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Repórter: Você está em que série?

Entrevistado: Já terminei. Acabei o segundo grau no ano passado.

A entrevista na fila de um órgão público, que iniciava um programa para jovens conseguirem o
primeiro emprego, continua até hoje na minha cabeça pela naturalidade com que algumas
pessoas acham que o processo de educação termina e que o tempo de estudo é menor para as
pessoas na base da pirâmide social. Pra mim, o aprendizado é infinito e a educação, um direito
de todos.

Nesta época, eu era repórter de Economia do jornal Notícias Populares, do grupo Folha, e,
além do trabalho, me dedicava a uma segunda graduação, em História na USP, e a um curso de
extensão em locução para telejornal. Havia trocado uma jornada de seis horas como
concursada em um banco público pelo sonho de ser jornalista, o que significava jornada de 10
horas ou mais, plantões quinzenais aos domingos, um terço do salário de bancária e nenhuma
estabilidade profissional.

A troca de emprego foi a mais louca e acertada decisão da minha vida. Escrever sobre
Economia e Finanças para o público C, D e E foi uma grande escola de jornalismo e de vida.
Pude conhecer mais a fundo as dificuldades das periferias e compreender que os problemas
financeiros, de moradia e da mais básica subsistência estavam relacionados a diversos fatores,
entre eles, a educação. Desde a dificuldade de acesso à educação formal, a necessidade do
trabalho precoce, até a percepção de que o Ensino Superior é restrito aos mais endinheirados.

A minha primeira experiência no jornalismo foi o aprendizado empírico das lições “teóricas”
que aprendi com minha mãe, Lia, uma baiana que valorizava a educação como ninguém. Digo
teórica porque apesar da infância simples, havia a redoma protetora dos meus pais que não
deixavam faltar nada a mim e ao meu irmão, Juca.

Sabe aquele ditado “a educação vem de berço”? Minha mãe levava ao pé da letra. No meu
primeiro mês de vida ganhei uma conta em banco para começar a juntar dinheiro, uma
caderneta de poupança. Imagine isso, no final dos anos 60, na casa de um ascensorista e uma
bordadeira. Dona Lia começou a me alfabetizar com 4 anos. Conhecer os números foi a deixa
para ganhar o cofrinho e aprender a guardar. Aos 5 já escrevia meu nome e aos 6 anos entrei
na escola já sabendo ler, escrever bilhetinhos e fazer continhas. Não, eu não era um prodígio.
Apenas o resultado de um conceito que aprendi pequena e se refletiu ao longo de toda a
minha vida: se eu quero ser tratada como igual, uma pessoa como outra qualquer, preciso me
dedicar o dobro. Afinal, o fator “cor da pele” estaria em mim para sempre e meu acesso ou
não às oportunidades dependeria de um esforço pessoal muito maior que o de crianças de
outras etnias.

Olhando para trás, penso que essa orientação trouxe responsabilidade extra para minha
infância. Um peso que uma criança não deveria carregar.

Por outro lado, este ensinamento dos meus pais me fez mais forte, mais competitiva e mais
bem-sucedida do que eu poderia imaginar.

Fui campeã das Olimpíadas de Matemática da minha escola e cheguei até a fase regional cuja
prova foi feita na Universidade de São Paulo. Eu tinha 13 anos.
Nada mal para a filha de retirantes nordestinos que vieram para São Paulo por conta da seca
que rachou o solo e acabou com as plantações em Livramento de Nossa Senhora, cidade do
sertão baiano localizada na base da Chapada Diamantina, uma região que vive hoje do plantio
de maracujá, manga e umbu e que, no passado, atraía famílias em busca de ouro e pedras
preciosas. A família Guimarães é tradicional na localidade. O registro mais antigo de
antepassados data do final do século XVIII e um pouco dessa história eu conheci por meio da
tradição oral, prática comum entre os habitantes de comunidades remanescentes de
quilombos.

