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FERNAND-LUCIEN MUELLER

Professor da Universidade de Genebra


História da PSICOLOGIA, Da Antigüidade
aos dias de hoje
29 edição, acrescida e revista
I IIIII I
N 1 56 1
Tradução de
ALMIR DE OLIVEIRA AGUIAR
J. B. DAMASCO PENNA
LÓLIO LOURENÇO DE OLIVEIRA
MARIA APARECIDA BLANDY
COMPANH1ÁT NACIONAL
Do original francês
Histoire de la psychologie
tome premier
De l'antiquité à Bergson
tome 2
La psychologie contemporaine
publicado na Bibliothê que Scient
editada por
PAYOT
(Paris, 1976)
A primeira edição deste livro foi publicada em co-edição com a
EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
Rua dos Gusmões, 639
01212- São Paulo, SP
que se reserva a propriedade desta tradução
1978
Impresso no Brasil

TÁBUA DA MATÉRIA
Notas da Editora:
i. à segunda edição brasileira XI
ii. à primeira edição brasileira XI
Prefácio à segunda edição brasileira XIII
Prefácio à primeira edição brasileira XIV
Prefácio da quarta edição francesa XV
Prefácio da primeira edição francesa XVII
PRIMEIRA PARTE
A noção de alma entre os gregos
1 - A Grécia primitiva 3
1. O animismo
2. O mundo homérico 5
3. O culto de Dioniso 6
4. O mito órfico 7
II - O nascimento da exigência racional 9
1. Osprimeirosjônicos 9
2. Heráclito e o devir 10
3. Parmênides e o Ser imóvel 13
4. Alcmeão de Crotona 14
v
5. Os quatro elementos de Empédocles .
6. O Nou de Anaxágoras
7. Diógenes de Apolônia
III - A psicologia médica na Antigüidade 21
1. As origens da medicina hipocrática
2. As causas e a cura das doenças
3. A energia vital e o papel do cérebro
4. O homem no universo
5. A sabedoria hipocrática
6. Aspectos psicoterapêuticos
7. De Hipócrates a Galeno
IV - O ensinamento dos sofistas e o método socrático 29
1. A descoberta da subjetividade
2. O relativismo de Protágoras
3. Górgias e a linguagem
4. A pesquisa socrática
V - A psicologia de Platão 35
1. A espiritualidade da alma e seu destino
2. O processo do conhecimento
3. Uma psicofisiologia finalista
4. As perturbações psíquicas e os fatores inconscientes
VI - A psicologia de Aristóteles 41
1. Aristóteles e seus predecessores
2. A oposição a Platão
3. A alma como "forma" do corpo
4. O próprio do homem
5. O primado ontológico
6. O objeto da psicologia
7. As sensações e a percepção
8. A imaginação, a memória, os sonhos
9. O princípio de perfeição
VII - A psicologia do epicurismo e do estoicismo 52
1. A exigência imanentista
2. As condições históricas
3. Os átomos e o clinâmen
4. A materialidade da alma e o conhecimento
5. A "psicoterapia" epicuréia
6. O panteísmo estóico
7. O pnezima divino
8. O mundo, a alma, a liberdade
SEGUNDA PARTE
A crise do mundo mediterrâneo e a Idade cristã
VIII - A irrupção do pensamento hebraico 65
1. O sincretismo alexandrino
2. Filo e a tradição judia
3. A alma e o mundo exterior
4. A vida espiritual
5. A mudança de perspectiva
IX - O acme do "neoplatonismo": Plotino 71
1. Plotino e seu tempo
2. A alma universal
3. O domínio da psicologia
4. A imaterialidade da alma e opneiima
5. O organismo e as sensações
6. A imaginação, a memória, a consciência
7. A inspiração de Plotino
X - A psicologia cristã 79
1. A nova intuição do mundo
2. São Paulo
3. A psicologia dos apologistas
4. Tertuliano
5. Clemente de Alexandria
6. Orígenes
1. O contexto metafísico
2. O homem do pecado original
3. A evidência imediata da alma
4. Os graus e as funções da alma
5. Os sentidos, a razão, a memória
6. A influência do agostinismo
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XI - Santo Agostinho 88
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VI
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VI
XII - Santo Tomás de Aquino . 98
1. A orientação metafísica .
2. A alma e suas potências
3 Os sentidos externos
4. O senso comum
5. O papel das imagens
6. O papel do intelecto agente
7. O dualismo tomista
TERCEIRA PARTE
A idade moderna
X - A ruptura com a tradição e a constituição do mundo moderno 109
1. A grande crise do século XVI
2. A nova imagem do universo
3. A Reforma e a demonologia
4. O homem como objeto de pesquisas concretas
XIV - As idéias psicológicas no Renascimento 118
1. Leonardo da Vinci
2. Paracelso
3. Pietro Pomponazzi
4. Bernardino Telésio
5. Giordano Bruno
6. Michel de Montaigne
7. Francis Bacon
XV - O dualismo cartesiano 151
A revolução metodológica
O dogmatismo das duas substâncias
O espírito e o corpo
As imagens e a percepção
A psicologia concreta de Descartes
A psicoterapia cartesiana A nova problemática
XVJ - As reações a Descartes 163
A psicologia religiosa de Pascal e Malebranche
Spinoza ou o paralelismo de identidade
Locke ou a exigência empirista
Leibniz ou a descoberta do inconsciente
As pesquisas experimentais
XVII A psicologia no Século das Luzes 188
1. O progresso das ciências humanas e a sobrevivência do espírito mágico
2. A psicologia subjetiva de Berkeley
3. O mecanismo de La Mettrie
4. O homem dos enciclopedistas
5. A alma para Voltaire e Rousseau
6. A psicologia espiritualista de Condillac
7. O "sonho ousado" de Charles Bonnet
8. A psicofisiologia de Cabanis
9. A fenomenologia de Hume
10. A psicologia racional de Chrístian Wolff
XVJIJ - A psicologia no pensamento alemão do século XJX 240
1. A importância do pensamento germânico
2. As condições do conhecimento em Kant
3. A ilusão da psicologia racional
4. O caráter prático da psicologia
5. As dificuldades de uma psicologia como ciência
6. A intuição da alma como atividade
7. 1-legel e o universal-concreto
8. O inconsciente na filosofia alemã
XIX - De Maine de Biran a Bergson 251
1. O "fato primitivo" do eu e a primazia do esforço voluntário
2. A tarefa da psicologia
3. A liberdade e a vida afetiva
4. A exigência de uma psicologia espiritualista
5. O aparecimento do pensamento de Bergson
6. Os "dados imediatos" da consciência e o "eu profundo"
7. As duas memórias
8. A influência do bergsonismo
QUARTA PARTE
A "nova" psicologia
XX - A origem e o desenvolvimento da psicologia científica 267
1. O clima positivista
2. O empirismo inglês
3. A psicologia experimental na Alemanha
4. A obra de Théodule Ribot (1839-1916)
5. As ciências psicológicas em 1900
6. A reabilitação da introspecção
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276
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V
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XXI - A formação de escolas no século XX.
1. A psicologia "das profundezas"
a) Origens da psicanálise b) O desenvolvimento do freudismo c) A "psicologia individual" de Alfred
Adler d) A "psicologia analítica" de C. G. Jung
2. A reflexologia e o behaviorismo
3. A "Gestalttheorie"
XXII - Os principais campos das pesquisas
O problema dos critérios
O uso dos testes e seus limites
A psicofisiologia
A psicologia animal
A psicologia genética
A caracterologia
XXIII - A psicologia social
1. Os primórdios da psicologia social
2. O "culturalismo" norte-americano
a) Etnologia e psicanálise
b) Os "novos caminhos" segundo Karen Horney c) O humanismo de Erich Fromm d) O extremismo
critico de Herbert Marcuse
3. A abordagem experimental
a) A "facilitação social" segundo Floyd H. Allport
b) A noção de "atitude" e sua extensão c) A pesquisa sexológica de Kinsey d) As experiências de Sherif
e) A "dinâmica dos grupos" de Kurt Lewin f) Moreno e a "sociometria"
4. Psicologia social, ciência e filosofia
XXIV Fenomenologia e psicologia
1. Husserl e a psicologia
2. A influência da fenomenologia
3. A psicologia fenomenológica
a) na obra de Jean-Paul Sartre b) na obra de Maurice Merleau-Ponty
Conclusão
Bibliografia sumária
Indice onomástico
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280
280
284
293
297
302
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3.
4.
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313
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433
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NOTAS DA EDITORA
i. À SEGUNDA EDIÇÃO BRASILEIRA
Como se vê do prefácio do Autor para a quarta edição francesa de seu livro, base desta edição que ora
estamos a publicar, ocorreram alterações no texto, particularmente na quarta parte. Toda a considerável
porção assim acres cida ao original, bem como tudo quanto nele veio a ser alterado, foi agora traduzido
por Almir de Oliveira A guiar, a quem por igual se devem algumas notas, marcadas com suas iniciais. O
restante do texto da primeira edição brasileira foi mantido, na conformidade da outra Nota da Editora.
ii. À PRIMEIRA EDIÇÃO BRASILEIRA
Os primeiros quinze capítulos deste livro foram traduzidos pelo Professor Lálio Lourenço de Oliveira; os
demais, pela Professora Maria Aparecida Blandy. Com vistas à desejável uni forrnidade da terminologia,
todo o texto foi revisto pelo Professor J. B. Damasco Penna, que também redigiu algumas notas,
assinaladas com suas iniciais.
X

A GRÉCIA PRIMITIVA
1. O animismo
2. O mundo homérjco
3. Oculto de Dioniso
4. Omito órfico
A idéia de alma nasceu sem dúvida de experiências fundamentais:
nascimento e morte, sono e sonhos, síncopes, delírios, etc., inerentes a uma primeira e obscura tomada de
consciência, pelo homem, de sua própria reali dade no mundo. Se hoje, com a bagagem de longo passado,
ela se encontra dentro de um contexto teórico de articulações precisas, o mesmo não se dava,
evidentemente, quando as representações das coisas se encontravam ainda confusas no espírito humano,
estreitamente submetidas ao jogo dos senti mentos e da imaginação, sem o cuidado daquilo que veio a
tornar-se a "obje tividade". Ingênuo seria, pois, pretender noções claras e distintas naquelas eras remotas.
No pensamento primitivo, a alma aparece numa correlação mágica - variável segundo os povos - com as
forças da vida, e é atribuida ao animal e ao homem pelo fato de que eles respiram e podem sangrar; pois
morrer é visi velmente exalar o últjmo suspiro ou dessangrar-se. Ora, esta alma misteriosa, habitante do
corpo, no que se tornará ela quando este não passar de cadáver? A esta pergunta as mentalidades
primitivas responderam com toda a espécie de representações imaginárias: reino dos espíritos, migração
das almas, fan tasmas de almas do outro mundo, etc.
Sabe-se, agora, que a Humanidade, onde quer que apareça, se mani festa, inicialmente, por uma atitude
animista. Parece que as primeiras socie dades humanas atribuíam seus êxitos e seus malogros a
misteriosas potências, onipresentes, capazes de modificar o curso das coisas. Tal concepção provo-
CAPÍTULO 1
1. O animismo
3
2. O mundo homérico
cava o desejo de conciliar ou domesticar essas forças por meio de práticas religiosas ou mágicas, as quais
se encontram, assim, na própria origem da vida mental.
Os estudos modernos, tanto sobre a mentalidade infantil quanto sobre a mentalidade primitiva, têm
esclarecido de maneira satisfatória esse estado de espírito que consiste em projetar no exterior desejos e
temores, em conferir poderes ocultos aos seres e coisas do mundo ambiente. Todos nós, adultos
ocidentais, na primeira infância, acreditamos nos contos de fada, e daquele mundo poético e miraculoso
de então resta-nos muitas vezes uma vaga nostal gia, sempre reavivada por ocasião das festividades do
Natal.
A psicologia própria a essa mentalidade animista apresenta formas variadas e longe está de ser tão
simples quanto poderiamos crer à primeira vista. Por exemplo, não é fácil saber em que medida a alma
particular atri buída por certos povos africanos a partes do corpo (olhos, sangue, coração, fígado...),
representa, para eles, a sede de uma potência vital experimentada como substancialmente una, ou se
corresponde a um pluralismo radical do homem. Este problema, aliás, não está inteiramente elucidado
nem sequer para o mundo homérico, no qual os indivíduos falam de si próprios dizendo:
"meu caro coração" ou "minha cara cabeça". De qualquer maneira, o agrupamento em categorias das
crenças manifestadas por certos povos primi tivos nos faz distinguir diversas espécies de alma: uma alma-
vida, que aban dona o corpo durante o sono, vagueia e encontra, então, outras almas e após a morte
procura outro corpo, e nele pode originar doenças (cabe, então, ao feiticeiro, expulsá-la e mantê-la no
mundo dos mortos); uma alma-sombra, que acompanha o corpo no estado de vigília (para não perdê-la, os
negros da Africa Ocidental evitam expor-se ao sol do meio-dia); uma alma-reflexo-do- corpo, que aparece
nas águas e objetos brilhantes; e, por fim, outra espécie de alma, que o indivíduo tem em comum com um
animal, por exemplo, e que acarreta uma identidade de destino e, até, de certas propriedades físicas e
morais.
Os gregos primitivos concebiam também a atividade vital sob as diver sas formas de sombra, de imagem,
de simulacro, de espectros dos mortos, e depois deles os romanos distinguirão ogenius, a umbra (que
aparece em redor do tumulus), do spiritus (que astra petit = sobe aos céus), e dos manes (que descem ao
orco, reino subterrâneo das sombras). Significa isso que sua idéia de alma, que já parece implícita nas
mais antigas concepções gregas do homem e seu destino, não difere fundamentalmente da que se encontra
entre os povos primitivos em geral, e que constitui o animismo em suas diferentes formas. A idéia da
alma semelhante ao corpo que ela ocupava, embora mais esmaecida e tênue, acrescenta-se a da alma
como um sopro exalado no instante da morte. Freqüentemente, as decorações dos vasos gregos ilustram
essa concepção pela imagem de uma borboleta('), mosca, ou outro inseto alado, a escapar-se pela boca do
moribundo. Seria preciso lembrar que a vida do homem, na própria Bíblia, tem por origem um sopro de
Jeová? (2)
(1) O mesmo termo (psyche) designa borboleta e alma.
(2) "E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida; e o
liontem foi feito alma si, ente.'' (Gê,ss'ss.s , 11. 7.)
Não é fácil fazer idéia precisa do que tenha sido a fé religiosa na Grécia antiga, e excelentes humanistas
discutem ainda sobre isso. Razão por que é difícil ligar as concepções presentes nos poemas homéricos às
que se eviden ciam nos mistérios gregos, pois o mundo homérico, onde prevalece o heroís mo, é regido
por deuses cheios de vida. E quase certo que a religião de Homero se afasta das tradições populares e é
provável também que não excluísse uma corrente mística bastante mais profunda, vinculada especial
mente ao culto de Deméter. Rohde julga que os poemas homéricos, prece didos por longa elaboração de
legendas poéticas, e que descrevem um estado social avançado, manifestam antes um fim do que um
começo. E pelo fato de nos apresentarem gregos muito evoluídos e ricos de experiência, o desenrolar dos
funerais de Pátroclo parece-lhe sobrevivência de culto mais antigo. Tem- se observado freqüentemente
que esses poemas exprimem um sentimento muito vivo da realidade concreta, bem mais objeto de
interesse do que o desti no da alma separada do corpo: "ser como um deus na terra é ter suficiente mente
todas as riquezas e todas as fontes de gozo material que faltam à maior parte dos homens( l)". Esse gosto
pela vida, o homem o experimenta enquanto é, ao mesmo tempo, alma e corpo e essa união preside as
suas atividades. "Se os homens da época homérica não falam expressamente da doçura e das alegrias da
vida, é porque ela se apresenta muito naturalmente sob cores riso nhas a um povo vigoroso, em vias de
desenvolver-se, dentro de condições sociais pouco complicadas e onde os fortes encontram facilmente as
condições da felicidade no prazer e na ação. Pois, verdadeiramente, o mundo homérico não é feito senão
para os fortes, os hábeis, os poderosos(
Na Ilíada, os dois móveis essenciais da vida moral são o temor ao julga mento alheio e a utilidade coletiva
da coragem, que ganha todo seu valor nos combates. Não se trata de recompensa ou de castigo no Além,
nem mesmo de um poder - cuja noção surge na Odisséia - capaz de proteger por vezes o justo neste
mundo. Tanto quanto o corpo que abandona, a psique não explica o mistério do homem como ser dotado
concretamente de sentimentos, de desejos, de vontade, de pensamento. Esse homem ativo e consciente
morre quando a alma, que é da natureza do vento, abandona o corpo pela boca, ou com o sangue de um
ferimento, para dirigir-se ao Hades lamentando seu destino. Quando Pátroclo, ferido de morte por Heitor,
morre predizendo que este também não viverá muito tempo, suas últimas palavras são assim pon tuadas:
"Ele diz: a morte que tudo acaba já o envolve. A alma abandona seus membros e se vai, voando, para o
Hades, lamentando seu destino, deixando a força e ajuventude... (3)"
A sorte dos mortos não é invejável, ainda quando possamos imaginá-la privilegiada para as grandes almas
mortas. Quando Ulisses saúda a inigua lada felicidade de Aquiles, que exerce agora - após ser honrado
como um deus - seu poder sobre os mortos, o herói lhe responde amargamente: "Oh! Não pintes a morte
com cores agradáveis, nobre Ulisses!... Antes preferia,
(1) Fernand ROBERT. h'omère, P.U.F., 1950, pág. 46.
(2) Erwin ROHDE, Psvché. edição francesa por Auguste Reymond, Paris. 1928. pág. 2.
(3) Iliade, XVI, 850. tradução de Paul MAZON, coleção Universités de France.
4
5
encarregado do cuidado dos bois, viver servindo a um pobre proprietário agrícola, nada famoso por sua
mesa, do que reinar sobre estes mortos, sobre todo este povo extinto! (1)"
No reino de Hades e de Perséfone, para além do Oceano e do rio Aque ronte, a alma desencarnada volta a
encontrar seus semelhantes, as almas dos mortos, que se agitam inconscientes nesse reino das sombras,
impalpáveis, inconsistentes como o fumo, ou como a imagem refletida pela água, livres das agítações dos
vivos, embora esses fantasmas conservem os mesmos traços daqueles. Quando Aquiles, ao cair da noite,
se encontra na presença da alma de Pátroclo que implora sepultura, identifica-a pela forma e até pelo
olhar. E essa alma, ela também, chora a vida perdida: "Sepulta-me logo, para que eu passe as portas do
Hades. Lá estão almas que me afastam, me expulsam, sombras de defuntos. Não me permitem transpor o
rio e a elas unir-me, e cis me a errar em vão de um lado a outro das grandes portas da morada do Hades.
Vai, dá-me tua mão, peço-te chorando. Não sairei mais do Hades quando me tiveres dado uma parte de
fogo. Não mais nos reuniremos em conselho, vivos, sentados longe dos nossos: o odioso trespasse me
devorou. Aliás, tal era meu destino, desde o dia em que nasci... (2)"
Os poemas homéricos nada nos ensinam acerca da origem desse corpo invisível, duplo do corpo visível,
que a ele sobrevive como sua sombra; somen te sabemos que todo retorno é defeso aos mortos, separados
dos vivos pelo Oceano e pelo Aqueronte. Por isso, os homens que vivem sobre a terra, nada têm que
temer desses defuntos, nem se preocupam em obter-lhes favores ou render-lhes culto.
3. O culto de Dioniso
Se o mundo homérico é um mundo heróico, para o qual a verdadeira vida é esta cá de baixo, pouco mais
tarde- quando já se exerce a especulação racional dos pensadores jônicos - surge, ou ressurge, na Grécia,
uma tendên cia religiosa e mística, fundada na crença em profundo desacordo entre a alma, investida de
valor sagrado, e o corpo. A alma guarda nostalgia do Além, de onde procede, e o corpo lhe parece prisão
ou túmulo. E de duvidar que as impressões produzidas pelos sonhos, pelos acontecimentos graves da exis
tência, ou pelos fenômenos meteorológicos ou cósmicos, tenham bastado para originar tal crença; as
emoções ligadas às práticas de certos cultos, particular- mente o de Dioniso, aí desempenharam,
provavelmente, importante papel.
Parece que esse culto nasceu muito cedo; talvez já existisse na Trácia na época pré-helênica. Sabe-se que
seus adeptos, agrupados em associações secretas, em tíasos, o celebravam à noite, nas montanhas. Danças
frenéticas, à luz de tochas, acompanhadas de gritos e ritmadas ao som de tambores e de flautas,
suscitavam aquele delírio coletivo de que, ainda hoje, podem dar idéia as cerimônias sagradas de certas
tribos negras( Tivessem tais cultos, como móvel original, um desejo de conciliar as misteriosas forças da
natureza,
(1) Odvssée, XI, 490, tradução de Victor BÉRARD.
(2) 1/jade, XXIII. 70, tradução de Paul MAZON.
(3) Elj}tIFlI)ES descreve esse euI em Li /,mrhu,,,o Á 'hr li r, Ii do por Mário Paris, l'ayot. 1923.)
ou a celebração de mitos consagrados à memória dos avoengos, suscitavam eles uma exaltação delirante,
cuja lembrança devia permanecer intensa e duradoura. Essa experiência pôde levar à convicção de que
aquela misteriosa emoção de plenitude, despertada pelo deus e com ele identificada, era muito superior à
vida mesquinha e quotidiana da terra e que, assim sendo, o corpo não possuía sentido senão como
invólucro dessa alma revelada a si mesma( 1). Pensa-se tenha cabido aos órficos, cuja seita parece ter
aparectdo na Grécia em meados do século VI antes de nossa era, dar ao culto de Dioniso certa con
sistência e disseminá-lo na Atica, na Sicília e no sul da Itália. Sem que se possa estabelecer um contato
absolutamente certo, revela-se espantosa seme lhança entre essa vaga mística e as crenças então existentes
na India(
4. O mito órfico
Sua doutrina, obra dos participantes da seita, era atribuída a Orfeu. Tinha por centro a lenda de Dioniso,
filho de Júpiter e de Perséfone, que procurava fugir aos cruéis Titâs por meio de todo tipo de
metamorfoses, e que, transformado em touro, foi por eles retalhado. Os Titãs foram queima dos pelo raio
de Zeus. E como houvessem absorvido a vida do deus, ao devorá lo, o gênero humano, nascido de suas
cinzas, traz dentro de si o duplo princí pio do bem e do mal.
Nessa lenda, nascida para explicar o esquartejamento ritual do touro que representa o deus, transparece
um motivo metafísico: a pluralidade - isto é, o mundo - nasceu de um crime cometido contra a unidade do
deus, e o objetivo final é, portanto, o retorno à unidade indevidamente quebrada. O corpo (elemento
títanesco) é um túmulo para a alma (elemento dionisiaco):
libertar-se dele torna-se o fim supremo. Mas como é possível essa libertação, uma vez que a alma não
deixa um corpo senão para introduzir-se em outro, segundo a dura lei de Anánke, a dolorosa "roda dos
nascimentos"? Pela purificação, pela ascese. E só quem se submete aos preceitos da vida órfica e repudia
os prazeres do corpo e as atrações da vida terrena pode conhecer semelhante libertação. Após a morte,
purificada, a alma participa de um banquete em que se embriaga; depois, voa para os astros a fim de ai
desfrutar vida eterna.
Parece que o ensinamento dos pitagóricos terá devido muito ao dos órfi cos, mas que deste se distingue
por preocupações científico-racionais ligadas àquela ascese que deve assegurar a purificação da alma.
Sabe-se que o pitago rismo constituiu um movimento tanto religioso, moral e político, quanto inte lectual.
A documentação referente a isso é duvidosa, e nela se encontra sem pre a lenda de mistura com uma
história que nos foi transmitida indireta mente. Essa história se refere a duas épocas diferentes. A
primeira, que vai da fundação da escola de Crotona (cerca de 530 a.C.) até a morte de Platão (cerca de
350 a.C.); a segunda, neopitagórica, iniciada no primeiro século de
(1) DURKI-IEIM. em Les fomises llémentaires de/a eje reíigieuse, trata da reflexão que se exerceu sobre
as emoçães do culto. Sua interpretação sociotógica foi abundantemente comentada e discutida. Qualquer
que seja seu valor, não poderia, evidentemente, ser decisiva quanto à própria natureza da alma humana,
cnadora desses cultos
que os macacos antropóides ignoram... -
(2) Tem-se observado que. ao tempo de PITAGORAS. os delegados das cidades gregas da Asia Menor
puderam encontrar os das provincius ocidentais da India na corte do rei dos persas, senhor de umas e de
Outras.
1
6
7
nossa era. As doutrinas atribuídas aos pitagóricos do primeiro período, cujo conhecimento exige
freqüentemente a utilização de textos do neopitagorismo, são muita vez contraditórias, e é impossível
atribuí-las todas apenas a Pitá goras. Por outra parte, se é considerável a bibliografia de obras e artigos
con sagrados aos mistérios órficos, não é menos certo que nada sabemos de seguro quanto a seu
surgimento e organização; todas as informações propaladas a este respeito são duvidosas. No que se
refere aos mistérios de Elêusis, dados mais sólidos não deixam nenhuma dúvida quanto à organização a
eles relacio nada, e nem por isso é menos difícil representarmos com certeza as cerimônias que presidiam
às iniciações. Parece, contudo, que nessa cidade, onde as gran des famílias partilhavam as principais
funções religiosas, os iniciados eram mergulhados nas trevas, aterrorizados por visões de morte, depois
subita mente inundados de luz ofuscante; em suma, a cerimônia de iniciação com portava realmente o
simbolismo de um chamado a uma vida nova.
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era. As doutrinas atribuidas aos pitagóricos do primeiro período, cujo cimento exige freqüentemente a
utilização de textos do neopitagorismo, auita vez contraditórias, e é impossível atribuí-las todas apenas a
Pitá Por outra parte, se é considerável a bibliografia de obras e artigos con dos aos mistérios órficos, não é
menos certo que nada sabemos de seguro to a seu surgimento e organização; todas as informações
propaladas a espeito são duvidosas. No que se refere aos mistérios de Elêusis, dados sólidos não deixam
nenhuma dúvida quanto à organização a eles relacio e nem por isso é menos difícil representarmos com
certeza as cerimônias residiam às iniciaer P,"
- ae Iutclaçao com
- de uni chamado a urna vida nova
O NASCIMENTO n
1. °5Priznejj.
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JÔfljCOS
No momento em que florescia na Grécia a corrente mística de nasceriam os mistérios uma primeira forma
de pensamento racional apai na Jônia, por obra de homens cuja originaji e Poder de espírito cati de novo o
interesse dos filósof de Nietzsche a Heidegger Em vez de p do problema da alma, cuja individualidade é
misteriosamente Postulada mito Ó de sua origem e de seu destino osjônicos indagam sobre om como
naturalistas. Com eles o problema da situação do homem no unive fl é abordado exp!icitamet como irá
acontecer quand o pensarne humano (já com os Søfistas) tomar consciência por uma distância interior,
complexidade do ato de conhecer Nessa época, tudo se passa como se o es I do investig sobretudo
impressionado pelos aspectos variados universo o questi0n nele englob de imediato o ser humano
Parece deverse a Tales, o primeiro desses gran homens da Jônia, noção dephy no sentido de um Princípio
de Unidade que, sob o movimeni e a transformação das qualida diversas do real, produz e faz envolver
Coisas Pou importa assim, que Tales tenha assimilado essa phys ess elemento fundament à água, talvez
após refletir sobre as enchentes do Nilo O essencial é que tenha enunciado pela primeira vez, a exigênc de
u realidade natural objetiva - existente independentemente do homem e tenha aberto assim caminho a
toda investigação científica Em Anaximan dro, autor de um tratadoD natureza do qual resta um frag inte
uma realidade origjn indeterminada e ilimitada o
riao mundo por meio de urna ptura
CA?
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CAPÍTULO 2

O NASCIMENTO DA EXIGÊNCIA RACIONAL


1. Os primeiros jônicos
2. Heráclito e o devir
3. Parmênides e o Ser imóvel
4. Alcmeão de Crotona
5. Os quatro elementos de Empédocles
6. O Nous de Anaxágoras
7. Diógenes de Apolônia
1. Os primeiros jônicos
No momento em que florescia na Grécia a corrente mística de que nasceriam os mistérios, uma primeira
forma de pensamento racional aparecia na Jônia, por obra de homens cuja originalidade e poder de
espírito cativam de novo o interesse dos filósofos, de Nietzsche a Heidegger. Em vez de partir do
problema da alma, cuja individualidade é misteriosamente postulada no mito órfico, de sua origem e de
seu destino, osjônicos indagam sobre o mundo como naturalistas. Com eles o problema da situação do
homem no universo não é abordado explicitamente, como irá acontecer quando o pensamento humano (já
com os sofistas) tomar consciência, por uma distância interior, da complexidade do ato de conhecer.
Nessa época, tudo se passa como se o espí rito do investigador, sobretudo impressionado pelos aspectos
variados do universo, o questionasse, nele englobando de imediato o ser humano.
Parece dever-se a Tales, o primeiro desses grandes homens da Jônia, a noção dephysis, no sentido de um
princípio de unidade que, sob o movimento e a transformação das qualidades diversas do real, produz e
faz envolver as coisas. Pouco importa, assim, que Tales tenha assimilado essa physis, esse elemento
fundamental, à água, talvez após refletir sobre as enchentes do Nilo. O essencial é que tenha enunciado,
pela primeira vez, a exigência de uma realidade natural objetiva - existente independentemente do homem
- e tenha aberto, assim, caminho a toda investigação científica. Em Anaximan dro, autor de um tratado Da
natureza, do qual resta um fragmento, intervém uma realidade originária, indeterminada e ilimitada, o
dpeiron, de que provi- ria o mundo por meio de uma ruptura, seguida de diferenciações progressivas.
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Teve o pressentimento de uma evolução das espécies vivas, a partir do limo do mar; e também a idéia -
caberia ver nela a expressão filosófica das crenças órficas? - de uma espécie de pecado ligado à ruptura da
unidade original. Quanto a Anaxímenes, seu discípulo, crê que o elemento essencial é o ar, entendido
provavelmente num sentido que engloba tanto os ventos, os vapores e as nuvens, quanto o espaço e o ar
respirável. Cronologicamente, sua teoria é a primeira de todas aquelas, singularmente florescentes na
Antigüidade, que atribuem papel privilegiado a esse elemento indispensável à vida. Dela se originará a
noção de pneuma, sopro criador da vida e animador dos organismos.
Essas primeiras filosofias são de admirar pelo cuidado novo de uma visão racional da realidade, pela
reivindicação audaciosa de uma verdadeira explicação desligada dos mitos. Por esta razão, e
provavelmente sem que isto fosse deliberado, transformaram completamente a noção homérica da alma
que, de simples duplo do corpo visível, apenas capaz de contemplar as vicissi tudes da existência, se vê
elevada à dignidade de princípio cosmológico, fonte e motor do movimento e da vida.
Tal promoção implicava o abandono de sua individualidade após a morte, embora esta conseqüência, a
julgar por certos textos, tenha, provavel mente, escapado aos pensadores jônicos. Pois, se a alma
individual não é mais do que parcela da alma universal aplicada a um corpo particular e de idêntica
natureza, seu destino só pode ser o de a ele retornar após a morte, como a vaga retorna ao mar.
2. Heráclito e o devir
A filosofia jônica atinge o ponto culminante com o pensamento de Heráclito. Dele (morto talvez por volta
de 480 a.C.) possuímos certo número de sentenças lapidares, algumas das quais têm sua autenticidade
posta em dúvida( 1). Esse pensador genial, hoje considerado o pai do método dialético, teve uma intuição
das coisas que dele faz quase um moderno, tanto é verdade que nossa civilização, mutatis mutandis, se
increve sob o signo dessa mobili dade universal a que seu nome permanece ligado. A visão heraclítica do
mundo, e a de Parmênides, seu contemporâneo, constituem os dois pólos entre os quais o pensamento
ocidental oscilará constantemente. Pode-se dizer que suas doutrinas antagônicas se nos apresentam, na
perspectiva histórica em que nos achamos, como as colunas de Hércules de toda a nossa tradição.
Para Heráclito, a mobilidade, inscrita no próprio coração do universo, engendra incessantemente a
multiplicidade de suas formas. A energia funda mental, animadora e ordenadora desse eterno devir, tem
sede num elemento quente e seco, concebível unicamente em termos de movimento, a que se refe rem
todos os processos orgânicos e naturais, e que Heráclito chama de fogo. Chama de "caminho para o alto"
e "caminho para baixo" o que seriam as leis das transformações constantes do real. Admite-se que por
isso deve entender- se um processo de contração e de dilatação, a condensação extrema do fogo a
(li A interpretação dos pré-socráticos suscita ittúmeros probletttas filológicos delicados e. tnuifas vezes.
controvertidos. Encontra.se a tradução integral dos fragtstentos originais e doxografias referentes a 1-
IERACLITO (e também a PARMÊNIDES e a EMPEDOCLES). no volume de Yses BATTISTINI,
Troitco,t e,oporaio,. col. Les Essais, Galli,nard. 1955.
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produzir a terra, que ela própria se dissolve em água, enquanto as exalações desta última produzem o ar,
donde novamente nascerá o fogo. Continuamen te, as mudanças da temperatura acarretam mudanças de
estado dos corpos orgânicos e fazem passar os sólidos ao estado líquido ou gasoso. Parece, igual mente,
que Heráclito, teria tido a idéia do Eterno Retorno, presente nos estói cos e em Nietzsche ("O fogo,
progredindo, tudo julgará e arrastará"). Seus discípulos, pelo menos, lhe atribuíram a crença de que o
mundo, em datas regulares e fixadas pelo destino, é inteiramente absorvido pelo fogo de que emana, para
voltar a renascer, e isso eternamente.
