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ARISTÓTELES: ARTE, PÁTHOS E ÉTHOS

ARISTÓTELES (384 a.C.-322 a.C.)

Ao retomar o pensamento platônico1 e pitagórico à luz de certa


influência hedonística, Aristóteles considera que a música demonstra um
caráter de racionalidade matemática superior que engloba toda a
harmonia, como imagem direta das relações numéricas que reinam no
universo. Em A Política, o capítulo sobre a música é apresentado no
Livro V, que é dedicado à educação.
Para Aristóteles a música representa, acima de tudo, um prazer; o
que significa que representa o ócio e se opõe ao trabalho e à atividade.
A sua utilidade na educação dos jovens está apenas em que mesmo
para o repouso são necessários conhecimento e prática. Se a música é
útil como ocupação do tempo livre, para os momentos de ócio, por este
motivo é considerada como sendo uma disciplina liberal e nobre. Assim,
o filósofo peripatético2 distingue entre a escuta e a execução musicais: a
primeira é uma atividade não manual e digna de um homem livre; a
segunda é um trabalho manual e não pode ser útil para a educação
liberal3.

1
Segundo Plutarco, Aristóteles teria tomado parte de sua concepção sobre a música do
diálogo Timeu, de Platão.
2
Ao retornar a Atenas, após ter sido o preceptor de Alexandre, O Grande, na
Macedônia, Aristóteles e se vê destituído do Liceu, local onde ensinava; por essa
razão, passou a dar suas aulas ao ar livre. A denominação ‘peripatético’ (do verbo
peritatéō = passear, perambular) vem do hábito do filósofo de ensinar a seus
discípulos enquanto caminhavam pelas ruas da cidade. Daí vêm também os termos
‘esoterismo’, com o sentido original de “estudo profundo para iniciados, através de
caminhadas à tardinha”, e ‘exoterismo’, que tem sentido de “iniciação por meio de
caminhadas pela manhã”.
3
É interessante notar como essa distinção entre música prática e música teórica, em
Platão, e entre escutar música e tocar música, em Aristóteles, permaneceu ao longo
dos tempos nas diversas concepções de música. Por exemplo, na Renascença, os
nobres dedicavam-se à fruição musical, enquanto seus súditos se dedicavam a tocar;
2

Aristóteles busca critérios mais objetivos para a avaliação da


música: se a música é útil como matéria educativa, deve-se buscar
estabelecer porque é educativa, como deve ser ensinada, em que nível
deve ser aprendida (profissional ou amador), se é suficiente escutá-la,
quais são as melodias, os modos, os ritmos que são educativos ou não,
etc. Assim, executar música é somente um momento inicial preparatório
de uma atividade mais elevada que é saber realizar o juízo sobre a
música (saber julgá-la com a faculdade do juízo). O problema é que não
se pode ser bom juiz daquilo que não se sabe fazer. Assim, a prática
musical é necessária ao cidadão livre, porém deve se restringir a não
alcançar o virtuosismo. Aristóteles considera que instrumentos como a
flauta ou a cítara são extremamente difíceis, por isso deveriam ser
deixados aos músicos profissionais, que seriam homens vulgares
dedicados às atividades manuais. É importante lembrar que tanto Platão
quanto Aristóteles dedicam seus escritos para a formação educativa do
cidadão, isto é, os homens de posse e principalmente aqueles que
seriam os futuros dirigentes da sociedade (Aristóteles foi preceptor de
Alexandre, o Grande).
Aristóteles se posiciona com relação às duas linhas de pensamento
musical predominantes na Grécia antiga: de um lado, os pitagóricos,
para quem a música estaria em relação direta e orgânica com a alma
através da harmonia do cosmo (através das relações numéricas
encontradas na série harmônica e suas afinidades com as esferas
celestes); de outro lado, a teoria de Damon, para quem a relação entre
a música e a alma se daria por meio da mimese (imitação das paixões,
no caso da música). Com base nessas teorias, Aristóteles considera que
certas melodias, certos ritmos, certas harmonias imitam a virtude,
outras imitam os vícios; nesse sentido, a música tem um poder

na teoria musical renascentista, também existia a distinção entre ‘música prática’ e


‘música teórica’, sendo esta considerada superior.
3

educativo quando empregada com prudência e sabedoria, por meio do


conhecimento dos seus efeitos sobre a alma humana. Apesar de não
descartar a teoria pitagórica, de fundo metafísico, seu sólido realismo o
coloca mais próximo das teorias de Damon. O pitagorismo é avaliado
com certo distanciamento, como uma hipótese vaga, por Aristóteles.
Para Aristóteles, toda a harmonia corresponde a um determinado
estado psicológico, isto é, um éthos, um modo de ser, um caráter, um
conjunto de hábitos. Para o autor, todas as harmonias são possíveis
porque dependem do seu emprego em um momento oportuno. O que
importa na escolha deste ou daquele ritmo ou modo escalar é o efeito
que se quer causar no público. Assim, se ligam as três obras em que o
autor trata do assunto (A Política, Livro V; Retórica, Livro II; Poética,
Livro I).
Arte é imitação e suscita sentimentos, por isso é educativa sempre
que o artista pode desenvolver oportunamente a verdade de imitar e de
influenciar sobre o estado de ânimo dos cidadãos. O benefício moral que
pode advir para o homem através da música passa através do
mecanismo da catarse, que é a purificação da alma através dos
sentimentos despertos pela tragédia e pela comédia. Para Aristóteles, ao
contrário de Platão, não há harmonias ou ritmos danosos do ponto de
vista ético; a música é uma medicina para a alma mesmo quando imita
as paixões ou emoções que geram dor e tormento, porque podem ser
úteis para liberá-las ou purificá-las.
Isso é possível porque Aristóteles percebe certa pluralidade de fins
propiciados pela música. Para o filósofo, não há apenas um único uso da
música, mas diversos (são três as qualidades benéficas da música:
educação, catarse e repouso) e é daí que vem a possibilidade de
empregar todas as harmonias, visto que estas três funções não são
separadas, mas se interligam umas às outras. A aceitação do prazer
como fator possível para a função ética da música abre o campo para as
4