Como nem passava pela minha cabeça parar de estudar, ao concluir a oitava série tive que
conciliar a escola com o trabalho, já que precisava contribuir com o pagamento das contas de
casa. Então, aos 14 anos, junto com o colegial, comecei a trabalhar no grupo Pão de Açúcar
como entrevistadora de crediário em jornada de seis horas. Quando fui promovida para a
jornada de oito horas, saí do emprego. Precisava de uma jornada curta para me dedicar aos
estudos. Virei bancária, no Itaú terminei o colégio, prestei vestibular e, das três universidades
em que fui aprovada, escolhi a PUC.

Não poderia ter feito melhor escolha. Tive aulas com Perseu Abramo, Laurindo Leal Filho,
Gabriel Priolli, Maria Eliana Paiva, Wladir Nader, Vera Simonetti e outros grandes mestres do
jornalismo. O universo que se abriu pra mim na universidade foi grandioso.

Martinho da Vila já cantava “felicidade passei no vestibular, mas a faculdade é particular”.


Precisando de mais dinheiro porque a mensalidade de uma faculdade de primeira linha não é
barata, aproveitei o treinamento do vestibular e prestei concurso público. Em outra frente,
vendia nos corredores da PUC vestidos de viscose que eu fazia com minha mãe no fim de
semana. No terceiro ano de faculdade passei a conciliar também a atuação no Jornal Folha da
Região, com sede em Itapecerica da Serra. E no último ano fiz dois cursos de focas (foca é o
termo usado para designar um jornalista iniciante): o do Estadão e o da TV Cultura.

Com o diploma na mão, havia chegado a hora da grande decisão: largar a segurança do
emprego concursado pela instabilidade do jornalismo. Nessa época, eu já havia comprado um
apartamento para a família e, no pior dos cenários, sem-teto eles não ficariam. Eu estava às
vésperas de me casar com o Paulo Alexandre e, cheios de energia e amor, nos sentíamos
prontos para construir a nossa história. Saí do banco e fui para o jornal no qual, entre muitas
outras coisas, aconteceu o diálogo que abre este capítulo.

E você, leitor, deve estar se perguntando o motivo de eu estar nesse livro, pois chegamos na
metade do texto e eu ainda não falei de seguros. Calma que eu chego já.

Voltando...

No jornalismo popular fiz matérias sobre tudo, do preço do bacalhau na Semana Santa até a
cobertura da quebra do mercado de ações em outubro de 1987, utilizando uma linguagem
simples para informar sobre o que na época foi o maior crack financeiro mundial desde 1929.

Costuma-se dizer que o jornalista é um especialista em generalidades e foi essa versatilidade


que me levou ao mercado de seguros.

Em maio de 2000, surgia no Brasil o jornal Valor Econômico, uma parceria entre os grupos
Folha e Globo, que acabaria com o monopólio da Gazeta Mercantil no jornalismo financeiro.
No começo daquele ano, houve uma grande movimentação no mercado. O Valor montou sua
equipe com jornalistas de várias redações, inclusive da Gazeta Mercantil, que, para não ficar
desfalcada, também foi atrás de jornalistas em outros veículos de comunicação.

O convite para trabalhar na Gazeta foi um desafio, pois iria cobrir o mercado de seguros – um
setor que eu pouco conhecia – e substituir uma jornalista renomada, Denise Bueno. Para
completar, assumi a função em fevereiro, no auge da temporada de balanços e, apesar de ter
feito cursos específicos Bovespa, preciso ressaltar que a análise dos resultados de uma
seguradora tem suas peculiaridades.

Minha primeira atitude foi ser sincera com as fontes (de informação), falei do meu pouco
conhecimento do mercado e da necessidade de serem didáticos comigo para que a matéria
fosse publicada sem erros que pudessem afetar negativamente não só o jornal mas, e
principalmente, as empresas citadas. Nenhum CEO se negou a me ajudar. Lembro que em um
almoço durante uma entrevista, Edson Tomás de Lima Filho, então presidente da Cosesp,
montou em um guardanapo um esquema modelo para análise das principais linhas de um
balanço. Esse guardanapo ganhou lugar de destaque em minha mesa de trabalho e por meses
me ajudou a entender o mercado.

Sempre gostei de uma boa conversa. Foi assim que consegui escrever sobre seguros sem cair
no “segurês”. No fluir da entrevista a explicação de um termo técnico pode abrir espaço para
abordagens muito mais interessantes sobre o assunto e foi assim que consegui bons furos de
reportagem.