E muito difícil fazer idéia do que poderia ser a "psicologia" de Herá dito, tão poeta quanto filósofo. E bem
verdade que existe, a esse respeito, significativo texto de Sexto Empírico('), consagrado a uma exposição
das idéias heraciticas por Enesidemo; não se sabe, contudo, até que ponto este último acrescentou de si
próprio. Atribui a Heráclito a idéia de que "o que nos rodeia é dotado de consciência". Semelhante
opinião parece confirmada por outros fragmentos do próprio Heráclito, que designam o fogo universal
como o Logos. Registra, também, Enesidemo que a razão humana, segundo Herá dito, se deve ao fato de
que "aspiramos a razão divina pela respiração". Se nos esquecemos durante o sono, para nos tornarmos de
novo conscientes ao despertar, é porque "durante o sono, quando se fecham as aberturas dos sentidos, o
espírito que está em nós perde o contato com o que nos circunda, e apenas conservamos nossa relação
com o meio através da respiração, como uma espécie de raiz". Ao despertar, esse espírito "olha pelas
aberturas dos sentidos como por janelas. e retoma, reunindo-se ao espírito que o circunda, a faculdade da
razão". Finda o fragmento por uma afirmação que testemunha a indissolúvel solidariedade postulada por
Heráclito, entre a alma universal e a alma humana:
"Assim como o carvão que muda e se torna ardente quando o aproximamos do fogo, e se extingue quando
dele o afastamos, a parte do espírito circunjacente que reside em nosso corpo perde a razão quando dele é
desligada, e de igual maneira recu pera uma natureza semelhante à do Todo, quando o contato se
estabelece pelo maior número de aberturas."
Como a existência da alma humana é atribuída a uma parte da reali dade universal, parece realmente que
os problemas a ela relacionados são, para Heráclito, os mesmos que ele se propõe relativamente a toda a
realidade. Se o homem é capaz de respirar, de sentir e de raciocinar, é porque no universo existem ar,
qualidades e razão. "O homem é naturalmente privado de razão"; "O homem não possui razão. Apenas o
ambiente é provido dela". E como as qualidades estão em oposição constante, deve-se deduzir que a
oposição é requerida pela própria sensação, ligada a certo tipo de relação estabelecida entre contrários.
Quanto à passagem da sensação ao raciocínio, assinala-se, para ele, por uma distinção entre a opinião e o
conhecimento. ("A multidão não medita sobre nada do que lhe acontece; e ainda, uma vez instruída, não o
compreende; apenas se imagina a respeito.")
O homem, esse microcosmo, combina em si os elementos que lutam no universo e, como eles, está sujeito
ao caminho para o alto" e ao "caminho
(1) Ade. math. (contra os que ensinam as ctênctas), VII.
11
Á
para baixo". As comparações heraclíticas entre a vida e o rio são por demais conhecidas para que seja
necessário insistir sobre elas:
Não podes descer duas vezes nos mesmos rios; pois novas águas correm sempre sobre ti. Descemos e não
descemos nos mesmos rios; somos e não somos.
Ser e não ser, eis o incessante devir; e, nesse fluxo universal, seres e coisas mudam de lugar eternamente:
"E são em nós a mesma coisa o que é vivo e o que é morto, o que está desperto e o que dorme, o que é
jovem e o que é velho; aqueles são mudados de lugar e se tornam nestes, e estes, por sua vez, são
mudados de lugar e se tornam naqueles."
O corolário desta absoluta mobilidade é a relatividade universal:
"As coisas frias se tornam quentes e o que é quente se resfria, o que é úmido vem a secar, o que secou se
faz úmido. A água do mar é a mais pura e a mais impura. Os peixes podem bebê-la, para eles é saudável;
não pode ser bebida e é funesta para os homens."
E como os contrários coexistem em toda parte, transformando-se uns nos outros; o próprio homem é
teatro de contradições permanentes:
"Não é bom para os homens obter tudo quanto desejam. A doença é que torna agradável a saúde; mal,
bem; fome, saciedade; fadiga, repouso."
O fogo e a água não podem equilibrar-se por muito tempo numa alma e, quando um dos dois elementos aí
adquire demasiada predominância, a morte sobrevéni:
"Para as almas é morte tornar-se água, e morte para a água é tornar-se terra. Mas a água provém da terra e
a alma, da água."
prazer:
A morte pela água espreita as almas que se deixam dominar pelo
"É prazer para as almas tornarem-se úmidas",
enquanto o fogo, manifestado pela tensão interior, lhes confere valor moral singular.
"A alma seca é a mais sábia e a' melhor."
Nem por isso é menos evidente que a excessiva predominância do fogo acarreta, igualmente, a morte. Os
fragmentos relativos a esse fim da alma são dos mais sibilinos e mal permitem conhecer-lhe os caracteres
específicos:
"Deuses e homens honram os que tombam na batalha. Os maiores mortos ganham as maiores porções."
Do fato de a alma humana ser identificada com a força animadora do universo, veio a idéia de inferir que
seu destino é voltar ao principio, ordenador
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do universo e que o ser humano nada mais é quando o fogo, sabedoria do mundo que lhe confere a razão,
o deixou;
Mais vale jogar cadáveres que esterco."
Certos fragmentos, contudo, parecem infirmar essa conseqüência:
"Os mortos têm sensações no Hades. Após a morte, aguardam os homens coisas que eles não esperam,
nem mesmo imaginam."
Se a consciência da complexidade dos problemas envolvidos pelo que os modernos chamarão "teoria do
conhecimento" está forçosamente ausente em Heráclito, não se poderia atribuir-lhe, sem risco de erro,
unia visão do mundo obnubilada por materialismo ingênuo, pois, se, para ele, tudo é matéria - embora
fosse necessário saber exatamente o que entende Heráclito por Logos (1) - trata-se de matéria em
movimento, a tal ponto que não dissocia os dois termos. E seu sentimento profundo, e até trágico, do
mundo como siste ma eterno de relações onde nada está em repouso levou-o, certamente, a pensar que o
que chamamos sensibilidade e razão, como produto de uma rela ção, não pertence exclusivamente mais
ao sujeito do que ao objeto - para dizer as coisas em linguagem moderna. Não poderíamos, porém,
estender-nos em conjeturas sem forçar as coisas. Por outro lado, é lícito observar que a escolha do fogo
como elemento primordial assinala progresso relativamente às especulações anteriores, pois, a água e o ar
não entram em todas as mudanças da natureza.
Conhece-se a importância que a filosofia hegeliana e o materialismo dialético voltaram a dar à visão
heraclítica do mundo, com sua preocupação comum de ultrapassar os limites, considerados por demais
estreitos, das evidências fundadas numa rígida aplicação do princípio de identidade. (*)
3. Parmênides e o Ser imóvel
Enquanto Heráclito fundara sua concepção do mundo na verificação
das mudanças qualitativas que nos oferece a percepção sensível, dissolvendo
F todas as formas do real no eterno devir, Parmênides é o autor de uma doutrina
que constitui a primeira reivindicação intransigente do pensamento racional, com a exigência da
identidade como único fundamento e critério da Verdade. Segundo ele, uma coisa é, ou não é. Para
salvaguardar a permanência, reque rida pelo exercício do pensamento através das variações dos dados
sensoriais, fez do devir pura aparência, sem consistência possível nessa realidade una e idêntica a si
mesma, tomada pela sua razão como evidência lógica irrecusável. Pois um objeto, para mover-se, deve,
ao mesmo tempo, estar e não estar em
(1) Só enisle uma sabedoria conhecer o Pensamento que dirige todas as coisas por meio de todas as
coisas.
'As fronteiras da alma não poderás atingi-las, por mais longe que, por todos os caminhos, te conduzam
teus passos: tão profunda é a Palavra que a habita.
(*) V., a respeito da influência de HORACLITO: Fêticien CHALLAYF. Pequena história das grandes
/tIvsss/is trad. port. de Lut, DAMASCO PENNA ei, B. DAMASCO FENNA, sol. 91 ,l "Atual Posta
gôgtcas". São Pauto. 1966, pí,gs. 19-20. (1. tI. O. 1'.)
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dado lugar. É impensável, porque é contraditório; e, uma vez que é contra ditório, é falso. Como o
pensamento exige isto: o que é (to eon), é absoluta mente, mister se faz afirmar que não há senão uma só
realidade, incriada e indestrutível, cuja unidade, plena e indivisível, exclui todo movimento real, isto é,
toda mudança real. Fora dessa verdade absoluta, não pode haver senão aparências. opiniões sujeitas à
ilusão e ao erro. Por isso, não se pode admitir nem geração, nem destruição, nem devir.
A escassez das fontes e seu caráter duvidoso não permitem saber que destino essa doutrina todo lógica
reservava ao domínio da psicologia, necessa riamente colocada do lado da ilusão própria àquela opinião
que Parmênides subordina à verdade. Pensa ele que o homem saiu do limo da terra e que a alma, enquanto
princípio de vida, é um composto de calor e de frio em equili brio. A proporção desses elementos num
indivíduo lhe determina o caráter do pensamento, e a velhice decorre de uma perda de calor. A sensação,
enquanto é, jamais pode desaparecer completamente; e o próprio cadáver experimenta o frio, o silêncio e
a obscuridade. Parmênides parece haver atribuído a diver sidade das sensações a eflúvios que trazem aos
poros as imagens dos objetos, e parece ter admitido que o sujeito também é, de certo modo, ativo, conside
rando que o olho, por exemplo, emite raios que entram em contato com os objetos exteriores, O que
parece certo é que a alma, enquanto princípio motor, foi de por Parmênides, de toda consistência
ontológica, em proveito da alma entendida como sujeito de conhecimento. Pois sua dignidade não está na
vida - que é movimento e não-ser - e sim no pensamento, que coincide com a existência absoluta.
4. Alcmeão de Crotona
O motivo de inspiração em Pitágoras revestia duplo aspecto: místico e científico. Um homem eminente,
Alcmeão, desenvolveu de tal maneira o últi mo deles, que pode ser saudado como fundador da
psicofisiologia experimen tal. Ligado à escola médica de Crotona - anterior, talvez, à confraria pitagó rica
nessa cidade - e discípulo de Pitágoras, era, a crer em Aristóteles, muito jovem ainda, quando o mestre
atingia idade avançada. Anatomista e fisio logista, dedicou-se à dissecaçãQ de inúmeros cadáveres de
animais. Permi tiram-lhe essas experiências descrever duas espécies de vasos no corpo hu mano: as veias
ph/éhes), que conduzem o sangue, e as artérias, que encon trou vazias de sangue. Essa distinção se perdeu
depois, e por muito tempo se confundiram todos os vasos. Alcmeão se entregou, igualmente, a pesquisas
sobre o funcionamento dos órgãos sensoriais. Neste campo, parece ter-se dedicado a investigações
sistemáticas, indagando, principalmente, a propó sito da visão, qual o papel desempenhado pelo próprio
olho e pela imagem nele refletida; e, a propósito do ouvido, que papel se poderia atribuir ao ar. Levaram-
no seus trabalhos a descobrir certos canais ou "passagens" (os nervos ainda não se consideravam como
tais) que unem os diferentes órgãos ao cérebro, e a reconhecer no cérebro uma função de primeira
importância, quando ficou patente que, por meio de lesões de certas "passagens", poderia impedir-se que
certas sensações lhe chegassem. Parece ter feito distinção -
não se sabe, porém, como - entre as sensações e o pensamento. Dc qualquer modo, teve o mérito de ver
que o cérebro desempenhava papel privilegiado, uma vez que. antes dele, se admitia que o sensorium
conimune era o coração. Hipócrates e Platão lhe conservarão a importante descoberta, mas Empédo eles,
Aristóteles e os estóicos retornarão à idéia antiga.
Alcrneão, que realizou também pesquisas embriológicas. investigou a natureza do sono e as condições
que presidem à saúde. Alguns dos seuS pontos de vista parecem integrar as doutrinas hipoeráticas. Pois
consideras a que a Díke, a justiça, representa o estado normal do mundo, que a saúde se deve ao equilíbrio
das potências (isonomia) e às justas proporções das qualidades (crase): úmido, seco, frio, quente, doce,
salgado... Quando algumas dessas qualidades predominam injustamente, instala-se o estado anormal, que
acarreta a doença.
A importância de Alcmeâo, pelo primado que estabelece da experimen tação sobre a teoria, da
antropologia sobre a cosmogonia, não poderia ser superestiniada: é provável que sua influência tenha
siclo considerável( ).
5. Os quatro elementos de Empédocles
Extraordinária figura é a de Empédocles, filósofo, poeta, médico e mago inspirado. Em sua obra lírica -
escrita em verso, a exemplo de Parmê nides - se reencontra a maior parte dos elementos presentes nas
doutrinas de seus predecessores: a água, de Tales, o ar, de Anaxímenes, o fogo e o devir, de Heráclito, o
Ser Absoluto de Parmênides, num contexto de inspiração, por outro lado, estreitamente aparentada à da
corrente órfico-pitagórica. Pois. sua concepção de alma, onde reaparece a intuição órfica da vida, diverge
da concepção, inteiramente cosmológica, dos jônicos. Ele vê na alma uma reali dade decaída de uma
Idade de Ouro, e cuja essência, origem e destino são sobrenaturais. As almas, "demônios imortais", foram
expulsas da morada dos felizes em conseqüência de um erro nascido do Odio. Precipitadas sobre a terra,
entram no turbilhão dos elementos, obrigadas a transmigrar de um corpo a outro, até a libertação final.
Para renascer ao lado dos deuses, libe rado da roda dos nascimentos, é preciso viver em pureza e
ascetismo. Empé docles acredita lembrar-se de suas existências anteriores: "Já fui, outrora, menino e
menina, moita e ave, mudo peixe do mar." (Frag. 117.) Estende a metempsicose também às plantas,
primeiras criaturas vivas surgidas cá embaixo, e invoca a lei da transmigração das almas para condenar o
sacrifício dos animais, quer para oferenda aos deuses, quer para alimentação. Esta concepção mística da
alma, convocada a tão alto destino, vem acompanhada de visão muito naturalista do mundo, mistura de
quatro elementos: o fogo, o ar, a terra e a água. Esses elementos, "raízes" de todas as coisas, ao mesmo
tempo materiais e dotados de consciência, se agregam e se desagregam inces santemente, sob a dupla
ação do Amor e do Odío, e condicionam as quali dades fundamentais dos humores: quente, frio,.seco,
úmido. Há, pois, na
Ii Quan tu Se r,Ililrrttaç(Iee Sue urúfjeas e SiNt rúftc,te. ef. Jt,hrt RL'RNET, L 'aurore dr Ia p/,,Io.vophu 'e
utltçüu frattueea de Atttt. RLVMONe P.ttie, 'ueut. SUS. puxe. 225227.
14
15
origem, pluralidade de princípios imutáveis e específicos. Para conciliá-la com a unidade, Empédocles faz
intervir sua teoria da mistura, atribuindo a esses elementos fundamentais - invariáveis em quantidade e em
qualidade - o caráter de agrupar-se em virtude de duas leis: a atração dos semelhantes pelos semelhantes e
a repulsão dos contrários. Essas leis são por ele invocadas em favor de uma forma de evolucionismo, a
qual não vemos muito bem como conciliar com seus pontos de vista místicos sobre a alma: pois relaciona
com os quatro elementos a vida e a forma dos corpos, e ao limo elevado a certa temperatura, a capacidade
de produzir animais. No início, a Terra era povoada de monstros:
"Sobre a Terra nasceram jnúmeras cabeças sem pescoço, e braços vagavam nus e sem espáduas. Olhos
vagueavam, desprovidos de frontes." (Frag. 57.)
Ao acaso dos encontros, esses corpos incompletos tendiam a unir-se em virtude da lei cIa afinidade, e
muitas criaturas
nasceram com rostos e peitos voltados em direções diferentes; algumas geradas de touro com face de
homem; outras, ao contrário, geradas por homens com cabeças de touro, e criaturas nas quais a natureza
dos homens e das mulheres se mistu ravam, e providas de partes estéreis." (Frag. 61.)
Entre esses primeiros seres, houve os que foram, casualmente, capazes de conservar a vida e reproduzir-
se. Inicialmente haste sólida e unida, a coluna vertebral fragmentou-se em vértebras por desarranjos
acidentais e fraturas, enquanto, através do corpo, no decorrer de sua gênese, correntes de água criavam as
cavidades abdominais, os intestinos, o sistema urogenital, e uma corrente de ar centrífuga formava as
narinas. Os órgãos da respiração e da nutrição foram os primeiros em surgir nas primeiras formas
animais; vieram depois os órgãos sexuais, diferenciados segundo a quantidade de calor. O papel deste
último é essencial à vida; sua diminuição acarreta o sono; seu esgotamento, a morte. Devem-se a
Empédocles, que se dedicou à dissecção, as primeiras noções positivas de embriologia. Descobriu que o
embrião se nutre pela placenta e, não, como cria Alcmeão, pelo corpo todo. Na matriz, o embrião está
envolvido numa membrana que contém também as águas, o âmnio (o nome foi conservado). A alma se
forma com o embrião e é insepa rável do sangue:
"Nutrido de altas vagas do sangue estridente, o coração traz aos homens o pensamento nas espirais de seu
fluxo. O sangue que banha o coração é pensamento." (Frag. 105.)
Como todas as partículas infimas das coisas, ela se move pelos canais denominados poros (pómi).
Admitindo ser o coração a sede das sensações, Empédocles representa um recuo em relação a Alcmeão; o
coração é também, para ele, por não distinguir entre sentir e pensar, a sede da vida mental. A formação
dos músculos resulta de uma mistura igual dos quatro elementos. Uma superabundância de fogo e de terra
produz os ligamentos (neíira), e uma superabundância de água e de terra, os ossos. Quanto às unhas, são
neüra que receberam ar.
Existe um texto muito significativo de Empédocles (Frag. 100) a res peito do ar no fenômeno da
respiração. Viu muito bem que esta interessa a todo o organismo, por intermédio dos poros disseminados
na superfície da pele, e não apenas aos órgãos incumbidos dessa função. Para explicar que o ar penetra
pelos poros ao retirar-se o sangue para o interior do corpo, e é expulso quando o sangue retorna à
periferia, recorre Empédocles à analogia com uma clepsidra mergulhada em água. Esta, quando o tubo
superior está fechado, não pode entrar pelos pequenos orificios de baixo, mercê da presença do ar; mas,
assim que o dedo obstrutor do tubo se ergue, a água penetra à medida que o ar escapa. Desempenham os
poros importante papel na concepção de Empédocles. Pois, é por eles que se transmitem as partículas que
se destacam dos objetos para suscitar a percepção. Os órgãos sensoriais correspondem a esses objetos, em
virtude da afinidade que une seus elementos comuns. Pelos eflúvios emanados e captados, uma porção da
coisa percebida vem unir-se à mesma substância contida no sujeito percipiente. Em outros termos, o
conhe cimento é atribuído por Empédocles (cujos fragmentos revelam um senso patético das
"correspondências" entre tudo que existe) a uma ação do semelhante sobre o semelhante:
"Pela terra, pela água, pelo ar em nós, conhecemos a terra, a água e o éter divino, e pelo fogo, o fogo
devorador, e o amor, pelo amor, o ódio, pelo ódio maldito." (Frag. 109)
É o produto de uma relação de simpatia entre as emanações e os órgãos receptivos. O que é aparentado às
partes constitutivas do indivíduo produz nele, ao mesmo tempo que o conhecimento, um sentimento de
prazer. O que lhe é oposto, origina a aversão. Essas afinidades explicam, segundo ele, todas as
percepções. No que respeita à visão, existe no universo uma luz aderente a todo objeto sensível, cujos
raios atingem o olho. Tais emanações luminosas, formadas de partículas ínfimas, têm afinidade com a luz
interna do olho. Quando um raio toca o olho, as partículas do fogo interno deste saem ao encontro das
partículas do raio e se produz a imagem. De sua atribuição de partículas à luz, já inferia Empédocles ser
necessário um certo tempo para que ela se desloque dum ponto a outro. No referente ao som, é ele
captado pelo labirinto do ouvido e depende dos poros ao longo dos quais se move. Empédocles descreve a
cartilagem do caracol, a qual julga ser, no ouvido interno, o próprio órgão da audição.
Como já observei, a dificuldade é conciliar, nesse pensador genial, a concepção mística da alma e seus
pontos de vista naturalistas. Pois não é muito de duvidar que o Amor e o Odio, são, para ele, tão
corpóreos quanto os demais componentes do universo: o fogo, o ar, a terra e a água. O indivíduo é gerado
pela união transitória de tais elementos, daí resultando que a dosagem deles explica suas qualidades
particulares. Pode-se ver nisso como que o rudimento de uma caracterologia: a idéia de que o corpo, sua
estrutura e seu funcionamento influenciam a vida psíquica e mental.
A teoria de Empédocles, sob seu aspecto hiozoísta e alquimista, exerceu, por certo, grande influência. No
plano médico, voltamos a encontrá la na escola hipocrática, sob a dupla forma do princípio homeopático:
sitnilia similibus curantur, e da teoria dos quatro temperamentos.
16
17
6. O Noõs de Anaxágoras
À idéia dos jônicos de que a matéria contém em si mesma a força que a anima, opõe Anaxágoras( 1) uma
concepção que preludia o idealismo platônico:
a de um princípio ordenador do universo, independente dos elementos que o compõem e do que ele
contém. Este princípio é o Nous, isto é, a Inteligência ou o Espírito, embora convenha, sem dúvida, não
atribuir a este termo o sentido absolutamente imaterial que reveste desde Platão. Pois se Anaxágoras
pretende realmente significar com ele uma espécie de razão ou de inteligência universal, um princípio de
organização cósmica, é sob a forma de um fluido universal.
Identifica esse Noíis à divindade, e sua cosmogonia atribui-lhe a forma ção de mundos inumeráveis. E
esse fluido cósmico, em ação por toda parte, que confere à matéria um movimento giratório do centro
para a periferia e anima tudo quanto vive: plantas, animais e homens. Entre essas diferentes formas de
vida, não vê Anaxágoras senso diferença de grau. Parece admitir que as próprias plantas são providas de
consciência, experimentam prazer quando crescem e sofrem quando as folhas tombam( Vale dizer que
não distingue, aparentemente, a consciência das funções vitais e que a generali zação deve entender-se ao
nível do movimento e dessa atividade que hoje chamamos biológica. Parece não se ter proposto o
problema de urna consciêri cia própria ao ser humano como tal, origem de sua ação especifica. Por isso, é
difícil compreender como este princípio ordenador - a um tempo espírito, sopro, alma, conhecimento -
pode, simultaneamente, I separado do mundo e explicar o movimento e a vida. Os seres vivos, originários
do limo da terra, estão plenos do espírito que toma consciência dos fenômenos mediante os órgãos
imperfeitos dos sentidos. Parece que o desenvolvimento maior ou menor do Noíis em suas manifestações
particulares deva ser atri buído à mistura dos elementos constitutivos dos organismos. Porque. diz-nos
Anaxágoras, se ele permanece separado das substâncias que a ele se misturam sem cessar no universo,
'Todas as outras coisas participam em certa medida de cada coisa, enquanto o Noãs é infinito e autônomo,
e a nada se mistura, mas é só, e só ptr si." (Frag. 12.)
ele nem por isso deixa de estar ligado a esses organismos que variam em função dos elementos que a ele
se misturam. Assim, nele, como em Empé docles, aparece certa noção da influência da vida orgânica
sobre o psiquismo. A sensação decorreria de modificações sobrevindas no organismo por contatos ou por
impressões com elementos diferentes. Pois Anaxágoras, em oposição à concepção empedóclia da
percepção do semelhante pelo semelhante, introduz a idéia de uma percepção do contrário pelo contrário.
Do princípio de que "em cada coisa há uma porção de cada coisa" (Frag. 11), deduz que qualquer
organismo contém todas as diferenças possíveis de qualidade e, por conse guinte, elementos opostos aos
de todo objeto possível de percepção. Assim., a visão, por exemplo, é produto de uma imagem projetada
sobre a parte da
(1) Nascido em Clazômena, talvez por volta de 460 a.C., ANAXÂGORAS foi o primeiro filósofo que se
fixou em Atenas. Daí veio a ser enpulso mais tarde, por impiedade, por obra da instigação dos adversártos
de PERICLES, de quem era mestre e amigo (PLATAO, Phv 269 Médico, dedicou-se a pesquisas sobre os
animais e as plantas, muito provavelmente a dissecções.
(2) D,e Fragmente der Vorsokrat,ket. de Hermann DIELS. 2t ed., fragmentos 46 a 117, Berltm, 1906.
pupila de cor oposta à do objeto percebido. Conhecemos o frio pelo quente, o fresco pelo salgado, o doce
pelo amargo, em virtude de contraste entre os elementos coexistentes, em grau diverso, no sujeito e no
objeto. Anaxágoras observa, a esse propósito, que a percepção se torna dolorosa quando sua fonte é muito
intensa, para deduzir daí que "toda sensação implica sofrimento", atenuado pelo hábito(').
7. Diógenes de Apolônia
Segundo Diógenes de Apolônia( procedente da escola de Anaxí menes, o ar é o princípio universal do
cosmos, cuja coesão assegura; é, ainda, o sopro vital presente no indivíduo como a fonte unificadora de
suas funções fisiológicas e psíquicas.
Tão médico, quão filósofo, é na experiência imediata que Diógenes encontra as "grandes provas" dessa
supremacia do ar:
Os homens e os outros seres animados vivem do ar, respirando-o, e ali estão sua alma e sua inteligência...;
porque se lho retiramos, morrem, e sua inteligência se extingue." (Frag. 4.)
Eternamente móvel, o princípio primeiro está na origem de todo movi mento. Por um processo de
rarefação e de condensação, produz a diversidade das coisas e dos mundos, em número infinito. Suas
múltiplas transformações bastam para explicar os fenômenos variados do universo. Diógenes teve clara
mente essa idéia, que Leibniz desenvolverá: há sempre entre as coisas um elemento diferencial, por
menor que seja, e sua semelhança jamais constitui identidade perfeita:
não é possível às coisas... serem exatamente iguais umas às outras até o ponto de se tornarem, uma vez
mais, a mesma coisa." (Frag. 5.)
A alma dos viventes é composta de um ar mais quente que o da atmos fera ambiente, mas muito mais frio
do que o que envolve o sol,
esse calor não é o mesmo em quaisquer duas espécies de criaturas vivas, nem, por conseguinte, em dois
homens quaisquer; não difere muito, porém, na medida apenas em que isso seja compatível com sua
semelhança." (Frag. 5.)
Sob a provável influência de Anaxágoras, Diógenes de Apolônia atribui a esse "ar" todos os caracteres do
Noi E "algo que considera como um deus" (Frag. 5), ao mesmo tempo "grande e poderoso, e eterno e
imortal e de grande saber" (Frag. 8).
Parece que Diógenes terá reduzido todos os fenômenos fisiológicos e psíquicos a condições do ar
circulante com o sangue no organismo. Se
(1) Quanto à donografia sobre a percepção segundo ANAXÁGORAS, cf. John BURNET. op. c
págs. 314-16. -
(2) Nascido por volta de 469 a.C., contemporâneo de ANAXAGORAS, DIOGENES de Apolônta, que
ensinou em Atenas, é autor de um tratado Da natureza, que comporta, provavelmente. uma meleorologta e
uma antropologia, e do qual restaram alguns fragmentos.
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encontra obstáculos, se é comprimido no peito, o pensamento se torna mais difícil. As percepções são
tanto mais claras quanto mais seja o ar seco e puro, enquanto sua umidade, que preside à embriaguez, ao
sono, às pletoras, é prejudicial também ao exercício do pensamento. Particularmente importante é o papel
do ar que envolve o cérebro e o coração, pois esses órgãos são sede de sua união com o sangue no sistema
vascular, e essa união preside às funções sensoriais. Diógenes ofereceu, dos vasos sanguíneos, sobretudo
das artérias, uma descrição que constitui importante documento dos conhecimentos anatômicos da época(
1). Julgava que o exame da língua, situada no entronca mento dos vasos, pode fornecer preciosas
indicações sobre a maneira por que o ar e o sangue se misturam no organismo. Uma mistura harmoniosa
se lhe afigurava a condição do bem-estar e da saúde, e o excesso de sangue, fonte de perturbações
patológicas.
É provável que a noção de pneilma, no sentido de fluido vital idêntico ao ar, já presente na escola
hipocrática de Cós, deva muito à obra de Dióge nes, ela própria uma retomada, mais elaborada, da teoria
de Anaxímenes. E provável também que as idéias de Diógenes de Apolônia (por intermédio de Diocles de
Caristo, contemporâneo de Zeno de Cítio) irão influenciar o fundador do estoicismo, para quem a
doutrina do pneüma adquire impor tância essencial.
(1) ARISTÓTELES, IAs A,s., 1, 2, 311 b 30.
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CAPÍTULO III
A PSICOLOGIA MÉDICA NA ANTIGUIDADE
1. As origens da medicina hipocrática
2. As causas e a cura das doenças
3. A energia vital e o papel do cérebro
4. O homem no universo
5. A sabedoria hipocrática
6. Aspectos psicoterapêuticos
7. De Hipócrates a Galeno
1. As origens da medicina hipocrática
Embora não se trate, aqui, de história da medicina, não é muito fácil ignorar o movimento ao qual
permanece ligado o nome de Hipócrates e que encerra, a respeito do homem, na época de Platão,
conhecimento científico e psicológico em que se descobrem elementos de psicoterapia, de caracterologia
e, até, de fisiognomonia.
A medicina anterior na Grécia era sacerdotal. Píndaro relata que "o herói curador de todas as doenças,
nutrido por Quiron em seu antro de rochas", Asclépios (o Esculápio dos latinos), cujo culto remonta,
provavel mente, a uns dez séculos antes de nossa era, tratava por meio "de doces feitiços", de "poções
benfazejas", por aplicações ou pela cirurgia( Os templos que lhe seriam mais tarde consagrados, em Cós,
Trica, Cnido e Epidauro, tornaram-se lugares de peregrinação e neles se encontraram an ,nas ou ex-votos
dos doentes curados. Liga-se o movimento hipocrático a essa medicina sacerdotal, mas dela se distingue
ao mesmo tempo, por uma preocu pação de racionalidade comparável à da filosofia em relação ao mito.
Não se duvida, aliás, de que tenha sofrido, em suas origens, influência das escolas filosóficas, a dos
jônicos e, com certeza, dos pitagóricos, além das contribui ções orientais, difíceis de determinar,
particularmente do Egito e da India. Por outro lado, é bem evidente que a escola hipocrática incorpora as
aquisições de certa medicina clínica praticada desde muito tempo em Cós e Cnido, embora envolta em
magia.
(1) Terceira Neméiae Terceira Putica.
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Mescla-se a lenda constantemente à história no que concerne à figura do próprio Hipócrates('), e o
problema histórico do "pai da medicina" suscitou numerosos trabalhos. Não importa muito, porém, seja
ou não ele próprio o autor dos perto de setenta tratados do Corpus hippocraticum a nós retransmi tidos
pela escola de Alexandria, e cujas datas não é possível determinar, O essencial é que constitui documento
excepcional da vida médica e científica no século V a.C. Porque o Corpus, a despeito de certos textos
discordantes, apresenta constantes referentes à orientação da medicina e aos tratamentos recomendados
em certos casos.
2. As causas e a cura das doenças
A Medicina antiga, por exemplo, nos ensina como se formou a famosa teoria hipocrática dos humores,
exposta na Natureza do homem, que atribui ao ser humano - considerado como um todo submetido ao
ritmo quaternário que preside a todas as coisas( - quatro humores: o sangue, a fleuma (chamada também
linfa ou pituíta), a bílis amarela, a bílis negra ou atrabílis, cada uma das quais relacionada a um órgão
particular: o coração, o cérebro, o fígado, o baço. Sabe-se que essa teoria serviu de fundamento à outra,
caracte rológica, dos quatro temperamentos: o sanguíneo, o linfático, o bilioso e o atrabiliário (conforme
predomine um dos quatro humores), considerados como o produto da reação do organismo ao meio, algo
como o ponto de junção entre o indivíduo e o universo. O equilíbrio dos humores é a crase, e sua ruptura
(doença), a discrasia. O equilíbrio comprometido possui uma tendên cia natural para restabelecer-se, por
meio de uma operação de química orgânica que modifica, corrige, "coze" os humores para expulsá-los (a
cocção). Os humores cozidos são expelidos pelo suor, as expectorações, a urina, as fezes, os vômitos.., e
esta é a crise, que ocorre em dias fixos, chamados dias críticos. Por falta disso, pode verificar-se um
depósito em alguma parte do organismo, que produz uma doença local, e esta, de certa forma, resolve a
doença geral do organismo (abscesso, articulação tumefacta, gangrena local...).
A harmonia é, assim, considerada como a condição da saúde, e a cura das doenças como obra da natureza;
o médico não pode senão ajudá-la em sua luta para restabelecer o equilíbrio comprometido. Esse
desequilibrio pode ter causas diversas: internas (superabundância de humores, de preocupações ou estafa)
e externas (súbita mudança de clima, presença de miasmas no ar ou traumatismo acidental). Mas o
hipocratismo atribui papel essencial ao "terreno", muita vez considerado decisivo para a evolução de uma
doença. A escola atribui grande importância ao regime, que deve ser adaptado a cada caso, levados em
conta hábitos instalados no doente e condições particulares:
(1) É lícito admitir que HIPÓCRATES nasceu em 4é0 a.C. na pequena ilha de Cós (uma das Espórades).
onde seu pai, sacerdote de Asclépios, lhe ensinou a medicina; e que, no decorrer de longa existência
entrecortada de viagens de estudos ou de excursões de conferências ao Egito, à Grécia e à Asia Menor.,
assegurou pelo seu gênio o triunfo da escola de Cós sobre sua rival de Cnido. Teria aprendido retórica
com GORGIAS, repudiando-lhe o agnosticismo; e teria conhecido diretamente DEMOCRITO,
SOCRATES e EURIPIDES. Certos autores lhe atribuem a salvação de Atenas, por meio da instalação de
fogueiras nas ruas da cidade, quando da epidemia de peste em que pereceu Péricles, em 429 a.C.