especulações mais variadas sobre música nas gerações posteriores a


Aristóteles. Poderia ser dito, segundo Fubini4, que é com Aristóteles que
nasce aquilo a que os modernos chamarão de estética da música; o
autor considera que há, em Aristóteles, uma perspectiva estético-
hedonista que percorre todo o fio do pensamento musical posterior a
ele.
Nos Problemas5, Aristóteles aborda as inter-relações entre
melodia, ritmo e harmonia, com relação às qualidades morais: “nas
melodias, há uma possibilidade natural de imitação dos costumes,
devido evidentemente ao fato de que a natureza da harmonia é
variada”6. Para o autor, a audição é o único sentido que pode perceber
qualidades providas de éthos. O movimento sonoro é que permite isso,
pois o movimento em si já está carregado de caráter ético, porém os
sabores e as cores não têm essa qualidade, pois estão fixos no espaço.
A afinidade entre o mundo dos sons, o mundo das emoções (medo,
piedade, etc.) e o mundo do éthos é de natureza formal e indireta. O
que os liga é o movimento comum a ambos os mundos em que se funda
a qualidade mimética da música; no movimento, entendido como
caráter fundamental da música, se encontra também a origem do prazer
gerado por ela.
O movimento na música implica também a idéia de ordem, de
medida e harmonia, no sentido pitagórico. Aristóteles retoma este
conceito de movimento de origem pitagórica, porém evitando todo o
caráter metafísico, para interpretá-lo em sentido exclusivamente
psicológico e formal. Nossa alma sente prazer com relação ao

4
FUBINI, Enrico. L’estetica musicale dall’antichità al Settecento. Torino: Einaudi, 1976,
p. 43-58.
5
Problemas é uma obra apócrifa, por isso, os especialistas costumam denominar o
autor como Pseudo Aristóteles.
6
ARISTÓTELES, A política. São Paulo: Atena, 1963.
5

movimento ordenado porque a ordem está de acordo com a natureza e


a música encarna e reproduz nos modos mais diversos, através de seus
ritmos e das suas harmonias, a ordem natural. Assim, a metafísica
pitagórica, o moralismo platônico e o hedonismo musical contemporâneo
se entrelaçam no pensamento aristotélico, mesmo que a tendência mais
acentuada esteja nos aspectos psicológicos e empíricos do fato musical,
despojando-o daquela superestrutura metafísica que as especulações da
tradição pitagórica haviam construído.

***

Passagens do Livro V de A Política sobre música e outras artes:


Sobre o caráter anti-utilitário: p. 202 §2
Sobre o desenvolvimento do espírito e do corpo p. 204 §2
Sobre os três aspectos (educação, catarse, ócio) p. 206 §1
Sobre o prazer: p. 206
Sobre a mimese das paixões: p. 207 §5 em diante – “Nada imita
melhor os verdadeiros sentimentos da alma do que o ritmo e a melodia”
(p. 208 §1)
Sobre os afetos dos modos: p. 209 §1
Sobre “é difícil ser bom juiz numa arte que não se pratique”: p.
210 §1
Refutação de Platão: p. 210 §3 e adiante;
Diferentes status de música (prática e teórica): p. 211 §4
Sobre os instrumentos que não devem participar da educação dos
jovens (flautas e cítaras): p. 211 §5
Crítica à perfeição na execução musical (virtuosismo): cap. VII p.
212 §1
Refutação a Platão (modos admitidos e gêneros): p.213 §2
Sobre a diversidade de utilidades da música: p. 214 §4
6

Sobre a catarse (purificação): p. 214 §6


Sobre o modo dórico: p. 215 §8 (refutação de Platão); p. 216 §10
Sobre o modo frígio e a invenção do ditirambo, uso da flauta nos
rituais dionisíacos: p. 215 §9
Sobre o modo lídio: p. 217

***

RETÓRICA: II. DAS PAIXÕES

O estudo das paixões por Aristóteles, no segundo livro de sua


Retórica, tem o intuito de instruir seus discípulos na arte da eloqüência
para que possam debater e superar os grandes oradores da época, os
sofistas. No primeiro livro, o pensador demonstra com que argumentos
se deve persuadir e dissuadir, louvar e censurar, acusar e defender-se,
quais são as opiniões que podem servir de base para a demonstração
dos fatos e quais seriam prejudiciais e fáceis de serem refutadas.
Porém, “visto que a retórica tem como fim um julgamento [...], é
necessário não só atentar para o discurso, a fim de que ele seja
demonstrativo e digno de fé, mas também se pôr a si próprio e ao juiz
em certas disposições” (ARISTÓTELES, 2000, p. 3). Assim, o filósofo
realiza o estudo das grandes paixões humanas, para demonstrar aos
seus discípulos como provocá-las, nos momentos adequados, em seus
ouvintes e interlocutores, a fim de convencê-los de seus argumentos. É
nesse sentido que Aristóteles redige o segundo volume da Retórica.
O orador deve ser considerado credível. “Três são, portanto, as
causas de que os oradores sejam tomados por si dignos de crédito, pois
são de igual número as que dão origem à nossa confiança” (ibid., p. 5).
Assim, o orador, para conquistar a confiança dos ouvintes, precisa
demonstrar prudência, virtude e benevolência. Para Aristóteles, “as
7

