um lado, é
apenas do ponto de vista de um futuro particular que o objeto máximo da História – a
unidade do humano – pode ser pensada. A esse respeito, a História (como a arte) é
inerentemente utópica. Isso é algo que entrelaça a arte a História. É além do escopo de
todas as matérias sociais atualmente existentes. Ela projeta a coletividade para além
todas as formas atualmente existentes. Do outro lado, a primazia genealógica do
presente na construção do próprio passado contém futuros possíveis particulares dentro
dela, na forma de expectativas e desejos que regulam ambas a seleção e a construção
na representação histórica, dentro da estrutura regulativa dos termos mais amplos da sua
projeção utópica do próprio humano (o humano é ele mesmo um conceito utópico aqui).
O problema com o uso reativo da memória cultural é que, como um esquecimento
passivo, ele administra as expectativas e desejos do presente de certa maneira a reprimir

5 Frances Yates, The Art of Memory (1966), Chicago: University of Chicago Press, 2001.
esses aspectos do passado que são associados aos futuros possíveis que os poderes
existentes tem um interesse em suprimir.

O modelo da memória presume que o entendimento histórico pode ser baseado


na recuperação de um conjunto de relações intersubjetivas determinadas. Isso não é
apenas problemático como um assunto de princípios gerais, mas negligencia o fato
histórico que o que podemos chamar de socialidade capitalista (a fundamentação das
relações sociais nas relações de troca) é essencialmente abstrato, e dessa maneira, um
assunto de forma, ao invés de coletividade. Essa é a especificidade histórica da
socialidade capitalista. Como argumentado no Capítulo I, acima, a coletividade é
produzida pela interconexão das práticas, mas a interconexão universal e as
dependências que são produzidas exibem a estrutura de um sujeito (a unidade de uma
atividade) apenas objetivamente – isso é, em separação de ambos sujeitos individuais e
todas as coletividades particulares de trabalho – principalmente, como desenvolvimentos
da forma-valor. Historicamente, o nacionalismo (a ficção cultural das nações) tem
preenchido essa lacuna entre as coletividades particulares e o capital. Nações (as
“comunidades imaginárias” de Benedict Anderson) tem sido os sujeitos sociais
privilegiados da “memória cultural” em estados capitalistas. Mas a estrutura-sujeito do
capital não mais corresponde às entidades territorialmente discretas dos Estados-
nações; e essas sociedades fora do nexo do capital transnacional estão sendo atraídas
inexoravelmente para dentro dele. A esse respeito, a coletividade do capitalismo é,
estruturalmente, ainda, e sempre vai ser, “por-vir”. Logo, a antecipação abstrata e
completamente formal da mesma em uma “multitude" de conceitos, que entretanto se
torna politicamente identificada com as coletividades atuais, então, de fato (mas não
necessariamente nas imaginações políticas daqueles afirmando isso) registrando sua
parcialidade e qualidade incompleta.

A questão do contemporâneo na “arte contemporânea” é a questão da definição


da inovação qualitativa desse presente histórico – isso é, a questão do novo –  e sua
constante reformação, reenquadramento e reconfiguração do significado e possibilidades
políticos dos sujeitos sociais. Em relação aos significados históricos e políticos de obras
da arte contemporânea internacional, tudo, dessa forma, depende nos sentidos de cada
um de quais coletividades estão implicitamente sendo representadas através do papel
constitutivo na estrutura ontológica dessa arte que é desempenhado pelo caráter inter- e
transnacional dos novos espaços de arte. O ponto crítico aqui é que as formas de
coletividade projetadas pelo modelo de “arte como memória” (primariamente, varias
formas de cultura ou comunal, nacional ou regional) estão em contradição com as formas
de relação sociais que constituem o espaço de sua representação (nomeadamente, as
novas formas de interconexão transnacional). Além disso, as relações sociais
constitutivas desses novos espaços são, de muitas formas, exemplares dos principais
desenvolvimentos econômicos constituindo o presente histórico global pós-comunista: a
penetração contraditória de formas sociais existentes (comunidades, culturas, nações,
sociedades) – todas formulações cada vez mais inadequadas) por relações de troca e
suas interconexões e dependências obrigatórias. Porém, como argumentamos no início,
no presente histórico emergente, novos coletivos especulativos (coletivos não-nacionais
ou coletivos “paraestatais") estão começando a ser vislumbradas na base das novas
formas tecnológicas e geoeconômicas que estão afetando uma reespacialização radical
das relações sociais. A arte mais artisticamente efetiva (isto é, arte-criticamente e
historicamente efetiva) dos novos espaços de arte inter- e transnacionais projetam tais
coletivos especulativos como seus propostos recipientes, e, nos melhores casos, como
seus produtores ausentes, porém possíveis. É apenas dentro desse contexto –
construções da coletividade especulativa do presente histórico – que o problema da
relação da memória com a História na arte contemporânea pode ser adequadamente
formulada. Podemos ver o que isso significa mais concretamente comparando alguns
trabalhos recentes em que a questão da relação da memória à História é explicitamente
formulada, através da apresentação de testemunhos.

A arte do Grupo Atlas (1999-2005) é mais uma vez emblemática do empuxo crítico
do argumento aqui, que pode ser sumarizado pelo título do Volume Um de um dos
trabalhos do Grupo: A verdade vai ser conhecida quando a última testemunha estiver
morta. Essa é uma frase profundamente subversiva e dialética. Ela coloca em cena a
auto-destruição do modelo da memória da experiência histórica, já que toma a
identificação da consciência histórica com a totalidade do testemunho para sua
conclusão absurda: a verdade apenas será conhecida na completude dos testemunhos,
quando ela tiver se tornado inteiramente incerta, já que até lá até “a última testemunha”
estará morta. Pode-se chamar isso da antinomia do testemunho. Essa frase coloca o
Grupo Atlas, definitivamente, contra o modelo da memória. Ela recorda da famosa
observação de Walter Benjamin: “A verdade é a morte da intenção”.6 É porque a verdade
está em jogo na arte, que a arte é ela mesma uma morte da intenção. Mas ainda sim
todos os três trabalhos articulam uma relação crítica entre a memória e a história, de uma
forma ou de outra.

6Walter Benjamin, The Origin of German Tragic Drama (1928), trad. John Osborne, Londres: New
Left Books, 1977, p. 36.

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