(2) Há quatro pontos cardeais, quatro estações, quatro idades na vida, quatro etemenlos fundamentais no
universo.
idade, sexo, temperamento, resistência, etc. A medicina hipocrática não ignorava tampouco que certos
indivíduos são "alérgicos", como dizemos hoje, a determinados alimentos.
O tratado Regime das doenças agudas contém uma polêmica com a escola rival de Cnido. Esta é criticada
pela falta de amplitude e segurança no pensamento, o recurso a remédios fáceis e uniformes (muitas
purgações, leite e soro lácteo...), incapacidade de elevar-se acima dos fatos imediatamente dados e de
prever os sintomas do paciente. Pois, a escola hipocrática se preocupa em estabelecer um diagnóstico da
doença e tem por melhor médico aquele que se mostra capaz de prever.
Em suma, o tratamento requer um saber empírico, fecundado pela observação e pela reflexão. O adágio
da escola é freqüentemente lembrado:
"Faz-se mister ligar a medicina à filosofia, pois o médico filósofo está em igualdade com os deuses."
Trata-se, no caso, de certa filosofia, imbuida de um simbolismo realista dos números, que atribui
importância essencial a certos ritmos, particularmente quaternários e septenários, e que não separa o
homem-microcosmo do Universo. O ser humano é concebido como ligado ao cosmos por todas as fibras
de seu ser físico e psíquico. O Corpus quase não assinala essa ruptura com o mundo que caracteriza o
surgimento da consciên cia humana e que, naquela época, os sofistas foram os primeiros em pôr em
evidência.
3. A energia vital e o papel do cérebro
De maneira geral - ainda que inserida num contexto metafísico - uma modalidade de empirismo é
preconizada, atenta à influência exercida sobre o ser humano pelo clima, as estações, a natureza do solo, e
em geral por todos os elementos do mundo ambiente. O ar, muito particularmente, é considerado como
elemento essencial, e seu papel objeto de uma obra, Os ventos. O motivo é análogo ao que existe em
filosofia desde Anaxímenes: a importância primeira do ar, que devemos respirar para viver.
Os organismos vivos são condicionados por três elementos: a nutrição, a bebida e uma energia vital
invisível (opneíima), cujo papel é primordial tanto no homem como no universo. Enchendo "o intervalo
imenso que separa a terra do céu", essa força vital anima e faz moverem-se os corpos celestes, assegura a
coesão e os movimentos de tudo quanto existe. Alimento do fogo, ela está presente até na água do mar,
que doutra forma não poderia conter os animais aquáticos. O princípio fundamental é o ar fora do corpo e
o sopro vital dentro dele; ele dá vida aos homens e aos outros seres e organiza as defesas naturais contra
as doenças(').
A importância atribuída ao ar pela escola hipocrática está diretamente ligada ao papel que, segundo ela, o
cérebro desempenha no organismo. No tratado da Doença sagrada, as teorias que localizam a inteligência
no coração ou no diafragma são refutadas em favor do cérebro, verdadeira sede da inteli
(1) Esse principio de "força vital" (que DESCARTES rejeitará, para atribuir todas as funções do orga
nismo a fatures mecânicos e físico-químicos) leva a admitir a intervenção de "imponderáveis" puramente
qualita tivos e, por conseguinte, não mensuráveis.
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gência. Dele é que partem ramificações para todas as partes do corpo e é para ele, igualmente, que
convergem os diversos canais dos sentidos. Ele influencia os humores do corpo; se ferido, a conseqüência
é a paralisia ou a morte; se demasiado úmido, a confusão dos sentidos acarreta a loucura. Ora, se o
cérebro é investido de tão alta dignidade pela escola hipocrática, isso se dá na medida em que o ar, por
meio dele, comunica sua natureza ao organismo, portanto na medida em que desempenha o papel de
intermediário. Basta substituir o ar pelo "impulso vital", por exemplo, para que a concepção pareça mais
profunda do que ingênua.
4. O homem no universo
No tratado das Carnes, o autor deduz, do esboço de uma espécie de cosinogonia, os conhecimentos
anatômicos e fisiológicos indispensáveis ao médico('). Trata-se, ali, do fogo cósmico, do "fogo inato" que
possui a inteli gência de tudo, que vê e ouve, que conhece o presente e o futuro. Por ele se explicam o
nascimento das diversas partes do mundo, a formação dos seres vivos e também a natureza da saúde e da
doença. Porque o homem, já que é formado de partículas de elementos que compõem o universo, pode ser
encarado como um microcosmo. Ao fim da obra, uma teoria setenária se liga estreitamente às
espeçulações pitagóricas sobre os números: a resistência do homem normal ao jejum é de 7 dias, as
crianças possuem dentes ao cabo de 7 anos, etc. Dois pequenos tratados: o Feto de sete meses e o Feto de
Oito meses, confirmam a virtude atribuída a esse número; igualmente o das Semanas, onde uma
organização setenária intervém na formação do mundo, no desenvolvimento do ano, na estrutura
geográfica da terra, na disposição do corpo humano.
O conhecimento da saúde e da doença se reduz ao das relações entre os elementos que compõem o ser
humano e entram em ação no comércio deste com o universo, uma vez que a doença nasce de seu
desequilíbrio; e é conside rando que a alimentação e o exercício atuam sobre tais elementos, aumen tando
ou diminuindo o poder de alguns dentre eles, que a escola lhes atribui tamanha importância. Representam,
a seus olhos, fatores cuja influência é mais facilmente controlável que a de outros (climáticos ou
geográficos, por exemplo) cuja ação sobre o ser humano é igualmente admitida. Numerosas anotações
constituem como que o embrião de uma climatologia; relacionam- se com a ação do clima que, regular e
equilibrado, favorece a beleza física e exerce influência feliz no caráter; com as estações que, quando
nitidamente marcadas, permitem a formação de maior variedade de tipos humanos, ao mesmo tempo que
reforçam a robustez do organismo, sua energia natural e a
(1) O cuidado de informação da escola hípocrática é surpreendente em amplitude, na medtda em que se
pode julgar por esta passagem das Epidemias: "No que concerne às doenças, eis como as distinguimnos.
Nosso conhecimento se apóia na natureza humana universal e na natureza própria de cada pessoa: na
doença. no doente. nas substãncias administradas, em quem as administra e no que se pode daí concluir de
bem ou de mal: na consti tuição geral da atmosfera e nas constituições particulares, segundo as
diversidades de céu e de lugar: nos hábitos. regime de vida, ocupações, idade de cada um: nas palavras,
nas maneiras, nos silêncios, nos pensamentos, nos sonos, nas insônias, nas qualidades e momentos dos
sonhos: nos gestos desordenados das mãos, vos pruridos e nas lágrintas; nos paroxismos, nas fezes, urina,
escarros e vômitos: na natureza das doenças que se sucedem umas às Outras e nos depósitos anunciadores
de ruína ou de crise: no suor. no resfriantenlo. no arrepio. na tosse. no espirro, no soluço, no arroto, nos
gases, sitenciosos ou ruidosos, nas hemorragias e nas hemorróides. Esses dados, e tudo quanto permilens
captar. devem ser examinados com cuidado"
acuidade de inteligência; com suas variações, que repercutem no processo de formação dos indivíduos,
diferente no inverno e no verão, durante as secas ou as chuvas; com as diversas conseqüências de um
clima uniformemente frio ou quente. Os fatores sociais também não foram ignorados pela medicina hipo
crática. Observa que o trabalho físico e certos hábitos desempenham papel na saúde ou na doença; e, até,
que as instituições e as leis, segundo o valor do ideal que propõem, têm repercussões psicológicas. A este
respeito, apurou-se uma diferença entre habitantes de cidades gregas em terras asiáticas, que se
administram livremente, e os de Estados submetidos a autoridade despótica (tratado Ares, águas, lugares).
5. A sabedoria hipocrática
Em suma, os tratados do Corpus consideram o homem solidário, sob o duplo aspecto físico e moral, com
seu meio natural e social. Pôde-se qualificar de humanismo médico a doutrina daí resultante, uma vez que
não comporta somente o enriquecimento de conhecimentos particulares dentro de uma técnica, mas
também um ideal do homem a pron'over e uma verdadeira sabedoria humana a salvaguardar. O médico.da
escola é instado a jamais perder de vista o bem e a utilidade de seus semelhantes, a evitar empreender o
que quer que lhes possa ser nocivo. O autor dos Preceitos recomenda aos médicos "não se entregarem ao
fausto, desprezarem o supérfluo e a fortuna, assistirem doentes às vezes gratuitamente, preferindo o
prazer do reconheci mento ao de um luxo frívôlo. Se tiverdes de socorrer um estranho ou um pobre, são
estes os primeiros a quem deveis ir. Não se pode amar a medicina sem amar os homens"( 1). Eis aí um
ideal muito alto de prática médica e, até, do que chamamos hoje "respeito à pessoa humana", como bem
testemunha o texto do famoso juramento(
O que tem primazia e orienta o comportamento médico é a fé numa ordem universal benfazeja, o senso
das limitações humanas. O médico hipo crático nada deve empreender temerariamente. Preferirá abster-se
em certos casos a causar prejuízo. Não prejudicar é o primeiro de seus deveres. Pois, admite-se que o ser
vivo, pela intervenção de uma razão imanente ao instinto, segrega de algum modo defesas naturais
regeneradoras. A phjsis, na escola hipocrática, tanto designa a natureza individual (é então o que
chamamos constituição) quanto a natureza humana em geral, caracterizada pela ativi dade de um agente
desconhecido que cura as doenças( Se, porém, a
(1) Citado por Pierre GALIMARD, Hippoerate es/a mradilion pvthagtseicienne, Paris, 1939, pág. 62
(segundo a tradução de GARDEIL, 1, 455).
(2) "Juro que com todas as minhas torças e em plena consciência, manterei este juramento: considerarei
como pai aquele que me ensinou medicina e partilharei com ele ludo de quanto tenha necessidade para
viver, Terei seus filhos como irmãos. Prescreverei aos doentes o regime que lhes convém, com todo o
saber e discernimento de que sou capaz e me absterei, em relação a eles, de qualquer intervenção
malfazeja ou inimlil. Não aconselharei jamais a ninguém o recurso ao veneno e o recusarei aos que mo
peçam. Não darei a mulher alguma remédios abortivus. Conservarei minha vida pura e santa, bem corno
minha arte... Ao visitar um doente, não pensarei senão em ser-lhe útil. cv latido it,da otá ação toluntária e
qualquer vootalo lavei iii coltt tttullieres ou tootetis, livres ou escralos Tudo quanto veja ou ouça na
sociedade, no exercício, ou até fora do evercicio de minha profissão, e não deva ser divulgado. manterei
em segredo, como coisa sagrada."
(3) "E a natureza que cura as doenças., Ela encontra, por si mesma, os caminhos cunvenientes, sem
necessidade de ser dirigida por nossa inteligência. E ela que nos ensina a abrir e fechar os olhos, a mover
a língua e
outras coisas semelhantes, sem ajuda de um mestre. Ela se basta para uma multidão de coisas
necessárias." (Citado
pelo Dr. CARTON, L 'essermsiel dela doett'mne d'Hippsaerair, extrait de ves oeuvrrs, Paris, 1933, pág.
53.)
24
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natureza é a grande curadora, a utilidade da medicina está no concurso importante e, por vezes, decisivo
que lhe pode trazer. Em suma, a idéia de solidariedade entre as partes do organismo, a preocupação com o
todo como estrutura do ser vivo, e as condições postuladas de seu equilíbrio e de seu desenvolvimento
indicam a existência de leis naturais a respeitar.
No tratamento das doenças, a preocupação com as condições gerais de higiene (alimentação, banhos,
passeios, exercícios...) desempenha papel preponderante. O regime salutar trata disso e a Medicina antiga
declara que a arte médica poderia ser inteiramente redescoberta a partir da reflexão acerca da alimentação
conveniente ao homem são e ao homem doe'nte.
Semelhante respeito às atividades naturais se alia a grande discrição no que tange a remédios; e a
preocupação permanente do médico deve consistir em colocar o organismo em condições de exercer, da
melhor maneira, seu trabalho espontâneo(').
Como tudo quanto existe no universo, as doenças são, ao mesmo tempo, divinas e naturais. A epilepsia
não foge a esta regra; o tratado da Doença sagrada contesta seu caráter excepcional e seu tratamento pela
magia. Deus, que é fonte de pureza, não pode contaminar o homem e é ímpio recorrer a tais práticas. A
epilepsia tem por causa um movimento inabitual da fleuma, impedindo que o ar - portador da inteligência
- chegue ao cérebro, órgão central da vida psíquica. Outra explicação dessa doença aparece no tratado dos
Ventos - onde se afirma o papel preponderante do sangue e da circulação normal para o equilíbrio das
funções intelectuais - mas explicação não menos natural: tratar-se-ia duma perturbação da natureza do
sangue e de sua marcha através do corpo.
6. Aspectos psicoterapêuticos
Existem na coleção hipocrática preocupações que constituem uma forma antecipada dessa medicina hoje
chamada "psicossomática". De fato, os médicos de Cós se preocupavam com as interferências entre o
organismo e o psiquismo. Os tratados das Epidemias especialmente (onde se trata da alma que se
desenvolve até a morte, da consciência que se alegra ou se aflige, e que, até, por vezes, se mostra capaz de
autoscopia) são testemunho disso. Aí se fazem recomendações ao médico para não melindrar inutilmente
os doentes, vigiar a linguagem, o vestuário, o porte, até mesmo o odor; para não regatear nenhuma dessas
pequenas atenções capazes de criar um quadro agradável.
Certos tratamentos, conquanto pareçam menos eficazes em si mesmos, podem ser aconselhados de
preferência, desde que mais bem aceitos pelo paciente (Aforismos). Para estimular o organismo, recorrerá
o médico, em certos casos, a verdadeira ação psíquica, despertando no paciente sentimentos
(1) Encontram-se, no pensamento contemporâneo, certos aspectos que fazem lembrar essa confiança dos
hipocráticos na vida natural. Assim é que G. CANGUILHEM, em seu Essai sue quelques problèmes
concernant le normal ei Ir palhologique (Clermont-Ferrand, 1943, pág. 143), escreve: 'Por deferéncia à
polandade dinâmica da vida é que se podem qualificar de normais certos tipos e funções. Se existem
normas biológicas, é porque a vida, sendo não apenas submissão ao meio, mas instituiçAo de seu meio
próprio, propõe, por isso mesmo, valores não somente no meio, mas também no organismo. Eo que
chamamos normatividade biológica."
Cf. Louis BOURGEY, Obse,vaiion ei experience chez les ,nédecins de la coilectio,, hippocraiique. Vrin,
Paris, 1953, pág. 256. (Bibliografia, págs. 277-282.)
capazes de aumentar-lhe a vitalidade. As Epidemias contêm até o registro de um caso em que o médico
apela para a auto-sugestão a fim de persuadir o doente, por engenhoso estratagema, de que o pus está
saindo de seu ouvido. Nos Humores, certas anotações dizem respeito à força de caráter nas diversas
circunstâncias da vida e à incapacidade para dominar-se: gosto pelas bebidas fortes, jogos de dados, etc.;
ou a diversos aspectos da atividade psíquica: as pesquisas, as preocupações, as emoções, etc. Observa-se
que o pensamento é, por vezes, afetado por circunstâncias fortuitas que interessam à vista ou ao ouvido, e
que certos fatos exteriores: o esfregar de uma mó, a marcha ao longo de um precipício, o aparecimento de
uma serpente..., podem provocar reper cussões inesperadas; que os sentimentos e as emoções exercem
ação particular em partes do corpo correspondentes: suores, palpitações...
Acerca do sono, o autor do Regime declara constituir ele o estado em que a alma desfruta de plena
atividade, o que subentende que a possui menor no estado de vigília, quando trabalham mais os órgãos
dos sentidos. Relativa mente aos sonhos, a escola hipocrática distinguia duas espécies: aqueles cujo
caráter divinatório atesta uma origem sobrenatural, e aqueles cujas imagens podem fornecer ao médico
indicações sobre as preocupações do paciente ou, ainda, sobre as sutis mudanças sobrevindas em seu
organismo antes do verdadeiro aparecimento de uma doença(').
Elementos de fisiognomonia aparecem em certas observações, tais como "os louros de nariz pontiagudo e
olhos pequenos são, em geral, maus. Se o nariz é achatado e os olhos grandes, são comumente bons", ou
"uma cabeça volumosa, com olhos negros e grandes, o nariz grande e esborrachado, são sinais de
bondade"(
7. De Hipócrates a Galeno
A obra de Hipócrates exerceu influência incomparável na medicina da Antigüidade. Em pouco tempo
dogmatizada, foi objeto de meticulosos estu dos pela escola de Alexandria, e ainda encontramos seus
fundamentos essenciais no segundo século de nossa era, em Galeno, cuja influência preva lece até o
Renascimento.
Em Alexandria, o respeito de que é rodeado o Corpus hz'ppocraticum não impede as pesquisas originais,
favorecidas pelas condições proporciona das aos cientistas, que ali dispõem de laboratórios e de
autorização para a prática da dissecção. O médico latino Celso chega a relatar que Herófio, o mais
eminente prático daquela época, também grande ginecologista e parteiro, teria submetido à vivissecção
criminosos que lhe cedia Ptolomeu Soter. Nada, porém, menos seguro.
Seja como for, Hérófio, além de produzir trabalhos sobre os órgãos dos sentidos e a estrutura do olho,
descreveu o cérebro, que considera a sede principal das sensações. Embora tenha confundido os
ligamentos e os nervos,
(1) Cf. a tese de doutoramento em medicina de Raymond-Gaston BAISSETTE, Aux sources de la
,xedkine, ,'ie ei docirine d'Hippoc Ubrairie Louis Arnelte, Paris, 1931; refere o autor, longamente, uma
cura a que HIPÓCRATES teria submetido o rei da Macedônia, Perdicas II, na qual a interpretação dos
sonhos teria desempenhado o papel essencial,
(2) Cf. Dr. Paul CARTON, op. cii., pig. 59.
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reconhece também a estes, em ligação com o cérebro e a medula espinal, importante papel nos processos
sensoriais. Admite que os seres vivos estão submetidos a quatro forças: nutritiva (cuja sede é o fígado),
aquecedora (cuja sede é o coração), sensível (cuja sede se encontra nos nervos), pensante (cuja sede é o
cérebro), e vê estreita relação entre a respiração e as pulsações, admitindo para os pulmões uma sístole e
uma diástole análogas às pulsações cardíacas. Investigando os sonhos, atribui-lhes, segundo a natureza
particular deles, tripla origem: divina, orgânica ou psíquica.
Contemporâneo de Herófilo, Erasístrato (330-250), que se dedicou tam bém em Alexandria a pesquisas
anatômicas e fisiológicas, atribui ao sangue
papel privilegiado em relação ao dos outros humores do organismo.
Quanto a Galeno, seus pontos de vista se enquadram numa fisiologia finalista, pois vê no homem uma
alma que se serve de um corpo. Distingue o pneüma, por ele considerado a essência das formas da vida,
em pneüma psychicón, cuja sede é o cérebro, mas interessa igualmente o sistema nervoso; o pneiïma
zõricon (espírito vital), manifestado pelas batidas do pulso, que mantém o calor do organismo; o pneüma
physicón (espírito natural), cuja sede é o fígado, que assegura a nutrição. Estes três pneumas presidem a
funções mais diferenciadas, aceitas como as faculdades naturais dos órgãos do corpo: atrativa, alterante,
retentora e expulsiva.
O papel da respiração é capital, já que assegura a continuidade da vida pela regeneração contínua do
pneuma vital, que os pulmões e os poros
cutâneos extraem do ar.
Volta a encontrar-se em Galeno, igualmente, a noção do homem como microcosmo. Aos quatro
elementos fundamentais do macrocosmo: fogo, ar, água e terra, correspondem o quente, o frio, o úmido e
o seco, bem como os principais humores do organismo: sangue, fleuma, bílis amarela, bílis negra. A
resultante da mistura humoral é o temperamento (sanguíneo, fleumático, bilioso, atrabiiário).
Observador e até experimentador em fisiologia (praticou especialmente secções da medula espinal em
diferentes níveis, verificando as paralisias provocadas), nem por isso Galeno deixa de ser espírito mais
dogmático do que Hipócrates, talvez por viver numa época menos tendente à tolerância que a de seu
grande predecessor. Estabeleceu em princípio o tratamento dos contrários pelos contrários, reservado por
Hipócrates às doenças cujas causas parecessem evidentes. Para as doenças consideradas endógenas,
recomendava a medicina hípocrática o tratamento pelos semelhantes; e é invocando a seu favor maior
fidelidade quanto a esta medicina que a escola homeopática afirmará o princípio similia similibus
curantur.
28

CAPÍTULO IV
O ENSINAMENTO DOS SOFISTAS E O MÉTODO SOCRÁTICO
1. A descoberta da subjetividade
2. O relativismo de Protágoras
3. Górgias e a linguagem
4. A pesquisa socrática
1. A descoberta da subjetiv,dade
Os escritos dos sofistas sobreviveram apenas mediante fragmentos de delicada interpretação, e tiveram o
infortúnio histórico de tornar-se conhe cidos, sobretudo, pelos comentários críticos de Platão e de
Aristóteles; foi, portanto, envolvidos em censuras codificadas, mas de modo algum de vali dade
incontestável, que passaram à posteridade. Não é muito para duvidar que sua atitude desenvolta diante da
religião os tenha prejudicado no espírito público, e tenha influído na reprovação que geralmente suscitam.
Submetendo a exame crítico toda a documentação que lhes diz respei to, o autor belga Eugène Dupréel se
empenhou em reabilitar-lhes a memó ria( Reconhece-lhes uma sinceridade que o mais das vezes lhes é
negada, e atribui unicamente a Górgias certos traços caracteriais comumente imputados aos sofistas em
geral: humor desenvolto e gosto do paradoxo.
Como quer que se encare, porém, o aspecto moral de seu pensamento, reveste-se este de singular valor do
ponto de vista psicológico, pois foram os sofistas os primeiros em pôr em relevo, com surpreendente
perspicácia, o que hoje se chama a subjetividade humana. Antes deles, pode-se duvidar de que tenham
tido os homens, verdadeiramente, consciência de um problema ine rente à realidade humana como tal, isto
é, da realidade humana enquanto implica a presença, no mundo, de um ser senciente, volente e pensante, e
cuja existência condiciona, a um tempo, perguntas e respostas. Graças à ação dos
(1) L sophi Gorgi Prodic Hippi Neuchâte!. Édit. du Griffon. 1948.
29
sofistas, opera-se, a esse respeito, uma reviravolta das perspectivas abertas pelos seus predecessores, cujo
interesse se dirigia logo de início ao contexto da vida humana. Com efeito, o ensinamento dos sofistas
tinha por objeto o homem como tal, com suas exigências próprias de inteligência e de morali dade. E
quando, na mesma época, Sócrates, que muito lhes deve, acentuou a importância do homem em geral, da
Humanidade que se esforça por extrair do indivíduo particular, parece que eles teriam ficado
impressionados pelas diferenças individuais, ao ponto de chegar (coisa que, porém, não é absoluta mente
certa) a uma forma de individualismo intransigente, pragmático em Protágoras, mais teórico em Górgias.
2. O relativismo de Protágoras
A famosa sentença de Protágoras('): "O homem é a medida de todas as coisas, das que são e das que não
são"( deu lugar a interpretações diversas. Se se entender por "homem" o ser humano em geral, estar-se-á
em presença de uma profissão de fé humanista. Foi assim que F. C. S. Schiller compreen deu as coisas, ao
saudar Protágoras como o pai do pragmatismo que preco nizou( Em Platão, ao contrário, a sentença é
apresentada como expressão de um relativismo puramente individual. O homem de Protágoras seria,
então, relembrado por certas personagens pirandélicas emparedadas em seus conhecimentos instantâneos
e transitórios. O ilustre sofista teria querido demonstrar não apenas que os indivíduos, colocados embora
da mesma maneira diante de um objeto, percebem-no diferentemente por motivo da estrutura particular
deles( mas que o mesmo homem, colocado diante de um objeto que tenha percebido anteriormente, terá,
desse objeto, outra impressão, poiso próprio homem mudou(S).(*)
De qualquer maneira, o que importa é a afirmação de Protágoras de que o conhecimento é impossível no
sentido de uma apreensão das coisas em si mes mas e de que se situa, forçosarnente, no nível daquilo que
Kant irá chamar o mundo fenomênico. A vontade de manter-se no plano do humano aparece nesta outra
declaração, quase tão célebre quanto aquela: "No que respeita aos deu ses, não sei se não existem, nem
qual sua aparência. Inórneras coisas impedem de sabê-lo, a obscuridade (da questão) e a brevidade da
vida humana(
À idéia de uma verdade inscrita na realidade como tal, opõe Protá goras a da verdade extraída do contato
com a realidade, da verdade como construção humana. Nisto, é surpreendente o aspecto moderno de seu
pensa mento. Pois, introduz a preocupação primordial do homem em sociedade,
(1) Antigo de PERICLES e de EURIPIDES. PROTÂGORAS teve como contemporáneos DEMÓCRITO,
mainjosem (nascido por volta de 460). ANAXAGORAS (nascido perto de 5 e EMPEDOCLES (nascido
talsez no mesmo ano que ele). Parece que o dilema proposto por HERACLITO e PARMENIDES lerá
const,tuido um dos fermentos essenciais de sua reflexão.
)2) PLATÃO, Tertcw, 152u.
(3) Human,sm, Ph Essas's, Londres, 1903.
(4) "Tais como me aparecem os objetos, assim existem para mim; tais como te aparecem, assim existem
para li... (PLATÃO, Cráti!o. 386 a.)
(5) PLATÃO. Teeteto, 154a.
() V.. a respeito da interpretação do pensamento de PROTAGORAS, Félicien CHALLAYE. Pequena
hovr,o s/as 6ruo t,/oo,/uss. rad, o oota'. te fruo DAMASCO I'ENNA ci. B. DAMASCO PENNA. sol.
1313. destas 'Ar ualidades Pedartórticas'', São Paulo, 11366, 27. cx 00 nora dos tradutores. (J. B. 1). P. 1
(6) DIELS, 80(74), B 4.
assinala a importância das convenções, exprime a exigência de um valor próprio à comunidade humana,
criadora da cultura. Protágoras mostrou claramente que a virtude, no que implica em correção das
tendências natu rais, é, em grande parte, problema de educação. Sócrates retomará essa idéia em
perspectiva inteiramente moral, insistindo na identidade entre o bem e o conhecimento que dele se
adquire.
Diógenes Laércio diz ter sido Protágoras o primeiro em declarar que. em todas as coisas, há dois
argumentos opostos. Nova prova de singular clarividência! Censura-se haver ele ensinado, a esse
propósito. que o argu mento mais fraco deveria, pela arte da retórica, tornar-se o mais forte( I), Tratar-se-
ia de demonstrar que o preto pode ser branco, de transmudar em causa justa uma causa injusta. As
zombarias de Aristófanes prevaleceram no tocante ao sentido que se pode atribuir a essa função da
eloqüência filosófica. Mas Dupréel, também nesse ponto, se mostra céptico. O argumento "mais fraco"
não poderia ser aquele que, embora o melhor, tem contra si a opinião corrente e vulgar?
Ainda não conhecendo muita coisa de fonte segura sobre Protágoras, não se pode duvidar de que tenha
insistido na importância decisiva da sensa ção para o conhecimento. No dizer de Platão, seu cepticismo
radical quanto ao conhecimento do mundo exterior se fundava no papel exclusivo que atribuía aos
sentidos. Revelou que o ato perceptivo dependia de certa estru tura sensorial e o perigo era substancializar
as coisas nessa matéria; mostran do. por exemplo, que o que se chama de cor nasce do encontro de um
sujeito e de um objeto e que não existem, face a face, uma coisa que seria a cor perce bida e outra que
seria a visão dessa cor(
Apreendendo as coisas sob o signo da mobilidade, a exemplo de seu mestre Heráclito, sustentou
Protágoras que a experiência é inseparável de uma impressão produzida pela relação estabelecida entre
duas realidades, inicialmente independentes uma da outra, e cujos movimentos influem reciprocamente.
Em outros termos, pensou que a qualidade de um objeto não constituía sua propriedade permanente, mas
apenas um modo de seu movi mento, ou uma fase de sua existência e que, assim, o conhecimento resulta
dum contato estabelecido entre algo de exterior e um organismo, um e outro modificados por obra desse
encontro no processo perceptivo.
Parece que Protágoras teria considerado que a memória nos reconduz sempre às percepções originais, que
deixam traço, com certa perda, porém, em relação a elas. Por isso via nas idéias gerais uma espécie de
ilusão nascida da crença na realidade das palavras. Rigoroso nominalista por antecipação, considerava os
conceitos como etiquetas que recobrem um saber sempre constituído, na medida de sua validade, por
impressões individuais.
3. Górgias e a linguagem
Se, a despeito de sua aversão pela sofística, Platão algumas vezes louva Protágoras, mostra-se, entretanto,
particularmente severo para com Gór
(1) ARISTÓTELES, Rhétrrrique. B 24, 1402 a 23; 1)IELS, 80(74), A 21.
(2) Cf. Tezteto, 154 d.
30
31
gias( Deste, uma teoria se tornou célebre( e assim se resume: nada existe; ainda que houvesse ser, seria
incognoscível; ainda que houvesse e fosse cognoscível, seria incomunicável a outrem.
Tese como essa, que sem dúvida visava à ontologia de Parmênides, mantém na obscuridade todos os
outros aspectos do pensamento de Górgias. Dela não se deixou de inferir, contudo, que ele professava um
niilismo radical, negava qualquer valor às noções de verdade e conhecimento. Sem considerar aqui essa
questão, de ordem essencialmente metafísica, não parece que seja o caso de opor, do ponto de vista
psicológico, a sua concepção à de Protágoras. Aparenta-se com esta pela idéia de que o conhecimento é
produto de dois elementos que se mesclam: um, proveniente do exterior; outro, da ação do próprio sujeito.
O que parece constituir a verdadeira originalidade de Górgias é a terceira proposição da tese que se lhe
atribui, referente à comuni cação. Ela demonstra, de sua parte, notável sagacidade. Com efeito, o sujeito
individual, quando conhece, não está nas mesmas condições daquele a quem se dirige. Aquilo que ele
quer transmitir implica uma experiência particular, incomunicável diretamente, que o ouvinte, com base
na própria experiência, só pode inferir. Todo o problema da natureza e da função da linguagem parece,
assim, posto em causa, bem como o do valor da concordância que estabelece entre as percepções do autor
do discurso e as que alicerçam a experiência de seus ouvintes. Da idéia singularmente avançada de que a
linguagem é capaz apenas de simbolizar, por meio de sinais arbitrários, as coisas que pretende exprimir,
pode-se atribuir a Górgias um nominalismo radical; não se pode, obrigatoriamente, inferir que o niilismo -
se niilismo existe - tenha sido, nele, absoluto e permanente.
É certo que a sofística preparou, em grande parte, o advento do cepti cismo na Grécia, por obra de Pirro
de Elida (365-275 a.C.), que irá demons trar total indiferença pelas coisas exteriores, fundada na
impossibilidade de conhecer-lhes a verdadeira essência e, conseqüentemente, de estabelecer, sobre elas,
qualquer juízo válido. Para Pirro e seus discípulos, dos quais Diógenes Laércio oferece uma relação em
seu Livro IX, a alma se encontra relegada entre as noções incompreensíveis. Para uns, trata-se de decretá-
la inexistente; para outros, incognoscível. Adotando um cepticismo menos radical, especialmente com
Arcesilau e Carnéades, a Nova Academia parece ter admitido um dualismo de alma e corpo. Ignoram-se,
porém, os porme nores de sua doutrina psicológica(
4. A pesquisa socrática
Como os sofistas, é pelo ser humano que Sócrates( se interessa e o faz de maneira ardente; mas pelo ser
humano considerado em perspectiva essen
(1) Siciliano como EMPÉDOCLES. GÕRGIAS. que adquirira grande nomeada como orador, professor
de retórica e homem político. intervém em PLATAO. no grande diálogo que traz seu nome, bem como no
Fedeo e no Banquete. Nesta última obra é que Agatón parodia um de seus discursos e SOCRATES o
qualifica de orador terrível
(2) Relatada especialmente por SEXTO EMPIRICO (Adt'. Math.. VII, 65, 599). DIELS, 82 (76). B 3.
(3) Quanto a PIRRO e sua posteridade, a volumosa obra de Victor BROCHARD continua fundamental
(Les sceptiques gs'ecs, lmpnmerie Nationale, Paris, 1887).
(4) A figura de SÓCRATES, nascido_em Atenas, por volta de 470 a.C., é quase legendária. Como se
sabe. conhecemo-lo essenciatmente mediante PLATAO e XENOFONTE. que dele nos oferecem imagens
algo diferentes.