paixões são todos aqueles sentimentos que, causando mudança nas


pessoas, fazem variar seus julgamentos, e são seguidos de tristeza e
prazer, como a cólera, a piedade, o temor e todas as outras paixões
análogas, assim como seus contrários” (ibid). O pensador considera que
se devem distinguir três pontos de vista na análise de cada paixão: qual
a disposição, com relação a quem e por quais motivos as pessoas
exprimem cada uma de suas paixões. “De fato, se conhecêssemos
apenas um ou dois desses pontos de vista, mas não todos, seria
impossível inspirar a cólera; o mesmo acontece com as outras paixões”
(ibid.)
As quatorze paixões elencadas por Aristóteles são as seguintes:
Cólera: a cólera é “o desejo, acompanhado de tristeza, de vingar-
se ostensivamente de um manifesto desprezo por algo que diz respeito
a determinada pessoa ou a algum dos seus, quando esse desprezo não
é merecido” 7. Com relação aos três aspectos analisados por Aristóteles
(disposição, relação e motivo), a pessoa encolerizada apresenta-se com
a disposição de vingar-se, “é agradável, com efeito, pensar que se
obterá o que se deseja; ora ninguém deseja para si o que lhe parece
impossível; assim, então, o encolerizado deseja o que lhe é possível
[...], pois certo prazer acompanha [a ira]” 8; o encolerizado se volta
contra um indivíduo em particular, nunca contra a humanidade em
geral; a cólera pode ser motivada pela experimentação de desgosto.
Para Aristóteles, três são as espécies de desprezo: o desdém, a
difamação e o ultraje.
As outras paixões são: Calma; Amor; Ódio; Temor; Confiança;
Vergonha; Impudência; Favor; Compaixão; Indignação; Inveja;
Emulação; Desprezo.

7
ARISTÓTELES. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 7.
8
Ibid.
8

POÉTICA
Os conceitos mais importantes presentes na poética de Aristóteles,
são os seguintes:
• mímēsis – termo grego que significa imitação; esse termo é
geralmente associado à imitação da natureza, nas artes visuais
(pintura e escultura), porém, foi amplamente empregado por
Aristóteles para significar imitação de vozes e gestos, através
de pantomimas, na tragédia, como também a imitação com
sentido moral, isto é, imitação dos vícios e das virtudes, assim
como a imitação das paixões através da música;
• kátharsis – termo grego que significa purificação do corpo ou da
alma através da purgação dos males e pela satisfação de
necessidades morais; Aristóteles emprega esse vocábulo com o
sentido de produzir o alívio da alma, através de um
procedimento que engloba a produção de afeições mistas de
piedade e terror, no espectador;
• peripéteia – vocábulo grego que significa peripécia, aventura ou
imprevisto; Aristóteles utiliza essa palavra para designar as
mudanças súbitas ou imprevistas de um estado a outro, no
decorrer da narrativa, em que ocorrem revelações inesperadas;
• stásimon (estásimo) – é o termo grego que designa as
participações do coro, na tragédia, entre os episódios da
narrativa, com a função de comentar os atos dos personagens,
aconselhando-os;
• eikos – vocábulo grego que significa verossimilhança; para
Aristóteles, o princípio da verossimilhança é mais importante
para a arte do que a verdade; assim como o mito é mais
importante do que a História – o mito é universal, ao passo que
a história é particular (Poétique, p. 46).
9

Os dois critérios artísticos mais importantes para Aristóteles, na


análise da tragédia, são a verossimilhança e a necessidade. Segundo o
princípio da verossimilhança, o espectador passa a crer na veracidade
dos acontecimentos; conforme o princípio da necessidade, é importante
que cada parte isolada da cena esteja tão bem concatenada com o todo
e com as outras partes da tragédia, que se perceba cada uma delas
como necessária à ação. A verossimilhança e a necessidade são geradas
através do reconhecimento, que é a identificação do espectador com o
personagem e consigo mesmo, alcançada através da compaixão ou
piedade, e da peripécia, que é a incorporação de encadeamentos
imprevistos no decorrer da ação, com o propósito de produzir
sentimentos de terror.
Quando a tragédia é bem sucedida em realizar todos os estágios
descritos acima, alcança a função mais importante da arte, que seria a
catarse; esta é a purificação do espírito do espectador através da
purgação de suas paixões, especialmente dos sentimentos de terror ou
de piedade vivenciados na contemplação do espetáculo trágico.
Além disso, a tragédia se constitui de três momentos principais: a
peripécia, o reconhecimento e o patético. O estado patético (do grego
pathētikós) significa a capacidade de comover, ou seja, produzir
diversos movimentos internos, na alma, pois esta é sensível às
influências exteriores. Este estado é alcançado através de estímulos aos
sentimentos de piedade e terror, produzindo afeições como a ternura, a
alegria ou a melancolia. Trata-se, portanto, de produzir movimentos
anímicos que se opõem ao estado de passividade ou permanência.
Nesse sentido, o pensamento aristotélico se afasta de Platão, pois, para
este filosofo, o estado ideal seria a perenidade.
Aristóteles ainda distingue três tipos de poesia:
10

