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Pecado Original parte II

Fernando Rodrigues Assumpção

Saldo: menos trezentos e vinte oito reais e vinte e dois centavos.


Nenhum dinheiro provisionado, nem depósitos a serem compensados.
- O vagabundo está sem emprego de novo - intui Suzane, conhecedora
do modus operandi do ex-marido.
Mais uma vez, Marcelo falhara no pagamento da pensão alimentícia do
filho, que, por decisão judicial, seria descontada direto do seu pagamento
pela firma onde ele trabalha. Ou trabalhava...
O IPTU e a fatura do cartão de crédito ficariam atrasados.
A raiva dessa vez não apareceu mas, nos últimos anos, essa situação
se repetira várias vezes. O sentimento de decepção e a antecipação mental
dos fatos que viriam pela frente trazem apenas um desânimo amargo. Porém,
o tempo não para e como pobre não tem tempo de sofrer , a solução é ir
trabalhar e depois procurar Marcelo - telefonar somente o alertaria, o faria
sumir no mundo.
Andando em direção ao restaurante onde trabalha, pensa na
possibilidade de pedir um adiantamento de salário, mas esse pensamento
logo é descartado.
- Se quem me deve é o Marcelo, por que o patrão iria ter de arcar com
isso...
No trabalho, o dia mais uma vez passa em piloto automático: lavar
montanhas de pratos e talheres ocupa seu corpo e embota sua mente, o que
lhe dá um alívio momentâneo, pois contas em aberto, além de trazerem
juros, desobedecem o evangelho, onde se diz: - A César o que é de César.
Desagradar a Deus, isso sim causa-lhe grande transtorno.
Ao fim da jornada de trabalho, a expectativa de encontrar o ex já toma
conta de todos seus pensamentos.
Marcelo fora seu único homem. Ele a engravidara quando ela estava
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com 16 anos. Aquilo foi para sua família uma grande vergonha, da qual seus
pais nunca a perdoaram. Até mesmo no dia do casamento, sua mãe lhe
disse que fornicadores não tem lugar ao lado do Senhor, o que foi como uma
pedrada na alma.
A vida de casada com Marcelo fora uma espécie de purgatório. Suas
amantes e bebedeiras públicas eram notórias. O cochicho dos vizinhos e os
comentários na Igreja doíam como se fossem chicotadas.
O capítulo final do casamento, com a separação e o divórcio, fora a gota
d’água. A vergonha de ser substituída por aquela mulher só teve alívio
quando a mesma fugiu com outro e ele pôde sentir também o fel do
abandono.
Caminhando na avenida Nove de Abril, apesar do movimento intenso,
das pessoas que passam, do trânsito de veículos e bicicletas, Suzane mal
percebe o que está à sua volta. Ela conhece o poder de sedução de Marcelo
e das armadilhas que sua fala mansa pode criar, por isso teme o encontro.
Sabe que se puder ficar o menor tempo possível com ele, maior a chance de
conseguir o dinheiro.
Quando chega à casa dele, ao tocar a campainha, sente um tremor
involuntário percorrer seu corpo, um misto de emoções a embaralhar seu
raciocínio.
O tempo passa, Suzane toca a campainha de novo.
Barulhos indistintos vêm de dentro da casa.
Vestindo apenas uma blusa branca sem sutiã e uma microssaia
igualmente indecorosa, uma mulher atende a porta. É alta, morena jambo,
longos cabelos tingidos de loiro, olhos negros, uma boca carnuda e vulgar.
(- Mais uma quenga! - pensa Suzane consigo.)
- O Marcelo está?
- Quem quer falar com ele?
- Pode dizer que é a mãe do filho dele... - anuncia-se, com uma ponta
de despeito, para se diferenciar daquela que claramente não possuía uma
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moral como a sua.
A mulher entra, fechando a porta na cara de Suzane.
(- Essa biscate já deve estar se achando a dona do barraco. Mal sabe
ela que mulher aqui não fica o tempo de esquentar o sofá... Mas, a cama,
sim, isso ela deve ter esquentado bastante.)
De repente, mais barulhos vindos de dentro da casa, agora com sons
de louça quebrando e gritos femininos, tiram Suzane de seus devaneios,
A porta se abre e aparece Marcelo trazendo a mulher pelo braço, que
protesta.
- Essa aqui é a Edineide, a faxineira.
- Faxineira!? Faxineira uma ova! - protesta a morena, enquanto num
movimento rápido Marcelo a empurra e puxa Suzane para dentro da casa,
fechando a porta bruscamente.
A “faxineira” fica ainda algum tempo protestando do lado de fora da
casa enquanto Suzane, dentro, sente uma ponta de orgulho.
Ela olha para o seu ex, percebendo seu torso nu - Marcelo sempre
teve um corpo magro mas com músculos, de quem trabalha duro mas não