Era tanto conteúdo, um mercado tão criativo e interessante que gerava pautas diariamente, o
que estimulou o jornal a desenvolver uma série com o perfil dos líderes das companhias. Não
foi tarefa fácil. Primeiro era preciso estabelecer um grau de confiança mútua no qual o
entrevistado se sentisse confortável para falar algo além da trajetória profissional; segundo,
era preciso produzir um texto sóbrio, sem beirar a autopromoção nem ao emocionalismo
piegas. Um processo de construção de matéria muito estimulante, tanto quanto conhecer os
movimentos que levaram essas personalidades a chegarem onde estavam. Histórias como a de
Antonio Cássio dos Santos, à época presidente da Mapfre, mas que tinha sido o executivo mais
jovem de outra seguradora europeia, um aluno brilhante, um jovem estudioso e naquela
época dedicava boa parte do seu pouco tempo livre a uma causa social muito relevante.

A redação da Gazeta Mercantil era maravilhosa, formada por excelentes profissionais e


projetos interessantíssimos. Um deles, uma parceria com a TV Gazeta, me levou para a frente
das câmeras. Fui repórter, apresentadora, produzi textos para o serviço online do jornal. Tudo
ao mesmo tempo e ... sem salário. Em 2001, o jornal passava por uma grande crise – que levou
ao seu encerramento em 2009 – e se manteve nas bancas graças ao compromisso dos
jornalistas com a informação. Na TV, entre tantas experiências incríveis, desenvolvi novos
estilos de texto, aprendi a utilizar melhor a voz, a improvisar ao vivo e a segurar participação
na bancada ao lado de Maria Lídia e Carlos Alberto Sardemberg.

Eu estava semi-maquiada, me preparando para uma pauta externa, quando me chamam no


estúdio. Um “acidente” de grandes proporções tinha acontecido em Nova Iorque e eu iria
entrar ao vivo. Eram 9 horas da manhã de 11 de setembro. A transmissão começou logo após
um avião atingir a primeira torre. Perplexa, continuei narrando as cenas cinematográficas que
vinham da CNN, até que a segunda torre é atacada. Lembro de ter perguntado para a técnica
se era uma imagem duplicada e me responderam que não. Informei ao telespectador que os
Estados Unidos estavam sendo atacados e permaneci no ar por seis horas seguidas narrando
um dos atentados mais brutais da história da Humanidade.
Simultaneamente ao telejornalismo, continuei fazendo trabalhos freelancer. O principal deles
era como colaboradora da Revista Raça, produzida na época pela Editora Símbolo. Por 10 anos
escrevi com orgulho reportagens sobre histórias sucesso e oportunidades de carreira, em uma
época em que a discussão sobre diversidade apenas começava.

Foi apurando uma pauta para a revista que descobri o Programa de Bolsas da Ford Foundation
no Brasil e me preparei para o Mestrado. Como fellow, pude fazer cursos adicionais no exterior
e voltar para a PUC. Optei pela psicologia social para estudar o cooperativismo e a dissertação
final recebeu nota máxima com indicação para publicação.

Com o diploma na mão, voltei para a Gazeta Mercantil, desta vez como editora do Brazil
International Gazeta, uma newsletter em cinco idiomas produzida diariamente para um
público assinante bem específico. Minha tarefa era selecionar conteúdo, editar e organizar
uma equipe de 17 pessoas entre jornalistas, tradutores, diagramadores. Era uma grande
mistura de culturas e temperamentos. Foi onde aprendi a ser gestora e trabalhar com pessoas
de diversos países. Mas, a crise da Gazeta crescia.

Muitos perguntam porque eu e outros jornalistas continuávamos a trabalhar mesmo com os


constantes problemas de remuneração. A resposta é simples: adorávamos o que fazíamos,
éramos uma equipe unida, muito bem humorada e acima de tudo esperançosa.

