Saldo: menos trezentos e vinte oito reais e vinte e dois centavos.
Nenhum dinheiro provisionado, nem depósitos a serem compensados. - O vagabundo está sem emprego de novo - intui Suzane, conhecedora do modus operandi do ex-marido. Mais uma vez, Marcelo falhara no pagamento da pensão alimentícia do filho, que, por decisão judicial, seria descontada direto do seu pagamento pela firma onde ele trabalha. Ou trabalhava... O IPTU e a fatura do cartão de crédito ficariam atrasados. A raiva dessa vez não apareceu mas, nos últimos anos, essa situação se repetira várias vezes. O sentimento de decepção e a antecipação mental dos fatos que viriam pela frente trazem apenas um desânimo amargo. Porém, o tempo não para e como pobre não tem tempo de sofrer , a solução é ir trabalhar e depois procurar Marcelo - telefonar somente o alertaria, o faria sumir no mundo. Andando em direção ao restaurante onde trabalha, pensa na possibilidade de pedir um adiantamento de salário, mas esse pensamento logo é descartado. - Se quem me deve é o Marcelo, por que o patrão iria ter de arcar com isso... No trabalho, o dia mais uma vez passa em piloto automático: lavar montanhas de pratos e talheres ocupa seu corpo e embota sua mente, o que lhe dá um alívio momentâneo, pois contas em aberto, além de trazerem juros, desobedecem o evangelho, onde se diz: - A César o que é de César. Desagradar a Deus, isso sim causa-lhe grande transtorno. Ao fim da jornada de trabalho, a expectativa de encontrar o ex já toma conta de todos seus pensamentos. Marcelo fora seu único homem. Ele a engravidara quando ela estava 1 com 16 anos. Aquilo foi para sua família uma grande vergonha, da qual seus pais nunca a perdoaram. Até mesmo no dia do casamento, sua mãe lhe disse que fornicadores não tem lugar ao lado do Senhor, o que foi como uma pedrada na alma. A vida de casada com Marcelo fora uma espécie de purgatório. Suas amantes e bebedeiras públicas eram notórias. O cochicho dos vizinhos e os comentários na Igreja doíam como se fossem chicotadas. O capítulo final do casamento, com a separação e o divórcio, fora a gota d’água. A vergonha de ser substituída por aquela mulher só teve alívio quando a mesma fugiu com outro e ele pôde sentir também o fel do abandono. Caminhando na avenida Nove de Abril, apesar do movimento intenso, das pessoas que passam, do trânsito de veículos e bicicletas, Suzane mal percebe o que está à sua volta. Ela conhece o poder de sedução de Marcelo e das armadilhas que sua fala mansa pode criar, por isso teme o encontro. Sabe que se puder ficar o menor tempo possível com ele, maior a chance de conseguir o dinheiro. Quando chega à casa dele, ao tocar a campainha, sente um tremor involuntário percorrer seu corpo, um misto de emoções a embaralhar seu raciocínio. O tempo passa, Suzane toca a campainha de novo. Barulhos indistintos vêm de dentro da casa. Vestindo apenas uma blusa branca sem sutiã e uma microssaia igualmente indecorosa, uma mulher atende a porta. É alta, morena jambo, longos cabelos tingidos de loiro, olhos negros, uma boca carnuda e vulgar. (- Mais uma quenga! - pensa Suzane consigo.) - O Marcelo está? - Quem quer falar com ele? - Pode dizer que é a mãe do filho dele... - anuncia-se, com uma ponta de despeito, para se diferenciar daquela que claramente não possuía uma 2 moral como a sua. A mulher entra, fechando a porta na cara de Suzane. (- Essa biscate já deve estar se achando a dona do barraco. Mal sabe ela que mulher aqui não fica o tempo de esquentar o sofá... Mas, a cama, sim, isso ela deve ter esquentado bastante.) De repente, mais barulhos vindos de dentro da casa, agora com sons de louça quebrando e gritos femininos, tiram Suzane de seus devaneios, A porta se abre e aparece Marcelo trazendo a mulher pelo braço, que protesta. - Essa aqui é a Edineide, a faxineira. - Faxineira!? Faxineira uma ova! - protesta a morena, enquanto num movimento rápido Marcelo a empurra e puxa Suzane para dentro da casa, fechando a porta bruscamente. A “faxineira” fica ainda algum tempo protestando do lado de fora da casa enquanto Suzane, dentro, sente uma ponta de orgulho. Ela olha para o seu ex, percebendo seu torso nu - Marcelo sempre teve um corpo magro mas com músculos, de quem trabalha duro mas não tem grande interesse pela comida. - Não caiu na minha conta a pensão do Luisinho. - Desculpe, eu vou te explicar, mas antes você não quer um café? - Não, eu quero meu dinheiro pra pagar as contas que atrasaram, só isso é o que quero de você. - Tudo bem, mas um cafezinho não faz mal a ninguém. - diz Marcelo, dirigindo-se à cozinha. - Bem porquinha essa sua faxineira, isso aqui está bem bagunçado. - Você conhece alguma boa, que possa trabalhar aqui? A malícia embutida na frase incomoda Suzane, que finge não perceber. - O dinheiro... eu quero meu dinheiro pra sair daqui, só isso me interessa de você! Se a sua casa está suja, se você toma banho, se você 3 está comendo ou bebendo, nada disso me interessa - de você só me interessa o bem estar do nosso filho! - Certo, calma, eu vou te fazer um cheque... - responde Marcelo, trazendo café num copo tipo americano. - Você sabe que amo nosso filho e por mim ele passaria mais tempo aqui, para te dar mais tempo pra você fazer as suas coisas. - Cheque não, eu