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Peter Osborne
Memória ou História?
1 Para a ideia de que “esquecer é essencial para qualquer tipo de ação”, ver Friedrich Nietzsche,
“The Uses and Disadvantages of History for Life”, em Untimely Meditations, trad. R.J. Hollingdale,
Cambridge: Cambridge University Press, 1997, pp. 57-123: p. 62. Para a distinção de Nietzsche
entre as forças ativas e reativas, ver Gilles Deleuze, Nietzsche and Philosophy (1962), trad. Hugh
Tomlinson, Londres: Athlone Press, 1983, cap. 2. Nesse conceito, o esquecimento reativo serve à
reprodução do status quo, enquanto ativamente operando o esquecimento, por outro lado, serve
“vida”, e é uma condição da possibilidade de sua transformação.
Essas questões surgem em dois níveis diferentes de análise. Primeiramente, num
nível geral-teórico, há uma distinção convencional entre a memória e a História. Essa
distinção é aqui reafirmada, afiada e aplicada ao presente histórico – um presente que
sugere uma disjunção radical entre as formas da subjetividade social requerida para algo
como a “memória cultura” e os sujeitos sociais (ou “coletivos especulativos”) em jogo na
arte historicamente contemporânea dos novos tipos de espaço de arte transnacional. Em
segundo aspecto, em um nível artístico, existe um requerimento pela interpretação crítica
de obras específicas. Eu realizarei isso aqui através de uma breve comparação crítica de
três recentes trabalhos de vídeo que, enquanto cada um toma eventos históricos
específicos como seus assuntos (as guerras libanesas, 1975-2001; o sequestro e estupro
das mulheres ao longo de um período de sessenta anos da História indiana; e as revoltas
comunais no estado de Gujarat na Índia em 2002), representam abordagens alternativas
as questões em jogo.
Em considerar esse trabalho, uma forte distinção deve ser feita entre a noção
problemática da arte como memória cultural (que tenta suturar a arte à história por meio
de um tema social comum) e o uso do testemunho como um material artístico – um
elemento de construção – dentro da arte como uma experiência histórica reflexiva. Um
dos problemas principais com o uso do “modelo da memória” na arte contemporânea diz
respeito a uma falha recorrente em registrar mediações especificamente artísticas de
relações espaço-temporais; uma falha em distinguir a maneira que a arte funciona (e,
consequentemente, é) em diferentes tipos de espaço de arte; e consequentemente uma
falha em apreciar o tipo de trabalho requerido para se engajar criticamente com os novos
espaços de arte sociais transnacionais. A questão, então, em parte, é que conceitos, que
narrativas, que operações teoréticas precisam estar em jogo para que obras funcionem
criticamente em espaços transnacionais? Uma visão filosoficamente ingênua da memória
é uma das barreiras principais para a produção de uma arte crítica. Ela é a correlata
temporal de certos mal entendimentos prevalentes e empíricos da significância artística
do “site”, como um campo aparente de significado artístico, como discutido no capítulo
anterior.
2Jacques Le Goff, History and Memory, trad. Steve Randall e Elizabeth Claman, Nova Iorque:
Columbia University Press, 1992, “History”: pp. 101-216.
forma do épico e da estrutura da tradição, como transmissão direta, intersubjetiva e
transgeracional. Entretanto, a historiografia, a História dos historiadores e – mais digna
de nota para a situação atual – história em seu sentido moderno, pós-século-dezoito
histórico-mundial, começa com a fratura dessa unidade da memória individual e coletiva,
a multiplicação de reminiscências e a consequente necessidade de construções artificiais
do significado coletivo do passado através da montagem e interpretação das fontes
exteriores e documentárias. Logo a primazia do documento e do arquivo na historiografia
moderna.
É uma virtude do modelo da memória que ele associa a História com os vivos, isso
é, com o presente, e não apenas o passado. De fato, é uma das funções principais do
conceito de memória “avivar" o passado, lhe dar vida dentro do presente. Porém, ainda é
demasiadamente temporalmente restrita em sua expansão do passado historicista,
incluindo “viver" uma relação com apenas o presente. Pois a História não é apenas uma
relação entre o presente e o passado, ela também é igualmente sobre o futuro. É esse
momento especulativo futural que definitivamente separa o conceito da História da
memória. A História é sobre o futuro de pelo menos duas maneiras. De um lado, é
apenas do ponto de vista de um futuro particular que o objeto máximo da História – a
unidade do humano – pode ser pensada. A esse respeito, a História (como a arte) é
inerentemente utópica. Isso é algo que entrelaça a arte a História. É além do escopo de
todas as matérias sociais atualmente existentes. Ela projeta a coletividade para além
todas as formas atualmente existentes. Do outro lado, a primazia genealógica do
presente na construção do próprio passado contém futuros possíveis particulares dentro
dela, na forma de expectativas e desejos que regulam ambas a seleção e a construção
na representação histórica, dentro da estrutura regulativa dos termos mais amplos da sua
projeção utópica do próprio humano (o humano é ele mesmo um conceito utópico aqui).
O problema com o uso reativo da memória cultural é que, como um esquecimento
passivo, ele administra as expectativas e desejos do presente de certa maneira a reprimir
5 Frances Yates, The Art of Memory (1966), Chicago: University of Chicago Press, 2001.
esses aspectos do passado que são associados aos futuros possíveis que os poderes
existentes tem um interesse em suprimir.
A arte do Grupo Atlas (1999-2005) é mais uma vez emblemática do empuxo crítico
do argumento aqui, que pode ser sumarizado pelo título do Volume Um de um dos
trabalhos do Grupo: A verdade vai ser conhecida quando a última testemunha estiver
morta. Essa é uma frase profundamente subversiva e dialética. Ela coloca em cena a
auto-destruição do modelo da memória da experiência histórica, já que toma a
identificação da consciência histórica com a totalidade do testemunho para sua
conclusão absurda: a verdade apenas será conhecida na completude dos testemunhos,
quando ela tiver se tornado inteiramente incerta, já que até lá até “a última testemunha”
estará morta. Pode-se chamar isso da antinomia do testemunho. Essa frase coloca o
Grupo Atlas, definitivamente, contra o modelo da memória. Ela recorda da famosa
observação de Walter Benjamin: “A verdade é a morte da intenção”.6 É porque a verdade
está em jogo na arte, que a arte é ela mesma uma morte da intenção. Mas ainda sim
todos os três trabalhos articulam uma relação crítica entre a memória e a história, de uma
forma ou de outra.
6Walter Benjamin, The Origin of German Tragic Drama (1928), trad. John Osborne, Londres: New
Left Books, 1977, p. 36.