O ano de 2007 começa com uma grande guinada. Um convite para assumir a comunicação da
SulAmérica feito diretamente pelo presidente, Patrick Larragoiti Lucas. Uma proposta
irrecusável, ainda mais para quem, como eu, gosta de desafios. Cheguei seis meses antes do
IPO da companhia e a primeira tarefa foi adequar a comunicação da empresa para que todo o
processo de abertura de capital ocorresse sem interrupções por conta de vazamento de
informações.

O projeto incluiu o treinamento dos executivos sobre as melhores formas de divulgação das
informações conforme o estabelecido pelo CODIM (Comitê de Orientação para Divulgação de
Informações ao Mercado), o desenvolvimento de um manual, formalização dos porta-vozes e
um media training específico para eles.

2007 foi o ano dos IPOs. A agenda da BM&F Bovespa (hoje B3) estava lotada, houve 76 ofertas
públicas de ações, sendo 64 delas ingressando na Bolsa. E a CVM (Comissão de Valores
Mobiliários) estava atenta. Alguns IPOs foram suspensos por irregularidades, inclusive
vazamento de informações e entrevistas nas quais os líderes das companhias falaram mais que
o necessário para os jornais. No caso da SulAmérica, a abertura de capital seguiu seu
calendário sem intercorrências e foi o maior IPO de uma seguradora na América Latina até
então, captando R$ 775 milhões.

Passado o batismo de fogo, os anos seguintes foram de consolidação da companhia nesta nova
fase e meu trabalho envolveu preparar a média gerência em todo o País para eventuais
contatos com a imprensa, promover um relacionamento mais constante entre os porta-vozes e
jornalistas, principalmente os de finanças e negócios, e acompanhar a participação da
companhia nas reuniões Apimec (Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do
Mercado de Capitais) em todo o Brasil, sempre buscando oportunidades de exposição.

O volume de trabalho era grande, havia muito o que explorar na companhia, eu estava
deslumbrada porque, com meu olhar de jornalista, de quem veio de fora do mercado, eu via
muitas possibilidades. Produtos, serviços, campanhas, iniciativas, práticas, enfim, muito
assunto que até então tinha sido pouco abordado. Havia também uma profusão de novidades.
Fusões, aquisições, alterações societárias, troca de presidentes, emissões de debêntures,
inaugurações, eventos, além de mudanças regulatórias e assuntos externos que impactavam a
seguradora. Assunto não faltava

Enquanto a empresa aumentava sua relevância no noticiário, o mercado da comunicação


estava em transição. A migração do leitor para o online fez alguns títulos saírem de circulação.
Sites e blogs de jornalistas passaram a ser mais procurados e surgiu um novo comunicador: o
influenciador digital. Nossa forma de fazer comunicação também precisava evoluir. Para os
influencers produzimos textos, vídeos, fotos e ilustrações já formatados para as redes sociais. E
com os jornalistas passamos a investir mais em pautas exclusivas, encontros virtuais e contato
pelo whatsapp, acelerando o atendimento e valorizando o ineditismo da informação.

Conquistamos vários prêmios e eu fui convidada a compor a ANSP, a Associação Nacional de


Seguros e Previdência. Apesar de pequena, a minha equipe se destacava por trabalhar com
afinco, responsabilidade e criatividade.

Ao longo dos anos, procurei montar um time diverso, dando oportunidades para pessoas com
histórias parecidas com a minha. Um movimento que espero, sinceramente, que ganhe força
no mercado. Precisamos de LGBTQ+, de negros, de pessoas com necessidades especiais e de
mulheres nos cargos de liderança para que as companhias e o mercado possam refletir a
sociedade. Este é um dos motivos pelos quais aceitei ser conselheira da AMMS, a Associação
das Mulheres do Mercado de Seguros, uma entidade que busca promover a diversidade no
nosso segmento.

Sempre gosto de dizer que a felicidade está na jornada e não no destino. Minha caminhada até
aqui é marcada pela alegria, pela vontade, pelo esforço e uma dose de teimosia para não
desistir dos sonhos na primeira dificuldade. Foi assim que aos 45 anos, depois de sete
fertilizações, dei a luz ao Miguel. Uma criança linda que veio ao mundo para me ensinar o que
realmente importa.

E é assim, aprendendo a cada dia, que iniciei este ano um doutorado. Há muito ainda a
aprender.

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