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Resenhas

O mal-estar da dependência na o outro? Para produzir tal resposta, os


cultura neoliberal globalizada autores debruçam-se nos valores funda-
On kindness, de Adam Phillips e mentais da sociedade atual: autonomia,
Bárbara Taylor. Londres: Hamish independência, autossuficiência e liber-
Hamilton, 2010, 114 p. dade, os novos ideais que norteiam as
subjetividades hoje.
Bruno Leal Farah Tais valores produzem uma nova so-
Psicanalista, doutor em Teoria Psicanalítica ciedade e novos sintomas emocionais.
pela UFRJ/Paris 7. Fomenta-se o gradativo deslocamento dos
sintomas centrados na culpabilidade e na
Com seu estilo vibrante e apurado, dialo- dinâmica edípica — cuja referência era a
gando com Freud, Winnicott e uma vasta interdição da sexualidade e da agressivida-
tradição filosófica e literária, Adam Phillips, de — para a proliferação de sintomas mais
um dos mais instigantes psicanalistas in- caracterizados pela vergonha, associada à
gleses, inova mais uma vez em erudição, dinâmica do narcisismo e seus ideais. A
ao lado da historiadora Bárbara Taylor. A vergonha advém como uma espécie de
preocupação do novo livro é a atualidade colapso do ideal de autossuficiência. O livro
da psicanálise. Os autores empreendem delineia, assim, os contornos do novo mal-
um longo percurso histórico-filosófico em estar da cultura neoliberal globalizada.
direção à cultura neoliberal contemporânea A concepção original do termo ‘gen-
para defender uma provocadora hipótese: tileza’, como proximidade e identidade,
não mais o sexo nem a agressividade, mas abraçou sentimentos que adotam hoje uma
o prazer interditado na sociedade atual é a gama vasta de noções — simpatia, altruís-
nossa interdependência constitutiva. Antes mo, generosidade, empatia. Seus sentidos
mesmo de sermos seres sexuais, somos atuais envolvem tanto a capacidade de
seres dependentes. Como conseguimos depender como a de se preocupar com o
negar uma das nossas características mais outro: “identificar-se por simpatia com
precoces e humanas? Esta rejeição possui as vulnerabilidades e fraquezas do outro,
profundos efeitos emocionais. reconhecendo, assim, as nossas também”.
On kindness (traduzido para o francês Somos criaturas vulneráveis: uma das
como N’ayons pas honte d’être gentils e em nossas características mais marcantes —
português algo como: Com gentileza) discute nosso patrimônio biológico comum — é
as dificuldades experimentadas hoje para a que mais tememos. A vulnerabilidade se
se compartilhar a gentileza — conceito tornou traumatizante; por quê?
principal desenvolvido no livro. O que O diálogo entre gentileza e egoísmo
nos impede de nos preocuparmos com compõe o cerne de um longo debate

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histórico-filosófico na cultura ocidental. vida adulta, ela pode impedir a satisfação


Dos céticos (defendendo a natureza gentil sexual, fazendo o incesto retornar por ou-
da sociabilidade do homem) aos epicuros tros meios. Em Do rebaixamento generalizado da
(defendendo o egoísmo constitutivo do vida amorosa, de 1912, é condição para este
ser humano, preocupado, antes, com seus impasse a degradação do objeto amoroso
prazeres individuais) até os primeiros em nossas fantasias para que se obtenha a
modernos e a cultura contemporânea, esta satisfação. Para Freud, portanto, sexualida-
discussão nunca perdeu sua atualidade. de e gentileza pertencem a campos opostos.
Na modernidade, On kindness ressalta dois Se a gentileza sempre foi um impasse,
protagonistas: Hobbes — com a imagem qual seria a dimensão deste entrave numa
do egoísmo de que “o homem é o lobo sociedade em que não há mais barreiras
do homem” — e Rousseau — ressaltando culturais à sexualidade?
uma gentileza natural da criança, cor- Com Winnicott, os impasses da gen-
rompida pelo egoísmo social. Em Freud, tileza na contemporaneidade ganham
a discussão se complexifica. contornos ainda mais densos. A ênfase
Herdeira da visão de Hobbes, acirrada de Winnicott não é a sexualidade, mas a
após a Primeira Guerra Mundial, a psi- relação mãe-bebê. Num mundo em que
canálise divulgou o egoísmo da criança os ideais de autossuficiência, autonomia
freudiana. Todavia, também mostrou que e independência levaram a experiência da
o homem é indissociável da sua socia- gentileza ao colapso, tal relação precoce
bilidade, e sem o outro não há o sujeito com a criança tornou-se o “último refúgio
psicanalítico: o outro é vital ao bebê, da gentileza”. É como se a intimidade com a
dando limites à tendência da pulsão de criança pudesse reconciliar os pais com a
se descarregar totalmente. Este outro — autenticidade interditada, lembrando que
para Freud — nos salva, mas também nos são humanos. Os pais parecem hoje mais
ameaça. Se a Filosofia nos conta a história dependentes dos filhos do que estes dos
do que nos aproxima e nos afasta dos ou- pais. É aqui que os autores trazem uma dis-
tros, esta história também está no cerne tinção entre gentileza mágica e gentileza
da psicanálise: a preocupação central dos autêntica Caracterizando-se pela dialética
trabalhos sociais de Freud, de Totem e tabu sacrifício-salvação, nesta primeira forma
a O mal-estar na civilização, não é a de como de gentileza, as crianças precisariam salvar
se efetiva a passagem do egoísmo ao al- os seus pais das mazelas da sociedade. Por
truísmo? O que une as pessoas? Segundo sua vez, os pais tendem a impedir que as
On kindness, “a psicanálise nos conta uma experiências desgastantes do mundo ex-
história do que nos aproxima e nos afasta terno adentrem seus lares, principalmente
da nossa gentileza”. as frustrações. Assim, a autenticidade
Os autores passeiam com desenvoltura almejada — paradoxalmente — não se
entre os entraves à gentileza presentes em estabelece na relação com seus filhos.
Freud e Winnicott. O foco de Freud é a Para se desenvolver, segundo Winnicott,
sexualidade: a gentileza é, em si mesma, a criança precisa, em primeiro lugar, deixar
um impasse. Ela pode sabotar a intimidade. de se sentir autossuficiente; em seguida,
Uma inclinação à gentileza estaria presente deixar de acreditar que sua mãe lhe basta.
na pulsão de autoconservação, na chamada Para a criança sair da onipotência mágica,
corrente terna, que caracteriza as relações a mãe precisa falhar: sentir raiva das de-
precoces da criança com seus pais. Mas, na mandas abusivas da criança, por exemplo.

