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Lampião e o cangaço

Antonio Carlos Olivieri


Índice

Introdução
A seca e o couro
Jagunços e coronéis
Os cangaceiros
Um homem do sertão
Sob as ordens de Sinhô Pereira
Encontro com padre Cícero
Serra Grande e Mossoró
Bahia: massacre em Queimadas
Maria Bonita
O fim do reinado
O cerco de Angicos
A vingança de Corisco
O cangaceiro: realidade e mito
Cronologia
Bibliografia
Introdução
Lampião desceu a serra
Foi a um baile em Cazajeira
Convidou moça donzela,
Pra dançar Mulher Rendeira.

Primavera de 1929, mês de novembro, dia 25, sete horas da


noite. No município de Capela, a cerca de 40 quilômetros de
Maceió, capital do estado de Alagoas, o prefeito recebeu um recado:
Lampião e seu bando estavam por perto. Queriam conversar com
ele.
O prefeito mandou os quatro soldados de polícia subirem e foi
receber os visitantes na hora marcada. Com onze homens, o
capitão Virgulino – Lampião – entrou na cidade. Usava chapéu de
couro, de abas viradas para cima e enfeitadas com estrelas e
moedas de ouro e prata. Trançadas no peito, as alças de duas
espingardas. No cinturão, dois punhais – um de 55 centímetros era
de prata, incrustado de pedras preciosas.
Virgulino explicou que não iria fazer mal a ninguém. Mas
mandou um de seus homens ficar de sentinela no posto da
Companhia Telefônica e outro no telégrafo. Deixou quatro na
estação, esperando a chegada do trem.
O capitão Virgulino exigiu uma contribuição dos cidadãos no
valor de 20 contos de réis (mais de 5.000 dólares hoje). O próprio
chefe de polícia fez a coleta entre os cidadãos mais ricos de Capela.
Com o dinheiro nos alforges, Lampião comprou roupas, uma pistola
e ganhou um brinde de um comerciante. A multidão acompanhava
os cangaceiros por toda parte, encantada com suas figuras e
histórias.
Ás três da madrugada, o Rei do Cangaço foi embora, deixando
atrás de si uma cidade de admiradores. Não era exatamente essa a
fama que deixava na maioria das cidades do sertão do Nordeste. Ao
contrário, era mais conhecido pela violência e crueldade com que
tratava seus adversários. Na região, seu nome impunha respeito e
medo.
De 1917 a 1938, esse cangaceiro aterrorizou regiões dos
estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,
Alagoas, Sergipe e Bahia, transformando-se num mito. Para os
camponeses pobres, era uma mistura de bandido, herói, vingador,
esperança e pavor. Lampião foi a personificação do cangaço, um
fenômeno típico do Nordeste e do Brasil da época – o século XIX e
o início do XX. Para compreender o fenômeno, o homem e a época,
é preciso lembrar muita coisa a respeito daqueles dias, conhecer
bem a região e a sociedade onde os fatos se passaram.
A seca e o couro

Quem percorre o Nordeste, indo do litoral para o interior,


encontra quatro ambientes naturais distintos. Na Zona da Mata,
próxima ao litoral, as chuvas são abundantes e as terras férteis. Ali
se desenvolveu a cultura de cana-de-açúcar, que deu importância
econômica ao Brasil a partir do século XVI. Mais para dentro fica o
Agreste, uma área de transição, com vegetação mais pobre, onde
se planta milho, feijão e mandioca para o abastecimento da
população da região dos canaviais. Vem depois o Sertão, com clima
semiárido e secas periódicas, e onde predomina a caatinga, uma
mata rala, de vegetação retorcida e espinhenta. A população
sobrevive com dificuldade do trabalho em pequenas roças e da
criação de cabras e de um gado bovino magro e rude. Finalmente
encontramos o Meio-Norte, área de transição entre a caatinga
nordestina e a floresta Amazônica. Sua paisagem típica é a mata
dos Cocais, constituída de palmeiras como a carnaúba e o babaçu,
cuja exploração é a principal base econômica dessa área.
De modo geral, pode-se dizer que o clima sertanejo apresenta
duas estações ao ano: uma, chamada de inverno pelos nordestinos,
estende-se de dezembro a junho, com chuva abundante; outra,
chamada de verão, prolonga-se de julho a novembro e é marcada
pela falta de chuva. De tempos em tempos, a região fica sem chuva
o ano inteiro – às vezes dois ou três. É a seca, o maior flagelo do
povo do Nordeste. Na caatinga não resta uma folha verde. Os rios
viram estradas de areia, as roças não produzem, o gado não tem o
que beber. Falta trabalho, falta comida, falta água.
A criação de gado desenvolveu-se desde o século XVI nesse
duro sertão. Sempre foi uma criação extensiva: os bois ficavam
espalhados numa área imensa, desenvolvendo-se de modo quase
selvagem. Em grandes propriedades não demarcadas, uns poucos
vaqueiros pastoreavam o gado dos proprietários, dos quais muitas
vezes eram parentes.
O couro era um elemento comum da vida sertaneja: além do
valor para a venda, tinha enorme valor de uso. Roupas, objetos
domésticos, arreios, estrados de camas e até portas e venezianas
eram feitos de couro. Era de couro a roupa que protegia o vaqueiro
dos galhos e espinhos da caatinga.
Para garantir a alimentação, nas regiões sertanejas mais
férteis, como as várzeas dos rios e à beira dos açudes,
desenvolveram-se roças de feijão, milho, mandioca e batata-doce,
junto com pequenas criações. Os lavradores e criadores usavam a
terra de um grande proprietário, pagando-lhe com parte da produção
uma espécie de aluguel. Assim, os pobres mantinham com os ricos
proprietários de terra um relacionamento quase servil, de grande
dependência.
Pouco dinheiro circulava no meio sertanejo, estabelecendo-se
entre os homens relações de troca de produtos ou pequenos
serviços. Para cuidar de uma boiada, por exemplo, o vaqueiro
receberia algumas das crias que nascessem no período.
Em relação ao Brasil, o sertão nordestino estava isolado, já
que, na prática, sua economia era autossuficiente. O que se
produzia na região era consumido lá mesmo, não havendo
relacionamento comercial mais intenso com o resto do país.
Também no plano político e cultural, o sertão apresentava
diversas particularidades em relação ao restante do país. A
dependência dos pobres em relação aos fazendeiros ricos permitia
a estes últimos o controle dos votos e, por extensão, da situação
política nos municípios e vilas próximos. Sua vontade e seus
interesses eram a lei. Isolado do país, o sertão nordestino conhecia
uma evolução cultural em ritmo muito lento. Hábitos, costumes,
crenças e expressões artísticas dos primeiros tempos da
colonização mantiveram-se vivos até meados do século XX.
Com o passar do tempo, muitas das grandes propriedades do
Nordeste colonial foram se fragmentando. O proprietário morria e
sua herança era repartida entre muitos filhos. Uma grande fazenda
se transformava em várias propriedades pequenas e mesmo os
próprios donos trabalhavam nela.
Desse modo, a comunidade sertaneja era formada por gente
simples, rústica e sem luxo, das camadas altas às baixas. Mesmo
os que conseguiram se tornar ou permanecer grandes proprietários,
quase não se distinguiam de seus trabalhadores, exceto pelo fato de
que uns mandavam e os outros obedeciam. Os pobres levavam
uma vida muito dura, já que não dispunham de recursos para
enfrentar a catástrofe periódica da seca. Viviam à beira da miséria, o
que ajuda a explicar os frequentes atos de rebelião e as práticas de
fanatismo religioso.
Jagunços e Coronéis