1. Ditirambo – está na origem da poesia lírica, derivada dos rituais


dionisíacos, em que os versos são cantados com acompanhamento de
flautas e danças processuais; daí surgem os primeiros elementos da
tragédia ática, pois dá origem ao coro e ao corifeu, o solista que conduz
e dialoga com o coro (que chegou a mais de 50 cantores, no período
áureo da tragédia); quanto à estrutura, o ditirambo era composto por
estrofes irregulares, quanto à métrica e ao número de versos, cuja
função era glorificar os prazeres do corpo, através de cantos delirantes;
2. Epopéia – são os poemas épicos, geralmente em prosa, cuja
narrativa exalta os feitos memoráveis de heróis e figuras míticas; a
epopéia geralmente trata de personagens múltiplos, como ocorre na
Ilíada de Homero (Aquiles, Agamenon, Ulisses, Heitor, Ájax, etc.),
através de narrativas que combinam homens e deuses em guerras
extraordinárias, com atos gloriosos que provocam maravilhamento e
admiração no espectador, devido à grandiosidade dos fatos narrados;
3. Tragédia – são as peças encenadas que combinam estruturas
líricas e dramáticas, com vários personagens mascarados em cena, o
coro e o corifeu; essas encenações tratam de antigas figuras ilustres da
sociedade grega, geralmente famílias nobres que tiveram sua história
marcada por algum acontecimento trágico, o que ocorre nas tragédias
célebres como Édipo, Antígona e Electra, de Sófocles.
11

APRESENTAÇÃO DE CONCEITOS POR ARISTÓTELES

MIMESE
Este termo foi inicialmente utilizado pelos pitagóricos, sendo
originalmente aplicado à música e à dança. Sua aplicação às artes
cênicas provavelmente deve-se a Aristóteles, para quem a arte deveria
se dedicar à criação e à transposição da narrativa em figuras da
realidade, porém não apenas cópia ou imitação desta. Com isso, o
filósofo peripatético pretende o primado da ação sobre o personagem,
sendo que a mimese pode significar tanto o objeto reproduzido quanto o
objeto que resulta da imitação (verbo: ‘mimesthai’).
Para Platão, a tragédia se limita à imitação e deve, portanto, ser
banida da república, pois entende a mimese em sentido negativo, como
um imitação da imitação, isto é, um imitação de segunda categoria.
Aristóteles, ao contrário, entende a tragédia como personagens em
ação, por isso, propõe a unidade de ação em vários aspectos da
tragédia, sendo que a epopéia, que é pura narração, pode ser construída
ple multiplicidade de ação. Isso deriva de necessidades práticas, pois ao
narrar uma história, é possível fazer com que vários personagens
apareçam em diferentes lugares, o que seria impossível na encenação9.
O entendimento da mimese em sentido positivo leva à imitação
como o fundamento da atividade artística, o que perdurou desde os
antigos gregos até o século XIX. Para Aristóteles,

“parece, de modo geral, darem origem à poesia duas causas,


ambas naturais. Imitar é natural ao homem desde a infância –
e nisso difere dos outros animais, em ser o mais capaz de
imitar e de adquirir primeiros conhecimentos por meio da
imitação – todos têm prazer em imitar. [...] Outra razão é que

9
Note-se o esforço que os diretores de ópera do século XVII fizeram para superar essa
limitação de Aristóteles ao inventarem máquinas e equipamentos que permitiam ações
simultâneas e personagens atuando em diferentes níveis, no palco.
12

aprender é sumamente agradável não só aos filósofos, mas


igualmente aos demais homens [...]. Se a vista das imagens
proporciona prazer é porque acontece a quem as contempla,
aprender a identificar cada original [...]. Por serem naturais em
nós a tendência para a imitação, a melodia e o ritmo – que os
metros são parte dos ritmos é fato evidente – primitivamente,
os mais bem dotados para eles, progredindo a pouco e pouco,
fizeram nascer de suas improvisações a poesia”.10

A mimese pode ser de pessoas – a imitação do caráter humano:


vício ou virtude (ambos são úteis à arte); na imitação dos caracteres, o
personagem pode ser melhor do que a realidade, semelhante à
realidade, ou pior do que a realidade. Assim, não é o metro que faz a
poesia, mas seu assunto (p. 27, §3).
Como a imitação pode ocorrer em qualquer arte, a música, mesmo
instrumental, pode imitar ou representar o caráter melhor, semelhante
ou pior do que realmente é. Para Aristóteles a diferença da poesia para
outros textos não estaria na métrica (versificação) ou na rima, mas na
sua capacidade diferenciada de representação e imitação dos caracteres.
Conforme foi mencionado, os principais critérios de Aristóteles pra
a avaliação da tragédia são a verossimilhança, a necessidade e a
unidade orgânica, sendo que o princípio da conveniência é um conceito
de Horácio atribuído a Aristóteles.
Para o filósofo, estas são as artes miméticas: tragédia, música,
dança, escultura e pintura.

10
ARISTÓTELES. Poética. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira (org.). A poética clássica:
Aristóteles, Horácio, Longino. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 21-22.
13

CATARSE11
(Katharsis, p. 40 §3)
No Livro V de A Política, a catarse aparece associada à música.
Aristóteles apresenta uma espécie de valorização da metáfora,
pois considera a poesia como meio de compreender o mundo em sua
totalidade (objetividade), daí o entendimento do poema lírico (de
caráter subjetivo) como de menor importância12.
São reconhecidos três tipos de canto, conforme sua função
dramática: o canto de ensino, o canto de ação e o canto de entusiasmo.
Nesse sentido, o coro é entendido como um dos atores da tragédia, que
pontua as cenas e comenta a ação, sendo que as intervenções do coro
deveriam ser resguardadas para as passagens líricas da narrativa. De
qualquer maneira, os comentários do coro e os pareceres de prudência
por parte do corifeu estavam caindo em desuso, na época do filósofo.
Aristóteles identifica alguns elementos como essenciais ao poema
trágico, que são o encadeamento da história, a caracterização dos
personagens e a identificação do espectador com a ação. Quando a
narrativa alcança sua unidade pela confluência desses três aspectos, a
surpresa gerada pelo encadeamento de movimentos imprevistos da
ação (peripéteia) é entendida como sendo o melhor meio de produzir as
paixões de medo e piedade, o que vai levar ao estado catártico. Este