32
j
cialmente moral. Bem mais do que o indivíduo, no sentido psicológico do termo, com suas capacidades
perceptivas e cognitivas e, como tal, objeto possível de estudo, é a pessoa - como se diria hoje - que nele
polariza esse interesse. A alma, como princípio de movimento e de vida, posta em primeiro plano pelos
jônicos, acrescenta, como valor essencial, a razão e o caráter moral; nela vê a sede dessa personalidade
espiritual que seu método visa a instaurar e consolidar, para torná-la plenamente senhora do corpo que
anima. Seu objetivo é, por isso, buscar, nas flutuações da vida sensível, "invariantes" capazes de sustentar
esse papel da alma como sujeito racional do conheci mento e da ação. Encontra-as em noções (justiça,
verdade, virtude, felicidade, beleza...) que, a seus olhos, exprimem a verdadeira natureza do homem, e
procura definir em sua essência idêntica e permanente. A identificação, que faz, da moral com a
verdadeira ciência postula que a ação humana pode e deve estar submetida a princípios válidos para o ser
humano em geral, na medida em que todo indivíduo possui uma natureza profunda, preservada das
vicissitudes temporais. O que é bom e verdadeiro para um, deve ser bom e verdadeiro para os outros.
Uma universalidade de direito está implícita na pesquisa socrática, toda orientada para um aspecto da
vida, por certo muito negligenciado em nossos dias: o dos valores encarnados na existência do ser
humano, e do sentido que ele confere à vida. As convenções, aos preconceitos, às idéias recebidas sem
controle, opõe Sócrates a exigência de uma reflexão capaz de instaurar uma vida moral que se determine
com todo conhecimento de causa. A tentativa exprime consciência subjetiva muito elevada; e coube
observar que, com o "demônio" que invoca, fonte profunda de sua inspi ração, aparece um como esboço
da profissão de fé do vigário saboiano e do imperativo categórico, de Kant. Antes do cristianismo, esse
moralista convoca seus contemporâneos a um incessante exame de consciência, ao esforço contí nuo para
uma tomada de consciência de si mesmo e em relação ao próximo, com vistas a um progresso moral que
considera a única coisa verdadeiramente importante; esforço que levará adiante para com todos e contra
todos, até a própria morte. Seu conhece-te a ti mesmo se inscreve nessa mira essencial- mente ética. O
"conhecimento" não versa sobre a realidade da alma, que não põe em dúvida, mas sobre suas riquezas
ocultas, que cumpre descobrir para tornar-se melhor. Se exorta os atenienses a esse conhecimento de si
mesmo, é movido pela convicção profunda de que com isso ganharão em firmeza moral e não mais se
deixarão impressionar pelas sutilezas dos sofistas.
No tocante à natureza e ao destino da alma assim entendida, a dificul dade em distinguir entre as idéias de
Sócrates e as de Platão permite apenas conjeturas. Basta observar que a concepção socrática implica em
todo caso uma fé metafísica: a de uma racionalidade imanente às profundezas da vida.
Em Sócrates, a psicologia se encontra inteiramente subordinada à ética, e a introspecção é função do
sentido que se trata de dar à conduta humana. O homem socrático é um ser que pretende atingir a
felicidade por uma tendência mais ou menos obscura postulada na própria raiz de seus
Antes acanhado moralista em XENOFONTE. aparece em PLATÁO como o porta-voz do próprio
dealismo deste (na República, especialmente). Do ensino que lhe é atribuído, surgiram escolas
antagônicas, o que não laciltta o conhecimento de um homem que nada escreveu. O mais cômodo, nestas
condições, é atermo-nos ao testemunho de ARISTÓTELES, que atribui a PLATÃO a transformação da
mensagem ética de SOCRATES numa verdadetra metafísica das idéias.
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desejos. E este ser deve compreender que só o bem é capaz de satisfazer essa busca. A habilidade
dialética de Sócrates, contudo, não pode senão afirmar, sem demonstrá-la, a identidade estabelecida entre
os objetos do desejo e o bem, entre o desejável (no sentido psicológico do termo) e o fim do homem (no
sentido metafísico); finalmente, entre o bem, o belo, a virtude e o útil. Seu "sei que nada sei" constitui um
procedimento didático, fundado, realmente, na convicção de que o contraste entre a busca do prazer ou do
poder, e a busca do soberano bem não passa de aparência, decorre de uma falta de discernimenlo, de um
conhecimento insuficiente do bem, único penhor da felicidade humana. Ação justa é, pois, a que se
orienta por um conhecimento claro, alicerçada numa elucidação teórica, e é a essa ciência do bem que nos
pretende conduzir sua famosa maiêutica.
O liame entre a razão e as paixões se mantém na medida em que o homem esclarecido (o qual, segundo
Sócrates, age, então, forçosamente, bem) põe sua paixão nessa boa ação. Nem por isso, contudo, todo o
domínio verdadeiramente "psíquico", aquele, por exemplo, dos conflitos entre as injunções da consciência
moral (para nada dizer das vicissitudes desta última) e as forças instintivas, está menos ausente de
semelhante concepção exclusiva- mente ética e, apesar das aparências, mais preocupada com a idéia do
humano do que com a idéia dos homens em sua diversidade concreta. Sócra tes parece ter sido um ser de
saúde física e moral excepcionais, animado de fé não menos rara no poder dessa razão humana que
experimentava em si mesmo. A aceitar o testemunho de Platão('), a maior cegueira, ao ver de Sócrates,
consiste em desconhecer que a maior infelicidade, pior que a doença do corpo, é "unir-se com uma alma
que, em lugar de estar em boa saúde, está apodrecida pela injustiça e pela impiedade"
Em suma, a concepção socrática da alma é inseparável de uma filosofia da abedoria, ciência por
excelência, na medida em que engloba todas as demais virtudes particulares (piedade, justiça, coragem,
temperança); e sabedoria que se pode ensinar, pois é possível agir sobre a alma de tal maneira que ela seja
constrangida a exprimir a verdade de que está prenhe.
(1) Górgi. 479b.
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CAPÍTULO V
A PSICOLOGIA DE PLATÃO
1. A espiritualidade da alma e seu destino
2. O processo do conhecimento
3. Uma psicofisiologia finalista
4. As perturbações psíquicas e os fatores inconscientes
1. A espiritualidade da alma e seu destino
Admitida a distinção tradicionalmente estabelecida entre as doutrinas de Sócrates e de Platão, a obra deste
último aparece como tentativa de confe rir status ontológico à intuição socrática da alma humana como
essencial- mente moral. Constitui, assim, mais propriamente do que uma psicologia no sentido moderno
do termo, o que se poderia chamar de metapsicologia, inscrita num contexto de poder e riqueza
incomparáveis. "A alma", declara, "é o que existe em nós de mais divino, como é o que possuímos de
mais particular". (Leis, V.)
Enquanto os pensadores precedentes, ainda quando sentiram - como Anaxágoras - a necessidade de
caracterizar a alma em oposição à vida natural, não a separaram completamente de certa materialidade,
embora fosse uma materialidade muito sutil, quer demonstrar Platão que ela é absolu tamente incorpórea,
e repudia todas as teorias anteriores que, identificando a alma a um elemento ou a uma mistura de
elementos, lhe parecem compro meter irremediavelmente seu caráter espiritual e seu destino sobrenatural
( I)
Em apoio de sua tese, recorre a vários argumentos: a alma possui desde sempre a verdade; é o princípio
de todo movimento; simples e indivisível, portanto não-composta, escapa forçosamente à decomposição;
é capaz de uma reminiscência que lhe prova a existência anterior; participe da idéia de vida, acha-se
investida de atividade eterna, exclusiva da morte. A vida psíqui
(1) Cf. especialmente Fedo 7O 84b, 8óbd, 92b, 96b; A República, til, 386d.
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ca é concebida assim, por Platão, como independente da vida do corpo, que ela governa, como a alma
universal (da qual é parte) preside aos movimentos do universo. Se se encontra sobre a terra, mesclada à
matéria e ao devir, é por ter sido aí lançada por uma espécie de decadência; e desse corpo que habita cá
embaixo aspira a livrar-se como de uma prisão. Seu destino é regressar à pátria de origem, através de
reencarnações sucessivas; ora, tal fim está condi cionado à sua libertação do mundo material. Um conflito
ontológico se desen rola pois, na alma humana, dilacerada entre a obscura nostalgia de uma eternidade
divina e as seduções da vida terrena. Esta vida é para sempre incapaz de mitigar a sede de absoluto que a
possui; e ela deve compreender que sua tarefa é elevar-se acima dos prazeres do corpo, vencer as
tentações, fugir ao mundo e a suas seduções, avivar sua reminiscência das idéias que conheceu na
realidade supra-sensível. A dialética, capaz de superar a multi plicidade dos dados sensoriais e de dissipar
a ilusão a eles presa, permite-lhe lançar-se por essa via de libertação; também o amor, que nela desperta a
lembrança da Idéia do Belo, refletida, em certa medida, pelas coisas e pelos seres, e que a conduz à
preocupação do Bem Absoluto, cujo magnífico esplendor domina o mundo inteligível, o único
verdadeiramente real. Aos olhos de quem se orientou para a verdadeira realidade, aquela onde nada passa
nem morre, o mundo natural perde o poder de sedução. Assim se vence, já nesta vida, um passo decisivo
e a morte poderá constituir liberação para a alma, subtraída à roda dos nascimentos e que voltará a
encontrar seu verda deiro habitat. Relata Platão como foi a alma lançada na matéria e no devir; enumera
os castigos e as recompensas que a esperam no Além, com a precau ção, porém, de precisar que se trata
de símbolos. Assim é que as almas não purificadas pela filosofia descem ao Hades para receber o salário a
que fizeram jus. Sofrimentos eternos no Tártaro atingirão as que se empederniram no mal; as outras, após
longa permanência no Hades, escolhem, elas mesmas, o corpo (de ser humano ou de animal) que irão
ocupar; e essa escolha é deter minada pelo ativo ou passivo que tenham conseguido numa encarnação
precedente.
2. O processo do conhecimento
A Protágoras, que fazia depender das sensações todo conhecimento, objeta Platão que a ciência não é
redutível a elas. Se assim fosse, o doente, que sente a moléstia, haveria de conhecê-la melhor do que o
médico. Na realidade, a ciência tem outros alicerces que não as sensações sempre mutáveis, O que não
impede que Platão, ainda nesse nível do conhecimento, já corrija o mobilis mo radical que atribui a
Protágoras. Distingue entre as próprias sensações, segundo certo grau de objetividade que lhes é próprio.
Pois qualquer impressão não pode ser completamente desprovida de objetividade, ainda quando o objeto
se encontre modificado em certa medida, ainda quando ela própria esteja perturbada por ele; e deixa
sempre transparecer algo desse objeto. Se a cor, por exemplo, não fosse uma espécie de fogo, se não
perten cesse às espécies suscetíveis de agir sobre o fogo ocular, não haveria percepção alguma de cor. Por
outro lado, é excessivo pretender que toda sensação é completamente original com relação às que a
precederam, sem nada que reconduza a uma experiência anterior. A observação comum prova o contrá
rio: um dedo parece à vista um dedo, quer pertença à extremidade ou ao meio
da mão, quer seja grande ou pequeno (Rep., V 523). Todo conhecimento implica certa permanência e, se
os objetos estivessem em perpétua transfor mação, o pensamento não teria como captá-los (Crátilo, 439-
40). Essa perma nência não é menos necessária de parte do sujeito do conhecimento e eis porque o
conhecimento não pode apoiar-se nas sensações. Entra aí outro elemento, decisivo: a atividade racional,
que coordena o semelhante. Para Platão essa atividade é inseparável de sua concepção metafísica e o
famoso "mito da caverna" exprime o desligamento necessário da simples existência em direção às idéias
eternas. Também a reminiscência, lembrança latente de nossa origem supraterrestre e das realidades que
lá encontrou a alma, nos põe no caminho do verdadeiro conhecimento, aberto apenas quando alguém se
desliga do mundo sensível.
Quando Platão, no Menon, nos mostra Sócrates a interrogar um pequeno escravo de maneira a conduzi-lo
a descobrir, por si mesmo, a solução de um problema geométrico: construir um quadrado cuja superfície
seja o dobro da de um quadrado dado, tem em vista provar-nos que aquele ser inculto trazia em si a
solução; o que significa, segundo Platão, que a conheceu em vida anterior. Instaura, assim, uma espécie
de técnica das reminiscências, para ultrapassar o estádio das crenças e das opiniões e atingir o verdadeiro
saber. Sob essa perspectiva inatista é que chega a evidenciar a atividade própria do espírito, sua
capacidade de julgar e raciocinar, distinta das sensações. Sabe-se a importância que possui, a seus olhos, o
pensamento matemático, graças ao qual - a despeito das aparências variáveis, conforme a grandeza e a
distância - o espírito chega a tornar inteligíveis as proporções dos corpos e seus movimentos. Vê na
matemática um sistema de coordenação fundado em princípios cuja essência é bem definida: números
pares e ímpares, superfícies, ângulos... Como, porém, ela não pode justificar por si mesma tais princípios,
Platão a subordina à dialética, a qual nos introduz no domínio onde a razão, em sua soberania, descobre o
verdadeiro sentido de tudo quanto existe, e onde os princípios que permitem o conhecimento do universo
em sua estrutura profunda aparecem a plena luz. Neste estádio, o conhecimento sensível fica
completamente eclipsado.
3. Uma psicofisiologia finalista
Qualquer que seja, porém, sua preocupação em reservar atividade tão independente quanto possível à
alma - que estaria no corpo como num navio que lhe incumbe conduzir e governar - o problema do
conhecimento e da ação leva Platão, forçosamente, ao ser humano constituído de um organismo. Admite,
aliás, que a alma sofre, no correr de suas peregrinações, uma influên cia que entrava ou retarda o
cumprimento de seu destino, e que, por isso mesmo, mantém, obrigatoriamente, com o corpo, relações de
certa ordem. Mas de que ordem? A resposta não é fácil, independentemente das dificul dades intrínsecas
da doutrina, pelo fato de que as afirmações de Platão nessa matéria exprimem a maneira de conduzir um
pensamento que jamais repousa na satisfação de si mesmo.
NoFedro, Platão compara a alma a uma parelha de cavalos conduzidos por um cocheiro. O cocheiro
simboliza a razão; um dos corcéis, a energia
36
37
moral; o outro, o desejo. Esta divisão tripartida volta a encontrar-se na
República:
Pois que existem na alma três funções, é evidente, para mim, que há também três espécies de prazeres,
cada um dos quais próprio a uma dessas funções; semelhan temente, há três espécies de desejos e de
princípios de ação.
Uma dessas funções, dizíamos, é aquela por meio da qual o homem adquire o conhecimento; outra,
aquela pela qual queima de ardor; quanto à terceira, mercê da multiplicidade de seus aspectos, não
conseguimos designá-la por um só nome, denomi nando-a, porém, pelo que há nela de mais importante e
de mais forte; nós a chamamos desejante, em razão da intensidade dos desejos relativos à nutrição, à
bebida, aos prazeres do amor, e a tudo, enfim, quanto acompanha esses desejos; evidentemente, amante
também da riqueza, porque a riqueza é o meio principal de realizar essas espécies de desejos." (Rep., IX,
581 d, e.
No diálogo Platão ainda precisa que a razão tem por sede a cabeça; a energia moral, o peito; o desejo, o
abdômen.
O mesmo modo de ver volta a encontrar-se no Timeu, essa obra de velhice, na qual Platão nos conta
como o arquiteto do universo, "criador dos seres divinos", encarregou seus próprios filhos da gênese dos
mortais (69 c).
Está-se aí diante de uma psicofisiologia finalista, a explicar "porque" as três partes da alma ocupam tal
lugar distinto no corpo. Se o "princípio divino" da alma tem sede na cabeça, separada do peito pelo
pescoço, é para que permaneça tanto quanto possível protegida contra as impurezas que provêm da alma
inferior; como esta contém "uma parte naturalmente melhor, outra pior", a primeira se situa mais perto da
cabeça, entre o diafrag ma e o pescoço, para que possa contribuir, em concerto com a razão, para conter
os apetites; e estes têm sua sede o mais longe possível da alma delibe rante, "no espaço intermediário
entre o diafragma e as proximidades do umbigo" (Timeu, 69, 70, 71). A medula é por ele considerada
como o elo que une a alma ao corpo. O sangue se origina no coração, encontro de todos os vasos, e se
refresca nos pulmões. O ar, ou pnei penetra o corpo humano através de vias definidas, desde a boca e os
pulmões até o coração. Daí, lançado em todo o organismo, preside à vida, ao equilíbrio das funções, aos
movimentos do pensamento.
Decorre da concepção platônica que apenas a parte superior da alma possui o privilégio da imortalidade,
imortalidade cujo caráter pessoal não parece duvidoso:
"Finalmente, quando os liames que ajustam entre si os triângulos da medula não podem mais resistir,
distendidos pela fadiga, fazem com que se relaxem por sua vez os liames da alma, e esta, liberta segundo
a corrente da natureza, alegremente se desprende. Tudo que, de fato, contraria a ordem da natureza é
doloroso, mas o que sucede segundo a ordem natural é doce. A morte, assim, se ocorre em conseqüência
de doenças ou pelo efeito de ferimentos, é dolorosa e violenta: mas quando vem com a velhice e leva a
um fim natural é a menos penosa das mortes e antes se acompanha de alegria do que de desgosto."
(Timeu, 81, d, e.)
No Fedo,i também, Platão declara que a alma nutrida pela verdade divina não mais teme "dispersar-se no
momento de separar-se do corpo ou
espalhar-se ao sopro dos ventos, ou alçar vôo e, uma vez partida, nada mais serempartealguma"(84a, b).
A afirmação da imortalidade pessoal constituirá um dos motivos impor tantes do prestígio de que
desfrutará Platão entre os apologistas cristãos, de Justino a Santo Agostinho. Pode-se, contudo, indagar,
como a propósito dos jônicos, se a conseqüência lógica da teoria não seria o retorno da alma indivi dual à
alma universal e cósmica. Por outro lado, se o essencial da alma, se o elemento divino que nela está
presente, é unicamente a faculdade cognitiva ou a razão, torna-se manifesto que as afeições, os apetites,
os desejos, enquanto produtos de sua união com o corpo, não podem sobreviver à destruição deste. A
questão é, então, saber como e porque essa alma, puro pensamento, pôde precipitar-se na prisão do corpo.
Tudo quanto Platão escreve, particularmente no Timeu, sobre as quali dades sensíveis, se insere na
perspectiva finalista que preside à sua concepção da alma tripartida, tal como seus comentários sobre o
fígado (espelho polido e brilhante, sede do vaticínio), sobre a imaginação e sobre o baço (onde se
depositam as impurezas, o que lhe explica a inchação em caso de febre), sobre os intestinos (longos e
sinuosos, a fim de que os alimentos permaneçam durante bastante tempo no corpo, para que o homem
esteja livre de um perpétuo cuidado alimentar), sobre a medula, os músculos, os ossos, e tendões que
deles provêm; sobre a carne, a cabeça, a pele, os cabelos, as unhas, o aparelho circulatório e o
respiratório; sobre a digestão e a assimi lação, sobre o desequilíbrio dos elementos, a degenerescência dos
tecidos e a formação dos humores, sobre a bílis, a pituita... (Timeu, 61-86).
4. As perturbações psíquicas e os fatores inconscientes
Particularmente curiosa é a atitude objetiva observada por Platão ao tratar das perturbações psíquicas; nas
descrições que delas oferece, o caracte rologista pretende igualar o moralista. Se admite que as doenças
têm, freqüentemente, causas externas: abuso de alimentação, excessos sexuais, desproporção entre o
dispêndio físico e a alimentação, julga
que quase todos os erros que chamamos intemperança nos prazeres e que reprovamos... nos maus, são
outros tantos reproches injustificados"
pois ninguém é mau por sua própria vontade, mas antes pela inaptidão dos educadores ou "por algum
vício de constituição corporal" de que a alma padece com o corpo:
"Quando, de fato, acres ou salinas, as pituítas e tudo quanto existe de sucos amargos e biliosos erram pelo
corpo e não encontram saída, mas, rolando no interior, misturam seus vapores ao movimento da alma e
entre si se confundem, provocam então toda espécie de moléstias da alma mais ou menos graves, mais ou
menos numerosas; afluindo às três sedes da alma, conforme a que seja atingida por suas espécies diversas,
aí introduzem todos os matizes das formas variadas da acrimônia e do abatimento, da temeridade e da
covardia, da fugacidade e da preguiça de espírito, enfim..."
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Se a isso se acrescenta a influência das más instituições politicas e da corrupção do meio, que ninguém se
preocupa em reformar, compreende-se a
existência do mal:
"Os que devem ser acusados são os autores do nascimento, sempre, mais do que as crianças deles
nascidas; depois, os que os educam, mais do que os próprios educan dos; cada qual, no entanto, deve
esforçar-se, o quanto possa, pelo seu regime moral, suas práticas e estudos, por fugir ao vício e escolher o
contrário." (Timeu, 86, 87.)
Quanto ao sistema de educação preconizado por Platão na República, não caberá dizer que seja da alçada
da psicologia, uma vez que consiste em orientar, e até em constranger o indivíduo numa via traçada por
Platão filó sofo. Essa pedagogia é rica, no entanto, de observações penetrantes. Por exemplo, a propósito
dos apetites e dos desejos que se manifestam nos sonhos e nos quais se pode ver uma como presciência do
papel do inconsciente descrito pela psicanálise. Se pode ocorrer, diz ele, que esses desejos, "com o
concurso do raciocínio", sejam superados ou atenuados, pode também ocorrer que alguns dentre eles
"ganhem em força e número":
"São os (.. que despertam por ocasião do sono, sempre que dorme a parte da alma cujo papel é raciocinar
e comandar pela doçura a outra, enquanto a parte bestial e selvagem, tendo-se fartado de alimento e
bebida, tremula e, repelindo o sono, procura continuar e saciar o pendor próprio. Sabes muito bem que,
em tal circuns tância, não há audácia diante da qual recue, como que desligada, desembaraçada de toda
vergonha e de toda reflexão: nem, com efeito, diante da idéia de querer unir-se à própria mãe, ou a
qualquer um, homem, Divindade, animal; ou de macular.se em qualquer assassínio; ou de não abster-se
de alimento algum. Numa palavra, em coisa alguma lhe faltam desatino ou indiferença à vergonha."
(Rep., IX, 571.)
Encontram-se em Platão até observações que se poderiam interpretar, hoje, no sentido de certa
plasticidade do "inconsciente", ouda repercussão favorável, neste, de uma vida cuidadosa de equilíbrio. E
desfrutado o repouso, diz ele:
toda vez.., que a pessoa tem.., saúde no íntimo e sábia moderação; que passa ao sono após haver
despertado o elemento de si mesma que raciocina e calcula; que realiza um festim de discursos e de belas
reflexões; que consegue concentrar-se em meditação pessoal; que não abandona a função desejante nem
às privações, nem à saciedade..."
e quando se procurou, pela reflexão, acalmar a efervescência dos sentimentos. Assim se estará, também,
no mais alto grau em contato com a verdade; e será o menor possível o desregra mento das visões que
aparecem em nossos sonhos."
Pois a consideração destes torna evidente que
existe em cada um de nós uma espécie de desejo terrível, selvagem, desregrado; e, a nosso ver, o mesmo
se dá com certas pessoas que se mostram, entre nós, perfeitamente comedidas." (Rep., IX, 572.)

1. Aristóteles e seus predecessores


CAPÍTULO VI
A PSICOLOGIA DE ARISTÓTELES
1. Aristóteles e seus predecessores
2. A oposição a Platão
3. A alma como "forma" do corpo
4. O próprio do homem
5. O primado ontológico
6. O objeto da psicologia
7. As sensações e a percepção
8. A imaginação, a memória, os sonhos
9. O princípio de perfeição
Como a psicologia de Platão a de Aristóteles é dominada por uma onto logia que atribui ao Universo, pela
intervenção de uma causa final e de um princípio de perfeição nas coisas, uma arquitetura estável e
harmoniosa, da qual cada parte é ordenada pelo conjunto. Nela aparecem, porém, um sentido da
observação objetiva, um gosto do concreto, uma preocupação pelo indivi dual, que lhe conferem, em certa
medida, apesar do quadro dogmático, muitos traços de uma psicologia no sentido moderno do termo(').
Aristóteles se preocupou com as teorias de seus predecessores, freqüen temente para criticá-los com
superioridade. Os juízos que formula a respeito deles são ordenados com método e constituem, para o
conhecimento de seu pensamento, vias úteis de acesso. Considera que os pitagóricos e os platônicos, com
sua preocupação de afirmar o caráter sobrenatural da alma, lhe negligen ciam as condições reais, físicas e
orgânicas, da existência. E aos pensadores materialistas, particularmente os atomistas, censura a confusão
entre o prin cípio vital e os elementos por esse princípio organizados. Demócrito, por exemplo, não
poderia explicar por meio de átomos o comportamento dos seres vivos, o qual manifesta, seguramente, a
intervenção de uma escolha, de um pensamento. (De Anima, 1, 3,405 b 15-25.) Uma física assim não
pode expli car a natureza das sensações, muito diferente dos simulacros que se produzem no mundo
material. A água que reflete uma paisagem não vê a paisagem.
(1) Se se trata, por exemplo, de indagar sobre as imagens dos sonhos, começa por declarar: "Com respeito
ao vaticínio que ocorre no sono, e se diz provir dos sonhos, não é fácil tratá-lo com leviandade, nem dar-
lhe crédito
(ParcaNaturulia, 462b, trad. J, TRICOT.)
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3. A alma como "forma" do corpo
"Demócrito, ao pensar que a visão é uma imagem refletida, labora em erro. É estranho que não lhe tenha
ocorrido indagar porque apenas os olhos vêem, e não o faz nenhuma das coisas nas quais se refletem os
simulacros." (De Sensu, 11, 438 a 5-14.)
O aparecimento da vida não é redutível aos processos físico-químicos; estes são sua condição necessária,
não, porém, suficiente, e lhe devem a orien tação, O princípio vital difere, portanto, dos elementos
componentes do mundo físico. Absurdo representar-se a alma como fogo; seria o mesmo que identificar
ao carpinteiro ou à sua arte os instrumentos de que se utiliza pelo fato de a obra resultar dessa
colaboração. (De Partibus Animalium, II, 7, 652h 7-15.)
2. A oposição a Platão
Foi Platão o primeiro em querer demonstrar o caráter imaterial da alma como garantia de sua
imortalidade. Sua tentativa, porém, pelo fato de atribuir à alma, como função essencial, a de reintegrar-se
numa realidade metafísica puramente ideal, levou a separá-la do corpo, a excluir as sensações do domínio
da verdade, apesar dos corretivos que se podem encontrar em sua obra. Essa espécie de guerra civil que
introduz no homem repugna ao espírito positivo de Aristóteles, cuja oposição às idéias transcendentes de
seu mestre é conhecida. Segundo Aristóteles, concretamente observadas as coisas, o que antes existe é
união e colaboração entre a alma e o corpo. A unidade funcional deste último, articulada em funções
diversas, depende desse único princípio ativo que é a alma, sem anterioridade real em relação aos
elementos que ela unifica, coordena e governa. A alma não pode subsistir sem um corpo que ela anime
(De Anima, II, 2, 414 a). E princípio de vida e de movimento, imanen te às funções biológicas e
fisiológicas. Enquanto causa primeira da vida, da sensibilidade e da inteligência, é ato, essência, "forma":
não de uma virtua lidade qualquer, mas determinada, isto é, de uma existência capaz "em potência" de
realizar-se naquela forma particular:
"Eis mais um absurdo peculiar a essa doutrina e à maior parte das teorias relativas à alma: unem a alma ao
corpo e ai a colocam sem precisar em nada a razão dessa união, nem a disposição do corpo que isso
comporta. Pareceria de fato que tal explicação é indispensável: pois é em virtude das relações mútuas
entre a alma e o corpo que uma age e o outro sofre, que um é movido e a outra move; ora, nenhuma
dessas relações recíprocas pertence a coisas quaisquer. Contudo, esforçam-se esses pensadores apenas em
explicar a natureza da alma, mas, no referente ao corpo que deve recebê-la, não acrescentam precisão
alguma, como se fosse possível que, segundo os mitos pitagóricos, qualquer alma revestisse qualquer
corpo. Mas isso é inadmissível, pois parece que cada corpo possui uma forma, uma figura que lhe é
própria. Os parti dários da metempsicose apresentam as coisas de modo semelhante ao de quem susten
tasse que a arte do carpinteiro pode exercer-se com flautas: isso é impossível, pois toda técnica deve
servir-se dos instrumentos próprios, e a alma, do corpo que lhe convém." (DeAn., 1,3, 407h 13-26.)
Em suma, a alma não é aquela exilada de que fala Platão, encarcerada num corpo, possuída pela nostalgia
de livrar-se dele para sempre; ela é o que assegura a harmonia das funções vitais.
Em outros termos, o ser humano não é constituído por uma alma e um corpo, como duas entidades
justapostas. Os dois termos exprimem os aspectos inseparáveis de sua unidade vivente, estofo real de suas
sensações, afeições, atividades. Aristóteles é levado assim, a definir a alma como "a enteléquia primeira
de um corpo natural, que possui a vida em potência" (1), Princípio de movimento, de crescimento, de
geração, ela unifica todas essas funções, inclusive as operações da sensibilidade e do entendimento.
"Não cabe pesquisar se a alma e o corpo são uma só coisa, como não o fazemos quanto à cera e o sinete,
nem, de maneira geral, quanto à matéria de uma coisa qual quer e aquilo de que ela é matéria." (De
Anima. 1, 5, 411 a; também II, 1,412 b 5.)
A alma está para o corpo como o fio do ferro está para o machado, como a vista está para o olho:
"Fosse o olho um ser vivo, e a visão seria sua alma: pois a visão é a essência do olho. O olho, de sua
parte, é a matéria da visão, e, faltando a visão, não há mais olho, senão por homonímia, como um olho de
pedra, ou um olho desenhado." (De An.. II, 1, 412b 20.)
e não é possível separar o órgão da função:
a alma é, no sentido primordial, aquilo por que vivemos, percebemos e pensamos... é com razão que
pensadores têm julgado que a alma não pode existir sem um corpo, nem ser um corpo; pois não é um
corpo, mas algo do corpo; e essa é a razão porqueestáemumcorpo..."(DeAn.. 11,2, 414a 15-20.)
Como a alma é "causa e princípio do corpo vivo" (De An., II, 4, 415 b 10), a psicologia, segundo
Aristóteles, está ligada à biologia, até à botânica. Pois admite um modo de alma na própria planta, na
medida em que é capaz de alimentar-se, de reproduzir-se, de crescer de acordo com o tipo de sua espécie.
No animal, as funções vitais se apresentam em grau superior, visto que lhe permitem discernir pela
sensação as qualidades das coisas e, ainda, deslocar-se por si mesmo segundo os desejos ou as aversões
que nele suscitam. A alma, neste nível, é sensitiva, apetitiva e motora. Aristóteles, que observou muito os
animais, persuadiu-se de que o comportamento deles, em muitos casos, apresenta analogias com o do
homem:
"Na maior parte dos outros seres vivos, há traços de qualidades físicas que se encontram mais nitidamente
diferenciadas no homem. Com efeito, como dissemos no caso dos órgãos, observamos, em inúmeros
animais, disposições à doçura e à selvageria, caráter fácil e difícil, coragem e coiardia, temor e segurança,
impetuosidade e velhaca ria, e até certos traços que lembram os cálculos da inteligência humana."
(Histoire des animaux, VIII, 1,588 a, 18b 3.)
(1) De Anim,,, II, 1, 412 a 27-28. (Deve-se entender por enteléqiüa o desenvolvimento de um ser cujas
diferentes partes são solidárias e que possui a forma que é capaz de revestir: e por ida em ,,vtéveia a
disposição de órgãos próprios ao cumprimento de certas funções vitais.)
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Discerne também que:
5. O primado ontológico
"Nalguns desses caracteres, a diferença entre o homem e o animal não é senão diferença de grau; alguns
são mais acentuados no homem, outros, nos animais"... "O que acabamos de expor fica evidente quando
se considera o que é peculiar à infân cia. Com efeito, pode.se ver, na criança, como que o cunho e o
germe das disposições que serão as suas mais tarde, enquanto sua alma, por assim dizer, em nada difere,
nessa idade, da dos animais. E, portanto, bastante razoável sustentar que certos carac teres psíquicos são
os mesmos no homem e no animal, enquanto outros apresentam acentuada semelhança e outros, ainda,
não possuem entre si senão analogia." (Histoire desanimaux, VIII, 1,588a, 18b3.)
4. O próprio do homem
Do animal ao homem, o que caracteriza a passagem é uma espécie de aperfeiçoamento. Aparece a mão,
que testemunha admiravelmente o poder da inteligência; e, sobretudo, a própria inteligência sob a forma
racional, capaz de extrair, do mundo sensível, invariantes, tipos; de atingir princípios universais, axiomas
eternos (tal como aquele sempre implícito no silogismo: o que é verdadeiro do todo é verdadeiro da
parte). Essa inteligência racional própria do homem é "impassível, imortal e eterna" (DeAn.,III, 5).
Ela é o Noüs introduzido por Anaxágoras, mas sem que este tivesse sabido, do ponto de vista de
Aristóteles, extrair-lhe a verdadeira essência. Acerca desse intelecto agente ou ativo, como lhe chama, e
do qual nos diz entrar no feto "pela porta" (De Gen. Anim., II, 3, 736 b 27), sucederam-se os comentários
através dos séculos, tanto é ambíguo seu próprio pensamento na matéria (1)• Reconhece, aliás, que nada
se sabe de certo sobre esse Noiis, exceto que se trata de outro gênero de alma (De An., II, 2, 413 b).
Atribui- lhe um pensamento que não é intermitente nem fragmentário como nosso pensamento discursivo,
mas pensamento em ato de todas as realidades inteligíveis. Esse Nozls é, relativamente a nosso
pensamento comum, "pen samento do pensamento". Na medida em que possibilita a intuição inte lectual
dos primeiros princípios, é o fundamento de toda ciência (Met, XII, 7, 9, 33).