tem grande interesse pela comida.
- Não caiu na minha conta a pensão do Luisinho.
- Desculpe, eu vou te explicar, mas antes você não quer um café?
- Não, eu quero meu dinheiro pra pagar as contas que atrasaram, só
isso é o que quero de você.
- Tudo bem, mas um cafezinho não faz mal a ninguém. - diz Marcelo,
dirigindo-se à cozinha.
- Bem porquinha essa sua faxineira, isso aqui está bem bagunçado.
- Você conhece alguma boa, que possa trabalhar aqui?
A malícia embutida na frase incomoda Suzane, que finge não
perceber.
- O dinheiro... eu quero meu dinheiro pra sair daqui, só isso me
interessa de você! Se a sua casa está suja, se você toma banho, se você
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está comendo ou bebendo, nada disso me interessa - de você só me
interessa o bem estar do nosso filho!
- Certo, calma, eu vou te fazer um cheque... - responde Marcelo,
trazendo café num copo tipo americano.
- Você sabe que amo nosso filho e por mim ele passaria mais tempo
aqui, para te dar mais tempo pra você fazer as suas coisas.
- Cheque não, eu quero dinheiro. Você não vê seu filho porque é ruim
pra ele. A última vez que ele ficou o final de semana com você, teve essa
idéia de não ir na igreja, que não sei quem colocou essa idéia na cabeça dele
- comenta Suzane com ironia.
- O livre arbítrio também foi uma dádiva de Deus, você deveria dar
mais liberdade pra ele, iria se surpreender com o garoto.
- Livre arbítrio, essa é boa! Você tem idéia de como é difícil pra mim
criar o menino com o mundo do jeito que está? Com droga pra todo lado, a
tentação do dinheiro fácil por aí, e o exemplo do pai que ele tem? Somente
graças à Igreja do Senhor eu consigo criá-lo na retidão do caminho da
salvação!
- Tudo bem, eu me conheço, sei quem eu sou.
Nesse momento, Marcelo pega o pulso de Suzane e com um largo
sorriso lhe entrega o copo com café.
- Mas também tivemos bons momentos.
- Só se foi você! Para mim o que ficou foi só a vergonha...
O toque, ao mesmo tempo firme e suave das mãos de Marcelo em seu
pulso, desestabiliza o ímpeto de Suzane. O celibato auto-imposto de anos faz
seu corpo ansiar o que sua mente consciente tenta sublimar para o bem do
Espírito.
- Bem, voltando à sua pensão, eu saí da Engeterra e ontem peguei
meu cheque da rescisão no sindicato, que depositei hoje e deve ser
compensado depois de amanhã. Você pega o cheque que eu estou te dando
e deposita, que quando compensar o meu o seu também vai estar bom pra
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sacar.
- Sacar, muito engraçado! Esse dinheiro é pra pagar contas que agora
estão atrasadas! Quem vai arcar com os juros? Quem?... Não posso pular
de galho em galho, tenho de dar abrigo e comida para nosso filho! E mês que
vem como ficamos? Vou ter de voltar aqui de novo e implorar miséria?
- Calma! - diz Marcelo se postando nas costas de Suzane e
começando uma massagem em seu pescoço, prontamente rejeitada. - Estou
com uma grande proposta pra ser encarregado da parte de calibragem de
uma fábrica de tubos de PVC, em Registro. Vou ganhar três vezes mais, o
que aumenta a sua pensão também em três vezes!
- Minha pensão não! Pensão de seu filho! Porque eu depender de
homem nunca mais!
- Certo, a pensão do meu querido Luís...
Marcelo então se aproxima rapidamente de Suzane que sente o calor
de seu hálito.
- Desafasta safado! - responde a mulher enquanto empurra o ex,
arranhando levemente seu tronco nu.
- Ui! Você me arranhou... Doeu...
- Até parece que você sentiu. Quando estávamos casados, você vira e
mexe aparecia tão arranhado que parecia ter brigado com uma onça...
- Felina só você.
- Então era alguma cachorra!
- Bem, voltando para as suas contas, eu faço um cheque com cem
reais a mais, o que deve dar e sobrar para as multas.
- Mas eu quero é dinheiro! Tenho certeza que quando eu depositar
esse cheque ele já vai estar sem fundo.
- Eu sei que pelo meu passado você tem todo o direito de reclamar,
mas ou é isso, ou você passa depois de amanhã aqui em casa.
Suzane para sua argumentação num momento de dúvida. Marcelo
percebe e aproveita para roubar-lhe um beijo.
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- O que é isso! Acha que eu sou alguma de suas quengas! - exclama
Suzane que o ataca com tapas e socos, facilmente detidos por Marcelo, que
a segura e dá-lhe outro beijo mais sensual, agora parcialmente respondido.
- Vagabundo... - é o último comentário da mulher ao se entregar.