Durante o período da colonização, os chefes de grandes


famílias, nobres e fidalgos que recebiam da Coroa portuguesa terras
no Brasil e para cá vinham decididos a conquistar o solo do sertão,
usavam bandos de homens armados para defender seus familiares
e seus bens dos ataques de índios. À medida que as tribos foram
sendo dizimadas ou fugiram do homem branco, esses bandos
armados passaram a servir a seus chefes na defesa de seus
domínios contra a invasão de aventureiros rivais.
Com a crescente divisão das grandes propriedades, essas
disputas pela posse de terras tomavam muitas vezes a forma de
brigas entre famílias. Eram rixas que se prolongavam às vezes por
dezenas de anos e envolviam filhos e netos, até o ponto de se
esquecer como tinham começado. Nessas disputas, quase sempre
corria sangue e a vingança criava círculos viciosos de violência.
Durante o século XIX, esses antigos bandoleiros
transformaram-se em grupos de capangas ou guarda-costas –
chamados de jagunços – agregados às terras dos grandes e médios
fazendeiros. Não pagavam aluguel: prestavam serviços em troca de
moradia e comida. Armados, expulsavam moradores ou posseiros[1]
indesejados, espancavam ou eliminavam os inimigos de seus
senhores.
Com esses grupos armados – às vezes mais de cem homens
– os poderosos senhores nordestinos faziam valer sua vontade.
Quando sentiam seus interesses ameaçados por grupos rivais, não
hesitavam em resolver a disputa num confronto a bala.
No Império, esses conflitos foram aos poucos assumindo
caráter político-partidário: os chefes locais, chamados de coronéis,
dividiram-se entre os dois partidos oficiais – Conservador e Liberal
– reforçando a tradição de rivalidade e disputa constante. Mais para
o fim do século, já na República, passou a existir somente o Partido
Republicano, mas as rixas familiares e os confrontos políticos não
cessaram: ocorriam agora entre os que ocupavam cargos no
governo (federal, estadual e municipal) e os que ficavam de fora
dele. Os que conseguiam ganhar os cargos políticos em suas
cidades, através das eleições, dispunham da polícia para defender
suas propriedades e interesses. Já não precisavam sustentar, às
suas custas, tantos jagunços.
Em princípios do século XX, alguns desses antigos bandos
ainda prestavam serviço aos coronéis, mantendo, porém, em
relação a eles, uma posição independente. Quer dizer, não serviam
permanentemente a este ou àquele coronel: serviam ora a um ora a
outro, além de agir muitas vezes por conta própria, sem obedecer às
ordens de ninguém. Para sobreviver, quando não estavam a serviço
de algum coronel, atacavam as populações indefesas dos arraiais,
das vilas e das pequenas cidades, roubando, saqueando e
extorquindo dinheiro mediante ameaças.
Coronelismo
Chama-se coronelismo o modo pelo qual os grandes proprietários
de terra exerciam o poder político no interior do Brasil, sobretudo
nas áreas sertanejas do Nordeste. A expressão vem do uso da
patente de coronel da Guarda Nacional, criada em 1831 e formada
basicamente pelos senhores de terra, encarregados de manter a
ordem social durante o Império.
Os poderosos fazendeiros, os coronéis, dirigiam toda a vida social,
econômica e política das comunidades a seu redor. Nas cidades e
vilas do interior, eles eram a grande autoridade, acima de juízes,
delegados e prefeitos, controlando a posse da terra, o trabalho, o
comércio, os cargos públicos, as eleições e os partidos políticos.
Os cangaceiros
Esses bandidos independentes, os antigos jagunços,
receberam o nome de cangaceiros. A palavra se origina de canga, o
conjunto de arreios que amarram o boi ao carro. É provável que
esse nome tenha surgido porque os bandoleiros usavam as
espingardas a tiracolo ou com a correias cruzadas no peito,
lembrando a canga do boi.
Os bandos não tinham morada fixa. Peregrinavam pelo sertão,
a pé ou a cavalo, prestando um serviço a um chefe político aqui,
saqueando uma cidadezinha ali, vivendo da violência e da coragem.
Inspiravam admiração e medo no povo.
O período em que essa forma de banditismo imperou no sertão
nordestino estendeu-se do início do século XX, quando Antônio
Silvino se firmou na chefia de um grupo de cangaceiros, até cerca
de 1940, quando foi morto o cangaceiro Corisco. Daí por diante, as
transformações por que passou a sociedade nordestina e brasileira
levaram ao fim esse tipo de banditismo.
De Silvino a Corisco, um nome teve particular destaque e se
transformou numa espécie de lenda no Nordeste e em todo o Brasil:
Lampião, cuja história vamos acompanhar, tomando-a como
exemplo do modo de viver e agir dos cangaceiros.
Um homem do sertão