O problema consiste em unir dialeticamente a descrição empírica de Aristóteles a esse intelecto universal,
que deve individualizar-se, pois vive num corpo; compreender verdadeiramente o papel atribuído à alma
indi vidual - o de atualização progressiva, relativamente àquela instância que é "ato eterno". A questão é,
evidentemente, de ordem metafísica e, não, psicológica. Diz ao problema da origem do pensamento
racional do homem e à dificuldade em considerá-lo o resultado da experiência sensível, problema que
dois milênios de pesquisas ainda não resolveram, se é que poderá ser resolvido algum dia.
(1) A dupla interpretação, averroista e tomista, polariza, de certa maneira, o problema do Noi2s em
ARISTOTELES. Sabe-se que a solução de AVERROIS, que tomara como tarefa restituir o pensamento
autêntico de ARI5TOTELES, é afirmar que o intelecto agente é um só para todos os homens e que, assim,
a ele se deve ludo quanto há de eterno no individuo.
A doutrina de Aristóteles repousa numa distinção fundamental entre a ordem cronológica e uma ordem
ontológica mais profunda, que confere à vida um movimento cujo sentido é atualizar virtualidades
brotadas duma perfeição originária. Portanto, o imperfeito provém, idealmente, do perfeito, tal como a
criança supõe o adulto, embora seja adulto "em potência". Aristóteles foi levado, assim, a postular Deus
como primeiro motor imóvel, ser absoluta mente imaterial, pura forma (Mel., XII, 7, 1072 b, 25, 30). A
descrição dos seres naturais em movimento e realizados na matéria pelo Aristóteles biólogo e psicólogo
se inscreve, portanto, no quadro de um sistema fechado. Refere-se a objetos cujo desenvolvimento, em
suas fases presentes e, até, futuras, é conhe cido pelo Aristóteles metafísico. Nem por isso é menos certo
que o interesse de sua teoria, no terreno da psicologia como tal, reside na descrição do orga nismo
concreto, real e expresso pela coordenação harmoniosa de suas partes.
6. O objeto da psicologia
A classificação das almas em vegetativas, sensitivas e intelectivas, não implica, segundo Aristóteles,
diferenciações qualitativas de partes da alma no sentido platônico. Trata-se de distinção estabelecida entre
estruturas orgâ nicas mais ou menos complexas (De An., II, 2, 213 ah; II, 3, 414 b), em sentido muito
aproximado do que, hoje em dia, ocorre quando se comparam estruturas diversas com o comportamento
que as caracteriza. Desse ponto de vista, à luz da psicofisiologia moderna, sua maneira de ver nada tem de
perempto, apesar do contexto dogmático.
parece que todas as afecções da alma se dão com um corpo: a coragem, a
doçura, o temor, a compaixão, a audácia e, ainda, a alegria, tanto quanto o amor e o
ódio; pois, ao mesmo tempo que se produzem essas determinações, o corpo experi menta uma
modificação." (DeAn., 1, 1,402b, 15.)
Depois de ter assim enunciado sem ambigüidade aquilo que se apre senta como prelúdio ao famoso
paralelismo psicofisiológico, Aristóteles teste munha consciência muito nítida da dualidade própria ao
objeto da psicologia, dessa espécie de escolho interior-exterior contra o qual, ainda hoje, esbarram as
investigações:
"Disso resulta que, em suas definições, deve-se considerar esse estado de coisas:
definir-se-á, por exemplo, a cólera um movimento de tal corpo ou de tal parte, ou de tal faculdade,
produzido por tal causa, para tal fim. - E é por isso que o estudo da alma compete ao físico, quer se trate
de toda a alma, quer da alma como a descrevemos. O físico e o dialético definiriam, assim,
diferentemente cada uma dessas afecções, como, por exemplo, a cólera: para o último, é o desejo de
causar ofensa, ou qualquer coisa desse gênero; para aquele é a ebulição do sangue que envolve o coração,
ou ainda a ebulição do quente. Um explica a matéria; o outro, a forma e a noção: pois a noção é a forma
da coisa, mas é necessário que ela se realize em tal matéria..." (De An., 1, 1, 402h, 30,403b.)
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De qualquer maneira, é a partir da consciência que o ser vivo toma de si próprio que um conhecimento
qualquer se elabora, e a sensação nos remete, forçosamente, não a um exterior interpretado em termos de
movimentos, mas a um sistema interno de qualidades e de significados. Bem o compreendeu Aristóteles,
que vê na sensação, essencialmente, uma capacidade de discernir no mundo sensível das qualidades: o
branco, o vermelho; o doce, o amargo; o duro, o mole..., por um ato que aciona um elemento externo (o
poder de um objeto de afetar um ou vários órgãos dos sentidos) e um elemento interno (a atividade desses
próprios órgãos).
7. As sensações e a percepção
Se a presença da razão é necessária ao conhecimento das estruturas essenciais da realidade, os materiais
sobre os quais se exerce lhe são forne cidos pelos sentidos. Sem as qualidades que estes nos revelam, a
razão seria incapaz de tornar o mundo inteligível. Como, porém, no-las revelam? Consi dera Aristóteles
essencial o fato de que a alma permanece interior no processo da sensação. Segundo ele, é erradamente
que Heráclito - nisto muito fiel mente seguido por Protágoras e até por Platão - pensou que a imagem
resul tasse de uma combinação de dois corpos e que a impressão sensível se devesse a uma dupla
contribuição da matéria. Na realidade, o homem que conhece faz existir de certa maneira -
intencionalmente, forn imaterial mente - o objeto conhecido em seu intelecto: "Não é a pedra que está na
alma, mas sua forma" (De An., 111,8, 431h, 25).
Assim, Aristóteles substitui a idéia de emanações materiais do objeto percebido para o sujeito percipiente
pela da apreensão, por este último, de uma "forma" que implica um intermediário: a transparência, o
diáfano. O olho se torna luminoso e colorido, enquanto a córnea o protege contra as substâncias cuja
luminosidade e cores reproduz. Portanto, é apenas a forma que modifica os sentidos, um pouco à maneira
pela qual um sinete marca a cera com seu cunho, sem nada deixar de seu metal.
A luz foi assimilada ao fogo, porque não existe e não aparece senão quando há fogo. Este, porém, não
deve ser confundido com a luz que dele emana. O fogo é um corpo. A luz é a manifestação visível dessa
qualidade que é a transparência de certos corpos, sobretudo do ar e da água (De An., II, 7, 418 b). Mas se
essa transparência é condição da luz, o fogo é outra. Onde ele falta, os objetos mais translúcidos "em
potência" permanecem opacos. O olho, no ato da visão, contém luz. E constituído de um corpo
transparente que é um liquido aquoso; prova disso é seu derramamento, conseqüente à perfu ração do
olho (De Sensu, II, 438 a, 13-19). A única exceção a essa junção necessária da luz e do diáfano para que
se dê a visão, é constituída pelos casos de fosforescência que, aliás, excluem a percepção da cor própria
do objeto (De An., II, 7, 419 a). O mesmo se dá com os outros sentidos, que Aristóteles analisa para
mostrar que sua função implica sempre um intermediário, local de encontro das qualidades e do órgão que
as percebe. No tacto, esse papel é desempenhado pela carne.
De modo geral, a psicologia de Aristóteles visa a reabilitar, em relação ao idealismo platônico, a sensação
como fonte de conhecimento, estabele
cendo que ela não poderia enganar quanto a seu objeto próprio. A visão do branco equivale a extrair do
mundo a qualidade, a essência do branco. O erro começa apenas com o juízo, quando intervém uma
afirmação a respeito do branco:
"A sensação dos sensíveis próprios é sempre verdadeira ou, pelo menos, sujeita
o menos possível ao erro. A percepção... vem em segundo lugar e, nessa altura, o erro
já pode insinuar-se: pois que o sensível seja branco, eis um ponto em que não é possível
o engano; mas que o branco seja esta ou aquela coisa determinada, nesse ponto é
possíveloerro." (DeAn., II, 428h, 15-20.)
"Cada sensação da mesm coisa tomada no mesmo momento jamais diz ao mesmo tempo que ela possui e
não possui tal qualidade. E até, tomada em momentos diferentes, não se contradiz perante o estímulo. Por
exemplo, o mesmo vinho, se mudou, ou se mudou o organismo, pode parecer de início açucarado, em
seguida não açucarado. O sabor do açucarado, porém, tal como se apresenta no momento em que existe,
nunca mudou: a sensação é sempre verídica a esse respeito. E qualquer futuro sabor açucarado lhe é
necessariamente semelhante." (Met., 1, 5, 1010h, 18-26.)
A visão do pintor não é falseada pelas leis da perspectiva. Se uma visão a distância parece inexata, isso se
dá em comparação com uma visão aproxi mada, admitida como fiel ao objeto e que serve de critério para
a retificação. Sucede apenas que o conjunto, por vezes, não permite mais discernir os pormenores, como é
o caso da floresta que impede de ver a árvore. Nem por isso, contudo, os pormenores são menos sentidos,
e basta que nos desliguemos da visão global para que se tornem manifestos. Quando se olha um compri
mento de diversos metros, não se distingue mais um metro como tal. Algumas das observações de
Aristóteles relativas à percepção dos conjuntos se acham hoje revalorizadas pelos pontos de vista dos
gestaltistas. Por outro lado, admite a existência de indiscerníveis, que não são zeros; e pensa-se então nas
"pequenas percepções" de Leibniz.
"Quando uma coisa situada para além da sensação não é sensível em si mesma, também não o é se tomada
à parte. Pois é de maneira latente que ela se encontra inclusa numa sensação mais distinta. E um sensível
dessa espécie, separado, embora, tampouco será sentido de maneira manifesta. Será sensível, não
obstante, uma vez que já o é de maneira latente e o será manifestamente uma vez acrescentado a outros."
(De Sensu, VI, 446a, 11-26.)
Após haver tratado separadamente dos cinco sentidos, propôs-se Aristóteles o problema da unificação das
sensações em um sujeito percipiente " o ato do sensível e o ato do senciente constituem um ato único..."
(De An., III, 2, 426 a, 15). Verifica que o processo sensorial constitui "uma unidade inseparável num
tempo inseparável" (De An., III, 2, 426 b, 25) e é, assim, levado à noção de um sentido comum (isto é,
"não-particular"). Esse mediador entre os sentidos particulares, a que se deve a união de sensações
diferentes, é a sensação da sensação, um análogo do que hoje chamamos consciência:
os diversos sentidos.., atuam, pois, não enquanto sentidos séparados, mas enquanto formadores de um
sentido único, quando se produz uma simultaneidade de sensações relativamente ao mesmo objeto; é o
que se dá quando percebemos que o fel é amargo e amarelo: pois não cabe certamente a outro sentido
proclamar que essas duas
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qualidades não formam senão uma coisa. Provém, daí, igualmente, que o senso comum se engane: basta,
por exemplo, seja uma coisa amarela para que creia seja fel." (De An., III, 1,425a, 30,425b.)
Essa sensitividade primária aparece, portanto, como suporte do mundo da experiência, que é
forçosamente uma experiência. Encontram-se em Aris tóteles, a respeito dessa "alma" unificadora,
concebida como uma espécie de fluido, certas explicações que constituem sutil sobrevivência do
animismo, mas que não se poderia pretender constitua progresso em relação aos médicos hipocráticos,
nem mesmo em relação a Platão. De fato, é ao coração que atribui papel privilegiado, ao admitir ser esse
órgão a sede do pneüma psíquico, a saber, do princípio da vida donde parte o próprio movimento:
"... esse lugar de origem é, das três regiões determinadas do corpo, a que se situa na parte intermediária
entre a cabeça e o ventre. Nos animais sanguíneos, é a parte vizinha do coração: pois todos os animais
sanguíneos têm coração e o princípio do movimento e da sensitividade parte de lá." (Pana Naturalia, 456
a, trad. J. Tricot.)
É o coração que recebe as sensações por intermédio das veias (Aristó teles parece ignorar o papel dos
nervos e dos músculos). Esse pneüma, esse sopro congênito, espécie de natureza sutil disseminada pelo
organismo, é o sujeito do calor vital, o substrato da vida sensorial, o primeiro instrumento da alma. Exala-
se constantemente do sangue, condição de sua existência, sob a influência do calor natural do corpo. Esse
calor é, por sua vez, sustentado por um pneüma externo, físico: o ar que respiramos('). Pelos vasos do
mesenté rio, o alimento, cozido pelo calor e pelo pneüma, passa para dentro do cora ção, onde se
transforma em sangue. Este, carregado de alimento, ferve nos vasos, como testemunham as pulsações.
Não distingue Aristóteles as veias das artérias. Sob o nome depóroi, designa indistintamente os nervos, os
tendões, os ureteres e os ligamentos. Admite que o cérebro humano é mais volumoso que o dos animais;
contudo, não contém sangue. E frio e compensa por cocção o calor que sobe do coração. Ao contrário, a
medula espinal e a medula dos ossos são quentes.
Apesar das dificuldades apresentadas pelo duplo aspecto, a um tempo substancialista e instrumentalista,
das observações de Aristóteles sobre o psiquismo humano, e de seus pontos de vista obsoletos em
fisiologia, sua concepção não deixa de constituir, em relação aos que o precederam, nítido progresso no
plano da teoria do conhecimento. Pois atesta aprofundamento e descrição bem mais estruturada dos
processos em jogo na percepção.
Além disso, ele mostrou que a sensação, longe de constituir diminuição para o pensamento, ia no sentido
do desenvolvimento da vida. E nessa perspectiva que trata da própria organização sensorial. Ainda que
sejam o tato e o paladar os sentidos mais importantes para a vida natural, o olfato, a visão e a audição já
manifestam grau superior. E a mesma progressão aparece no jogo das sensações. Não se sente calor se o
calor de um lugar em que se entra é igual ao que era sentido antes, e pelo qual o corpo já fora modificado
de algum modo. Se é inferior, tem-se sensação de frio. E preciso, pois, que lhe
(1) Cf. W. JAEGER. Das Pneuma im Lvkeiun'. He,-mes, XVII (1913), e G. VERBEKE, L s/uiu,,, de la
doctrine da pneuma, Paris-Losaina, 1945.
seja superior para ser discernido (De An., 11, 424 a). Da mesma forma, quando se percebe uma cor ou
uma nota, fica-se cego ou surdo à sua repetição imediata, ou a impressão delas é falsa, e a nova cor ou a
nova nota aparecem como de mais fraca intensidade. Dá-se, pois, que a sensação normal não pode nascer
senão em ligação com uma precedente, que seja, simultaneamente, de qualidade semelhante e de
intensidade inferior. Como, porém, isso é possível, uma vez que a sensação precedente já então terá
desaparecido do órgão? Deve-se ver nisso uma prova de que o conhecimento não se funda unicamente em
sensações, como cria Protágoras, nem tampouco vem apenas da razão, como se despreende da filosofia de
Platão. E uma atividade complexa onde o inferior, que não se basta a si mesmo, encontra no superior sua
ordem e seu sentido(
Eis porque não se poderia aprender nem compreender fosse o que fosse, na ausência de qualquer sensação
e, por outro lado, o próprio exercício do intelecto deve acompanhar-se de uma imagem, pois as imagens
são semelhantes a sensações, exceto em que são imateriais. A imaginação, no entanto, é distinta da
asserção e da negação, pois é preciso uma combinação de noções para constituir o verdadeiro ou o falso."
(De Ao., 111, 8. 432a, 5.)
8. A imaginação, a memória, os sonhos
Essa alusão de Aristóteles à imaginação como a uma realidade sui generis vem acompanhada de
observações penetrantes. De início, observa que a imagem. distinta da sensação de que provém, é
indispensável à atividade do pensamento, mas pode ser verdadeira ou falsa:
'Que a imaginação não seja a sensação, é evidente... A sensação é, de fato, ou potência, ou ato, por
exemplo, vista ou visão; por outro lado, pode haver imagem na ausência de uma ou de outra: tais são as
imagens que se percebem durante o sono. Em seguida, a sensação está sempre presente, enquanto a
imaginação não está. Por outro lado, se a imaginação e a sensação fossem idênticas em ato, todos os
animais deveriam possuir imaginação; mas parece que realmente não é assim, pelo próprio exemplo da
formiga, da abelha e do verme. Em seguida, as sensações são sempre verdadeiras, enquanto as imagens
são, no mais das vezes, falsas... Enfim, como dissemos anterior mente, imagens visuais aparecem mesmo
quando temos os olhos fechados." (De An..
111,3, 428a, 5.)
A imaginação, que não é a ciência ou a intelecção, também não é a opinião, pois "... a opinião se
acompanha de convicção . Ora, nenhum animal possui a convicção, enquanto a imaginação é encontrada
em muitos deles. Isto se deve a que a convicção vem acompanhada de persuasão, e esta de razão; ora,
dentre os animais, alguns bem que possuem imaginação, não, contudo, razão. (De An., III, 3, 428 a, 15-
20). Assim, a imaginação se apresenta como faculdade intermediária entre a sensibilidade e a razão. Está
em ligação estreita com a memória. Quando os sentidos especiais estão inativos, a vida psíquica não se
detém por isto e sua atividade liga a função sensível à função imaginativa (como nos sonhos) e à
memória. Quando cessa
(1) Cf. Pierre SALZI, La genêse de la sensati,,n dons Les raj,ports o,'ec la théor:e de la co,,,, a chez
Protagoras, Pioro,, e, Ar,srr,te, Alcan, Paris, 1934, págs. 31-48.
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de atuar um estímulo externo, os movimentos sensoriais se prolongam e, como essas sensações retardadas
são reforçadas pelo acréscimo de sensações seme lhantes, todo um complexo de imagens se constitui.
Distingue-se a imagina ção da memória na medida em que esta implica a intervenção de um "sensível
comum", o tempo, que nos reconduz a uma continuidade vivida, a imagens- cópias de experiências
anteriores. A confusão nesse domínio é própria dos "desequilibrados", que tomam "suas imagens mentais
pelas realidades" (De Mem. et Rem., 1, in Parva Natura/ia, 451 a, trad. J. Tricot). Distingue-se a memória
igualmente da sensação e do ato cognitivo por essa implicação do tempo sentido. Se interessasse
unicamente à parte intelectual da alma, a memória não seria encontrada senão no homem, quando a
observação demonstra sua presença em inúmeros animais. Aristóteles distingue, a esse respeito, a simples
conservação do passado e seu retorno espontâneo ao espí rito, da faculdade de evocação voluntária por
esforço intelectual que localiza a lembrança no tempo. Apenas essa memória voluntária é função da inteli
gência, desse Noiis próprio do homem.
"Quem se recorda, com efeito.., chega à conclusão de que, anteriormente, viu, ou ouviu, ou passou por
alguma experiência desse gênero, e esse processus é uma espécie de busca, o que, por natureza, não
ocorre senão nos seres dotados da faculdade deliberativa',..." (DeMem. etRem., inParvaNaturalia, 453 a,
10, trad. J. Tricot,)
Esse "ato de reminiscência", porém, como diz Aristóteles, não nos reconduz a um saber adquirido em
existência anterior, como cria Platão; serve para reencontrar, com esforço ou sem ele, uma lembrança
desaparecida da consciência (isto é, no vocabulário de Aristóteles, tornado simplesmente potencial). E
esse ato é possível, porque os movimentos deixados em nossos órgãos pelas percepções tendem a
suceder-se segundo certa ordem onde se exercem relações de continuidade, de semelhança ou de
contrariedade consti tutivas do hábito:
"Quando... rememoramos, somos movidos segundo o movimento após o qual o que procuramos costuma
produzir-se." (De Mem. et Rem., 451 b, 15.)
Essa tentativa de restabelecer a continuidade rompida da memória nem sempre é bem sucedida:
Prova disso se encontra na perturbação sentida por certas pessoas quando não são capazes de lembrar-se
de uma coisa, a despeito de grande tensão do espírito, perturbação que não deixa de persistir quando já
tenham abandonado todo esforço de rememoração." (DeMem. etReni., 453 a, 15.)
Pensa Aristóteles que os "temperamentos melancólicos" são particular- mente sujeitos a esse desagradável
estado interior, que consiste, aqui, num difícil restabelecimento dos mecanismos desencadeados pelo
esforço da rememoração.
A propósito dos sonhos, enuncia uma idéia que já encontramos em Hipócrates, a de que podem anunciar
as doenças. Pois estas, observa, são precedidas de movimentos insólitos em nosso organismo, que
escapam ao estado de vigília, por estarem, então, eclipsados por impressões sensoriais mais intensas.
'No sono, verifica-se inteiramente o contrário, pois os pequenos movimentos nos dão, então, a impressão
de serem grandes (por força da inação dos órgãos senso- riais). Aquilo que muitas vezes se passa no sono
o demonstra com evidência: imagina- se, por exemplo, que troveja ou relampeia, enquanto, na realidade,
os ouvidos apenas percebem ruídos fracos; ou, ainda, que se ingerem deliciosamente mel ou doces
sabores, enquanto apenas uma gota de fleuma escorre (pelo esôfago); ou que se anda através do fogo,
quando apenas um leve calor atinge certas partes do corpo. Uma vez acordados, tudo nos aparecerá com
seu verdadeiro aspecto (isto é, como sendo, na realidade, coisas insignificantes). Como, porém, em todas
as coisas, os começos são modestos, é evidente que também modestos são os começos das doenças e
outras afecções que ameaçam produzir.se en? nosso corpo. Concluamos, portanto, ser mani festo que
esses começos devem, necessariamente, aparecer.nos com mais clareza no sono do que no estado de
vigília." (De Div. per Somnum, 1, trad. Tricot.)
9. O princípio de perfeição
Em virtude de sua ontologia, tudo se encadeia na concepção do Esta girita e, nela, a psicologia se
encontra ligada à moral. Vegetais, animais, seres humanos são encarados sob a perspectiva de conquista
incessante da matéria pela forma, pela atração de um Bem Supremo, a perfeição divina, que faz a matéria
passar por formas cada vez mais perfeitas. Trata-se de uma espécie de evolução em círculo, se é que se
pode falar de evolução a propósito duma realidade já evolvida, ordenada hierarquicamente por espécies
que permane cem fixas, cuja forma persiste através dos indivíduos que a atualizam. Esse princípio de
perfeição, que aparece na esfera do pensamento como estimu lante à pesquisa da beleza e da verdade, se
manifesta ao nível do desejo pelo impulso ao prazer. Ser, para um vivente, é crescer e reproduzir-se para a
conservação da espécie. O "divino na alma", para os seres inferiores, é esse impulso a gerar para que sua
espécie se perpetue simultaneamente no espaço e no tempo (De An., II, 4, 415 a, 22). E o desejo
permanece ligado ao sentido, enquanto a vontade é a forma que ele reveste sob o controle da razão. A
moral aristotélica não tem por fim, como a de Platão, um destino supraterrestre; seu desígnio é a
felicidade sobre a terra. NaEtica a Nicôrnaco (livro X), Aristóteles declara que o prazer remata a
atividade, como uma espécie de fim que a ela se acrescenta, tal como a beleza se acrescenta à juventude.
Toda atividade é fonte de prazer, desde que se exerça de conformidade com a natureza do ser que a
desenvolve. O homem, por sua natureza de ser racional, se inclina naturalmente ao exercício do
pensamento, principal fonte de felicidade. Uma vida humana conduzida de acordo com a razão assegura a
felicidade, idêntica à virtude. No mais alto grau, essa virtude é a vida puramente contemplativa do sábio.
Praticamente, felicidade e virtude se unem numa moral do justo meio (a coragem vale mais que a
covardia e a temeridade; a generosidade é preferivel à avareza e à prodigalidade...).
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CAPÍTULO 7

A PSICOLOGIA DO EPICURISMO E DO ESTOICISMO

1. A exigência imanentista
2. As condições históricas
3. Os átomos e oclinámen
4. A materialidade da alma e o conhecimento
5. A 'psicoterapia" epicuréia
6. O panteismo estóico
7. Opneüma divino
8. O mundo, a alma, a liberdade
Na doutrina epicurista e na doutrina estóica, a exigência imanentista, presente em Aristóteles, se
radicaliza e se manifesta sob forma de monismo cuidoso de uma coerência nova. Epicuro retorna a
Demócrito, esse pensador criticado por Aristóteles, com a disposição de atacar vivamente toda meta física
espiritualista, com o propósito deliberado de mostrar que uma teoria materialista da vida é não apenas
possível, mas preferível( Desprezando as crenças orfeo-pitagóricas, o epicurismo pretende demonstrar
que os homens apenas podem contar com a própria vida, seus próprios fins e sua razão pessoal, e que a
idéia de um universo sujeito a causas finais, por uma provi dência ou uma razão universal, deve ser, por
falaciosa, rejeitada. A única realidade é a dos átomos. Nada é incorpóreo, exceto o vácuo, totalmente
incapaz de sentir, agir ou pensar. Por isso, é absurdo considerar a alma como incorpórea. Esta é, aos olhos
de Epicuro, uma verdade preciosa, por permitir afastar os tormentos originados do desejo, da esperança
ou do temor com respeito a uma vida além-túmulo, e alcançar, assim, aquela liberação interior que
condiciona a única verdadeira felicidade acessível ao homem.
>1) A influência cultural de EPICURO foi Intuito mais extensa da que a dos primeiros atOmistaS
)LEUCIPO e DEMOCRtTO); por isso é que, a despejos da intuição genial destes Ciltimos, mantenho na
obscuridade essa primeira manifestação da física corpuscular. Flabitualmente. coloca-se UEMOCRITO
ILEUCIPO nos é quase desconhecido> entre os pré-socráticos. e John BURNET obsersa, a este respeito,
que tat costume obscurece a curso verdadeiro do desensoltimento histórico. Pois OEMOCR{TO.
contemporõneo e mais toco do que SOCRATES, é posterior a PROTAGORAS. e sua teoria é
condicionada tanto por unta interrogação sobre o problema do conheci inento. quanto por preocupações
morais (L 'aurore dela pkikoop/iie greeque. introdução).
CAPÍTULO V
A PSICOLOGIA DO EPICURISMO E DO ESTOICISMO
1. A exigência imanentista
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2. As condições históricas
Essa doutrina aparece quando agoniza a pólis grega, numa época em que a nostalgia de salvação pessoal
tende a prevalecer sobre o gosto da especu lação pela especulação. Epicuro era adolescente quando
Alexandre morreu (1), Sabe-se que se seguiu uma luta encarniçada dos generais de Alexandre pela
partilha da herança imperial e o estraçalhamento da Grécia por lutas intes tinas. Período de sangue e
assassínios, do qual nasceram monarquias militares, absolutistas e burocráticas. Período de decomposição
em que os atenienses, outrora tão orgulhosos de sua liberdade, erigem um altar, como a um (teus salvador,
a Demélrio Poliorcetes. esse extravagante gozador, a quem, na época em que Epicuro abre sua escola na
cidade, irão até o ponto de instalar no Partenon( Devia ser grande a tentação, nessa época, para os
melhores espíritos, de evadir-se da história, e o epicurismo pode revestir o sentido de uma recusa oposta à
estupidez e à crueldade por um espírito lúcido e sem ilusões. A necessidade de compreender, de
coordenar e de justificar todas as formas da realidade, culminante em Aristóteles, cede o passo à
preocupação de uma vida liberta de perturbações, indiferente ou insensível aos acontecimentos políticos e
sociais. "Viver oculto", eis o preceito constante da escola. Surdos aos descaniinhos do tempo, o "filósofo
do jardim" e seus discípulos retomaram, a seu modo, o facho da cultura grega; e seu papel é, então,
análogo ao que desempenharão os monges na Idade Média. Sabe-se a imensa veneração de que Epicuro -
tão denegrido, aliás - foi cercado quando vivo, e o culto que seus discípulos lhe tributaram após a morte, a
ponto de os centros epicureus permanecerem os mais temíveis rivais do cris tianismo até que este
recebesse a investidura da autoridade imperial.
3. Os átomos e o clinâmen
Orientada no sentido da conquista de uma sabedoria libertadora, por sua vez fundada numa física
dogmática, a doutrina epicuréia não reserva à psicologia senão lugar subordinado. A atitude moral é que
lhe importa em primeiro lugar e a ciência da natureza não deve servir senão para justificá-la
racionalmente:
• 'Antes de mais nada, cumpre nos persuadamos de que o conhecimento dos fenômenos celestes, quer
encarados em si mesmos, quer em conexão com os outros fenômenos, não tem outro fim em si senão a
ataraxia e uma firme confiança: tal como é, igualmente, o fim de todas as outras pesquisas." (Gw-ia a
Pítocles.)
Ora, a ciência da natureza estabelece que, bem pesadas as coisas, nada
existe além de corpúsculos em movimento, átomos, como já dizia Demócrito,
(1) Nascido em 341 ou 342 a.C., EPICURO escreveu muito, mas sua obra desapareceu. Não dispomos de
mais do que três cartas a seus disciputos (a I-IERODOTO sobre a física, a PITOCLE5 sobre a
meteorologia, a MENECEU sobre a moral), de uma coleção de pensamentos. do texto de um testamento,
de alguns fragmentos. encontrados no século XVIII, e de um tratado sobre a natureza. A essa pobre
documentação, acrescentam-se fra de outros epicuristas, o admirável poema de LUCRECIO, De Renim
Natura, uma Vida de Epouro. de DIOGENES LAERCIO, traduções e citações em autores de outras
tendências (CICERO, SENECA, PLUTARCO.
(21 "Esses pobres atenienses perderatn a tal ponto o espírito, que até deixais de ser espirituais. Dá-se o
nome de I3t:MÍ 1 RIO a are dos meses, couro também ao último dia de cada mês. A festa de Dioniso
torna-se a lesta
dv tl ÍRIO." CC NORMAND. íírr,oirr' eri'cqro'. Paris, ACuo. 1503.)
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incriados e indestrutíveis, cuja única diferença se encontra em sua forma e tamanho, embora este último
jamais seja tal que possamos percebê-los. A teoria de Demócrito, o epicurismo acrescenta a idéia de
clinâmen, isto é, de um desvio dos átomos. Levados pelo próprio peso e caindo como chuva, jamais
teriam podido afastar-se de suas trajetórias paralelas nem, portanto, encontrar-se e aglomerar-se para
formar os mundos, sem certa capacidade de desviar-se um pouco da linha reta. Ao atribuir ao átomo esse
poder, introduz Epicuro no domínio da natureza um princípio de indeterminação que lhe permite evitar as
conseqüências morais implicadas por um mecanismo rigo roso e, assim, salvaguardar a liberdade humana.
Pois vê nela um modo particular da espontaneidade que subsiste no interior dos agregados formados pelos
átomos. Nada provém de nada e a vontade livre seria inconcebível num mundo sujeito a determinismo
absoluto. Esse elemento de contingência intro duzido na natureza foi, em geral, acolhido com frieza pelos
filósofos, de Cícero a Leibniz. Em compensação, Karl Marx, em sua tese de lena, em 1841 (Diferença
entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epícuro), rende- lhe homenagem por essa intuição do
átomo como centro de força, como fonte de energia, que restitui à natureza e aos indivíduos uma vida que
o mecanismo de Demócrito não podia explicar.
4. A materialidade da alma e o conhecimento
Se os átomos em movimento constituem a única realidade, não poderia a alma constituir exceção
privilegiada. Ela não se distingue do corpo a não ser por uma maior sutileza dos elementos componentes,
por ser formada de partí culas redondas, muito tênues, infiltradas entre as do corpo e, assim, dissemi
nadas por todo o organismo. Essa difusão da alma pelo organismo explica, segundo os epicureus, a
solidariedade entre as diferentes partes de um ser vivo. A esse corpo sutil que constitui a alma, atribuem a
dupla função de difundir a vida pelo organismo e permitir as atividades psíquicas, afetivas e intelectuais.
Tais atividades são condicionadas pela união entre alma e corpo e essa união prova, a seu ver, a
materialidade da alma. Se fosse de natureza diversa da do corpo, não poderia movê-lo, nem com ele
sofrer, O epicurismo conhece muito bem a interação entre as duas instâncias (o declínio das forças vitais e
intelectuais com o do corpo, as perturbações ou a cessação aparente da consciência na embriaguez, em
certas moléstias como a epilepsia, no des maio...) e resolve a problemática daí decorrente pela afirmação
de sua materialidade comum. Nem por isso Epicuro deixa de pensar que as coisas são mais complicadas
do que pensava Demócrito, para quem os átomos da alma eram simplesmente ígneos; considera que a
vida orgânica (e, por mais forte razão, a função psíquica) implica a presença de vários elementos na
compo sição da alma. Além de um elemento ígneo (que Lucrécio denomina calor ou vapor), e dois outros,
análogos a gases ou ao ar, mais um existe, sem nome (nominis expers), nascido de certa combinação
acidental de átomos geradora da sensibilidade, e cuja importância é decisiva. De sutileza e mobilidade
todo particulares, composto dos átomos menores e mais tênues, é a sede das sensa ções, e a ele atribui a
escola as atividades psíquicas. A finura dos elementos que constituem o que Lucrécio chama "a alma da
alma"('), ou o animus em
(1) DeR 111.145.
relação à anima, permite entrar em contato com aspectos da realidade que escapam às percepções
sensoriais cujos materiais são mais grosseiros. Em linguagem moderna, equivaleria a dizer que a alma é
sensível a vibrações imperceptíveis aos sentidos, O papel desse elemento é, evidentemente, condi cionado
pela função que preside à vida orgânica, pois a individualidade da pessoa, em semelhante teoria, é
forçosamente de ordem física. O corpo, composto de átomos mais pesados e menos móveis, serve de
abrigo e proteção aos que formam a alma; estes estão, destè modo, impedidos de dispersar-se no ar, o que
ocorre no momento da morte. Por ser material é que a alma pode experimentar sensações ao contato das
coisas. Todos os corpos emitem conti nuamente emanações, eflúvios, outros tantos "simulacros", isto é,
minúsculas imagens deles mesmos:
" existem ...] imagens da mesma forma que os corpos sólidos, as quais, dada sua sutileza, se encontram
muito além daquilo que percebemos. Não é impossível, com efeito, nem que tais emanações possam
nascer no ambiente, nem que aí encontrem condições favoráveis à construção de imagens em relevo ou
planas, nem que os eflúvios assim saídos dos corpos conservem, na mesma ordem, a posição e a
colocação que possuíam nos próprios sólidos. A tais imagens chamamos simulacros." (Carta a Heródoto.)