11
Houaiss: “na religião, medicina e filosofia da Antigüidade grega, libertação, expulsão
ou purgação daquilo que é estranho à essência ou à natureza de um ser e que, por
esta razão, o corrompe; no orfismo e no pitagorismo, período de purificação por que a
alma desencarnada deve passar até que, apagadas as marcas dos crimes cometidos
em sua última existência material, possa ter acesso a uma realidade superior ou
reencarnar em um novo corpo; no platonismo, libertação da alma em relação ao corpo
por meio da renúncia aos prazeres, desejos e paixões, iniciada ainda em vida mas só
completada com a morte; no aristotelismo, descarga de desordens emocionais ou
afetos desmedidos a partir da experiência estética oferecida pelo teatro, música e
poesia; purificação do espírito do espectador através da purgação de suas paixões,
especialmente dos sentimentos de terror ou de piedade vivenciados na contemplação
do espetáculo trágico”.
12
Platão, por sua vez, valoriza o critério oposto, pois o poema lírico, subjetivo, é
menos enganador do que a imitação de situações exteriores.
14

estado de alma é mais fortemente alcançado quando a viravolta da ação


e o reconhecimento de uma situação ainda ignorada são combinados,
simultaneamente,. Diz o filósofo: “o mais belo reconhecimento é o que
se dá ao mesmo tempo em que uma peripécia, como aconteceu no
Édipo”.
A comoção trágica seria alcançada por meio do encadeamento dos
atos dramáticos e a surpresa final. A teoria poética de Aristóteles é
centrada na composição do poema (como poíēsis). Assim, as partes
mais importantes da tragédia seriam a peripécia (movimento
inesperado), a identificação e o páthos. Este é atingido através da
valorização do desconhecimento de um fato, por parte dos personagens,
o que demarca o ponto culminante da ação na passagem da ignorância
ao conhecimento de um fato que se torna crucial para a narrativa que
segue. O estado patético é o terror alcançado pela identificação
entendida como estremecimento por si mesmo (identificação com o eu),
e pela a piedade, isto é, o estremecimento por outrem (identificação
com o outro). Assim, é possível realizar a tragédia como uma epopéia
de eventos patéticos (páthos).
A comédia, ao contrário, seria uma epopéia dos personagens
(éthikè), em que a excelência do éthos13 estaria acima de todos os
outros elementos. Considera-se que a comédia seria o assunto central
do segundo volume da Poética, de Aristóteles. Esse texto, porém,
jamais foi encontrado. De qualquer forma, o Tratado Coisliniano, que
certamente data do século VI d.C., apresenta uma sinopse daquilo que

13
Houaiss: “conjunto dos costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do
comportamento (instituições, afazeres etc.) e da cultura (valores, idéias ou crenças),
característicos de uma determinada coletividade, época ou região; parte da retórica
clássica voltada para o estudo dos costumes sociais; conjunto de valores que
permeiam e influenciam uma determinada manifestação (obra, teoria, escola etc.)
artística, científica ou filosófica”.
15

se imagina tenha sido o Livro II da Poética. Nesse tratado, encontram-


se as seguintes concepções:

“Da produção literária, uma parte é não mimética, outra


parte é mimética.
A literatura não mimética reparte-se em investigativa e
educativa, e esta(s) em didática e especulativa.
Já a literatura mimética reparte-se, de um lado, em
narrativa, de outro, em dramática, isto é, que se exprime por
ações, a qual se divide ainda em comédia, tragédia, mímica e
sátira.
A Tragédia afasta as afecções da alma relativas ao medo
por meio de compaixão e terror, e [que] almeja estabelecer
uma proporção do medo; tem como mãe a dor.
A Comédia é uma imitação de uma ação risível e desprovida
de grandeza , acabada, separada em cada uma das partes no
tocante aos formatos; representada por atores e também por
meio de narrativa, consumando pelo prazer e pelo riso a
purgação destas afecções; tem como mãe o riso”. 14

Conforme as anotações contidas no Tratado Coisliniano, o riso


pode ser produzido pela narrativa falada ou pelo encadeamento de
ações, sendo que há diversos métodos para produzir o estado cômico.
Entre eles estão as diversas figuras de retórica, na narrativa, e as
diferentes espécies de ação, tais como a assimilação de gestos ou
hábitos comumente conhecidos, a quebra de expectativa com relação ao
encadeamento dos fatos, o uso de danças grotescas e a desarticulação
do discurso de um personagem, que se torna incompreensível ou
incoerente. Com isso, “o bufão busca escarnecer da alma e do corpo”15,
sendo que os personagens típicos das comédias seriam os os
iconoclastas, os irônicos e os fanfarrões.

14
ANÔNIMO. Tratado Coisliniano: epítome do Livro II da Poética de Aristóteles. Trad.:
Grupo de Pesquisa Projeto OUSIA, coord. Prof. Dr. Fernando Santoro.
15
Ibid.
16

O “enredo cômico é aquele que tem sua construção com ações em


torno do risível”16, sendo que os aspectos da comédia são a sucessão de
acontecimentos, a caracterização dos personagens, a elaboração
grotesca do pensamento, o modo de expressão vulgar por parte dos
personagens, o canto com caráter burlesco e o espetáculo que se
desdobra em situações inesperadas e que tendem ao riso.
Ainda, no Tratado Coisliniano, são definidas as partes da comédia
como sendo quatro: o prólogo, a intervenção do coro, o episódio e o
êxodo, os quais são explicados da seguinte maneira:

“1) Prólogo é uma parte da comédia que vai até a entrada do


coro;
2) Intervenção coral é o canto cantado pelo coro, quando tem
tamanho suficiente.
3) Episódio é o que fica entre dois cantos corais.
4) Êxodo é o que é falado no fim pelo coro”

O termo comédia tem sua origem no vocábulo kômos, que era a


festa dos gregos, com canto e dança, em homenagem a Dionísio. Nesse
sentido, a palavra kômodoi faz referência aos comediantes, isto é, aos
atores que participavam do kômos. Havia também os cantores de
kômoi, os quais improvisavam cantos religiosos em louvor ao deus.
Esses rituais eram levados em forma de uma espécie de bacanal17, com
procissões regadas a vinho e dança. Dessas manifestações populares
vem o termo comédia. Segundo Aristóteles, os dóricos teriam sido os
criadores da comédia, pois se trata de uma palavra dórica: “se a palavra
é dórica, a coisa que ela representa também o é”.