Depois de satisfazerem seus corpos, ainda nu, Marcelo faz o cheque


para a mulher que se veste rapidamente como que para apagar as últimas
horas.
- Toma aqui, quinhentos e cinqüenta reais: é a pensão mais cem
mangos pros juros.
Suzane aceita o cheque sem dizer nada, terminando de se vestir.
- Quando eu me estabelecer em Registro, eu te ligo pra acertar o
desconto da pensão direto do meu salário.
Ela se dirige à porta com sua roupa parcialmente desarrumada e sai
sem responder.
Andando pela rua, ela olha o cheque e imagina como se sente uma
prostituta com o seu pagamento.
Quando dá por si, está na frente do banco, entra nele e faz o depósito
no caixa eletrônico de maneira tão fria quanto a máquina.
Volta para casa onde o filho estranha o modo calado da mãe, que
depois de terminar seu jantar e lavar a louça, vai dormir sem ouvir o
programa do Pastor Cláudio no rádio, coisa que nunca acontece em dias
normais.

No dia seguinte, Suzane já voltou ao seu ritmo normal, afinal, pobre


não tem tempo pra frescura: leva o filho para a escola e vai para o trabalho.
Durante o dia, passa a devanear, romanceando o encontro com o ex
(de repente ele mudou), (vai ver cansou de vagabunda), mas sempre com o
terrível sentimento de estar se agarrando a um galho podre em uma árvore
alta. Sentimento justificado por experiências anteriores (esta frase é
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desnecessária) Mas a esperança de algo mudar nele significaria que algo
poderia também mudar na vida dela, e isso, por mais improvável que fosse,
era doce, comparado ao sal do dia-a-dia do trabalho e obrigações.
À noite, conversa com o filho, ouve o Pastor e dorme o sono leve de
uma criança que faz um jogo na loteria para seus pais e sonha com o que
fazer com o prêmio.
No dia seguinte, depois de levar o filho à escola, no caminho do
trabalho, vai ao banco com suas contas e tira seu saldo: Menos trezentos e
vinte oito reais e vinte e dois centavos.
A voz da mãe volta a lhe açoitar a mente:
- Fornicadores não têm lugar ao lado do Senhor.

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