Infinitamente mais sutis que os objetos apanhados pelos sentidos, esses simulacros se deslocam no espaço
com rapidez inconcebível:
como o movimento que os transporta pelo vácuo não encontra nenhum obstáculo para com ele chocar-se e
levá-lo para trás, faz toda espécie de percurso imaginável em tempo inconcebível pelo espírito. Pois o
aspecto de lentidão ou de rapidez de um movi mento resulta da resistência, ou da não-resistência, por ele
encontrada." (Carta a Heró doto.)
No estado de vigília, tais simulacros penetram em nós pelos órgãos dos sentidos. Durante o sono,
introduzem-se pelos poros e suscitam os sonhos. Atribui-lhes até Epicuro, uma vez que se combinem de
determinado modo, a aparição em sonhos de objetos inexistentes em parte alguma (a de um centau ro, por
exemplo). Nega Epicuro que o ar possa desempenhar o papel de inter mediário nas percepções visuais e
auditivas, pois ele próprio é composto de átomos. Através dos interstícios destes últimos é que deslizam
os das emana ções; e seu papel, portanto, antes se exerce no sentido de um freio:
'A audição, igualmente, provém de certa corrente emanente do objeto que faz ouvir uma voz, um som, um
ruído, enfim daquilo que, de alguma maneira, determina impressão auditiva. Essa corrente se difunde e se
divide em partículas sólidas e homo gêneas, que conservam ao mesmo tempo certa conformidade entre si
e identidade de natureza com o objeto particular que as emitiu: assim, determinam em nós, o mais das
vezes, percepção clara desse objeto; à falta disso, apenas nos revelam a existência, fora de nós, de um
objeto sonoro. Pois, sem certa emanação emitida pelo objeto e conforme a ele, a percepção do som não
poderia ocorrer como ocorre..." (Carta a Heródoto.)
A sensação, fonte única do conhecimento, constitui a evidência primei ra, afides prima, segundo
Lucrécio('). Todas as sensações se reduzem a certo
(1) LUCRÉC1O,D Nat., IV 505.
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contato com o que é exterior a nós porque o tacto, o tacto. ó deuses pode rosos, é o sentido de nosso corpo
inteiro"( 1), Se o erro existe, é que a atividade espontânea da alma - reflexo, em nós, da contingência
natural - pode con duzir a interpretações fantasistas, O juízo, na medida em que provém, ele próprio, das
sensações, não poderia convencer de erro senão outros juízos e de modo algum a sensação como tal.
Porque esta é um estado do sujeito que nos reconduz, forçosamente, a uma realidade objetiva que o
produz, isto é, ao mundo dos objetos inseridos, eles próprios, num movimento total. Ao contrá rio, as
interpretações das sensações podem ser erradas - é o caso de certos juízos ou de delirios - e sujeitas a
retificação. E, para distinguir as interpre tações falsas (contraditas ou não-confirmadas) das verdadeiras
(confirmadas ou não-contraditas), recorre o materialismo epicureu, no domínio do conheci mento, a uma
espécie de norma perceptiva na qual a repetição parece desem penhar o papel essencial.
5. A "psicoterapia" epicuréia
A atividade espontânea da alma lhe permite exercer sobre o corpo a ação que a técnica moral dos
epicureus supunha: o recurso tranqüilizador, nos momentos de sofrimento, às lembranças de momentos
felizes, e a pros crição dos pensamentos deprimentes, para atingir a felicidade ainda quando a alma
orgânica sofre com o corpo ao qual se encontra mesclada. Na tranqüila firmeza demonstrada durante a
doença que o levou à morte, Epicuro ofere ceu, de sua teoria, uma espécie de demonstração experimental.
Essa teoria tem por fundamento o papel atribuído às idéias-imagens (quer digam respeito a um objeto de
desejo ou aversão, ou ainda ao sujeito em vias de exercer tal ação ou de comportar-se de determinada
maneira) de mover o animus; e o poder deste último de exercer, então, por intermédio da anima, ação de
estí mulo ou repressão sobre certos movimentos corporais. Não é fácil represen tar-nos com clareza esses
processos, tais como os imaginava Epicuro, e grande é o risco de neles introduzir estruturas elaboradas
pela psicologia moderna. Parece certo, contudo, que ele se apercebeu de que um controle da imaginação
(distinta das sensações, na medida em que o animus pode ser influenciado por átomos finos e móveis
demais para serem perceptíveis aos órgãos sensoriais) é a condição sine qua non da liberdade interior
postulada por sua moral.
Como já lembrei, todas as elucidações de Epicuro têm por objeto muito menos o saber em si mesmo do
que uma técnica com vistas à salvação pessoal. O fim essencial é a eliminação do sofrimento, a conquista
dessa calma interior que é a ataraxia; implica a liberação do temor aos deuses, aos castigos além- túmulo,
como das preocupações relativas a qualquer finalidade do universo. Em matéria de morte, enunciou
Epicuro pontos de vista penetrantes sobre esse fato indubitável de que nela pensamos, forçosamente, com
nossa cons ciência de vivos. Prolongando mentalmente nossa vida neste mundo é que imaginamos uma
existência post mortem capaz de experimentar nossos desejos e nossos temores.
II) Ihid., 111,434.
Reduzindo embora a vida moral ao prazer, pensa Epicuro que não há verdadeiro prazer senão o durável.
Eis porque, longe de preconizar uma corrida aos prazeres fugidios, aplica-se em elaborar uma espécie de
economia nesse domínio, para não admitir senão as necessidades indispensáveis à vida (beber, comer,
dormir). Ainda estas, convém satisfazê-las com moderação. Os outros desejos, sobretudo os ligados à
vaidade e à ambição, devem ser cuidadosamente postos de parte. Trata-se, em suma, de uma política
pessoal que implica uma atitude moral reduzida ao interesse judiciosamente enten dido. A injustiça não
compensa, pois pode ter conseqüências cujo temor enve nena a alma. Assim também a amizade é um
grande bem, porque nos traz um sentimento de segurança e reconforto. No plano da vida politica e social,
o "viver oculto" dos epicureus exprime seu abstencionismo de princípio, que se não deve derrogar salvo
se o interesse da própria salvaguarda estiver em jogo.
Encontra-se em Lucrécio uma explicação naturalista das origens do homem e do desenvolvimento da
civilização. Assim, nada vê que deva levar- nos a atribuir aos deuses, de perfeita indiferença, um méritõ
atribuível unica mente ao trabalho e à experiência dos humanos. Na doutrina epicuréia, se a razão
pretende exercer-se soberanamente no domínio moral, seu papel gnosiológico se reduz à capacidade de
utilizar materiais que resumem ou condensam dados sensíveis. Essa capacidade constitui outra forma de
evidên cia (acrescentada à evidência sensível): a de uma espécie de pensamento universal, formada em
nós pela rememoração de séries constantes e que se traduz, especialmente, por antecipações e prenoções.
E assim que os concei tos, como, por exemplo, os de homem" ou de 'calor", revestem, para nós, sentido
imediato na medida em que evocam grande número de percepções anteriores. A transformação das
sensações particulares em noções é maqui na!, sem excluir, no entanto, aquela reflexão que a atividade da
alma torna possível e a que certas relações presidem. Epicuro invocava especialmente o papel da
concomitáncia, da analogia, da similitude e da fusão (das imagens em quadros compósitos).
6. O panteísmo estóico
A longa história do estoicismo não é a história de uma simples retrans missão. Trata-se, antes, de um
motivo fundamental diversamente orques trado( 1) Passando para Roma, o aspecto moral da teoria
prevalece a ponto de deixar apenas lugar muito secundário à especulação metafísica; e a doutrina se torna
essencialmente uma técnica de disciplina pessoal, de educa ção do caráter. No estoicismo romano, é de
todo acentuada a vontade humana como capacidade de negação, fundamento da liberdade interior, como
poder de dizer não aos impulsos, aos desejos, aos fantasmas da imaginação, a fim de desenvolver e
manter uma firmeza de alma teoricamente inabalável: é uma escola de domínio, de vigilância constante, e,
ao mesmo tempo, de submissão ao destino. Pois o panteísmo que emoldura esse voluntarismo estóico
postula
(1) Sabe-se que o estoicismo remonta a ZENO (de Cítio), o qual ensinou sob o Pórttco (stuÓ) de Atenas,
proaeelnieote a partir de Mó) a.C.. e que, defendida, cor seguida, por seu discípulo CLEAN 1 ES Ide
Assos) e pelo aluno do discípulo, CRISIPO Ide Solos), apelidado, em virtude da importância de sua obra,
o "segundo fundador do Pórtico", a doutrina passou depois a Roma, onde deveriam ilustrá-la os nomes de
SENECA, de EPICTETO e de MARCO AURELIO.
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que os acontecimentos se encadeiam rigorosamente numa ordem universal, a qual constitui, para todos os
seres individuais, a lei de seu destino.
7. Opneõma divino
Uma solidariedade fundamental une os elementos do real, na medida em que participam todos dopneiima
divino, eterno animador do mundo. Esse pneuma, princípio de coesão no mundo inorgânico, age como
vida organi zadora no mundo vegetal e cria, no mundo humano, uma forma de vida onde a razão se
explicita. Está-se, assim, em presença de uma escala ascendente, de unia hierarquia devida a um
desenvolvimento onde o superior, como em Aris tóteles, envolve o inferior, embctra aqui se inscreva no
contexto de uma doutrina que pretende ser materialista. Tal como no epicurismo, com efeito, a ligação da
alma com o corpo, de cujas afecções partilha, é invocada por Cleantes como argumento em favor de sua
materialidade, pois, a seu ver, uma comunidade de natureza é a condição necessária de tal união. Mas
(contraria mente ao epicurismo) vê a doutrina estóica, nessa comunidade da natureza, exatamente a prova
de que a razão, desenvolvida no homem, não poderia pertencer-lhe como privilégio exclusivo. Tem como
certa a existência de uma razão universal, fundamento da ordem cósmica, à qual o homem não pode
deixar de aderir tão completamente quanto possível. O viver de acordo com a natureza de Zeno, como o
naturam sequi de Cícero, exprimem esse duplo aspecto, antropológico e ontológico, do comportamento
racional, do qual dependem a um tempo a felicidade e a virtude. Se o primeiro preceito da famosa
máxima estóica: suporta e abstém-te determina uma submissão ao destino num sentido que lembra, por
vezes, o A de Nietzsche: "ama o que te sucede e está ligado a teu destino"( 1), o segundo assinala uma
preocu pação em evitar a dispersão, em concentrar-se num fim privilegiado: "é loucu ra fatigar-se a gente
durante toda a vida, sem ter um fim ao qual se relacionem todos os movimentos do coração e, em geral,
todos os pensanientos"( 2).
No plano teórico, se a noção do pneüma ocupa lugar central na dou trina, observam-se flutuações quanto
à maneira de conceber a natureza e sua ação nas coisas e nos seres( Zeno a ele recorre em sentido
nitidamente materialista (a materialidade da alma é provada por sua natureza de pneüma), reservando o
nome de Lógos ao princípio universal que preside ao desenvolvi mento necessário das coisas. Em
Cleantes intervém o termo para designar uma divindade material e imanente, idêntica à alma do mundo.
Trata-se de um sopro ígneo que, penetrando o Cosmos por inteiro, lhe assegura a coesão e a vida, e do
qual a alma humana é parcela. E uma constante na doutrina isso de que as diversas realidades cósmicas,
possuindo embora sua individualidade distinta do mundo ambiente, constituem um ser único. E é
fundamental, através de toda a história do estoicismo, a idéia da solídariedade que une os seres humanos
no mundo na medida em que são, no grande todo, minúsculos órgãos, microcosmos. E certa a analogia
entre a cosmogonia dos estóicos e sua
(1) MARCO AURÉLIO, Pensome, livro VII, LVII.
(2) MARCO AURELIO, Pensame, cap. XX, §5.
(3) C L de ia docirine da pneüma da sto à Sainí.Augustin. por O. VERBEKE, Biblio Ibêque de ('InstituI
Supérieur de Philosophie. Universidade de Lovaina, Paris'Lovaina, 1945.
maneira de conceber o psiquismo humano, cujas atividades se explicam todas por fluidos que atravessam
o organismo corporal. Tais fluidos são sujeitos à hegemonia da parcela da alma que tem sede no coração.
Ora, pensam os estóicos que esse centro hegemônico, para a alma cósmica, é o sol, foco das correntes
ígneas que percorrem o universo e dão origem à vida. Na medida em que esse pneüma divino ultrapassa
as realidades terrestres, não é inconcebível
que se lhe possam dirigir orações. O hino de Cleantes o testemunha. Sua teodi céia mostra que o caráter
imanente da doutrina estóica não pode ser afirmado sem reserva e que a ruptura com o dualismo de Platão
longe está de revestir sempre o aspecto radical que lhe confere Epicuro. Por outro lado, embora admita
que a alma passiva é uma parcela destacada dopneí2ma dos pais, julga Cleantes que ela se prende a um
elemento superior (oNoüs), preexístente à sua
união com o corpo e que, portanto, não desaparece com ele. Tal sobrevivên cia, segundo Crisipo, está
reservada às almas melhores. Seja como for, não poderia tratar-se de imortalidade verdadeira, pois a
doutrina admite que um incêndio universal, periodicamente, reabsorve tudo quanto existe, inclusive as
próprias almas. Não é fácil compreender, aliás, porque as almas dos melhores
- aqueles que restauraram em sua alma a perfeita tensão do fogo divíno - não deveriam ser absorvidas nele
após a morte, à semelhança das dos insen satos, que se decompõens e retornam aos elementos.
As preocupações de uma sobrevida pessoal passam, aliás, nitidamente para o segundo plano nos estóicos
do Império:
"A morte põe fim à rebelião dos sentidos, à violência das paixões, aos desvios do pensamento, à servidão
que a carne nos impõe" (Pensamentos de Marco Aurélio, livro VI.)
"Tudo quanto é material cedo desaparece na massa da matéria universal; tudo quanto age como causa
particular logo é retomado pela razão primordial do universo; e a lembrança de tudo é sepulta pelo tempo
como num túmulo." (Livro VII.)
"O que tem medo da morte, tem medo de ser privado de todo sentimento, ou de tê-lo de outro tipo. Mas,
se ele não tem mais sentimento algum, não sentirá, conse qüentemente, nenhum mal; e, se adquirir outra
faculdade de sentir, será um ser de espécie diferente, e não cessará de viver." (Livro VIII.)
8. O mundo, a alma, a liberdade
No domínio do conhecimento, o estoicismo não reconhece a distinção estabelecida por Aristóteles entre a
sensação e a intelecção, que atribui, a esta última, atividade específica. Admite que a certeza está presente
nos primeiros conteúdos do conhecimento, isto é, nas representações; o fato de que são sensíveis ou
intelectuais não o leva a atribuir-lhes grau diferente de certeza. O objeto, presente na representação, é sua
causa, ao mesmo tempo que causa da impressão produzida na alma; e o papel desta se limita a um
"assentimento" necessário à compreensão. A certeza do conhecimento é garantida, assim, pela atividade
do objeto, que penetra a alma e a ilumina. Trata-se, em suma, de provar, embora ao preço dè uma
ajudazinha, que o espírito funciona sempre de acordo com a realidade, pois não se trata de construir um
mundo espiritual em ruptura, mas, antes, de fundamentar uma sabedoria cujo essencial é, ao contrário, a
aceitação do destino inscrito nas coisas. Pois, se também os
1
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animais dispõem de representações, o homem é capaz de interpretá-las, para inseri-las, com seu valor
próprio, na realidade total. A percepção humana do objeto é acompanhada de uma copercepção de si
mesmo, que permite relacio nar-se com as coisas apreendidas e apreciá-las.
Em resumo, a teoria estóica do conhecimento implica a compreensão
natural das coisas, fundada no postulado de uma harmonia necessária entre a
representação e o assentimento; vê sinal dessa harmonia na tendência à
autoconservação individual que apenas confirma uma lei natural. Assim, o
assentimento, ao mesmo tempo imposto e voluntário, não poderia ser
recusado.
Coube censurar a doutrina por firmar-se em duas atitudes fundamen tais aparentemente pouco
condiiáveis: por um lado, um individualismo que exalta a vida interior num sentido forçosamente
separatista; por outro lado, um panteismo que afirma a dependência total das criaturas à ordem uni versal.
De fato, se a teoria estóica do destino pressupõe as representações como as causas do assentimento e,
assim, de nossas tendências, a alma não poderia delas depender sem comprometer irremediavelmente a
liberdade. Por isso, por uma espécie de deslocamento de perspectiva, veio a acentuar-se, mais tarde, a
faculdade humana de utilizar as coisas de certa maneira, a auto nomia do sábio que pode, depois de
examiná-la e criticá-la devidamente, rejeitar a representação. Esse aspecto assume importância quase
exclusiva em Epicteto e em Marco Aurélio, que insistem freqüentemente nesse papel do sábio; e a
faculdade de interpretar se torna, então, verdadeiro poder de transformação:
'O que nos governa é essa faculdade da alma de excitar-se, dirigir-se, compor- se a si mesma segundo sua
vontade, de encarar tudo quanto sucede apenas do ponto de vista que quer." (Pensamentos de Marco
Aurélio, livro VI.)
"A respeito de tal ou qual assunto, é-me lícito nada presumir e, assim, evitar a perturbação da alma;
porque as coisas não têm, por si próprias, a virtude de nos impor juízos." (Ibid.)
Quanto a Epicteto, é bem conhecida sua afirmação:
Assim, por profunda exigência moral, o estoicismo chega a opor drama ticamente a alma ao corpo, a
despeito do naturalismo que, teoricamente, afirma. A compreensão já não é o que era na teoria primitiva,
isto é, a conse qüência natural do assentimento, voluntário mas necessário, concedido pelo sujeito à
representação. Antes que ao objeto em si, ela se aplica à aparência suscitada por ele e elaborada pelo
sujeito; e é essa subjetividade deformadora, e, não, o próprio real, que o sábio deve tomar como objeto de
estudo e subme ter à crítica. Daí uma análise depreciativa das coisas em Marco Aurélio, para libertar-se
da sugestão delas:
"Que vês no banho que tomas? Gordura, suor, impurezas, água suja, coisas todas repugnantes: eis o que
existe também em cada parte de tua vida e em tudo que se acha sob teus olhos... Diante das deliciosas
iguanas e de outros alimentos que me servem, tenho o direito de dizer: este é um cadáver de peixe; aquele
um cadáver de frango ou de porco; ou ainda, este falerno é um pouco de suco de uva; esta roupa de
púrpura, um tecido de pêlos de ovelha, mergulhado na tintura do sangue extraída dum molusco..."
(Pensamentos, livros VI e VIII.)
Se se podem considerar artificiais os liames estabelecidos çntre seu aspecto antropológico e sua ontologia
dogmática, a psicologia moral dos estói cos conserva singular valor pelo fato de pôr em evidência a
liberdade interior, por sua vigorosa afirmação - excessiva, embora - da energia humana como disciplina
capaz de subtrair o homem às servidões exteriores e assegurar-lhe o domínio de si. Sob esse aspecto, o
ensinamento dos estóicos apresenta analo gia com o de certas escolas orientais, que vão mais longe ao
atribuir ao psiquismo humano o poder de influenciar a própria vida orgânica.
"O que perturba os homens, não são as coisas, mas as opiniões que delas fazem." (Manual, V.)
Se, independentemente de nossa vontade, podemos tudo perder: saúde, situação, honras..., somos
senhores absolutos de nossa reação diante desses infortúnios. (Manual, 1.) Mal admite Marco Aurélio que
a alma possa ser influenciada pela vida fisiológica:
"Que a parte essencial de tua alma, faculdade diretriz e soberana, não se deixe comover pelas impressões
doces ou rudes que a carne experimenta. Que, em lugar de amalgamar-se com a carne, se feche em si
mesma, e confine as afecções físicas em seu domínio próprio. Se, por simpatia, cuja causa não depende
dela, essas afecções se estendem ao espírito, por causa de sua união com o corpo, não cabe então fazer
esforço a fim de repudiar uma sensação que está na ordem natural; mas que tua faculdade diretriz evite
tomá-la quer por um bem, quer por um mal." (Pensamentos, livro V.)
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CAPÍTULO VIII
A IRRuPçÃO DO PENSAMENTO HEBRAICO
1. O sincretismo alexandrino
2. Filo e a tradição judia
3. A alma e o mundo exterior
4. A vida espiritual
5. A mudança de perspectiva
1. O sincretismo alexandrino
Sabe-se a difusão que teve a cultura grega, na época chamada com justeza de helenística, enquanto seu
país de origem, após o desmembramento do império de Alexandre, havia praticamente desaparecido da
cena política. Os séculos seguintes são de profunda crise, dominada por estranha necessi dade de evasão e
caracterizada pela fusão entre o pensamento grego e o orien tal, muito particularmente o hebraico. Se
Roma devia suplantar Atenas politi camente, a vida intelectual e moral teve centro, de início, na
Alexandria dos Ptolomeus, imenso cadinho de um mundo onde se mesclavam, com as mais diversas
populações, gregas, egípcias, judias, sírias..., numerosas tradições e crenças, vagas e confusas aspirações.
Embora o surto de Alexandria tenha comportado iniciativas surpreendentes( esses séculos serão marcados
por um decinio geral da pesquisa e da demonstração rigorosa, por um pulular de teorias fantasistas, de
práticas e cultos extravagantes, de superstições curio sas. As preocupações com a alma individual, seu
destino após a morte, tornam-se obsessivas e orientam a curiosidade em certo sentido. Assim é que se
pretenderá ver, no orfismo, uma ciência revelada muito antiga; assim é que se pesquisarão em Homero
pretensas transcrições alegóricas de verdades ocultas; em Platão, mitos por interpretar como textos
sagrados... Assim é que
(1) Lembrei (fim do cap. II as pesquisas empreendidas em Alexandria. especialmente anatômicas e
fisiotógicas, favorecidas pela prática da dissecção. Os estudantes e os cientistas que afluiam a cidade, aí
encon travam também um jardim botânico e zoológico, um laboratório de química e um observatório de
astronomia. Seu famoso museu compreendia uma biblioteca, cuja coleção se enriquecia sistematicamente
com manuscritos e cópias em número enorme.
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surgirá o sincretismo religioso atribuído a Hermes Trismegisto (o três vezes grande), e que se difundirá,
no século II, sobretudo entre os cristãos, a dou trina dos gnósticos, nascida em Antioquia e que invocará a
seu favor o testemunho de Zoroastro. Como o gosto do maravilhoso que alimenta essa vaga de misticismo
era o oposto da sabedoria sem ilusões de Epicuro, de sua aceitação fria e serena da condição humana, este
filósofo e seus discípulos começam a ser objeto daquela reprovação e, até, daquela repulsa que virão a
conhecer da parte dos adeptos do cristianismo, nascido justamente nesses séculos de intensa fermentação
caótica.
2. Filo e a tradição judia
A figura de Filo emerge no seio da importante comunidade judia de Alexandria, disseminada bem para
além dos dois bairros da cidade a ela atribuídos. Sua obra, rica de intuições desconexas, ilustra a junção
do pensa mento grego com a tradição hebraica, num momento em que os gregos esta vam como que
cansados de tanto haver refletido sobre si mesmos e em que os judeus se preocupavam em afirmar, nessa
sociedade helenizada, a excelência e a perenidade de seu próprio gênio. Filo entende provar a seus
compatriotas que sua tradição é superior à dos gregos, embora suas teorias muito devam aos sistemas
filosóficos desses últimos, que conhece muito bem. Se deles se serve largamente, é, porém, na medida em
que neles encontra elementos utilizáveis em favor da concepção hebraica do homem, entendido como
veículo de uma consciência supranatural, e de Deus concebido como pessoal e transcendente. Assim, os
motivos mais importantes que deles extrai são, sobretudo, os pita góricos e platônicos.
Fora do espaço e do tempo, Deus não apenas é imaterial (contraria- mente à crença dos estóicos) como
não se confunde nem com o mundo, nem com a própria alma. E estranho.a toda multiplicidade, a tudo
quanto é com posto, mutável, dependente. Não se pode, portanto, tirar das coisas visíveis imagem alguma
a ele convinhável, nem utilizar, a seu respeito, qualquer dos termos aplicáveis a perfeições relativas e
criadas. Desse Deus supremamente desconhecido, Filo nos revela, contudo, não pouca coisa: uno,
simples, imutá vel, eterno, imenso, é o modelo, criador e conservador exemplar e onipresente de tudo
quanto existe; se ninguém o vê, ele tudo vê, e sua atividade soberana se exerce sem que, por isso, precise
sair de si mesmo. O sol não ilumina o mundo sem vir até ele? E os olhos não contemplam o céu sem
abandonar o corpo? Capaz de mover todas as coisas sem ir até elas; Deus pode, pois, da mesma forma,
comunicar-se a um espírito humano, sem de modo algum alienar sua pureza indivisível. Filo ainda lhe
atribui a suprema bondade e a generosidade criadora.
Preocupado com evitar o antropomorfismo, esforça-se por interpretar a Bíblia simbolicamente; a alegoria,
nele um processo constante, intervém para designar tanto uma força da natureza como uma virtude moral,
e de tal maneira que uma primeira significação, vulgar, recobre outras, acessíveis apenas aos iniciados.
Por outro lado, a coerência não é a qualidade mestra desse pensador transbordante de inspiração mística.
Compreendemos, no entanto, que Deus não queira "sujar as mãos", como diria Sartre. Sua trans-
cendência é tal que sua ação se exerce por intermediários: idéias, anjos, arcanjos; por meio desses
intendentes ou vigários é que ordena, recompensa, ou castiga. Filo os descreve ora como forças abstratas,
ora como divindades subalternas, como agentes da Onipotência. Parece não distinguir nitidamente entre
idéias ou modelos contidos no espírito divino, e ministros ou mensa geiros de Deus, "subdiáconos"('). O
conjunto desses poderes forma um todo:
o Logos (Palavra, Verbo, Pensamento de Deus), anterior à criação do mundo material. A propósito dele,
Filo multiplica os epítetos e as metáforas (Homem de Deus, Imagem de Deus, Princípio, Grande
Sacerdote do Mundo, Intér prete de Deus, Sol Inteligível, Profeta de Deus, Filho mais velho de Deus...).
É difícil, contudo, falar de anterioridade, pois o mundo, embora tenha começado, não foi criado no tempo.
Com efeito, pensa Filo que o tempo (idéia que reaparecerá em Santo Agostinho) surge com o próprio
mundo que, uma vez criado, nele se desenvolve. O mundo e o homem inteligível estão contidos no Logos
desde sempre com as razões de tudo quanto existe. Esse mundo está submetido ao império de relações
numéricas, em virtude de um simbolismo matemático, já sustentado pelos pitagóricos, e que encontramos
também na medicina hipocrática, e do qual subsistem traços na assim chamada numero logia
contemporânea. Assim é que Filo, o qual faz do número 7 a expressão da Lei, relaciona-o com o livro do
Gênese. Crê que os astros são seres vivos cuja influência é certa, mas considera a astrologia como
ocupação perigosa; admite também que o ar está cheio de espíritos, alguns dos quais se alojam nos corpos
humanos, enquanto outros servem a Deus em suas relações com os habitantes da terra.
3. A alma e o mundo exterior
Embora Filo julgue não podermos conhecer nossa alma e afirme, a esse respeito, um cepticismo de
princípio, parece, contudo, que o ser humano se compõe de dois elementos heterogêneos: um, corporal e
terrestre; inseparável do sangue; o outro, sopro divino, sede da vontade e da inteligência, da liber dade,
proveniente do Logos.
De sua interpretação do Gênese, atrás mencionada, depreende-se que Deus produziu, inicialmente, um
mundo inteligível e ideal, oLógos, antes de serem modelados os elementos e os seres concretos e, depois,
o homem visível. Pensa Filo que tudo quanto existe manifesta certo poder. No nível mais baixo, a coesão
é assegurada por um fluido que percorre o mundo, e expresso pelas próprias coisas mediante uma
tendência à autoconservação; as plantas, num grau mais elevado, atestam um poder de crescimento; e
grau ainda superior é assinalado por um princípio de vida. Sob essa forma, a alma, cuja essência é o
sangue, é comum a todas as criaturas e transmite-se de uma geração a outra pela semente. E o sinal da
superioridade dos animais sobre as plantas, tal como o espírito assinala a superioridade do homem sobre
os demais habi tantes da terra.
O primado que Filo atribui à reflexão do espírito sobre si mesmo e à superioridade do conhecimento
adquirido por essa via mal permite compreen
(1) D Mo, livro II. 1.
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der o papel das sensações no conhecimento. Parece que os dados sensíveis devam ser considerados
neutros em si mesmos e tudo dependa do uso que deles se faz, da orientação da conduta. Pois Filo admite
que o desejo, a tris teza ou o temor servem de aguilhão à alma. Por outro lado, se atribui à sensi bilidade a
contribuição, para o espírito, das noções exatas, as do branco e do preto, por exemplo, ou do quente e do
frio, julga errado crer serem nossas percepções idênticas aos objetos percebidos. Uma deformação se
produz, do gênero daquela a que os homens apaixonados submetem o objeto de seu desejo, adornando-o
com qualidades inexistentes. Tais observações demons tram que Filo era consciente de certa influência
exercida pela afetividade sobre o juízo. Estabelece uma espécie de hierarquia entre os sentidos, consi
derados como instrumentos de conhecimento. O ouvido e, sobretudo, a vista ocupam nela lugar
privilegiado relativamente ao paladar, ao olfato e ao tacto. Pois os olhos, que refletem os movimentos da
alma, podem erguer-se ao céu para dele receber a luz, símbolo do espírito divino. A impressão sensível
põe em ação três elementos: o próprio objeto, a sensibilidade e a inteligência que a recebe; ora os objetos
exteriores impressionam por si mesmos a alma, ora a inteligência vai por seu próprio movimento na
direção dos objetos, para captá los ou compreendê-los. Um movimento de atração ou de repulsão está
ligado à impressão sensível e parece que esta se inscreve numa zona da vida psíquica onde reinam uma
sensibilidade e uma imaginação passivas, involuntárias com relação à atividade da inteligência. Filo
admite, com efeito, certa indepen dência da sensibilidade em face da inteligência. Seria em vão, observa
ele, ordenar esta aos olhos que não vissem, aos ouvidos que não ouvissem, às narinas que não sentissem.
A sensibilidade é dada Com o ser vivo. Mas, se escapa à vontade, a atividade sensorial se liga, no homem,
a um senso interior, por sua vez estreitamente ligado ao espírito. Sua intervenção assegura o controle
interior, permite distinguir as ações intencionais das que não o são, explicar a diferença entre olhar ou,
simplesmente, ver.
4. A vida espiritual
Enquanto o espírito é luz, unidade, concentração, os sentidos são obscuridade, pluralidade, dissipação;
passivos e inferiores, pertencem ao corpo e podem causar a ruína da alma. Pois, esta se encontra como
que aprisionada no corpo e dele libertar-se é o preço de sua volta a Deus, garantia de feliz eternidade. Por
isso a busca dos prazeres é má em si. pois corrompe a alma e a agrilhoa ao perecível. A matéria aparece
em Filo como o não-ser, o devir, o mal, a morte, e, ao mesmo tempo, como o corpo e a extensão em três
dimensões. Não parece tenha indagado sobre a matéria, assim entendida, donde Deus extraiu o mundo.
O homem é o único ser livre e racional sobre a terra, graças a seu espírito, devido ao Logos divino. Sobre
a natureza desse espírito humano, o NoíZs, Filo não nos ensina grande coisa, a não ser que se situa na
cabeça, onde se localizam os órgãos privilegiados da visão. Filo não se preocupa muito com o problema
suscitado pela passagem da simples representação das coisas à captação das relações entre elas. Acontece-
lhe, aliás, contradizer-se quanto ao próprio valor que convém atribuir à inteligência. Pois, se insiste em
sua
origem divina, em sua anterioridade em relação às demais faculdades, em sua liberdade, afirmando que
dia virá em que há de abandonar a sensibilidade para retornar ao seio de Deus que a emprestou ao
homem, também lhe ocorre insistir em seus defeitos, representá-la como faculdade falaciosa, instável,
sujeita aos descaminhos e à loucura, tão fraca que desaparece "no êxtase, na melancolia ou em
conseqüência de longa velhice" (1).
No que respeita à linguagem, distingue Filo o "que nossa voz produz exteriormente", de uma linguagem
inata, interior, que nos impulsiona aos atos dos quais depende nossa vida moral; do Verbo divino, em
suma, cujo caráter principal é a verdade. Da linguagem humana, de origem divina, com preendeu a
importância na formação e na formulação do pensamento:
"A linguagem( diz ele, "é irmã da razão; pois o demiurgo dela fez como o órgão do composto que somos,
um ruído articulado. Essa linguagem exprime os pensa mentos; vem ao encontro das concepções da
inteligência. Quando o espírito elaborou algum pensamento, quando tomou impulso, quer tenha sido
movido por si mesmo, quer tenha recebido impressões exteriores, a inteligência se torna prenhe dessas
concepções; não as pode gerar, contudo, até que a palavra, tendo-as recebido por inter médio da língua e
dos outros órgãos vocais, dê à luz essas idéias. A própria voz é o mais luminoso dos pensamentos(
Enquanto a percepção nos mantém em contato com o exterior, a inte ligência é capaz de voltar-se para
dentro, como se dá na meditação. Algo de análogo se produz durante o sono, favorável aos vaticínios,
pelo fato de que o espírito, nesse estado também, está então desligado da atividade sensorial. Longe de
relacionar todos os sonhos com as sensações, Filo insiste no elemento de liberação que o sono introduz
relativamente à vida dos sentidos, para fazer valer a idéia de um conhecimento atingível nesse estado de
passividade senso rial. Decorre desse ponto de vista o reconhecimento de um primado atribuído aos
transes e às visões proféticas. Tal motivo místico não foi, por certo, igno rado pelos gregos. Basta
recordar, a esse propósito, as tradições dos Mistérios, a Pítia de Delfos, e até o "demônio" de Sócrates.