16
Ibid.
17
O termo ‘bacanal’ vem desses rituais em homenagem a Dionísio, deus cujo nome
latino é Baco.
17

PASSAGENS DA POÉTICA

Diferenciação da imitação: número / natureza


O que torna uma tragédia superior às outras não são os bons
trechos isolados, mas o todo bem realizado: o encadeamento do todo, a
conexão das partes e o equilíbrio das relações entre as partes e o todo.

“Além disso, os mais importantes meios de fascinação das


tragédias são as partes da fábula, isto é, as peripécias
[movimentos imprevistos] e os reconhecimentos [identificações
do espectador com o personagem, com o outro e consigo
mesmo]. Mais uma prova é que os que empreendem poetar
logram exatidão na fala e nos caracteres antes de a
conseguirem no arranjo das ações, como quase todos os
autores primitivos” 18.

No Capítulo VII, o filósofo considera que o belo não é nem grande


demais, nem pequeno demais, deve ter a extensão que possa
facilmente ser retida na memória ou ser captada em um único olhar.

“Definidos os componentes, passemos ao problema do arranjo


das ações, pois esse é o fator primeiro e mais importante da
tragédia.
Assentamos que a tragédia é a imitação duma ação
acabada e inteira, de alguma extensão, pois pode uma coisa ser
inteira sem ter extensão. Inteiro é o que tem começo, meio e
fim. Começo é aquilo que, de per si, não se segue
necessariamente a outra coisa, mas após o quê, por natureza
existe ou se produz outra coisa; fim, pelo contrário, é aquilo
que, de per si e por natureza, vem após outra coisa, quer
necessária, quer ordinariamente, mas após o quê não há nada
mais; meio o que de si vem após outra coisa e após o quê outra
coisa vem.
As fábulas bem constituídas não devem começar num ponto
ao acaso, nem acabar num ponto ao acaso, mas utilizar-se das
fórmulas referidas.
Outrossim, a beleza, quer num animal, quer em qualquer
coisa composta de partes, sobre ter ordenadas estas, precisa

18
ARISTÓTELES. Poética. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira (org.). A poética clássica:
Aristóteles, Horácio, Longino. São Paulo: Cultrix, 1997, p. 26.
18

ter determinada extensão, não uma qualquer; o belo reside na


extensão e na ordem, [...]. assim como as coisas compostas e
os animais precisam ter um tamanho tal que possibilite aos
olhos abrangê-los inteiros, assim também é mister que as
fábulas tenham uma extensão que a memória possas abranger
inteira.
O limite de extensão com respeito aos concursos e à
percepção da platéia não é matéria de arte [...]. Quanto ao
limite conforme a natureza mesma da ação, sempre quanto
mais longa a fábula até onde o consinta a clareza do todo,
tanto mais bela graças à amplidão; contudo, para dar uma
definição simples, a duração deve permitir aos fatos suceder-
se, dentro da verossimilhança ou da necessidade, passando do
infortúnio à ventura, ou da ventura ao infortúnio, esse o limite
de extensão conveniente”. 19

No Capítulo VIII aparece a concepção de unidade de ação, o que


não significa um único ato, mas indica que as partes devem ser
encadeadas de forma necessária, isto é, qualquer parte que falte
prejudica o todo, pois “com efeito, aquilo cuja presença ou ausência não
20
traz alteração sensível não faz parte nenhuma do todo” .
No Capítulo IX está eslcarecida a diferença entre a história, que se
atém ao particular, e a poesia, que se atém ao universal. “O poeta deve
ser poeta de histórias mais do que poeta de versos. [...] Os maus
poetas são guiados pela sua própria natureza, os bons poetas são
guiados pela natureza de seus personagens e suas ações”21.
Aristóteles distingue três tipos de narrativa: as histórias
episódicas, que são aquelas em que o que acontece não passe de fatos
episódicos que se seguem uns aos outros, sem razão de necessidade ou
verossimilhança; as histórias simples são aquelas que seguem o curso
dos eventos conforme os princípios de necessidade e verossimilhança,
porém sem reconhecimento (identificação) nem peripécia (imprevisto);

19
Ibid., p. 26-27.
20
Ibid., p. 28.
21
19

e as histórias complexas são aquelas que produzem expectativa por


meio de verossimilhança e necessidade, com reconhecimento e/ou
peripécia
Este último tipo é o objetivo da mimese, visto que a ação é levada
a cabo por eventos que suscitam temor e piedade, sendo que estes
sentimentos nascem sobretudo quando os eventos se seguem uns aos
outros segundo o princípio da verossimilhança e da necessidade e são
conduzidos no sentido contrário ao da nossa expectativa. Para
Aristóteles, as histórias deste gênero são as mais belas.
No Capítulo XI aparecem as definições de ‘peripécia’,
‘reconhecimento’ e ‘patético’:

“Peripécia é uma viravolta das ações em sentido contrário [...],


segundo a verossimilhança ou necessidade [...]. O
reconhecimento, como a palavra mesma indica, é a mudança
do desconhecimento ao conhecimento, ou à amizade, ou ao
ódio, das pessoas marcadas para a ventura ou desdita. O mais
belo reconhecimento é o que se dá ao mesmo tempo que um
peripécia, como aconteceu no Édipo. [...] Nesse passo se
verificam duas partes da fábula, a peripécia e o
reconhecimento; mas há uma terceira, o patético. [...] O
patético consiste numa ação que produz destruição ou
sofrimento, como mortes em cena, dores cruciantes, ferimentos
e ocorrências desse gênero”.22

O conceito de verossimilhança aparece no Capítulo XVIII: “é


verossímil que aconteça muitas coisas inverossímeis”23. Aristóteles
considera preferível que a narrativa apresente cenas improváveis no
mundo real, porém que são verossímeis segundo o encadeamento
dramático, do que a realização de cenas possíveis, na realidade, mas
que se tornam inverossímeis no decurso da ação.