Em 7 de julho de 1897, em Vila Bela (atual Serra Talhada), no


sertão de Pernambuco, nasceu o terceiro dos nove filhos de Maria
Lopes e José Ferreira da Silva. Foi batizado com o nome de
Virgulino Ferreira da Silva. O parto se deu na própria casa da
pequena fazenda do pai, chamada Passagem das Pedras. Dela,
José Ferreira tirava apenas o suficiente para sobreviver, plantando
algumas roças, criando uns poucos bois, carneiros e cabras e
transportando cargas em carros de boi.
O pai não era tão pobre que não pudesse pagar um professor
para dar algumas lições ao filho. Virgulino aprendeu a ler, escrever e
fazer contas. Não frequentou a escola. Para se preparar para uma
vida de pequeno fazendeiro como o pai, o que mais precisava era
aprender as tarefas da fazenda.
Desde cedo, o menino ajudou a sustentar a família, como era o
costume do sertão. Antônio, o irmão mais velho, cuidava das
plantações. Levino, o segundo, ajudava o pai a fazer transportes de
carga, aumentando a renda do grupo. Virgulino se ocupava do
pastoreio. Segundo consta, aos 12 anos tornou-se vaqueiro hábil,
como tantos meninos do sertão, entre os quais os outros seis irmãos
que veio a ter. Cuidava também de consertar e fabricar artefatos de
couro: cabrestos, arreios, selas e toda a vestimenta de vaqueiro
nordestino.
Relatos de contemporâneos da família Ferreira, colhidos por
pesquisadores, confirmam que Virgulino teve uma infância igual à
de todos os outros garotos da região. Deve ter ouvido os cantadores
das feiras contando histórias de cangaço e brincando de
cangaceiro-e-polícia, versão local do conhecido mocinho-e-bandido
ou polícia-e-ladrão.
Quando cresceu, passou a participar dos divertimentos dos
adultos. Na vaquejada – uma mistura de festa e rodeio típica da
região -, ficou famoso por ser bom cavaleiro. Também tocava
sanfona, um dos instrumentos mais característicos da música
popular do sertão nordestino.
Com a personalidade profundamente marcada pela cultura da
região em que se criou, Virgulino era orgulhoso, valente e atento às
questões de honra e de família, sempre da maneira arrebatada e
violenta com que elas se colocam ainda hoje no interior do
Nordeste: qualquer ofensa, mesmo pequena, exige revide imediato,
frequentemente sangrento. Foram questões de honra e família que
o conduziram aos primeiros crimes.
Invasão de propriedade e roubo de gado eram o pretexto
frequente para sangrentas brigas no sertão. Em propriedades rurais
com os limites mal definidos, nem sempre cercadas, o gado de um
dono se espalhava pelo pasto de outro. O dono da propriedade
invadida às vezes não tolerava o fato e tomava algumas reses
alheias como indenização. O outro procurava vingar-se, e a briga
continuava até que uma das partes conseguisse – à força – fazer
valer seu ponto de vista. Intrigas e rixas desse tipo foram o estopim
que levaram Virgulino e seus irmãos ao cangaço.
Segundo a família Ferreira, um morador da fazenda vizinha à
sua, de propriedade de José Saturnino, teria invadido suas terras e
se apropriado de algumas cabeças de seu gado. Virgulino e Levino
deram queixa à polícia e foram com um soldado à casa do acusado.
Saturnino tomou a questão como um insulto pessoal. Acusou os
Ferreira do mesmo crime e os expulsou de suas terras. A confusão
estava armada.
Em dezembro de 1916, Virgulino e Levino entraram nos
campos do vizinho e foram expulsos pelos vaqueiros de Saturnino.
Mas voltaram no dia seguinte, armados e acompanhados de
Antônio, o irmão mais velho. Não houve como evitar o tiroteio, que
acabou com Antônio ferido na coxa.
José Ferreira, o pai, um homem pacato, procurou os coronéis
mais importantes da região para que atuassem como juízes da
disputa. A decisão favoreceu Saturnino, que tinha mais prestígio
entre os poderosos do lugar. Os Ferreira foram obrigados a vender a
fazenda e mudar-se para outra que compraram, próxima à vila de
Nazaré, não muito longe de Vila Bela. Saturnino comprometeu-se a
ficar longe do lugar. Fez-se a trégua, mas alguns meses mais tarde
Saturnino descumpriu o trato. Seguiram-se novos tiroteios entre os
grupos de Saturnino e de Ferreira.
A partir daí, os filhos de José Ferreira passaram a andar
sempre armados, já usando as vestimentas características dos
cangaceiros: chapéu de abas largas, roupas de couro muito
enfeitadas, punhais e armas de fogo na cintura e a tiracolo. Essa
atitude desrespeitava um costume amplamente aceito no sertão: as
pessoas tinham de andar desarmadas nas ruas e praças dos
vilarejos e cidades. Os Ferreira passaram a ser malvistos e
hostilizados.
Nesse meio tempo, o bando de Sinhô Pereira, o cangaceiro
mais famoso da época, atacou Nazaré. Segundo testemunhas,
Virgulino, Antônio e Levino estavam com os cangaceiros. Em
represália, os Ferreira foram atacados pela polícia e pelos
habitantes da cidade. Levino foi preso. Em troca da liberdade, a
família devia ir embora da região.
A mudança deve ter ocorrido por volta de 1920. Os Ferreira se
estabeleceram em Água Branca, no estado vizinho de Alagoas.
Eram agora mais pobres, pois tinham perdido quase todo o gado.
Além disso, os filhos de José chegaram acompanhados da fama de
bandidos.
Alguns meses depois, chegou à cidade a notícia de um ataque
à fazenda de José Saturnino. Dizia-se que Virgulino era um dos
atacantes. Água Branca não era distante das terras de Saturnino e a
acusação parecia procedente. O quarto filho de José Ferreira, João,
foi preso.
Revoltado, Virgulino mandou um ultimato ao chefe da polícia
local: se o irmão não fosse solto, juntaria um bando e tocaria fogo
na cidade. O policial quis evitar o confronto e soltou João Ferreira,
mas a família de Virgulino sabia que já não estava segura em Água
Branca.
José Ferreira ordenou aos três filhos mais velhos que fugissem
para longe. A caatinga desabitada ou as fazendas de parentes e
amigos eram o refúgio costumeiro de quem cometia um crime. José,
sua mulher e o filho João, por sua vez, iriam para a casa de um
amigo, num sítio chamado Engenho. Adoentada, a mulher de José
Ferreira piorou com a viagem e morreu.
Virgulino levava vida de refugiado, fora-da-lei e, com um grupo
de homens, tinha decidido se vingar das afrontas à família, atacando
localidades onde se encontravam seus inimigos. Nessa época, ele
já era conhecido como Lampião. Conta-se que, num tiroteio noturno
contra a polícia, ele deu tantos tiros seguidos que o cano de sua
espingarda iluminou a noite, como se fosse a luz de um lampião.
Daí lhe veio o apelido.
O ataque ousado à vila de Pariconhas (Alagoas) – o delegado
foi surrado e amarrado a um poste e foram roubados 18 contos de
réis – provocou a ira de Amarilo Batista, chefe de polícia de Água
Branca. Batista juntou uma tropa e, sem saber onde encontrar
Lampião, foi ao sítio do Engenho, cercou a casa onde estava José
Ferreira e abriu fogo. Era 18 de maio de 1921 quando Jose Ferreira,
o pai de Lampião, morreu.
Para Lampião, conforme declarou diversas vezes, sua vida
tinha agora um único sentido: vingar a morte do pai e também a da
mãe, atribuindo as duas à polícia.
Sob as ordens de Sinhô Pereira