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E a criança também precisa sentir raiva por Por uma clínica dos afetos
não dominar a mãe, cujos desejos não a Presença sensível: cuidado e criação
envolvem sempre. Experimentando o ódio, na clínica psicanalítica, Daniel
e a mãe sobrevivendo a ele, a criança pode Kupermann. Rio de Janeiro: Civilização
acessar a gentileza autêntica, permitindo- Brasileira, 2008, 250 p.
se, enfim, identificar-se com as vulnerabili-
dades da mãe e reconhecer as suas próprias. Andréa Barbosa de Albuquerque
Sem isso, produz-se um círculo vicioso:
Psicanalista. Doutora em Teoria
quanto mais os pais desejam salvar os seus Psicanalítica pelo IP-UFRJ; membro do
filhos e a si próprios de um mundo sem Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos;
gentileza, mais produzem um futuro psicóloga da Uerj.
sem gentileza. Vivida como sacrifício na
relação com os pais, a gentileza se torna Presença sensível reúne ensaios sobre psica-
traumatizante. nálise, abrangendo diferentes aspectos
Mesmo a gentileza podendo sabotar a do ofício de analista: teoria, clínica,
intimidade, Freud e Winnicott indicam so- formação e inserção institucional. E está
luções: é preciso denegrir o objeto amoroso dividido em cinco partes: Formação do
ou mesmo odiá-lo. A ambivalência, uma psicanalista; Clínica e metapsicologia;
peça chave à psicanálise, torna possível a Trilogia ferencziana; Psicanálise, criação
gentileza. Contudo, o discurso neoliberal e cultura; e Psicanálise e educação. No
da contemporaneidade torna impossível horizonte de todos os ensaios, vislum-
a ambivalência. O famoso imperativo de bra-se a preocupação com os destinos
Tony Blair é lembrado: “O novo Estado- possíveis da psicanálise no cenário con-
Providência deve encorajar o trabalho e temporâneo.
não a dependência.” On Kindness mostra Tratando-se de uma coletânea, cada
com sucesso como a cultura atual do ne- ensaio pode ser lido independentemente
oliberalismo globalizado produz um novo dos outros. No entanto, a leitura em con-
laço social e, com isso, novos sofrimentos junto nos mostra haver uma recorrência
e sintomas, diferentes daqueles da cultura de temas e questões que figuram ora como
vitoriana na qual a psicanálise emergiu. protagonistas, ora como coadjuvantes em
Ser gentil, hoje, ganha o estatuto de cada ensaio, e indicam a consistência do
uma resistência política — uma tecnologia percurso teórico, clínico e político do autor.
de si, no sentido foucaultiano: a gentileza O modo como Kupermann constrói sua
nos torna desobedientes, menos sujeitos argumentação nos vários ensaios deixa
à coerção moral; e, autorizando-a como claro que, no campo psicanalítico, essas
prazer, ela nos permite viver menos isola- várias dimensões se encontram inextri-
dos, sem vergonha de sermos vulneráveis cavelmente entrelaçadas, amalgamadas
e precisarmos uns dos outros. por complexas relações transferenciais.
A clínica se constitui experiência psicanalítica
Recebido em 2/6/2010. pelo arcabouço teórico que a sustenta;
Aprovado em 19/7/2010. por sua vez, é a partir dessa experiência
— com seus impasses, suas resistências
Bruno Leal Farah
— que são concebidas e redimensionadas
brunofarah@yahoo.com.br
as formulações teóricas necessárias à sua
constituição. A dimensão política se ex-

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