22
Ibid., p. 30.
23
Ibid., p. 40.
20

No Capítulo XX, a expressão é considerada como o fruto da


organização e do bom encadeamento das partes do discurso, do
particular ao geral, isto é, do insignificante, isto é, sem significado, ao
significativo, aquilo que tem significado e porta algum conceito.
No Capítulo XXII, está a distinção dos tipos de linguagem:

“A excelência da linguagem consiste em ser clara, sem ser chã.


A mais clara é regida em termos correntes, mas é chã [...].
Nobre e distinta do vulgar é a que emprega termos
surpreendentes. Entendo por surpreendentes o termo raro, a
metáfora, o alongamento e tudo o que foge ao trivial. Mas,
quando toda a composição se faz em termos tais, resulta um
enigma, ou um barbarismo; a linguagem feita de metáforas dá
em enigma; a de termos raros, em barbarismo [...]. É
necessário, portanto, como que fundir esses processos; tirarão
à linguagem o caráter vulgar e chão, por exemplo, a metáfora,
o adorno e demais espécies referidas; o termo corrente, doutro
lado, lhe dará clareza”.24

No Capítulo XXV aparece nova discussão sobre a verossimilhança;


o filósofo peripatético considera que é preferível o impossível verossímil
do que o possível inverossímil. O tema principal deve ter somente
elementos racionais, pois os elementos irracionais devem ficar de fora
do eixo principal da narrativa. “De um modo geral, o impossível se deve
reportar ao efeito poético, à melhoria, ou à opinião comum. Do ângulo
da poesia, um impossível convincente é preferível a um possível que não
convença”25.
O Capítulo XXVI conclui o primeiro livro da Poética, dedicado à
tragédia, e aponta para o segundo, no qual será abordada a comédia.
Na passagem seguinte, aparece uma discussão sobre a tragédia e a
epopéia:

24
Ibid., p. 43-44.
25
Ibid., p. 50.
21

“Pode alguém ficar em dúvida sobre qual a melhor imitação, se


a épica, se a trágica. Com efeito, se a menos vulgar é a melhor
e tal é a que visa a um público melhor, é por demais evidente
ser vulgar a que imita tendo em vista a multidão. Por sinal, os
atores cuidam que a platéia não compreende sem que eles
aumentem a carga e por isso se desmancham em gesticulação:
por exemplo, os flauteiros ordinários, que se contorcem para
sugerir o lançamento do disco e arrastam o corifeu quando
tocam a Cila.
Tal é, portanto, a tragédia, quais julgavam os atores de
antanho aos que os sucederam, [...] A mesma relação existente
entre os atores se verifica entre toda sua arte e a epopéia.
Esta, de fato, alegam, destina-se a espectadores distintos, que
dispensam a representação, enquanto a tragédia é para uma
platéia somenos. E, se é ordinária, evidentemente será
inferior”.26

LEITURAS DA POÉTICA DE ARISTÓTELES:

É interessante notar como Aristóteles apresenta uma perspectiva


positiva com relação à história da civilização grega, pois entende que a
produção mais nova é necessariamente melhor do que a mais antiga;
princípio oposto aos valores de Platão, para quem o novo seria uma
degeneração do tradicional, pois este estaria mais próximo das idéias
originais. Para este pensador, o mundo sublunar, este da realidade
concreta e das aparências que obscurecem o entendimento das
essências verdadeiras, é imperfeito e tende naturalmente à corrupção.
A história da Poética, e dos textos de Aristóteles em geral, está
marcada pela sua preservação no mundo árabe. Após ter sido
esquecida, a Poética voltou a interessar desde Averróis, no século XII.
Entretanto, até o século XV os autores mais estudados sobre o assunto
ainda eram Platão e Horácio.

26
Ibid., p. 51.
22

A primeira tradução do texto de Aristóteles para o latim foi


efetuada em 1498, sendo que a tradução que serviu de base para os
estudos posteriores é de 1536. Na segunda metade do século XVI, as
leituras da Poética aristotélica se multiplicaram e serviram de referência
teórica na maior parte dos debates sobre arte e dramaturgia. Na
Renascença, contudo, os humanistas leram a Poética de Aristóteles pelo
prisma horaciano, chegando incorporar diversas apropriações da Arte
Poética de Horácio nos textos de Aristóteles.
Em sua Arte Poética, Horácio apresenta formulações de ordem
moral-retórica, o que é bastante diferente de Aristóteles, que dá
primazia às formulações de caráter técnico e formal sobre o fazer
poético.
O problema de fundo nesses textos sobre poética levadas ao longo
dos séculos XVI e XVII sempre foi a discussão sobre a função da arte, se
a arte deve ter uma função puramente estética ou se deve ter função
ética e educativa. Assim, a função da arte seria agradar ou educar?
Todos esses pontos de vista são centrados no espectador (aístēsis) e
desviam dos problemas colocados por Aristóteles, que estão centrados
na criação (poíēsis).
Dessas discussões sobre as funções da arte e, mais
especificamente, sobre as funções da música na estrutura dramática,
surgem as primeiras tentativas dos poetas-cantores que participavam
dos círculos humanistas florentinos, como Giulio Caccini e Jacopo Peri,
de reproduzir a função da música na tragédia grega, especialmente a
partir da leitura da Poética de Aristóteles.
Esse movimento, que iniciou na Camerata Fiornetina, se espalhou
pelas cidades mais ricas da Itália, como Veneza e Nápoles. Logo,
estariam sendo encenadas peças dramático-musicais em vários centros
italianos, às quais se denominavam drama per musica (Orfeo ed
Eurídice, de Peri), favola in musica (L’Orfeo, de Monteverdi) e,
23

posteriormente, passaram a ser chamadas simplesmente de opera.