Depois da morte do pai, Virgulino e seus irmãos Antônio e


Levino entraram definitivamente para o cangaço. Tinham formado
um bando de seis ou sete homens e se juntado a Sinhô Pereira.
Com ele, Virgulino aprendeu o necessário para levar a vida de
“bandido profissional” no sertão.
Além das táticas de combate e despistamento, aprendeu a
relacionar-se com fazendeiros e chefes políticos. Aprendeu a lidar
com policiais corruptos, dispostos até a fornecer armas e munições
em troca de algum tipo de pagamento. Aprendeu ainda os tipos de
crime que lhe garantiriam a sobrevivência, sem passar as
necessidades dos agricultores pobres da região: saquear vilas,
fazendas e pequenas cidades, extorquir dinheiro mediante ameaça
de ataque e pilhagem, ou sequestrar pessoas importantes e
influentes para depois exigir resgate. Em junho de 1922, por
exemplo, Lampião atacou Água Branca para saquear a casa da
viúva de Joaquim Antônio de Siqueira Torres, que recebera um título
de nobreza no Império e possuía uma pequena fortuna em joias.
Junto com Sinhô Pereira, a fama de Lampião foi se
espalhando. Alguns atos de inegável coragem serviram para
consolidá-la e transformar Virgulino num líder. Em certa ocasião,
ele, Pereira e mais nove homens foram cercados por 128 soldados.
Conseguiram furar o cerco a bala e escapar.
A convivência de Lampião com Sinhô Pereira se limitou aos
meses finais de 1921 e aos iniciais de 1922. Nesse ano, Pereira
decidiu deixar o cangaço, refugiando-se no longínquo e então
despovoado estado de Goiás. Lampião tomou o lugar do antigo
líder.
De 1922 a 1926, Pernambuco, Alagoas e com menor
frequência a Paraíba se tornaram áreas de atuação de Virgulino
Ferreira da Silva, numa rotina de crimes exaustivamente repetida. O
nome de Lampião e seus seguidores ganhava as manchetes dos
jornais. O cangaço deixava de ser um problema sertanejo
localizado, para se tornar estadual.
No início, as polícias estaduais não estavam preparadas para
dar combate aos grupos de cangaceiros, seja porque se
concentravam nas cidades maiores, seja por falta de recursos, ou
porque os bandidos contavam com poderosos padrinhos entre os
grandes fazendeiros e chefes políticos.
Somente com o agravamento do problema do cangaço a
polícia viria a se equipar para a missão de lutar contra ele. Foram
contratados homens em caráter temporário, para engrossar as
fileiras policiais. Além disso, surgiram também voluntários – pessoas
que tinham sofrido algum tipo de dano por parte dos cangaceiros –
para juntar-se à polícia. Aos poucos, formaram-se as volantes,
grupos policiais cujo objetivo único era perseguir os cangaceiros
pelo sertão.
Lampião e seu bando evitavam combates quando em
desvantagem. Sempre que possível, preferiam bater em retirada,
em vez de correr o risco de uma derrota. Por isso, despistar a
polícia era uma arte para os cangaceiros. Além de fazerem rastros
falsos, costumavam enterrar todos os companheiros mortos, para
ninguém ficar sabendo as baixas que lhes causara um ataque.
Conta-se, por exemplo, que quando seu irmão Levino morreu
num tiroteio com a polícia da Paraíba, em julho de 1925, o próprio
Lampião lhe cortou a cabeça: o corpo podia ser encontrado, mas
ninguém saberia de quem era. Assim, essa perda do bando seria
mantida em segredo.
Encontro com o padre Cícero

No início de 1926, para escapar à perseguição feroz das


polícias da Paraíba e de Pernambuco, Lampião refugiou-se com seu
bando no Ceará. Nesse mesmo tempo, a Coluna Prestes (ver texto
no fim deste capítulo) atravessava o Nordeste. Encarregado de
defender a região e combater os revolucionários, o deputado Floro
Bartolomeu resolveu procurar o cangaceiro para incluí-lo entre seus
soldados.
Para isso, o deputado contou com o apoio de alguém que
Lampião – um homem religioso como a maioria dos sertanejos –
admirava profundamente, como de resto quase toda a população do
Nordeste: o padre Cícero Romão Batista, vigário de Juazeiro do
Norte (Ceará). Passado algum tempo, Lampião recebeu uma carta
do famoso padre, convidando-o para um encontro em Juazeiro.
A entrada do cangaceiro na cidade, com 49 comandados, foi
um acontecimento festivo. A multidão acorria para vê-lo de perto.
Lampião chegou a dar autógrafo a um repórter que o entrevistou.
O ponto alto da permanência em Juazeiro, porém, foi o
encontro com o padre, então com 82 anos. Numa audiência de
poucas pessoas, a portas fechadas, Lampião recebeu a proposta de
enfrentar Prestes em troca de armamentos, fardas e da patente de
capitão dos Batalhões Patrióticos, como se chamavam as tropas
recrutadas para combater os revolucionários. Ao mesmo tempo,
padre Cícero o aconselhou a deixar definitivamente a vida de
crimes, logo que terminasse o combate contra a coluna. Lampião
concordou prontamente, dando a sua palavra.
Virgulino – daí por diante definitivamente conhecido como
capitão Virgulino – e seus homens partiram à caça de Prestes, que
já havia atravessado o Ceará, a Paraíba e Pernambuco e estava na
Bahia. Conta-se que, no caminho, Lampião não cometeu nenhum
ato criminoso. Ao passar por Pernambuco, porém, num encontro
casual com a polícia, o chefe cangaceiro descobriu que a carta com
a patente oficial que recebera em Juazeiro não tinha nenhum valor
legal. Foi atacado pelos policiais pernambucanos e precisou bater
em retirada.
Desiludido, Lampião voltou às práticas anteriores. Esqueceu a
Coluna Prestes, que de fato nunca chegou a combater. Ainda tentou
um novo encontro com o padre Cícero, mas o religioso se recusou a
recebê-lo, pois já havia sido bastante criticado em razão do primeiro
encontro com o cangaceiro. De qualquer modo, a partir daí Lampião
passou a assinar todos os bilhetes que enviava como “Capitão
Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião”.
A Coluna Prestes
O tenentismo foi um movimento político-militar desencadeado nos
anos 20 pela jovem oficialidade do Exército, que contou com a
adesão de militares de patente superior e de setores da pequena
burguesia. Entre os objetivos do movimento destacavam-se o
fortalecimento do governo central, a uniformização da legislação
eleitoral e o voto secreto. Das várias revoltas tenentistas, a mais
importante foi a de São Paulo, em 1924, contra o governo do
presidente Artur Bernardes. Sufocada a rebelião, um grupo de
revoltosos, comandados pelo capitão Luís Carlos Prestes, continuou
a combater o governo com lutas de guerrilha, pelo interior do Brasil.
Essa força – a Coluna Prestes – percorreu 24.000 quilômetros do
território nacional, principalmente no Nordeste e no Centro-Oeste,
até ser obrigada a se retirar para a Bolívia, em 1927.
Serra Grande e Mossoró