Em Filo, porém, ele inter vém sem contrapartida, por assim dizer, num sentido que resolve a tensão
subjacente à especulação grega sacrificando um dos termos da antinomia: o do pensamento racional com
suas exigências particulares. Por meio deste é que os gregos se haviam livrado dos mitos inerentes à
experiência mística ou, quando menos, se haviam esforçado por substituí-los por explicações lógicas. Sob
esse aspecto, a época de Filo assinala um retorno aos mitos. O esforço do pensamento não visa mais a um
conhecimento objetivo da realidade, mas essencialmente à identificação, no eleito, da alma individual
com Deus, num estado inexplicável, pois indescritível, no qual é o próprio Deus que vive, atua e fala nela,
como falou pela boca dos profetas e dos adivinhos(
(1) De Cherubim, 33, cf. Édouard HERRIOT, Phi/on le Jwj, essai sue I'éco/ejuire d'Alecaadr Paris,
Hachette. 1898, pág. 283.
(2) Quod dei erius pooori in,s,di solear, 34.
(3) Éd. HERRIOT, Philon leJuij, pág. 285.
(4) Com referência à profecia e ao êxtase em FILO, cl. Émile BRÉHIER, Les d phrlosophrques ei
relrgieuses de Philon dAlexarsdrie. part. livro III, págs. 179-205. Pans, Vrin, 1950.
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5. A mudança de perspectiva
A mudança de perspectiva implica uma atitude psicológica diferente, que substitui a pesquisa puramente
humana, fundada no ideal da razão, por uma submissão e uma piedade incondicionais, mas queridas com
fervor tendente a uma espiritualidade militante. A obra de Filo é característica do motivo que se introduz
no pensamento ocidental: o de uma fé apaixonada num Deus criador, atingível apenas do interior, e, pois,
unida à aspiração a um contato íntimo com ele. Em seu sincretismo um tanto desnorteante, de origens e
direções variadas, seu misticismo anuncia, sob muitos aspectos, a psicologia da era cristã, da qual contém,
em germe, as doutrinas futuras da alma e de sua união com Deus. Há até neste misticismo como um
esboço da Trindade em sua concepção do Logos, Verbo e Filho mais velho de Deus, que é, ao mesmo
tempo, a idéia do mundo sensível, esse filho mais novo de Deus. (Quod Deus sit immuíabilis, 7.)
Aí também se encontrarão as contradições que virá a conhecer o pensa mento cristão no decurso de seu
desenvolvimento: essa espécie de oscilação entre o racionalismo herdado dos gregos e uma concepção
transcendente e revelada que a Igreja monopolizará; entre a liberdade do homem responsável e a
onisciência de Deus todo-poderoso; entre o desejo de jugular o espírito crítico em proveito da fé e a
preocupação de explicar para convencer(').
"Com Filo, produz-se na história da filosofia um grande acontecimento, cujas conseqüências se farão
sentir durante séculos e cuja repercussão será infinita. A filoso fia não é mais a livre pesquisa. Quaisquer
que fossem, e-fosse qual fosse a sua verdade, os filósofos gregos - e essa é sua maior honra diante da
história - haviam buscado as verdades primeiras livremente, sem qualquer coerção, sem outro controle
além da livre razão. Quanto a Filo, tem opinião formada desde o início, e não vai reformá Não discute
problemas; verifica axiomas, O trabalho que faz sobre a Bíblia, outros, mais tarde, o farão sobre
Aristóteles. Com Filo, é o reino da escolcís(ica que começa(
(1) É provável que FILO tenha nascido lá por 30 ou 40 a.C., haja desempenhado pape! político em
Atexandria e vivido até idade bem avançada. Dele nos ficou obra considerável (cerca de duas mil
páginas). Curiosa mente, nela não se encontra traço algum do acontecimento em torno do qual iria nascer
e cristalizar-se durante séculos uma concepção nova do homem e de seu destino.
)2) Édouard HERRIOT, Philssv /einif págs. 348-9.
)*) Neste passo, parece conveniente transcrever, ao lado da tradução, a frase de HERRIOT. muito expres
visa e sem correspondència possível em português, como se verá. É esta: "PHILON, ai, a von parti pris
dès l'abord et "von siége (ai!"." A locução vem de que o abade René Aubert de VER'IOT )lb55-l735(.
historiador francês, autor de estudos vários (sobre as revoluções ens Portugal, as revoluções na República
Romana, etc-), estando a trabalhar em sua JJjstónu da Orde,n de Ma/ta (ordem da qual era historiógrafo).
veio a conhecer um erudito que pretendia comunicar-lhe pormenores interessantes do cerco de Malta--,
como já houvesse redigido o relato do episódio, retrucou o abade ao informante: "J'en suis fâché, mais
non siége est fail". Cf. Maurice RAT, Dictionnairm' dt's /ocul,vns françamses. Laronsse Parts. 1957. (1.
B. O. P.)
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CAPÍTULO IX
O ACME DO "NEOPLATONISMO": PLOTINO
1. Plotino e seu tempo
2. A alma universal
3. O domínio da psicologia
4. A imaterialidade da alma e opneürna
5. O organismo e as sensações
6. A imaginação, a memória, a consciência
7. A inspiração de Plotino
1. Plotino e seu tempo
Apresenta-se Plotino como a figura mais alta dessa época de crise e sua obra como o auge depurado do
que se convencionou chamar neoplatonismo. Em certa medida, trata-se realmente de um retorno, para
além do epicurismo e do estoicismo, a Platão e à tradição pitagórica, menos afastada espiritual mente da
tradição hebraica, mais apta a fornecer uma resposta às aspirações confusas desse tempo, à vaga de
misticismo e de ocultismo desfraldada sobre o mundo mediterrâneo, que os diques postos pelos filósofos
gregos já não podiam conter. Pois o fim não é mais a sabedoria conquistada pelo desdobra mento da razão
soberana, mas a restituição, à alma, de uma riqueza que ela teria perdido. Em lugar de um esforço para
pôr em evidência, pelo pensa mento, as estruturas julgadas fundamentais da realidade, para opor às vicissi
tudes da existência e aos descaminhos da imaginação urna quietude e uma constância adquiridas pela
aceitação da condição humana, trata-se de rompi mento das barreiras do "eu" individual, de evasão dessa
condição pelo recurso a uma ascese apropriada.
Todo o ensinamento de Plotino visa a subtrair o homem à realidade
concreta, abrindo-lhe uma via puramente contemplativa e mística, à qual
pouco importa a ação:
Vede os homens: quando a contemplação neles se enfraquece, passam à ação.
que é uma sombra da contemplação e da razão; incapazes de entregar-se à contem plação em virtude da
fraqueza de suas almas, não podem captar bem os objetos e
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saciar-se da visão deles; desejam vê-los, contudo, e procuram, por meio da ação, ver com os olhos aquilo
que não podem ver com a inteligência,..." (Ennéudes, III, 4.)
Mas, se a admirável síntese plotínica se situa num contexto de eferves cência irracional e mágica, e se
oferece, ela também, resposta à necessidade geral de evasão, o gênio próprio de seu autor é ter satisfeito
essas exigências com vigor bastante para que seu pensamento, por mais representativo que seja da época,
a ultrapasse e adquira direito de cidade no que se pode chamar de Panteão espiritual da humanidade.
2. A alma universal
Retoma Plotino, para dela tirar todas as conseqüências, a concepção órfica e platônica da alma como
essência precipitada dos remos felizes do Além sobre a terra. Conservando, de suas origens, a lembrança
e uma vaga nostalgia, encontra-se no corpo como num túmulo. E Plotino crê que uma volta à idade de
ouro lhe é possível, desde que ela conheça os meios para isso. Pois, se a alma humana cedeu às seduções
do mundo material e ao orgulho de constituir um mundo para si própria, a alma universal não a
abandonou. Reintegrar-se nessa alma depende dela, com a condição de purificar-se, de renunciar às
atrações do corpo, de escapar à roda dos nascimentos pela ciência e pelo ascetismo. A curta e sugestiva
biografia que Porfírio consagra a seu mestre, principia assim: "Plotino, o filósofo de nossos dias, parecia
enver gonhar-se de estarem um corpo".
Mas outra tradição desemboca, também, no plotinismo: a que se pode chamar "animista", representada
particularniente pelos estóicos, na qual a alma é encarada como força organizadora. Daí um
pampsiquismo associado a essa concepção da alma como realidade sobrenatural. Para clareza das coisas,
é impossível deixar de recordar que a metafísica plotínica faz intervir três instâncias fundamentais: o Um,
a Inteligência e a Alma universal, encarada a primeira como a realidade suprema que ultrapassa toda
inteligência, toda existência e, pois. toda determinação e limitação. Como do Sol emana a luz, é do Um
que emanam o Logos ou Inteligência, sede das Idéias, e depois a Alma universal. Esta, portanto, tem
origem em princípio que lhe é superior; é a imagem, a manifestação exterior da Inteligência, cujas formas
eternas (que as coisas sensíveis refletem imperfeitamente) são admitidas por Plotino como modos de
atividade. A Inteligência, reino da unidade, relativamente à multi plicidade do mundo sensível que ela
articula, só é acessível - e apenas em certa medida - por esforço de interiorização. Fazer idéia disso só é
possível isolando-se a gente do corpo e da alma sensitiva que lhe assegura o fun cionamento:
"Cumpre que a alma esqueça de bom grado o que lhe vem de baixo.., poucas coisas cá de baixo convêm a
uma vida elevada." (Ennéades, IV, 3-32.)
Têm as almas a faculdade de permanecer unidas à Inteligência divina, libertando-se da atração que sobre
elas exercem as coisas exteriores; ou, ao contrário, de renegar a seus laços com Deus, afastar-se d'Ele para
escravizar- se ao contingente e perecível.
O entendimento humano, com sua função discursiva, é considerado por Plotino como intermediário entre
a inteligência e o mundo sensível: em seu esforço por compreender as coisas exteriores é que ele se eleva
em direção à inteligência e dela recebe a iluminação. A imagem da inteligência se lhe revela, então, pela
luz que ela dispensa, como a região que envolve o Sol é iluminada pela luz que dele emana('). A própria
Inteligência, porém, na medida em que encerra o movimento e a diferença, o uno e o múltiplo, ainda não
é a unidade perfeita, pois não se pode exercer sem um objeto. Por isso Plotino, que teve viva consciência
da dualidade inerente ao exercício do pensa mento, situa em nível ainda superior a unidade perfeita,
manifestada, a seu ver, pela necessidade de absoluto que habita certas almas. Esse Um "no interior e na
profundidade de todas as coisas" (Enn., VI, 18), causa absoluta de todas as coisas e de si mesmo,
liberdade e mistério insondáveis, somente se pode atingir pelo êxtase, transporte que liberta a alma de
toda limitação, e pela completa fusão da alma com esse inefável, substância e fonte infinita da vida
espiritual. E na pura atividade contemplativa, quando se esforça por descobrir o Um e nele absorver-se,
que a alma desfruta da mais alta liberdade
- aquela liberdade que permite abdicar voluntariamente de toda determi nação pessoal e fundir-se no
objeto de seu amor. Cons em si mesma, a realidade da Alma universal é indivisível, superior a tudo
quanto existe no espaço e no tempo. E as almas individuais, dela brotadas, participam por seu mais alto
grau da mesma contemplação inteligível. Se os homens desconhecem sua unidade, é por olharem fora do
ser do qual dependem:
Todas as almas provêm de uma só; essas almas múltiplas, originárias de uma alma única são como as
inteligências; estão e não estão separadas." (Enn.,
IV, 3,5.)
Émile Bréhier resumiu com muita propriedade os traços essenciais desse "animismo" plotínico:
"Essa física espiritualista está na mais radical oposição concebível a toda física de espírito mecanista.
Jamais encarar as partes como verdadeiros elementos do todo, mas como produções do todo; considerar,
por conseguinte, a idéia ou a produção do todo como mais real que as próprias partes, tais são esses
princípios. E estes levam a estabelecer, entre as partes do universo, ligações de natureza puramente
espiritual; assim torna-se o mundo sensível transparente ao espírito, e as forças que o animam podem
reingressar na grande corrente da vida espiritual(
3. O domínio da psicologia
Ressalta, assim, dessa concepção, uma psicologia subordinada a uma dialética procedente da absoluta
simplicidade do Um para a multiplicidade das coisas, uma vez que a ascensão da alma, encarada como
retorno à fonte de seu ser, implica uma prévia descensão; com a conseqüência de que as funções
ordinárias da vida psíquica (sensibilidade, memória, raciocínio) são consi deradas como nascidas de uma
decadência da vida espiritual. Pois, nos
(1) Ennéades, V, 3, 8, 9. Cl. Charles WERNER, La phik'sophie grecq Payot, Paris, 1938, pág. 246.
(2) La phiiosophie de Plotin, Boivin eI de, pág. 57.
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estados superiores desta última, o sentimento da personalidade desaparece. ao mesmo tempo que a
atenção às coisas exteriores e, até, a lembrança do eu. Noutros termos, as funções normais do espírito não
constituem, de modo algum, o centro do psiquismo para Plotino, mas derivações, e mesmo limi tações da
vida espiritual. Em semelhante contexto, a alma percebe, na medida em que se volta para as afecções de
sua parte sensitiva ou irracional; reflete, na medida em que a cisão dos estados de consciência entre um
sujeito e um objeto lhe permite pensar e saber ao mesmo tempo que está a pensar. E se a contemplação é
o fim último, é que uma pura atividade espiritual, para além desse dualismo sujeito-objeto, é não só
possível como desejável. Por tanto, não há mais nem antes nem depois, nem memória nem tempo, para a
alma, que desfruta de repouso absoluto e cessou de mover-se fora de si mesma:
"Resulta que na alma, no grau mais elevado de vida espiritual, não há memória, pois a alma está fora do
tempo, nem sensibilidade, pois a alma não tem relação com as coisas sensíveis, nem raciocínio ou
pensamento discursivo, pois não há raciocínio no eterno. Entre as funções normais da consciência e a
natureza íntima da alma, existe uma contradição (1)."
4. A imaterialidade da alma e opneõma
À idéia estóica da materialidade da alma, objeta Plotino que tudo quanto é material é divisível e
corruptível, até o ar e o sopro; e que a alma, assegurando a unidade do organismo e de suas percepções,
não pode ser senão uma essência indestrutível:
"Tudo que, para existir, implica uma composição, decompõe-se naturalmente nos elementos de que se
compõe; a alma, porém, é natureza una, simples e existe toda atualmente no fato de viver; portanto, não
perecerá." (Enn., IV, 7, 12.)
À concepção estóica de uma conaturalidade perfeita entre o pneüma, incessantemente alimentado pelos
eflúvios do sangue, e o corpo, opõe Plotino o fato de a alma não poder ser localizada, no organismo, à
maneira de um corpo material que ocupa determinado lugar no espaço. O contrário é que é verdadeiro:
"A alma não está no mundo; mas o mundo está nela; pois o corpo não é um lugar para a alma. A alma está
na inteligência; o corpo está na alma." (Enn., V, 5, 9.)
Os estóicos haviam concluído pela identidade entre o princípio de vida e o pneüma (esse sopro quente que
se exala constantemente do sangue) com base na experiência imediata: a morte acarretada por interrupção
da respi ração, por grande perda de sangue... Contesta Plotino que tais fatos sejam decisivos, pois muitos
outros elementos são indispensáveis à vida, os quais nem por isso poderiam ser considerados como fonte
dela. Aliás, não exclui de sua psicologia o pneüma entendido como sopro material, atribuindo-lhe, porém,
natureza e papel diferentes. Não é mais, para ele, a alma propria
(1) É. BRÉHIER. op. d pág. 71.
mente dita (a alma é um princípio imaterial) mas um intermediário de sutil corporeidade, tomado de
empréstimo pela alma, quando de sua encarnação terrestre, às órbitas planetárias. Opneüma desempenha,
assim, segundo ele, como nos escritos herméticos, o papel de traço-de-união entre a alma e o corpo. E
uma espécie de envoltório da alma encarnada, cujo abandono, se ela permaneceu impura, não lhe é fácil
no momento da morte. Neste ponto, chegamos ao que se pode chamar o ocultismo de Plotino.
Pela mesma época, circulavam inúmeras teorias análogas, bem menos elaboradas que a sua, as quais
relatavam a descensão das almas, do céu à terra, como atravessavam a esfera das estrelas fixas e, depois,
os círculos dos planetas, e a influência que estes nelas exerciam. É quase escusado lembrar que a
astrologia e a quiromancia nos transmitiram tais crenças, pelo menos no tocante a essa influência astral.
Acrescente-se que a alma imaterial é, segundo Plotino, o substrato das verdades eternas (figuras
geométricas e valores absolutos) que o homem pensa quando a si mesmo se pensa.
Vale dizer que Plotino também não admite a solução aristotélica da alma como forma do corpo, no que
essa solução lhe parece comprometer a independência daquela em relação à matéria, independência, a seu
ver, comprovada pelo processo do conhecimento, uma vez que se trata, segundo ele, de demonstrar que
toda percepção é ativa, e que a passividade aparen temente implicada na dependência da alma em relação
aos objetos que ela conhece se reduz, em última análise, a um concurso de formas inteligíveis na alma
receptiva ou sensitiva. Em suma, a alma utiliza o corpo como uma força ativa utiliza seu instrumento
natural, introduzindo-o no campo de sua irra diação psíquica (Enn., IV, 3, 22); ela se caracteriza por sua
unidade funda mental e só parece múltipla quando a encaramos sob o ângulo de suas funções.
5. O organismo e as sensações
Essa unidade da alma é refletida pela do próprio organismo em sua diversidade funcional.
No caso do tacto e do movimento, é inteiramente instrumento da alma. Mas, no concernente à vista, ao
ouvido, ao olfato, ao paladar, órgãos especiais entram em jogo e, portanto, certa pluralidade de funções.
Não há audição sem ouvido, nem visão sem olhos. E a alma, se é efetivamente indivisível e está toda
inteira em cada um de seus aspectos, não pode entrar na posse do que espera dos órgãos sensoriais a não
ser entrando em relação com eles. Tal necessidade explica as distinções inerentes à própria pluralidade da
experiên cia sensível. O cérebro, ponto de intersecção da razão imaterial com a alma sensitiva e o
organismo, constitui região privilegiada, pois possibilita o enten dimento e sua função discursiva, que
desempenha papel de intermediário entre o mundo sensível e a inteligência. Os nervos que daí partem são,
também, instrumentos da alma.
Os estreitos liames que Plotino reconhece haver entre a cabeça e a razão, entre o fígado e o desejo, devem
ser considerados como estabelecidos entre os instrumentos que a alma utiliza para fins diversos, e lhe
dizem respel
74
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to apenas enquanto ela se volta para eles para obter determinados efeitos, O desejo, que se localiza no
fígado e dá origem ao instinto de conservação, surge como fenômeno complexo, com diferentes níveis.
Seu ponto de partida está no corpo vivo, "que não quer ser um simples corpo", que tende a aumentar sua
vitalidade.
Num primeiro estádio, o desejo é simples pendor, que depende do estado atual do corpo. Num segundo,
está na "natureza", isto é, na parte emanada da alma que conserva o corpo vivo, ou ainda na alma,
enquanto unida ao corpo; essa "natureza" acolhe dos pendores do corpo apenas aqueles que servem à
conservação do organismo. Num terceiro estádio, enfim, o desejo penetra até a alma('):
"A sensação apresenta a imagem do objeto e, a partir dessa imagem, ou a alma, a quem cabe esse papel,
satisfaz o desejo, ou a ele resiste, suporta-o e não dá atenção nem ao corpo em que o desejo começou,
nem à natureza que em seguida desejou." (Enn., IV, 4, 20-21.)
Segundo Plotino, todas as emoções pertencem à unidade que constitui o organismo vivo, a saber, o corpo
e a alma sensitiva. A composição do sangue desempenha, no concernente à alma sensitiva, importante
papel, pois as funções vitais dela dependem. No fenômeno da cólera, distingue Plotino o que vem do
corpo, o efervescer da bílis e do sangue, e o que vem da alma. De início, é a percepção ou a imagem do
objeto que causou essa revolução orgâ nica; em seguida, a disposição da alma a atacar e a defender-se.
Mas existe também uma "cólera que vem do alto", isto é, casos onde a representação do objeto e a
disposição moral são anteriores às modificações fisiológicas (Enn., IV, 4, 28). De qualquer maneira, uma
afecção, seja devida a um agente exte rior ou a um movimento interno, aparece numa totalidade que
implica sua localização no organismo e uma alma cognitiva que a registra. O fenômeno comporta uma
modificação orgânica, sofrida pelo corpo, e uma percepção agradável ou dolorosa, conforme a
modificação aumente ou diminua a unidade do corpo e da alma sensitiva. Plotino distingue, nesse
processo, das sensações propriamente ditas, o que se pode chamar simples impressões, pelo fato de a alma
não experimentar a própria afecção, e de o estado afetivo se acompanhar de um conhecimento decorrente
desse estado (a sensação). E o aparelho sensorial desempenha o papel intermediário entre a alma,
impassível por essência, e o objeto exterior, causa da impressão. A alma total tem, portanto, a sensação da
afecção produzida, sem experimentar a própria afecção:
"A sensação não é sofrimento, mas conhecimento do sofrimento"; ... "a alma localiza a dor por estar, ao
mesmo tempo, no local particular dessa dor e no corpo todo." (Enn., IV, 6, 2; IV, 4, 19 e s.)
Na medida em que o prazer e a dor interessam igualmente o corpo, Plotino os situa num nível mais baixo
que a memória. Julga que a aliança entre o corpo e a alma é "perigosa e instável", pelo fato de o primeiro
estar submetido a modificações mais ou menos compatíveis com a presença da vida
(1) É. BREHIER, op. cii.. pág. 77.
que recebe da alma. Se um aumento de sua vitalidade suscita o prazer, a diminuição dessa vitalidade
origina a dor.
6. A imaginação, a memória, a consciência
Plotino atribui à imaginação, resultante das sensações e, ao mesmo tempo, função racional, papel
intermediário entre as atividades inferiores e superiores da alma. Quando a alma se volta para o mundo
material, utiliza imagens derivadas das impressões sensíveis. Mas também lhe é lícita a flexão sobre si
mesma, a volta para o interior e assim a contemplação, como objetos, de seus próprios pensamentos,
refletidos nessa espécie de espelho que consti tui, então, para ela, a imaginação. A alma, quando a
consideramos em relação à sensação, é o agente que pode cumprir sua função sem o corpo, mas exerce
certa atividade até nesse nível.
Ora, a memória não pertence da mesma maneira à alma e ao corpo. Nasce assim que a alma sai do
inteligível e dele se quer distinguir, pois não há mais, então, assimilação completa entre ela e seu objeto.
E essa distância que a reduz a não possuir senão imagens, provindas de uma penetração incom pleta do
objeto, suficiente, entretanto, para dispor a alma de conformidade com esse objeto. (Enn., IV, 4, 3.)
Nasce a memória quando a duração invisível perde algo de sua unidade e se fragmenta. E depende, então,
da atitude da alma que desperta o passado na medida em que tem interesse nesse despertar. Se sensações
diferentes, provocadas por objetos diferentes, não a interessam, ela não as acolhe. Em suma, a memória
apenas tem lugar numa vida fragmentada, constantemente assaltada por impulsos novos e necessidades
sempre renascentes('). E compa rável a um tecelão, incapaz de trabalhar sem instrumentos, mas que pode
pensar em seu tecido na ausência dos instrumentos. Se as impressões deixas sem atrás de si marcas
análogas às do sinete na cera, constituiriam material indispensável à alma para lembrar-se de alguma
coisa, e a memória seria, assim, comparável a um palimpsesto. Ora, justamente, só se pode utilizar um
palimpsesto apagando preliminarmente a escrita anterior e não seria possível compreender como a alma
poderia conservar, a um tempo, a impressão antiga e a nova.
Na realidade, o que permanece na ausência de qualquer objeto é o fato de ter agido de determinada
maneira e a memória não é, finalmente, senão a capacidade própria da alma de conhecer suas atividades
anteriores. A impres são na alma é uma "espécie de intelecção", ainda quando se trata de coisas sensíveis.
Se a memória se reduzisse a simples acúmulo de impressões, impos sível seria que a lembrança pudesse
ter por objeto, não apenas sensações, mas pensamentos. Maior ainda seria a dificuldade nos casos em que
a lembrança versa sobre o que não se produziu, pois seria preciso então admitir que a memória conserva
os traços de objeto que nela não influiu.
A doutrina da memória ocupa, na psicologia de Plotino, lugar desta cado. Tende a demonstrar que é
impossível concebê-la como simples resul tante das sensações, e que ela não é, em última análise, senão a
consciência
(1) É. BRÉHIER. op. cii.. pág. 75.
76
77
em sua extensão. Se o fluxo das coisas nela se encontra como que suspenso, não é que certas percepções
tivessem encontrado como que um refúgio para subtrair-se a esse fluxo; é, na realidade, porque a alma,
"diferente das coisas que estão em perpétuo fluir", se manifestou. Plotino vê no funcionamento da
memória a prova de que a consciência não se reduz a uma sensação mais complexa, a uma impressão tão
transitória quanto a relação à qual é devida.
Lembrei que sua intenção última era o acesso a um plano em que a própria consciência, entendida como
distinção entre um sujeito e um objeto, esteja ultrapassada, e que ele vê, na supressão desse dualismo, a
condição mais positiva para a alma, seu estado por excelência. Não se pode duvidar de que esse estado de
contemplação extática deve ser chamado de "inconsciente", uma vez que apenas assim pode aparecer o
próprio supraconsciente em relação a nossa consciência original, ligada a uma personalidade de que Ploti
no não faz grande caso. De fato, observa que "pensar não é a primeira coisa, nem pelo ser, nem pela
dignidade", que é "uma ação de segunda ordem, pois vem após o bem e desde sua concepção se move na
direção dele" (Enn., V, 6). Chega até a declarar que a consciência, longe de ser vantagem, é defeito e sinal
de defeito, pois não se tem consciência senão do anormal e da moléstia, e a saúde não desperta nenhum
eco (Enn., V, 8, 113). Razão por que a memó ria se vai eliminando à medida que a alma se vai
purificando.
7. A inspiração de Plotino
A obra de Plotino se apresenta, em certo sentido, um pouco como o canto do cisne do helenismo, por sua
preocupação em elaborar um sistema coerente que satisfaça as exigências da razão; e um sistema
impessoal, cuja estrutura integra e dissimula a angústia caracteristica daquela época, inerente ao destino
da alma individual e aos problemas do Além. Vale dizer que esses novos motivos de inspiração
encontram no plotinismo sorte muito diferente da que lhe reserva o cristianismo nascente, mas, em
compensação, singular- mente próxima do pensamento religioso da India, tal como se exprime nos
Upanixades. Pois, se o homem de Plotino se liga, pela virtude e pela razão, aos fundamentos mais
profundos do ser, não é concebido "como império dentro dum império"; a ação divina não se exerce
apenas sobre ele, pois ele não possui o privilégio exclusivo de um alma que Plotino atribui igualmente ao
universo e aos astros. A essas caracteristicas, pelas quais tal pensamento diverge da psicologia dos
apologistas cristãos, acrescenta-se uma atitude aristocrática à qual repugna implorar uma salvação que o
homem deve obter para si por meio da virtude fundada na ciência, única revelação divina. Essa virtude é
adquirida por esforço solitário, pelo poder de meditação, por contato com o Um, que não implica
Salvador, nem apelo a Deus. E pela própria necessidade de sua natureza que o Um, como a luz, distribui
seus benefícios; e a alma, em conseqüência de sua identidade fundamental com ele, vai encon trá-lo no
mais profundo de seu ser, como o sujeito puro que a constitui como ser autônomo e independente. Sob
esse aspecto, o plotinismo, que desse modo assinala, em relação à tradição clássica da Grécia, uma
passagem rumo a uma interioridade mais exigente, tendente a estabelecer o primado dos atos espiri tuais
sobre todas as ciências objetivadas, exerceu, mediante a cultura cristã, enorme influência no
espiritualismo e no ide do Ocidente.
78
CAPÍTULO X
A PSICOLOGIA CRISTÃ
1. A nova intuição do mundo
2. São Paulo
3. A psicologia dos apologistas
4. Tertuliano
5. Clemente de Alexandria
6. Orígenes
1. A nova intuição do mundo
Assinalei, a propósito de Filo e de Plotino, a crise profunda que atra vessa o mundo mediterrâneo nos
séculos em que nasce o cristianismo, quando uma espécie de febre e nostalgia das almas inquietas se
traduz por aspirações vagas, por uma sede de purificação, de redenção e salvação, a que correspon dem
todas as espécies de práticas religiosas, teúrgicas, e até mágicas.
O que caracteriza o surgimento da intuição cristã nesse clima contur bado é a imensa esperança ligada à
boa nova, é o anúncio do fim dos tempos e a chegada do Reino de Deus, o apelo a uma conversão radical,
para uma plenitude de amor para com o Pai e suas criaturas, na "fé, esperança e cari dade". Trata-se de
coisa inteiramente diferente da construção de sistemas explicativos a respeito do mundo desde então
iluminado. Trata-se de nma experiência de vida nova, acessível a todos, de uma comunhão fraternal no
fervor do desligamento do mundo e de suas servidões, para desde já ter acesso ao Reino de Deus.
O racionalismo, já profundamente comprometido pelas especulações alexandrinas, dá lugar a um
espiritualismo exaltado; a exigência científica cede lugar à da fé transportada nas asas da imaginação.
Esse motivo inspi rador, despertar prodigioso da subjetividade humana, embora seguido de 'ima história
repleta de luta e de sangue, dá à humanidade um sentido inédito da vida moral, a certeza vivida de um
renascimento espiritual do homem liberto do jugo das paixões terrenas.
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O drama da história posterior é o da integração dessa nova intuição na estrutura social; é o preço de seu
triunfo sobre as outras religiões de mistérios apreciadas no Império, e sobre o espírito crítico alimentado
por longa tradição helênica. De início, na ambiência passional que prevalece, essa tradição é
negligenciada, e até desprezada. Pois cumpre não esquecer que os homens viviam, então, na crença,
inseparável naquela época das idéias cristãs, da parusia, da segunda vinda de Cristo glorioso e do fim do
mundo.
Declarará São Paulo que Cristo o havia enviado para anunciar o Evan gelho "não em sabedoria de
palavras, para que a cruz de Cristo se não faça vã". "Porque, como na sabedoria de Deus o mundo não
conheceu a Deus pela sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação. Porque os
judeus pedem sinal e os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é
escândalo para os judeus, e loucura para os gregos. Porém para os que são chamados, tanto judeus como
gregos, lhes pregamos a Cristo, poder de Deus, e sabedoria de Deus!" (1 Cor., 1.)
Não cabe aqui nos determos longamente nos problemas ligados ao apa recimento e ao primeiro
desenvolvimento do cristianismo, para contar como e em que medida as religiões de mistérios (celebrados
especialmente em Tarso, cidade natal de São Paulo, ligadas ao culto de Mitra, e das quais outras formas,
mistérios de Atis e de Isis, desfrutavam de grande favor no Império Romano na quela época) foram
incorporadas à nova religião; como a mensagem cristã origi nal, vivida no seio da primeira comunidade
cristã, engendrou um novo culto, em torno da morte e da ressurreição de Cristo. Basta lembrar que o
pensamento que sustém essa cristalização progressiva do cristianismo se resolve, com tudo quanto tomou
ao passado, numa efervescência onde abundam as contradições entre as tendências judaízantes e
helenísticas; e recordar que o paulinismo exerceu incomparável influência nesse processo.
2. São Paulo
Encontra-se, no grande apóstolo, a fonte de todas as doutrinas relativas à alma do ponto de vista da
redenção cristã, as quais acentuam as questões da origem e do destino da alma, as idéias de uma vida
eterna, da vitória sobre o pecado pelas obras e pela Graça, e da supremã dignidade da vida em Jesus
Cristo. Breve exame de suas idéias é, por conseguinte, rico de ensinamentos para todo o período
patristico, onde se verifica um esforço obstinado para sistematizar o que ele exprime sob a forma de
fulgurantes intuições. Filho de rico fariseu, aquele que súbita conversão iria transformar em ardente
apóstolo da nova fé, era judeu de caráter e formação. O elemento de ruptura, em relação à tradição de que
provinha, reside essencialmente na universalização da mensagem proclamada pelo "Apóstolo do Gentio"
e a superação da lei pela nova fé. "Antes que a fé viesse, estávamos guardados debaixo da lei, e
encerrados para aquela fé que se havia de manifestar. De maneira que a lei nos serviu de aio para nos
conduzir a Cristo, para que pela fé fossemos justi ficados. Mas, depois que a fé veio, já não estamos
debaixo de aio. Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque todos quantos fostes
batizados em Cristojá vos revestistes de Cristo. Nisto não há judeu nem grego;
não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus." (Gol., 3.)
A espera do Messias pelo povo eleito é recusada pela afirmação triun fante: o Messias chegou e é o filho
de Deus. Ele se encarnou entre os homens e foi crucificado, para que em sua vestimenta de carne todo o
pecado dos homens seja crucificado e resgatado; e todos foram resgatados por seu sacri fício, os gentios
como os filhos da promessa. Para Paulo, que não conheceu Jesus vivo, a morte de Cristo constitui o
fundamento essencial da salvação que ele anuncia aos homens: "Se não há ressurreição de mortos,
também Cristo não ressuscitou; [ logo, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé". (1 Cor., 15.) E
sua pregação do evento tem um odor gnóstíco:
" falamos a sabedoria de Deus, oculta em mistério, a qual Deus ordenou antes dos séculos para nossa
glória [ (1 Cor., 2.)