quero dinheiro. Você não vê seu filho porque é ruim pra ele. A última vez que ele ficou o final de semana com você, teve essa idéia de não ir na igreja, que não sei quem colocou essa idéia na cabeça dele - comenta Suzane com ironia. - O livre arbítrio também foi uma dádiva de Deus, você deveria dar mais liberdade pra ele, iria se surpreender com o garoto. - Livre arbítrio, essa é boa! Você tem idéia de como é difícil pra mim criar o menino com o mundo do jeito que está? Com droga pra todo lado, a tentação do dinheiro fácil por aí, e o exemplo do pai que ele tem? Somente graças à Igreja do Senhor eu consigo criá-lo na retidão do caminho da salvação! - Tudo bem, eu me conheço, sei quem eu sou. Nesse momento, Marcelo pega o pulso de Suzane e com um largo sorriso lhe entrega o copo com café. - Mas também tivemos bons momentos. - Só se foi você! Para mim o que ficou foi só a vergonha... O toque, ao mesmo tempo firme e suave das mãos de Marcelo em seu pulso, desestabiliza o ímpeto de Suzane. O celibato auto-imposto de anos faz seu corpo ansiar o que sua mente consciente tenta sublimar para o bem do Espírito. - Bem, voltando à sua pensão, eu saí da Engeterra e ontem peguei meu cheque da rescisão no sindicato, que depositei hoje e deve ser compensado depois de amanhã. Você pega o cheque que eu estou te dando e deposita, que quando compensar o meu o seu também vai estar bom pra 4 sacar. - Sacar, muito engraçado! Esse dinheiro é pra pagar contas que agora estão atrasadas! Quem vai arcar com os juros? Quem?... Não posso pular de galho em galho, tenho de dar abrigo e comida para nosso filho! E mês que vem como ficamos? Vou ter de voltar aqui de novo e implorar miséria? - Calma! - diz Marcelo se postando nas costas de Suzane e começando uma massagem em seu pescoço, prontamente rejeitada. - Estou com uma grande proposta pra ser encarregado da parte de calibragem de uma fábrica de tubos de PVC, em Registro. Vou ganhar três vezes mais, o que aumenta a sua pensão também em três vezes! - Minha pensão não! Pensão de seu filho! Porque eu depender de homem nunca mais! - Certo, a pensão do meu querido Luís... Marcelo então se aproxima rapidamente de Suzane que sente o calor de seu hálito. - Desafasta safado! - responde a mulher enquanto empurra o ex, arranhando levemente seu tronco nu. - Ui! Você me arranhou... Doeu... - Até parece que você sentiu. Quando estávamos casados, você vira e mexe aparecia tão arranhado que parecia ter brigado com uma onça... - Felina só você. - Então era alguma cachorra! - Bem, voltando para as suas contas, eu faço um cheque com cem reais a mais, o que deve dar e sobrar para as multas. - Mas eu quero é dinheiro! Tenho certeza que quando eu depositar esse cheque ele já vai estar sem fundo. - Eu sei que pelo meu passado você tem todo o direito de reclamar, mas ou é isso, ou você passa depois de amanhã aqui em casa. Suzane para sua argumentação num momento de dúvida. Marcelo percebe e aproveita para roubar-lhe um beijo. 5 - O que é isso! Acha que eu sou alguma de suas quengas! - exclama Suzane que o ataca com tapas e socos, facilmente detidos por Marcelo, que a segura e dá-lhe outro beijo mais sensual, agora parcialmente respondido. - Vagabundo... - é o último comentário da mulher ao se entregar.
Depois de satisfazerem seus corpos, ainda nu, Marcelo faz o cheque
para a mulher que se veste rapidamente como que para apagar as últimas horas. - Toma aqui, quinhentos e cinqüenta reais: é a pensão mais cem mangos pros juros. Suzane aceita o cheque sem dizer nada, terminando de se vestir. - Quando eu me estabelecer em Registro, eu te ligo pra acertar o desconto da pensão direto do meu salário. Ela se dirige à porta com sua roupa parcialmente desarrumada e sai sem responder. Andando pela rua, ela olha o cheque e imagina como se sente uma prostituta com o seu pagamento. Quando dá por si, está na frente do banco, entra nele e faz o depósito no caixa eletrônico de maneira tão fria quanto a máquina. Volta para casa onde o filho estranha o modo calado da mãe, que depois de terminar seu jantar e lavar a louça, vai dormir sem ouvir o programa do Pastor Cláudio no rádio, coisa que nunca acontece em dias normais.
No dia seguinte, Suzane já voltou ao seu ritmo normal, afinal, pobre
não tem tempo pra frescura: leva o filho para a escola e vai para o trabalho. Durante o dia, passa a devanear, romanceando o encontro com o ex (de repente ele mudou), (vai ver cansou de vagabunda), mas sempre com o terrível sentimento de estar se agarrando a um galho podre em uma árvore alta. Sentimento justificado por experiências anteriores (esta frase é 6 desnecessária) Mas a esperança de algo mudar nele significaria que algo poderia também mudar na vida dela, e isso, por mais improvável que fosse, era doce, comparado ao sal do dia-a-dia do trabalho e obrigações. À noite, conversa com o filho, ouve o Pastor e dorme o sono leve de uma criança que faz um jogo na loteria para seus pais e sonha com o que fazer com o prêmio. No dia seguinte, depois de levar o filho à escola, no caminho do trabalho, vai ao banco com suas contas e tira seu saldo: Menos trezentos e vinte oito reais e vinte e dois centavos. A voz da mãe volta a lhe açoitar a mente: - Fornicadores não têm lugar ao lado do Senhor.