Pernambuco e Alagoas continuaram sendo as áreas de


atuação preferidas de Lampião nos últimos meses de 1926. O
cangaceiro concentrou as ações em sua cidade natal, Vila Bela. A
cidade era a sede das forças militares estaduais que se ocupavam
do cangaço, sob o comando do major Teófanes Torres – conhecido
por haver capturado o cangaceiro Antônio Silvino, em 1914.
Em 28 de novembro, nas proximidades da região de Serra
Grande, em Pernambuco, o destacamento do major, formado por
295 homens, conseguiu alcançar Lampião e os cem homens do
bando. Mas os cangaceiros estavam preparados para o ataque e
esperavam a tropa, bem entrincheirados. O combate começou às 9
da manhã e só terminou ao cair da tarde, com pesadas baixas de
ambas as partes.
Conta-se que nesse combate teria morrido Antônio, o irmão
mais velho de Virgulino. Na verdade, Antônio morreu nessa ocasião,
mas de um disparo acidental num treinamento de tiro. Para
substituir o irmão, Lampião designou o cangaceiro Luís Pedro, que
se tornou seu lugar-tenente até a morte dos dois, muitos anos mais
tarde.
Depois da batalha de Serra Grande – a maior que até então
acontecera entre a polícia e Lampião – o cangaceiro e seu bando
prosseguiram na rotina de banditismo, com pequenos roubos,
saques e enfrentamentos com a polícia. Dividindo o bando em
grupos menores, os cangaceiros podiam atuar em vários lugares ao
mesmo tempo. Juntavam-se mais tarde, nos esconderijos, para
descansar e usufruir do produto de seus crimes.
Em junho de 1927, Lampião decidiu levar adiante uma ação de
maior alcance: atacar Mossoró, a segunda cidade mais importante
do Rio Grande do Norte. Era uma operação ousada e não se sabe
ao certo o que levou o cangaceiro a empreendê-la. Para alguns, ele
agiu instigado por um coronel amigo, que tinha rivais políticos na
cidade.
Roubos e tiroteios praticados ao longo do caminho para o Rio
Grande do Norte foram suficientes para prevenir os habitantes de
Mossoró da aproximação dos terríveis visitantes. E a cidade
preparou sua defesa.
Na manhã de 13 de junho, Lampião, como de costume, enviou
um bilhete ao prefeito do município, informando que estava na
vizinhança com cerca de 150 homens – na verdade eram sessenta.
Se não recebesse 400 contos de réis (uma imensa fortuna), atacaria
Mossoró. O prefeito respondeu que não mandaria o dinheiro e que a
polícia, os cidadãos e ele mesmo estavam prontos para defender a
cidade.
À tarde, dividido em grupos, o bando de Lampião atacou.
Entrincheirada, a população o recebeu a bala. Todos os pontos que
os assaltantes tentaram conquistar resistiram. Seis cangaceiros
foram mortos e Lampião convocou seus homens para a retirada.
Segundo depoimentos de habitantes do local, o Rei do Cangaço
fugiu em pânico. Até hoje, a cidade relembra a bravura de seus
cidadãos nessa batalha.
O episódio, entretanto, em pouco abalou a fama do capitão
Virgulino, que voltou a seus velhos métodos. Atacou a cidade de
Limoeiro do Norte, no Ceará, e, perseguido pela polícia, enfrentou
duras batalhas. Na colina de Macambira, no sul do Ceará, próximo à
vila de Aurora, chegou a combater quatrocentos soldados com
pouco mais de quarenta homens. Surpreendentemente, saiu
vencedor. Vale lembrar, porém, que aí ele levava a vantagem de
estar em região sertaneja conhecida, até familiar, ao contrário do
que ocorrera em Mossoró, cidade mais próxima do litoral, numa
área para ele completamente desconhecida.
Bahia: massacre em Queimadas

O ano de 1928 marca uma nova fase na carreira do Rei do


Cangaço. Data de agosto desse ano sua primeira incursão ao
estado da Bahia. Nesse estado, Lampião conseguiria a adesão de
alguns homens – e até de meninos – que se destacavam pela
grande violência, para engrossar seu bando. É o caso de Antônio de
Engrácia, Cristiano Gomes da Silva – que viria a ser conhecido por
Corisco, o Diabo Louro – e de Volta Seca, que entrou para o bando
aos 14 anos de idade.
Aparentemente, em seus primeiros momentos na Bahia,
Lampião procurava descanso. Não receava perseguições, num
lugar onde não havia cometido nenhum crime. Ao que se sabe, de
início o cangaceiro procurou reforçar o outro lado da fama que o
acompanhava pelo sertão, a de homem generoso e amigo dos
pobres. Era uma forma de conquistar simpatias e amizades. Nos
primeiros lugares em que esteve, promoveu festas e distribuiu
presentes e dinheiro.
Mas esse período de calma durou só alguns meses. Em
janeiro de 1929, uma volante baiana atacou Lampião e seus
homens e, a partir daí, a Bahia foi considerada por ele um lugar
igual aos outros. O norte do estado converteu-se então num de seus
principais lugares de atuação. De lá, costumava refugiar-se em
Sergipe, onde contava com a proteção de poderosos chefes
políticos, um dos quais – Eronildes Carvalho – chegou a ser
governador desse estado.
Foi no final de 1929, na cidade de Queimadas, que Lampião
deu à Bahia uma boa prova de sua violência. Os cangaceiros
chegaram no dia 22 de dezembro, à tarde. A princípio, os
moradores pensaram que se tratava de uma volante, pois os
membros dessas forças não usavam uniforme, mas os mesmos
trajes de couro da maioria dos sertanejos. Quando descobriram a
verdade, os cangaceiros já dominavam a cidade.
Alguns cangaceiros tomaram a estação do trem e o telégrafo,
enquanto outros cercaram a delegacia, rendendo de surpresa oito
soldados. Prendendo o juiz de direito, Lampião lhe ordenou que
fizesse uma lista dos cidadãos mais ricos do lugar, de quem exigiu
um pesado tributo em dinheiro. Arrecadou 23 contos de réis.
Ao pôr-do-sol, dirigiu-se à delegacia com alguns comandados.
Tirou um dos soldados do xadrez, levou-o à porta do prédio e
explodiu-lhe a cabeça com dois tiros. O ato foi repetido friamente
mais seis vezes. O sargento que comandava a guarnição foi
poupado, porque várias pessoas humildes intercederam por ele. À
noite, depois que o bando jantou no hotel e assistiu a um filme,
promoveu-se um baile que durou até as 3 da madrugada. Às 4, os
cangaceiros partiram.
A polícia baiana não conseguiu vencer Lampião, que continuou
a reinar na Bahia durante o ano de 1930. Em outubro e novembro, a
revolução que levou Getúlio Vargas ao poder acabou servindo para
deixar as coisas ainda mais fáceis para os cangaceiros.
Empenhadas nos acontecimentos políticos, as forças policiais
tiveram de diminuir a perseguição. E a substituição de autoridades,
administradores e políticos nos estados interrompeu a continuidade
das operações para a captura do cangaceiro. Na verdade, o novo
governo precisava consolidar-se, enfrentando em primeiro lugar
seus inimigos políticos diretos. Bandidos como Lampião podiam
ficar para depois, mesmo porque o sertão continuava, de certa
forma, isolado do resto do país.
Para neutralizar a influência dos coronéis baianos inimigos da
revolução, liderados por Horácio de Matos, o novo governo
brasileiro enviou mais de mil homens, com metralhadoras e aviões.
Um esforço de iguais proporções nunca foi empreendido contra
Lampião e seu bando. No entanto, era necessário tomar
providências contra um criminoso cuja fama já ultrapassava os
limites do Nordeste e que produzia manchete nos principais jornais
do país.
A revolução de 1930
Na década de 20 já era grande a insatisfação social e política em
relação à República Velha (1889-1930), dominada pelas
oligarquias[2] rurais, especialmente a paulista e a mineira, que se
revezavam no poder. As revoltas tenentistas e as greves operárias
eram sinais claros dessa crescente insatisfação. Setores da classe
média, do operariado e das próprias elites agrárias denunciavam o
regime oligárquico, as fraudes eleitorais e as dificuldades
econômicas.
A crise da agricultura cafeeira, agravada pela crise econômica
mundial de 1929, provocou o movimento político-militar liderado por
Getúlio Vargas, que, em novembro de 1930, derrubou o presidente
Washington Luís. Vargas assumiu a presidência da República como
chefe do Governo Provisório, dando início a profundas reformas
econômicas, políticas e administrativas no país.
Maria Bonita