Para iniciar os ouvintes na "sabedoria", Paulo adapta o ensino ao grau do desenvolvimento espiritual
desses ouvintes. Aos menos avançados, aos fracos pela carne, os que chama "crianças em Cristo",
dispensa um ensino elementar, por ele comparado ao leite, mais assimilável por essas naturezas frágeis do
que uma nutrição mais sólida que não poderiam suportar, e reser vada por ele aos "homens espirituais". (1
Cor., 3.) Trata-se de adquirir, por um grande combate interior, essa inteligência requerida "para
conhecimento do mistério do Deus e Pai, e do Cristo, no qual estão escondidos todos os tesouros da
sabedoria e da ciência". (Co!., 2.) "Conhecer Cristo", no sentido de uma realidade que faz recordar
estranhamente o Lógos de Filo:
"O qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criatura; porque por ele foram criadas todas
as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam
principados, sejam potestades: todas as coisas foram criadas por ele e para ele. E ele é antes de todas as
coisas e todas as coisas subsistem por ele. é o principio e o primogênito dentre os mortos, para que entre
todos tenha a preeminência. Porque foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse, e que, liaven
do por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por ele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto
as que estão na terra como as que estão nos céus." (Co!., 1.)
Paulo admite, aliás, um conhecimento de Deus pelas suas obras: "Por que as suas coisas Ede Deus]
invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder como a sua divindade se entendem, e
claramente se vêem, pelas coisas que estão criadas" (Rom., 1). e os homens são tanto mais inescusáveis
porque se afastaram dele. Sendo assim, o sacrifício de Cristo é o aconteci mento capital que subverte
todos os dados da questão. Pois a morte, no suplício por ele sofrido, não atingiu senão a vestimenta de
carne que ele havia assumido, "carne semelhante à nossa carne de pecado" (Rom., 8), e o pecado foi
pregado com a carne sobre a cruz "a fim de que a justiça prescrita pela lei fosse cumprida..." (Rom., 8).
"Aquele que não conheceu pecado, fé-lo peca do por nós, para que nele fôssemos feitos justiça de Deus."
(II Cor., 5.) Tudo, por isso, mudou: "Nosso homem velho foi com ele crucificado" (Rom., 6). E "se
alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já passaram; eis que tudo está feito novo" (11
Cor., 5). Nova criatura "em quem habita o espí rito de Deus que ressuscitou Jesus" (Rom., 8), liberta
desse "corpo de
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3. A psicologia dos apologistas
morte", dessas "obras da carne", que são a impudicícia, a impureza, o desre gramento, as querelas, os
ciúmes, as animosidades, as disputas, as divisões, as seitas, a embriaguez, a inveja... (Rom., 7; Gal., 5.)
Agora, "libertados do pecado, e feitos servos de Deus, tendes o vosso fruto para santificação, e, por fim, a
vida eterna. Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo
Jesus nosso Senhor" (Rom., 6).
Por isso, a pregação paulina é um constante apelo ao Espírito, dispen sador da graça divina e de todos os
&ins que podem ser outorgados à alma crente. "Deus nos fez capazes de ser ministros do novo
testamento, não da letra, m do espírito; porque a lçtra mata, e o espírito vivifica." (II Cor., 3.) É preciso
tornar-se "a morada de Deus em Espírito" (Ef., 2), estar "plenos do Espírito" (Ef., 5), "andar em Espírito"
(Gal., 5), preparar-se interiormente para a intervenção do Espírito; "A graça do Senhor Jesus Cristo, e o
amor a Deus, e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós" (II Cor., 13). Se a alma, no sentido
de princípio vital, é comum aos homens e aos animais; se o homem natural, o homem de "carne", com
seus pensamentos, seus desejos, sua vontade e, até, sua razão, é uma criatura psíquica mortal, o espírito é
a instância mais alta, que nos permite aproximar-nos de Deus. "E o mesmo Deus de paz vos santifique em
tudo; e todo o vosso sincero espírito, e alma, e corpo, sejam conservados irrepreensíveis para a vinda de
Nosso Senhor Jesus Cristo." (1 Tess 5.) Com Cristo, o homem tem acesso ao "espírito vivif i cante". "Por
isso está escrito: "O primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente." O último Adão em espírito
vivificante. Mas não é primeiro o espiri tual, senão o animal; depois, o espiritual. O primeiro homem, da
terra, é terreno; o segundo homem, o Senhor, é do céu. Qual o terreno, tais são também os terrenos; e,
qual o celestial, tais também os celestiais. E, assim como trouxemos a imagem do terreno, assim traremos
também a imagem do celestial." (1 Cor., 15.) E desde então, o destino do homem está todo inscrito na
curva que vai de Adão a Jesus, do pecado original a seu resgate e à redenção, e apenas 'conta a alta
vocação que lhe vale sua essência moral resga tada: "Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo,
mas o Espírito que provem de Deus, para que pudéssemos conhecer as coisas que Deus nos deu por sua
graça. E delas não falamos com as palavras de sabedoria humana, mas com as que o Espírito Santo
ensina, empregando linguagem espiritual para as coisas espirituais. Mas o homem natural não
compreende as coisas do Espírito de Deus, pois lhe parecem loucura, e não pode entendê-las, pois é
espiritualmente que delas se julga." (1 Cor., 2.)
Apreende-se, assim, a alma humana, como sede de uma experiência inefável: experiência da fé que
ultrapassa todo conhecimento fundado no critério grego da evidência racional. Tal como o espírito do
primeiro homem veio de Deus, o segundo nascimento do espírito resulta de um influxo do Espí rito Santo
que a fé implora. O que não se pode atingir pelo intelecto, nem pela vontade entregue a si mesma, o
coração puro recebe pela graça de Deus. A introspecção e a prece, a exaltação da vida interior substituem,
assim, intei ramente, a observação e a análise. Introspecção fixada sobre a exigência de uma conduta em
relação com o destino eminente do homem resgatado, em busca de iluminação, impregnada de uma ética
na qual o impulso de amor é superior a todos os decretos, emanem eles de especulação racional ou de
moralismo abstrato.
A psicologia, num contexto como esse, está inteiramente subordinada a preocupações teológicas. Em seu
aspecto concreto, é inseparável de uma experiência religiosa, e o inconveniente é não apenas empobrecê-
la - o que é inevitável - mas desnaturá-la se estudada abstratamente, sem referência permanente a esse
caráter essencial. Pois todas as elucidações que se podem encontrar nessa época, nos defensores da nova
fé, servem para justificar suas crenças quanto à origem e ao destino da alma. E isso na convicção de que
as doutrinas dos filósofos, neste ponto como nos outros, são errôneas - para os inclinados a considerar
suas teorias com o máximo de indulgência - já pelo simples fato de que eles não se beneficiaram da luz
dispensada pela Reve lação. De maneira geral, com respeito ao pensamento antigo, trata-se de refutar
sobretudo a idéia da preexistência da alma e de sua eternidade, de opor-se, por exemplo (eliminando-se
desde logo Epicuro), à idéia - platônica e estóica - de uma alma cósmica da qual a alma individual seria
apenas parcela, para afirmar que esta última, nascida de ato divino, é livre e, pois, responsável; e que,
sendo livre e responsável, é justo que espere recompensa ou punição de Deus. E assim que a imortalidade
individual, fonte de alegria para os que afrontam as perseguições contra o cristianismo, vem a tornar-se a
viga mestra das teorias que ele engendra.
4. Tertuliano
Dentre as obras dos primeiros apologistas cristãos, a de Tertuliano, que trata da alma em função do que
ele compreende da Revelação cristã, é típica das novas condições culturais e das dificuldades de uma
nova síntese. Ela visa a refutar as heresias gnósticas e platônicas, e isso de modo um pouco descon
certante, pois as novas "idéias-forças" por conciliar (criação, pecado original, liberdade, imortalidade)
nela se avizinham das teorias filosóficas herdadas dos gregos, em particular dos estóicos, para a elas
justapor-se mais do que integrar-Se.
Seu tratado De Anima (1), escrito após 203, composto de 58 capítulos, é dos mais notáveis da literatura
cristã de expressão latina. Nele, o autor discute tudo: os erros dos sentidos, as diversas dificuldades da
alma, e invoca a seu favor, ao lado do testemunho dos filósofos e das Santas Escrituras, o da competência
particular de inúmeros médicos: Hipócrates e seu discípulo Diocles de Caristo, os anatomistas
alexandrinos Herófio e Erasístrato e, muito particularmente, Sorano de Efeso, contemporâneo de Adriano.
Em um prólogo, afirma Tertuliano a necessidade de combater as opiniões, sobre a alma, dos filósofos
pagãos, esses "patriarcas de todos os heréticos". Se ele próprio filosofa, é a contragosto, pois apenas tem
valor, a seus olhos, a fé cristã, que deve ser aceita em bloco.
Atribui-se-lhe, geralmente, a profissão de fé: Credo quia absurdum, para aí ver, em comparação com a
sentença de Santo Anselmo: Creio a fim de compreender, como que o símbolo de uma das duas atitudes
fundamentais
(1) EdiçãoJ. H. WASZINK, Amsterdã, 1947.
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dos pensadores da Idade Média. Embora Tertuliano jamais tenha pronun ciado semelhante fórmula, ela
exprime bem a tendência do ardente sermo nário que efetivamente declarou: "O. filho de Deus foi
crucificado e disso não me envergonho, porque disso deve-se ter vergonha. E que o filho de Deus esteja
morto, é perfeitamente crível, pois é inepto. E que, uma vez enterrado, tenha ressuscitado, eis o que é
certo, pois é impossível (1)",
Contra a teoria platônica da eternidade da alma, invoca Tertuliano a autoridade da Bíblia para afirmar que
ela teve um começo. Sopro de Deus, Ele a criou à sua imagem, flatus factus ex spiritu Dei (De An., op.
cit., pág. 15, 1-10). Deve-se, por isso, ver nela um princípio ativo, de origem divina; e não duvidar de que
será julgada por seus atos, pois é plenamente responsável( 2). Como é, a um tempo, princípio vital e
princípio espiritual, sua natureza se apresenta dúplice; não se sabe bem, contudo, como concebê-la, pois
as idéias de Tertuliano acabam, em suma, por declarar que é, e não é, material. Ela é esse homem interior
de que fala São Paulo, envolta no homem exterior que é o corpo. Constituída de um elemento muito sutil,
tênue, volátil, tão brilhante que sua luz viva no-lo torna invisível, sua corporeidade é prova da pela
interação entre ela e o corpo, especialmente pelo fato de que a sabe doria não lhe bastaria à vida terrestre e
um alimento mais tangível lhe é indis pensável para isso. Por outro lado, a própria Bíblia incita-nos a
admiti-lo, tal como o testemunha, por exemplo, a história de Lázaro. Além disso, há as visões dos
inspirados. Não viram eles a alma com os olhos do espírito como forma etérea? E o caso daquela irmã
montanista, favorecida por uma visão durante o santo sacrifício, a quem a alma apareceu "não desprovida
de consis tência e de forma, mas aparentemente suscetível de ser tocada, delicada, luminosa, de cor azul e
em tudo semelhante, exteriormente, ao corpo huma no" (DeAn., IX).
Em suma, deve-se ver na alma como que um sopro (flatus), cuja sede é o coração, sopro disseminado por
todo o organismo, a formar um ser consti tuído, com seus órgãos, tendo o próprio intelecto por
instrumento. Desde Adão ela é transmitida pelo sêmen no ato da geração, momento em que lhe é
atribuído um sexo. O fato de assim destacar-se da alma paterna explica, ainda, a hereditariedade de seus
caracteres. Segundo Tertuliano, que descre ve as fases desse processo, anjos zelam pela formação do
embrião no seio materno. Se o pecado original é assim transmitido pelos pais, o pecado indi vidual se liga
ao desenvolvimento da alma enquanto agente livre. Diferente do corpo, ela permanece ativa durante o
sono, continuando a vida que lhe é própria. Tertuliano compara o sono à morte e o despertar, à
ressurreição. Durante o sono, a alma desfruta de liberdade temporária, que conhecerá como definitiva ao
abandonar o corpo. No entanto, Tertuliano declara tam bém que, após a morte, as almas, com exceção das
dos mártires, devem esperar no inferno a ressurreição dos corpos. Para explicar a natureza dos sonhos, faz
intervir o ato de Deus, uma intervenção de demônios ou uma intensa concentração do espírito, e pensa
que a alma, no êxtase, é como que projetada para fora de si mesma.
(1) De C Christi. cap. V, citado por É. GILSON. La philosophie au Moyen Áge, Payot, Paris. 1947.
(2) Também emAdc. Marcio,,em, 11,5; P. L. iii 340.
5. Clemente de Alexandria
Em Clemente de Alexandria, o problema de conciliação entre as teorias filosóficas dos pagãos e as idéias
fundamentais da nova fé parece essencial, encarado, porém, com espírito inteiramente diferente do de
Tertuliano. Seu esforço dá início, verdadeiramente, à integração progressiva da filosofia grega e do
Antigo Testamento; da primeira, como fruto da razão natural antes da Revelação; do segundo, na medida
em que prepara o Novo Testamento. Clemente era homem de grande cultura, dado ao ecletismo, e sua
obra, espe cialmente os Stromata (Miscelâneas) abunda em referências de toda espécie:
conta-se que teria citado não menos de seiscentos autores. Para ele, também, de acordo com a doutrina
bíblica, a alma é encarada como unidade, de origem dupla: pois é, em parte, racional ou celeste, em parte,
irracional ou terrestre.
No primeiro homem, Adão, o ato de Deus criou uma alma com dupla natureza. Ela foi "soprada do alto no
rosto do homem" (5 str., § 94, 3). A alma irracional ou terrestre se aparenta ao princípio vital que os
animais tam bém possuem, e se transmite de pais a filhos. Como fusão dos elementos do mundo material,
é inseparável do sangue e do sêmen. Com sede no corpo, ela arbitra a alma racional. Esta tem por caráter
essencial uma razão intima- mente aparentada com a razão divina, que constitui o fundamento e a possi
bilidade da ascensão do homem a Deus.
Essa psicologia de Clemente se insere, evidentemente, numa concepção ética, cujo aspecto filosófico
muito deve a Platão, aos estóicos e a Filo. Nela, a Sabedoria desempenha papel de primeiro motor, fonte
do movimento da alma. E idêntica ao Logos, à Razão, ao Verbo, a Cristo encarnado, e Clemen te a
denomina, em seu Discurso de exortação aos gregos, "o Logos de verdade e de imortalidade, regenerador
do homem... destruidor da corrupção". No homem, o Logos é sabedoria derivada, O progresso da alma
humana dá-se no sentido de uma preparação para receber a comunicação dessa divina Sabe doria, do
espírito divino, fonte única de verdade absoluta e de conhecimento. Por ela é que a alma recebe a semente
do espírito e se torna de natureza espiritual. O Verbo, o Logos, Filho de Deus, potência do Pai, é eterno
como Ele. Possui o hdmem, assim, por essa sabedoria, a semente da natureza divina e é capaz de elevar-se
à semelhança de Deus, O processo da vida moral é, pois, uma purificação da alma com vistas a seu
retorno a Deus. Clemente não pensa que a carne deva ser mortificada, pois considera a união entre alma e
corpo como natural em si, querida por Deus. Trata-se antes, para o homem, de discipliná-la, por esforço
de harmonização, de santificar sua vida, seu espírito e seu corpo. A procriação é instituição necessária à
mantença da criação, lei essencial da natureza (3 str., § 103, 1).
A harmonia, esse valor mais alto segundo Clemente, implica desen volvimento completo da alma, que
organiza a vontade, o conhecimento e a ação em perfeita unidade. Sob a influência simultânea do
platonismo e do estoicismo, a alma irracional é concebida por ele como intermediária entre os objetos dos
sentidos e a razão. Por esta última, que o distingue do animal, o ho mem é dotado de uma espécie de
impulso para o conhecimento, de uma capaci dade de discriminação, por meio da qual pode livrar-se da
servidão dos sentidos e das imagens, e assim de uma predisposição à virtude (6 str., § 95, 5).
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Em oposição às idéias dos gnósticos, Clemente não considera, portanto, o desejo mau em si; antes, à
maneira de Filo, entende que é moralmente neutro; o essencial parece-lhe ser a orientação que a vontade
dá ao comporta mento. No assentimento dado ou recusado por esta vontade é que reside sua liberdade, e
ela é que pode conduzir o homem ao pecado. Clemente assinala o descaminho da vontade mercê de
imagens perigosas, as seduções das potên cias do mal, e insiste muito menos no pecado original do que no
pecado como triunfo da obscuridade sobre a luz, da ignorância sobre o conhecimento. A ignorância do
indivíduo é, no início da vida, quase completa, colocado como está num mundo de desejos e de
imaginações, sem o recurso 'da razão. O progresso do conhecimento é, aliás, limitado, e certo grau de
certeza prática deve ser aceito. Percebeu Clemente muito bem que todo ato do espírito impli ca certa
crença, manifestada já na percepção, e que nossa vida mental tem como ponto de partida um assentimento
à verdade. Cumpre, necessaria mente, aceitar algo; a própria liberação da dúvida é uma vontade de crer.
Por ela afirma o homem sua crença em alguma coisa e, assim, na própria verdade, e, depois, em Deus, O
exercício da fé apresenta-se, assim, de certa maneira, como substituto do conhecimento, e a vida perfeita
em Deus como a fé torna da perfeita na contemplação da verdade eterna. Tem-se observado que
Clemente, por algumas de suas observações sobre o conhecimento, antecipa Agostinho e Descartes.
Certos homens permanecem na fé. Outros se preocupam em compreen der plenamente o que ela implica.
Atingem assim a Gnosis, a perfeição do caráter humano. A alma não é incorruptível por natureza. Pela fé,
pela justiça; pelo conhecimento e pela graça de Deus é que adquire a imortalidade.
6. Origenes
Embora sua doutrina tenha sido finalmente condenada, Orígenes, discípulo de Clemente de Alexandria e
polemista apaixonado, morto em 253, foi dos mais ardentes defensores da nova fé. Utilizou, para isso,
argumentação tomada sobretudo ao legado platônico, com uma espécie de culto da razão, entendendo
embora a razão de maneira mítica. Mal caberia duvidar de que sua obra tenha dado ao pensamento
cristão, no início do século II impulso vigoroso e decisivo. A psicologia que se pode extrair de seu tratado
Dos Prin ct'pios( é antes ambígua, pelo fato de referir-se ora à alma como princípio de vida, inseparável
do sangue, ora como razão degradada, incorpórea e eterna, inteiramente distinta do corpo( e cuja
imaterialidade é provada por sua capacidade de conhecer aquilo que é imaterial.
O mundo foi criado do nada pelo Verbo de Deus, em quem se encontram as formas eternas de tudo
quanto existe. Do Verbo, que é o Filho de Deus, outros verbos se originaram: criaturas espirituais livres.
Houve, então, uma primeira Queda. Pois, certos espíritos permaneceram fiéis a Deus, enquanto outros
d'Ele se desviaram. Dessa atitude diferente das criaturas de Deus
(1) DePrincipiis, part. secção 11.8,5.
(2) Contra CeLtum, VII, 32. (Sabe-se que esta obra é um requisitório contra o Discurso cerdadeiro do
filósofo CELSO, de extrema importância para a história das idéias, pelo que revela da repulsa que
experimenla um homem, seguramente um dos mais cultos de seu tempo, arraigado na tradição grega,
pelos conteúdos ideológicos implicados na Revelação judia e na cristã, que lhe parecem ridículas fábulas.)
decorre uma hierarquia dos espíritos; já no mundo dos Anjos, distribuídos por essa hierarquia segundo seu
grau de elevação; vêm, a seguir, os homens, espí ritos encerrados em corpos; finalmente, os espíritos
obstinados no mal, tornados demônios. Os espíritos humanos não estavam, pois, primitivamente,
destinados a animar corpos. Permanecem capazes de resgatar-se, de salvar-se, por um ciclo de
reencarnações purificadoras.
Pensa Orígenes que a história desses espíritos é a de seus esforços para reencontrar a luz primitiva, fonte
de calor; pois, para ele, o fogo intervém como o foco de que as almas se destacaram e. assim, se
degradaram e resfria ram. A alma de Deus é fogo. O que dele se afasta torna-se frio, materializa-se.
Orígenes tem do fogo uma concepção mística, pois nole vê o que tudo destrói, exceto o que é puro. A
alma sensível se apresenta, assim, para ele, como uma espécie de meio-termo entre a matéria e o espírito
puro. Sobre a origem da alma, hesita em pronunciar-se entre a transmissão pelos pais ou a vinda de fora.
Considerada como princípio de vida, parece que começa com o corpo; e seria, assim, como que um modo
transitório de ser, enquanto a alma superior ou espiritual viria de fora. Para a liberação que constitui o
caminho de sua salvação, deve a alma elevar-se, de início, pela dialética, do conhecimento das coisas
sensíveis ao das verdades intelectuais e morais.
Para essa elevação, o livre arbítrio é essencial. Admitindo embora que certos animais são movidos de
dentro para fora, por sensações e imagens, atribui-lhes Orígenes essa capacidade numa direção
determinada. O homem, ao contrário, pela razão, se livra da imaginação e dos desejos, e é capaz de
escolher. Pode submeter a controle suas experiências sensíveis, dar ou recusar o assentimento conforme a
direção que queira atribuir à conduta. Essa liber dade fundamenta a vida moral. As condições exteriores
por si sós nada podem. E a adesão do espírito que as transforma em móveis de ação. Se a tentação é fruto
das circunstâncias, o pecado é o ato de usar a ocasião. Como aí não existe coerção, o vício e a virtude são
livres, mas Deus assiste os homens em seu esforço de liberação. Com Orígenes, o homem interior aparece
sob a forma de razão, cujo esforço no sentido da verdade conduz a uma fonte de inspiração. Ele encara
esse resultado antes como um estado de extrema con centração do que de êxtase, como uma espécie de
voz interior ou, ainda, de comunhão estabelecida entre a razão divina e a razão humana, quando esta se
recolhe dentro de si mesma. Orígenes considera que todo homem pode per suadir-se. por experiência, de
que é o autor responsável da adesão ou da recusa que dá ao que lhe trazem os sentidos e a imaginação. O
que admira em Sócrates (que conhece pelas Memoráveis, a Apologia e o Criton) é essencial- mente o
caráter excepcionalmente temperado, a nobreza moral.
Origenes opõe opneürna às realidades corporais. Parece admiti-lo como sustentáculo material de que a
alma humana situada a meio caminho na hierarquia dos seres, entre o divino e os existentes temporais -
tem necessi dade após a morte para subsistir; e isso com a preocupação de melhor assina lar a
transcendência de Deus, que existe sem suporte material.
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CAPÍTULO XI
SANTO AGOSTINHO
1. O contexto metafísico
2. O homem do pecado original
3. A evidência imediata da alma
4. Os graus e as funções da alma
5. Os sentidos, a razão, a memória
6. A influência do agostinismo
Toda a reflexão de Santo Agostinho, cuidosa de esclarecer tanto quanto possível as verdades reveladas, se
volta para Deus, ou para a alma com vistas a seu acesso a Deus( e sua psicologia emerge constantemente
do âmago de uma metafísica intensamente vivida. Metafísica inspirada sobretudo em Ploti no, mas um
Plotino evidentemente corrigido pelos dogmas da nova fé. Essa correção exige especialmente a rejeição
da alma como Alma do mundo e do ciclo das reencarnações. Todo-poderoso, onisciente, Deus tudo criou
pelo seu Verbo, ex nihilo; a própria matéria e o tempo em que se desenvolve sua obra. Infinitamente justo
e bom, o mal não lhe poderia ser imputado, e deve-se atribuir sua existência à desobediência inicial do
gênero humano. O pecado original é admitido por Santo Agostinho com trágica seriedade e sua psicolo
gia deve ser entendida em constante referência, explícita ou implícita, a esse evento que interessa, como o
dogma trinitário, a todos os passos de seu pensa mento, quando trata do psiquismo humano. Se sua atitude
a respeito desse pecado original sofre flutuações, não se pode duvidar de que tenha chegado finalmente,
no ardor de sua reação ao pelagisrno, a reduzir em teoria até o paradoxo o papel da cooperação humana
com a obra da salvação, para acentuar sempre mais o da Graça, dom gratuito de Deus, socorro ao qual o
homem deveria até a fé que o anima e o amor do qual se mostra capaz. Entre gue a si mesmo, o ser
humano não poderia, portanto, encontrar salvação, pois
(1) Após a fervorosa prece pela qual começam os Soliloquiov, sua rasdo lhe pergunta o que ele deseja
saber:
- Tudo quanto pedi em minha prece. - Resuma-o em poucas palavras. -. Conhecer Deus e a alma, eis o
que desejo. -- h nada mais? - Absolutamente nada mais.
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nem a Redenção nascida do sacrifício de Cristo seria capaz de assegurá-la. Agostinho, como Pascal mais
tarde, condena severamente, nesse ponto, o orgulho dos estóicos. Que suas idéias sobre a Graça possam
conciliar-se com as que enuncia sobre o livre arbítrio, é questão que aqui não cabe examinar('). Trata-se
apenas de recordar esses aspectos metafísicos do pensamento agosti niano, que constituem o quadro
permanente de sua psicologia.
Uma página das Confissões, em que Agostinho evoca seu descobri mento do neoplatonismo, antes da
conversão, é significativa da maneira pela qual aborda o problema da alma; num momento de entusiasmo,
inquirindo- se sobre a faculdade própria do homem "de apreciar a beleza dos corpos, quer celestes, quer
terrestres", foi levado a descobrir "por sobre seu espírito mutá vel", a eternidade "imutável e verdadeira":
por graus, elevei-me dos corpos à alma que sente por intermédio dos órgãos; e, daí, a essa força interna
que os órgãos dos sentidos informam das coisas e da qual os animais são também capazes; e daí, ainda, a
esse poder raciocinante que se submete e julga as percepções dos órgãos sensoriais. Mas esse poder, por
sua vez, reconhecendo- se em mim sujeito a mudança, elevou-se à inteligência de si próprio.., arrancou
meu pensamento dos liames do hábito, separou-se da multidão de fantasmas contraditórios, para descobrir
que luz a inundava quando gritava.., que se deve preferir o que não pode mudar ao que é sujeito a
mudança, e donde ela tirava o conhecimento do próprio imutável, pois se dele não tivesse tido alguma
noção, não o teria, por certo, de maneira alguma, preferido ao mutável. E assim chegou, com o bater de
olhos frementes, até ao próprio Ser. Foi então que "vossas perfeições invisíveis se manifestaram à minha
inte ligência mediante vossas obras"; nelas, porém, não pude fixar os olhos; minha fraque za recuou e fui
devolvido a meus hábitos. Desse instante, não trouxe comigo mais do que amorosa memória que, por
assim dizer, lastimava o perfume dos manjares que ainda não era capaz de comer." (Conf., VI 17.)
2. O homem do pecado original
Vê-se que a seqüência de passos aqui evocada retoma, em substância, a tradição platônica. Trata-se de
desprender-se da sedução exercida pelas aparências sensíveis, de remontar da simples existência ao
inteligível, do conhecimento do mundo ao das idéias contidas no espírito de Deus. Mas esse retorno, em
Agostinho, se torna ainda mais difícil por obra do pecado origi nal. Pois, o homem, desde então, lhe
carrega os traços, que conservam nele uma espécie de inclinação habitual para o pecado. Para o pecado,
isto é, essencialmente para a concupiscência que nos arrasta às coisas e aos seres num movimento egoísta,
por um desejo de posse e de prazer, em lugar de amá-los nesse Deus que os criou. Essa avidez aparece
desde o nascimento, na criancinha que se lança gulosamente ao seio nutriente, ou visa a dominar com
caprichos os que a rodeiam. A alma infantil não é, portanto, inocente:
"Vi e observei uma criança ciumenta: ainda não falava, e olhava, pálida e com
maus olhos, seu irmão de leite. Quem ignora esse fato? Pretendem as mães e as amas
conjurar essa inveja por não sei que encantos. Dir-se-á ser inocência, quando a fonte de
(1) Deve-se notar que o De Libero Arbilrio de AGOSTINHO, onde a necessidade da Graça mal aparece.
foi terminado ali por 395, e que a doutrina pelágica se disseminou na Africa apenas em 410. uma
quinzena de anos
mais tarde, portanto.
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leite corre superabundantemente, não admitir partilha com um irmão desprovido de tudo e que não pode
sustentar-se a não ser por meio desse alimento?" (Conf., 1, 7.)
Antes do pecado, quando não existiam nem a dor nem a morte, a alma racional exercia sobre as paixões
perfeito domínio. Mas, desde então, surda resistência torna difícil esse domínio, pois nossa inteligência se
obscureceu, nossa vontade foi enfraquecida.
No meio das tormentas antecedentes à sua conversão, Agostinho, que experimentou em si mesmo a
resistência dos instintos aos decretos da vontade, reconhecidos como justos, interroga-se ansiosamente
sobre 'os obscuros castigos infligidos aos homens e as tenebrosas misérias dos filhos de Adão":
"A alma dá ordens ao corpo e é obedecida imediatamente. A alma dá ordens a si mesma e encontra
resistências. A alma dá ordem à mão para mover-se e é uma opera ção tão fácil que mal distinguimos
entre ordem e execução. No entanto, a alma é alma e a mão é corpo. A alma dá à alma a ordem de querer;
uma não se distingue da outra e, contudo, ela não age. Donde provém esse prodígio? Qual sua causa? Ela
lhe dá a ordem, digo eu, de querer; não a daria se não o quisesse, e o que ela ordena não se faz."
Se a vontade estivesse em sua plenitude, conclui,
"ela não se ordenaria que fosse, ela já seria." Existe aí "uma doença da alma.., elevada pela verdade, mas
arrastada pelo peso do hábito." (Conf., Vil!, 9.)
Não é, pois, o mundo exterior como tal que constitui para a alma objeto de perdição, uma vez que foi
criado por Deus. Agostinho, ao contrário, louva-lhe a ordenação harmoniosa, as perfeições visíveis e
invisíveis, a bela hierarquia que demonstra, e admite que as criaturas humanas, por mais culpadas e
decaídas que sejam, constituem nele a mais alta dignidade. Existirá algo de mais nobre, do ponto de vista
das coisas criadas, pergunta ele, do que um corpo de carne vivente, animado por uma alma racional? (De
Libero Arbitrio, III, 27.) A alma, enquanto alma, está investida de uma dignidade que ultrapassa a dos
corpos. Isso desde seu nascimento e seu começo:
"Com efeito, não é um bem de valor medíocre não apenas ser alma cuja natu reza já ultrapassa todos os
corpos, mas também ser capaz, com a ajuda do Criador, de cultivar-se a si mesmo e, por um zelo piedoso,
poder adquirir e possuir as virtudes por meio das quais se fica livre dos tormentos da dificuldade e da
cegueira do erro.
Se assim é, a ignorância e a dificuldade para essas almas, no momento de nascer, não são mais o castigo
do pecado, mas convite ao progresso e início de perfei ção. Pois não é pouca coisa haver recebido, antes
de qualquer boa ação meritória, um juízo natural por meio do qual se prefere a sabedoria ao erro, o
repouso à dificuldade, de modo a chegar a eles não desde a nascença, mas mediante trabalho." (De Libero
Arbítrio, 111, XX, 56.)
3. A evidência imediata da alma
A alma apanhada em sua estrutura essencial, apta a elevar-se, pelo menos em certos pontos, às certezas
invariáveis da razão, da moral e da
ciência, é para Agostinho a realidade primeira (Solilóquios, De Quantirate Anirnae). Quando se abalança
a descrevê-la, observa que as diversas teorias enunciadas rio passado, quanto à sua natureza, são matéria
de pura hipótese, mas uma experiência direta e fundamental de sua realidade não poderia ser contestada,
pois tem por objeto exatamente as operações que condicionam até a própria dúvida:
"... Tem o ar o poder de viver, de recordar-se, de compreender, de querer, de pensar, de saber, de julgar?
Tem o fogo esse poder, ou o cérebro, ou o sangue, ou os átomos, ou não sei qual quinto corpo, além dos
quatro elementos clássicos, ou a coesão e o equilíbrio de nosso corpo? Os homens têm tido dúvidas a esse
respeito: uns se têm esforçado por afirmar isto, outros aquilo, Ao contrário, ninguém duvida de que se
lembre, de que compreenda, de que queira, de que pense, de que saiba, de que julgue. Pois, ainda quando
duvida, vive; se duvida de onde provém sua dúvida, lembra-se; se duvida, compreende que duvida; se
duvida, quer chegar à certeza; se duvida, pensa; se duvida, sabe que não sabe; se duvida, sabe que não
deve dar seu assentimento leviana mente. Pode-se, pois, duvidar do resto, mas de todos esses atos do
espírito não se deve duvidar; se não houvesse esses atos, seria impossível duvidar do que quer que fosse
(1)."
Existe aí, sem dúvida, mais do que um esboço do cogito cartesiano, algo como o equivalente deste cogito.
A diferença reside, essencialmente, em que Descartes, com base na dúvida radical tomada como princípio
a respeito dos conhecimentos tradicionais, partirá dessa evidência imediata e irrecusável para construir
uma nova interpretação do mundo; enquanto que ela se inscre ve, com Agostinho, num contexto teológico
admitido logo à primeira e que confere a essa descoberta, como a todas as outras do filósofo, o caráter de
uma via de acesso direto ao conhecimento de Deus. Estranho, quanto a isso, a qualquer dúvida, embora
inteiramente didática e teórica, está