Tem-se, aí o nascimento de um dos gêneros mais importantes da
música barroca, a ópera.
Outro fator interessante de perceber é a presença dos conceitos
aristotélicos sobre o drama, a tragédia e a arte poética nas várias
querelas entre os antigos e os modernos, que foram travadas nos
séculos XVI e XVII entre partidários da preservação dos valores e
técnicas da arte antiga e os partidários das renovações realizadas pela
nova arte.
Na Querela dos Antigos e dos Modernos, na Itália, a Poética de
Aristóteles foi o fundamento dos argumentos de ambos os lados. Para os
“antigos”, o modelo deveria ser tomado da obra dos clássicos, em grego
e latim; para os “modernos”, o modelo deveria ser tomado das obras
modernas, em vernáculo (italiano), desde Dante, Petrarca, Bocaccio e os
contemporâneos. O centro das discussões girou em torno da Divina
Comédia, de Dante. No campo musical, houve a grande discussão entre
Giovanni Maria Artusi e Claudio Monteverdi, sendo o primeiro partidário
da prima prattica ou stile antico e o segundo praticante e defensor da
seconda prattica ou stile moderno.
Sobre os músicos que escreviam conforme os valores da seconda
prattica, dizia Artusi:

“Tais compositores, na minha opinião, não têm nada além de


fumaça em suas cabeças, se estão tão impressionados com eles
mesmos ao ponto de pensarem que podem corromper, abolir e
destruir intencionalmente as boas e velhas regras que nos
foram passadas por tantos teóricos e excelentes músicos, que
são os mesmos dos quais esses músicos modernos aprenderam
a agrupar, de uma maneira estranha, algumas notas. Mas você
sabe o que geralmente acontece com peças como essas? Como
diz Horácio:
‘É o grande pinheiro que normalmente
é chacoalhado pelos ventos:
Altas torres caem com imenso estrondo;
24

Raios atingem o pico da montanha’.


No fim das contas, como têm falta de base sólida, essas
peças são desgastadas pelo tempo e desmoronam, e aqueles
que as ergueram se tornam alvo de chacota”. 27

Também na dramaturgia francesa do século XVII, as querelas


entre os antigos e os modernos foram ferozmente travadas. Segundo
Magnien, “o conhecimento que os críticos e escritores da época clássica
da literatura francesa [séc. XVII] terão da Poética é quase sempre
indireta: a primeira tradução francesa, de Norville, não será publicada
antes de 1671, em um momento em que a norma clássica já se havia
imposto há muito tempo”28. Isso sugere que, diferentemente dos
italianos, os franceses discutiam a Poética com base em referências e
não a partir da leitura direta do texto.
Na Alemanha do século XVIII, Johann Joachim Winckelmann,
embasado nas leituras de Aristóteles e Scaliger, propôs a substituição
da imitação da natureza pela imitação das obras de arte pelas obras de
arte, o que fez mudar completamente o ponto de vista com relação ao
objetivo das discussões sobre arte, pois não se estava mais
problematizando a mímēsis como imitação da natureza, mas a poíēsis
com base em modelos de ‘como fazer’, o que deslocou a ênfase da
imitação (mímēsis) para a técnica (tékhnē), na segunda metade do
século.
Dessas discussões, nasceu a estética como campo de
conhecimento, com o ensaio Estética: a lógica da arte e do poema,
escrito por Alexander Baumgarten em 1750. Este texto foi discutido por
Kant, Hegel e Nietzsche, entre tantos outros.

27
ARTUSI, Giovanni Maria. La Seconda Prattica. In: WEISS, Piero; TARUSKIN, Richard
(org.). Music in the western world, a history in documents, p. 171.
28
MAGNIEN, Michel. Introduction [à la Poétique]. In: ARISTOTE, Poétique. Paris:
Librairie Générale Française, 1990, p. 61-62.
25

Desde sua redescoberta, na Renascença italiana, até os dias de


hoje, a Poética e a Retórica de Aristóteles têm sido amplamente
estudadas e discutidas nos meios acadêmicos e continuam servindo de
fonte para debates e para a criação artística, dada a sempiterna
atualidade dos problemas levantados pelo filósofo peripatético.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANÔNIMO. Tratado Coisliniano: epítome do Livro II da Poética de


Aristóteles. Trad.: Grupo de Pesquisa Projeto OUSIA, coord. Prof.
Dr. Fernando Santoro.
ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Atena, 1963.
___________. Poética. In: BRANDÃO, Roberto de Oliveira (org.). A
poética clássica: Aristóteles, Horácio, Longino. São Paulo: Cultrix,
1997, p. 17-52.
___________. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
ARTUSI, Giovanni Maria. La Seconda Prattica. In: WEISS, Piero;
TARUSKIN, Richard (org.). Music in the western world, a history in
documents, p. 171.
FUBINI, Enrico. L’estetica musicale dall’antichità al Settecento. Torino:
Einaudi, 1976.
MAGNIEN, Michel. Introduction [à la Poétique]. In: ARISTOTE, Poétique.
Paris: Librairie Générale Française, 1990.

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