Durante quase todo o ano de 1931, o combate a Lampião ficou


limitado a planos e discussões, tanto em Salvador quanto no Rio de
Janeiro. Enquanto isso, o bandido atuava impune, com a mesma
ousadia de sempre. E, em fins de 1930 ou início de 1931, Lampião
conseguiu mais um dos ingredientes que compuseram a aura
romântica dos cangaceiros. Trouxe para o bando a mulher por quem
se apaixonara, Maria Déia Neném, que passou à história com o
apelido de Maria Bonita.
Maria, casada com um sapateiro, não se dava bem com o
marido. Seus pais, que tinham uma pequena fazenda nos limites da
Bahia com Sergipe, eram coiteiros – nome dado a quem auxiliava
cangaceiros – do bando de Lampião. Foi a mãe de Maria quem
contou a um cangaceiro que a filha tinha grande admiração pelo
chefe do bando.
Lampião quis conhecê-la. Ficou impressionado com a mulher
que viu: 20 anos, morena, baixa, corpo volumoso, belo sorriso, olhos
e cabelos negros. Pediu que o acompanhasse, Maria aceitou (há
quem afirme que foi ela quem se ofereceu para acompanhá-lo).
O exemplo do chefe foi seguido pelos companheiros, e outras
mulheres se integraram ao grupo. Entre elas, Dadá, a companheira
de Corisco, foi a que mais se destacou, depois de Maria Bonita.
Como a companheira de Lampião, ela também morreu lutando ao
lado de seu marido.
O fim do reinado
A operação contra Lampião, planejada em 1931, saiu
efetivamente do papel em janeiro de 1932, numa batalha em
Maranduba, no limite entre Sergipe e Bahia. Lampião, à frente de 32
homens, foi cercado por cem policiais, mas os cangaceiros
conseguiram mais uma vez furar o cerco e escapar.
O fracasso desse primeiro encontro talvez tenha diminuído o
ânimo das autoridades. A campanha prosseguiu em marcha lenta
até julho, quando quase parou de vez. Nesse mês, com a
Revolução Constitucionalista deflagrada por São Paulo, as tropas
nordestinas foram mobilizadas para o sul, no combate à insurreição.
Mais uma vez Lampião se transformou num inimigo secundário para
as autoridades locais.
Só no final de 1932 a campanha contra o cangaço ganhou
novo alento. Foi quando as autoridades resolveram tratar da mesma
maneira os cangaceiros e seus coiteiros. Combatendo os coiteiros –
a maioria deles cidadãos indefesos, que abrigavam os cangaceiros
com medo de represálias -, os soldados obtinham duas vitórias: a
um só tempo, mostravam serviço e cortavam a possibilidade de os
cangaceiros disporem de suprimentos e abrigo. Com isso, Lampião
e seu bando passaram a deslocar-se para regiões cada vez mais
remotas.
Nem assim o Rei do Cangaço seria capturado rapidamente. Ao
contrário, o resultado direto dessa ação contra os coiteiros foi
apenas intensificação da violência contra a população pobre e
desprotegida do sertão nordestino. Os sertanejos sofriam ao mesmo
tempo nas mãos da polícia, que perseguia, prendia e torturava de
acordo com suas conveniências, e nas mãos dos cangaceiros, que
se vingavam dos que os houvessem delatado ou dado qualquer tipo
de auxílio à polícia.
Em 1933, nada de novo aconteceu, exceto a diminuição do
ritmo da pressão policial. As polícias estaduais relataram apenas
quinze confrontos com Lampião durante o ano. Em 1934, a
campanha ficou ainda mais lenta. Nesse ano, Lampião pouco atuou
na Bahia, um dos estados mais empenhados em sua captura. Com
isso, diminuiu significativamente o número de homens em seu
encalço. Dos novecentos soldados do ano anterior, restavam
somente 250 em 1934. Das 22 volantes, apenas sete continuavam
em ação.
Os dois anos seguintes também foram marcados por
pequenas ações dos cangaceiros, que se refugiavam por longos
meses no interior de Sergipe. O interventor estadual Eronildes
Carvalho, nomeado pelo governo federal, era velho amigo de
Lampião e o protegia em seu estado, embora declarasse para o
resto do país que a polícia de Sergipe estava em constante
perseguição ao cangaceiro.
Nessa marcha relativamente tranquila, Lampião passaria o ano
de 1937 sem ações de caráter espetacular. Com essa calmaria, não
podia imaginar que seu reinado estava no fim.
A Revolução Constitucionalista de 1932
O trabalho inicial do governo de Getúlio Vargas, após a revolução de
1930, foi anular a Constituição e desmontar o sistema político
vigente. Com a nomeação dos interventores para substituir os
governadores dos estados, as unidades da Federação ficaram mais
subordinadas ao governo central e este, mais fortalecido. Assim, o
governo Vargas assumia atitudes ditatoriais, violando liberdades
democráticas e, ao mesmo tempo, retardando a elaboração da Nova
Constituição. Em nome da democracia e clamando por uma nova
Constituição, o estado de São Paulo rebelou-se contra as iniciativas
de Vargas e iniciou uma ação armada, em 9 de julho de 1932,
contando com a adesão de outros estados, que, entretanto, não
ocorreu. A Revolução Constitucionalista foi sufocada já em 1o. de
outubro do mesmo ano, mas se saiu vitoriosa politicamente, levando
Getúlio Vargas a convocar eleições para a Assembleia Constituinte
que elaborou a Constituição de 1934.
O cerco de Angicos

Depois de pequenas ações e andanças em Alagoas, no início


de 1938, Lampião procurou novamente refúgio em Sergipe, numa
fazenda chamada Angicos, às margens do rio São Francisco, numa
região conhecida como Raso da Catarina. Em meados desse ano, o
governo de Alagoas resolveu se empenhar no combate ao bandido,
possivelmente por pressão direta do governo federal, que, com o
estabelecimento do Estado Novo em 1937, aumentara a força de
sua autoridade em todo o país.
José Lucena – antigo perseguidor de Lampião e comandante
da campanha contra o cangaço em Alagoas – resolveu agir sem se
comunicar com as autoridades sergipanas. O escolhido para chefiar
a operação foi o tenente João Bezerra, suspeito de conivência com
o cangaceiro. Por isso, ou dava cabo dele, ou ficaria provada sua
deslealdade à polícia. Juntamente com o sargento Aniceto
Rodrigues e o aspirante a oficial Francisco Ferreira de Melo,
Bezerra armou um plano sigiloso, partindo às escondidas para a
região onde se encontrava o cangaceiro.
Para localizar o esconderijo, a volante contou com a ajuda
voluntária de um coiteiro e com a colaboração forçada de outro.
Confirmada a presença de Lampião em Angicos, Aniceto passou um
telegrama em código para Bezerra: “O touro está no pasto”.
Na madrugada de 28 de julho de 1938, 45 soldados chegaram
ao Raso da Catarina, onde cinquenta ou sessenta cangaceiros
estavam acampados. Inexplicavelmente, dessa vez o bando não
tomara as precauções de costume. Não havia sequer uma sentinela
nas proximidades do acampamento. Assim, com os primeiros raios
de sol, a polícia fechou o cerco ao Rei do Cangaço.
Um dos homens de Lampião acordou, talvez pressentindo a
aproximação. Ao ouvir um barulho que confirmou suas suspeitas,
tentou dar o alarme. Mas os soldados de Bezerra, armados com
rifles e três metralhadoras, abriram fogo. O combate não durou mais
de vinte minutos. Acredita-se que uns quarenta cangaceiros
conseguiram escapar. Onze morreram; entre eles, Lampião e Maria
Bonita.
Seguiu-se uma cena de selvageria: os cadáveres foram
degolados e os armamentos, joias, ouro e dinheiro, pilhados e
repartidos entre os homens que os mataram. Levadas para
Salvador, as cabeças de Lampião, Maria Bonita e outros
cangaceiros ficaram expostas por quase trinta anos no museu Nina
Rodrigues. Em 1968, foram finalmente sepultadas.
O Estado Novo
Instalado no poder em 1930 e confirmado como presidente da
República pela Assembleia Constituinte de 1934, Getúlio Vargas
percebeu que a disputa por sua sucessão poderia provocar
mudanças na política que até então impusera ao país. Apoiando-se
nos militares, o presidente promoveu um golpe de Estado em
novembro de 1937. Fechou o Congresso e outorgou ao país uma
nova Constituição, instaurando um regime ditatorial conhecido como
Estado Novo. Os partidos políticos foram abolidos, as liberdades
individuais suspensas e os estados submetidos a novos
interventores, nomeados por Vargas.
Embora politicamente repressiva, a ditadura de Vargas favoreceu o
desenvolvimento da indústria nacional e trouxe alguns benefícios ao
operariado. Com isso, o regime do Estado Novo conseguiu
fortalecer-se.
No entanto, com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial na
luta contra as ditaduras nazifascistas europeias, acirrou-se
internamente a luta pela democracia. Vargas foi deposto por um
golpe de Estado em outubro de 1945, liderado pelo comando militar
que retornara vitorioso da Europa.
A vingança de Corisco

Um dos principais companheiros de Lampião não estava em


Angicos no dia da morte do Rei do Cangaço. Corisco, o Diabo
Louro, já havia formado um grupo próprio, que atuava
independentemente de Virgulino Ferreira.
A morte do antigo líder foi tomada como afronta pessoal por
Corisco, que jurou uma vingança terrível: prometeu matar não
somente os delatores de Lampião, mas também os soldados, o
tenente Bezerra e todos aqueles que encontrasse com esse mesmo
sobrenome.
E começou logo a cumprir a promessa. Em Piranhas
(Alagoas), do outro lado do São Francisco, mas perto de Angicos,
invadiu a casa de um dos supostos delatores e matou-o, juntamente
com a mulher e três filhos. Degolou os mortos, pôs as cabeças num
saco e mandou-as para o prefeito da cidade, com um bilhete que
aludia à decapitação de Lampião: “Se o negócio é de cabeças, vou
mandar em quantidade”.
No ano que se seguiu à morte de Lampião, porém, as
autoridades do Nordeste prometeram garantia de vida a todos os
cangaceiros que se entregassem à polícia. Vários deles aceitaram a
proposta. Alguns chegaram a se integrar às volantes, que
combatiam os cangaceiros renitentes.
Essas vitórias deram ânimo às forças policiais, que
aumentaram a perseguição. Ainda assim, Corisco continuou a atuar
até 5 de maio de 1940, quando morreu num tiroteio com uma
volante, em Brotas de Macaúbas, na Bahia.
A morte de Corisco praticamente coincide com o fim do
cangaço. O desaparecimento de lideranças como Lampião e o
próprio Corisco, antes que outras estivessem prontas para entrar em
ação, é um dos fatores que explicam o fim desse tipo de banditismo.
Mas certamente não é o único.
Não se pode deixar de lado o fato de que, na década de 1940,
com as grandes transformações econômicas provenientes do
crescimento industrial do país, o Sudeste passou a absorver a mão-
de-obra nordestina disponível, incentivando as migrações.
Ao mesmo tempo, o desenvolvimento dos meios de
comunicação e de transporte promoveu maior integração do sertão
nordestino com o resto do país. As estradas de ferro e de rodagem,
os automóveis e os caminhões passaram a transitar mais
intensamente, transformando as veredas do sertão em rodovias
largas e policiadas, onde o cangaceiro não poderia sobreviver.
O cangaceiro: realidade e mito

Acompanhando as andanças de Lampião através do Nordeste


por quase duas décadas, obtivemos uma visão aproximada do
fenômeno do cangaço. O cangaceiro é um bandido típico do sertão
nordestino, que atuou na região entre o final do século XIX e o
começo do século XX.
Esse tipo de banditismo surgiu da própria história da sociedade
nordestina. É descendente dos jagunços e dos capangas dos
grandes fazendeiros e está diretamente ligado à tradição de
coronelismo, disputa pela posse da terra, vingança por questões de
honra e família. Relaciona-se ainda com o próprio isolamento do
sertão nordestino em relação ao restante do país. Da mesma forma,
a incompetência e a corrupção das polícias locais, além do descaso
dos governos estaduais e da União, contribuíram para que o
problema tomasse proporções dramáticas.
Definido o cangaço nesses termos, pode surgir uma
interrogação: Por que não é essa a visão do cangaceiro transmitida
pelo folclore brasileiro e até mesmo por muitos historiadores,
escritores e cineastas?
A resposta não pode ser breve. É preciso levar em conta que,
ao lado do ódio e do temor de muitos, os cangaceiros também
conquistaram o respeito e a admiração de grande parte dos
sertanejos de sua época. Tornaram-se, por exemplo, personagens
de uma rica tradição de poesia popular do Nordeste: a literatura de
cordel.
Trata-se de pequenos folhetos com oito ou dezesseis páginas,
impressos em pequenas oficinas e ilustrados com xilogravuras[3], em
que se contam histórias de aventuras, em versos muito saborosos,
na linguagem própria da gente do sertão. Cangaceiros como
Antônio Silvino, Lampião e Corisco são apresentados nesses
folhetos como heróis, menos frequentemente como bandidos
violentos.
Os autores dos versos costumavam atribuir aos cangaceiros
qualidades sobrenaturais, como a proteção de Deus ou dos santos
ou a coragem invencível em combates com o diabo.
Já no século XIX, com a Independência, a literatura brasileira
culta procurava apresentar como heróis personagens tipicamente
nacionais, como forma de valorizar o homem brasileiro. E em 1876 –
nos últimos anos do movimento literário romântico – o escritor
cearense Franklin Távora fazia do cangaceiro o personagem
principal de seu romance O Cabeleira. A figura do bandido
nordestino não deixa de ter seu encanto, como a dos piratas e
pistoleiros do velho Oeste norte-americano.
Dessa forma, a cultura e o folclore do povo brasileiro nunca
viram o cangaço de maneira totalmente antipática. No século XX,
passou a predominar na literatura brasileira o regionalismo – um
movimento literário que pretendia focalizar o modo de vida do Brasil,
a partir da diversidade de suas regiões. Com presença
merecidamente destacada de escritores nordestinos no movimento,
como José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rachel de Queirós e
Jorge Amado, os tipos humanos característicos do Nordeste mais
uma vez se tornaram protagonistas de contos e romances.
Em grande parte dessa literatura regionalista, se o cangaceiro
não é visto como herói, é mostrado como vítima das circunstâncias
sociais do Nordeste.
Entretanto, não é correta a identificação do cangaceiro com um
bandido do tipo do lendário herói inglês Robin Hood, que roubava
dos ricos para dar aos pobres. Para Lampião, por exemplo, quando
se tratava de um inimigo, não importava se era rico ou pobre.
Mas foi a imagem do cangaceiro herói que prevaleceu na
memória do povo brasileiro. Foi assim, idealizado, que ele chegou
também às telas do cinema. Em 1952, o cineasta brasileiro Vítor
Lima Barreto, com o filme O cangaceiro, ganhou o prêmio de melhor
filme de aventuras do importante Festival de Cannes. Na esteira de
seu sucesso, produziram-se dezenas de filmes sobre cangaceiros
reais e imaginários.
Em 1964, Glauber Rocha, considerado um dos mais
importantes cineastas brasileiros, colocou mais uma vez na tela o
cangaceiro heroico, em Deus e o diabo na terra do sol, obtendo
grande repercussão de crítica, no Brasil e no exterior.
A polêmica sobre o fato de o cangaceiro ser herói ou bandido,
apesar de as evidências históricas apontarem nessa última direção,
ainda se mantém. No início da década de 90, por exemplo, os
cidadãos de Serra Talhada pretenderam levantar uma estátua em
homenagem a Lampião, que ali nasceu. Esse fato reacendeu a
discussão – prova de que os cangaceiros se mantêm na memória
popular, tanto tempo passado.
O Cabeleira

Em 1876, foi publicado o romance O Cabeleira, do escritor cearense


Franklin Távora, inspirado em crônicas históricas do Brasil do século
XVIII. Nele registra-se a atuação de um bando de salteadores, já
conhecidos como cangaceiros, liderados por José Gomes, cujos
cabelos cacheados e compridos até os ombros lhe valeram o
apelido de Cabeleira. Sua atuação, segundo Távora, estendeu-se
pelos anos de 1775 e 1776, em Pernambuco. Nessa época, a
capitania foi devastada por uma grande seca e é à situação de
miséria e calamidade que se atribui o surgimento do bando. Tratava-
se de roubar para garantir a própria sobrevivência. Contra o
Cabeleira e seu bando formaram-se milícias de voluntários,
conhecidas como volantes. Cercado por uma delas, em 1776, o
Cabeleira foi preso e condenado à morte na forca.
Cronologia

1897 – Nasce Virgulino Ferreira da Silva.


1900 – Antônio Silvino firma-se como chefe de um grupo de
cangaceiros.
1912 – Antônio Silvino propõe ao governo deixar o cangaço em
troca de anistia, mas a proposta é rejeitada.
1914 – O padre Cícero torna-se vice-presidente do estado do Ceará.
1917 – Virgulino (que começa a ser conhecido como Lampião)
participa de ações no bando de Sinhô Pereira.
1918 – Antônio Silvino é preso e condenado à prisão perpétua.
1921 – Morre José Ferreira, pai de Lampião. Ele entra para o bando
de Sinhô Pereira.
1922 – Sinhô Pereira deixa o cangaço. Lampião assume a liderança
do bando.
1924 – Revolta tenentista de São Paulo.
1926 – Lampião encontra-se com o padre Cícero e é convidado a
auxiliar no combate à Coluna Prestes.
1929 – Lampião atua na Bahia.
1930 – A Revolução de 30 depõe Washington Luis; Getúlio Vargas
assume a presidência da República. Lampião conhece Maria Bonita.
1932 – Revolução Constitucionalista em São Paulo.
1934 – Morte do padre Cícero.
1938 – Lampião morre no cerco de Angicos.
1940 – Corisco morre em Brotas de Macaúba
Bibliografia

CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. São


Paulo, Paz e Terra, 1986.

CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro, Francisco Alves,


1973.

HOBSBAWN, Eric. Bandidos. Rio de Janeiro, Forense-Universitária,


1976.

MACEDO, Nertan. Capitão Virgulino Ferreira: Lampião. Rio de


Janeiro, Leitura, 1962.

MACHADO, Christina Matta. As táticas de guerra dos cangaceiros.


Rio de Janeiro, Laemmert, 1969.

MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol. O


banditismo no Nordeste do Brasil. Recife, Massangana, 1985.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. História do Cangaço. São


Paulo, Global, 1982.

[1]
Posseiro: camponês que ocupa terras por certo tempo, sem o título de propriedade.
[2]
Oligarquias: Grupos de grandes fazendeiros que controlavam os
governos estaduais e municipais e, através deles, influíam na
eleição do presidente da República. Na República Velha, as
oligarquias dominantes foram as de São Paulo e Minas, ligadas à
agricultura cafeeira e à pecuária.
[3]
Gravura feita em madeira e depois impressa em papel.

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