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LITURGIA NA HISTÓRIA

1. Primeiras Comunidades Cristãs


A liturgia como ação da Igreja, é também sua epifania. Conseqüentemente, a liturgia assumiu as
características de cada tempo da história. Este deixou suas marcas na liturgia da Igreja.
A liturgia das primeiras comunidades cristãs caracteriza-se pela unidade entre culto cristão e a
Sagrada Escritura. A Bíblia aparece como o primeiro livro litúrgico das comunidades cristãs. Ela inspirou
a pregação, orações e reuniões comunitárias.
As primeiras comunidades cristãs não eram um corpo homogêneo, e sim uma totalidade plural
que marcam profundamente as expressões litúrgicas.

1.1- Raízes Judaicas


A liturgia cristã tem suas bases na liturgia judaica e também condensa elementos dos extra-
bíblicos (as religiões mistéricas gregas). Estas religiões são religiões naturais e do mito do eterno retorno.
Para compreendermos melhor, vejamos o mito de Elêucis:
“Core, jovem moça, é raptada por Plutão, o deus dos abismos, que a faz sua esposa. Demetra,
mãe de Core, considerando morta sua filha, quer vingar-se, destruindo tudo por onde ela passa. Aparece,
então, Hermes, que, no carro de Plutão, arrebata Core de seus braços e a restitui à sua mãe. E tudo
revive. Mas, pelo fato de Core ter-se tornado esposa de Plutão, doravante ela terá que viver duas terças
partes do ano debaixo da terra e uma terça parte do ano sobre a terra”. Este mito quer interpretar um
fenômeno da natureza, ligado à vida, a sorte anual da semente lançada à terra antes do inverno. Este ciclo
repete-se a cada ano. Este exemplo elucida o mito do eterno retorno, do incessante morrer e renascer da
natureza.
O culto da fé ou da religião revelada ( bíblico judeu-cristã) tem suas bases nos acontecimentos
históricos, tendo como coluna vertebral a memória (zikkarôn). A fé bíblica tem seu centro no Senhor,
Deus único e verdadeiro, cuja presença ativa na história busca libertar e salvar o povo e estabelecer com
ele uma aliança de amor. Paradigmática, neste sentido é a experiência do êxodo. A partir disto, todo o
culto, na história do povo de Israel, está orientado para a memória do acontecimento fundante, ou
acontecimento-chave (cf. Dt 26,5-10). A memória faz com que se reinterprete os acontecimentos, as
festas e as expressões cultuais do povo de Israel.
Três elementos são fundamentais para o culto israelita:
▪ O encontro com o Senhor libertador na história;
▪ Louvor e ação de graças pelos feitos do Senhor (berakah);
▪ Fidelidade à aliança;
Todavia, o povo não se manteve fiel a esses elementos e estabeleceu um divórcio prático entre os
elementos, isolando o rito tanto da Palavra de Deus, quanto da vida prática como resposta ao pacto de
aliança. Disto resta o formalismo e o ritualismo cultual, do qual reclamam os profetas. Um culto feito
para justificar-se diante de Deus, para encobrir os crimes e as injustiças no plano social. Trata-se de um
culto hipócrita, que alimenta enganosamente uma confiança mágica nos próprios ritos, desligados de
maneira absoluta das exigências da fidelidade e das responsabilidades históricas. Um culto abominável
aos olhos de Deus.Denúncias proféticas: Am. 5,21-24; Is 29,13; Os 6,6; Mq 6,5-8; Jr 6,20).
Ainda, o culto de Israel, memorial dos acontecimentos históricos libertadores do passado,
contém um movimento de esperança, uma tensão escatológica, um olhar para o futuro. O povo é
constantemente convidado a olhar para o futuro, para um novo êxodo. Enquanto o povo admira, louva e
agradece o Deus da criação e da libertação, é convidado a esperar uma nova criação (cf Jr 31,31-34; Ez
36,25-27).
1.2- A originalidade do culto Cristão.
À medida que o cristianismo foi ganhando seus contornos, também foi se distanciando do culto
judaico. Em o novo Testamento constata-se uma surpreendente: anti-cultualidade, uma atitude de
distanciamento ou de ruptura com relação às categorias de culto do ambiente judeu ou pagão. Tudo
procura exprimir com vigor a presença de uma nova mentalidade. Isto se manifesta:
▪ Na utilização de tempos e espaços não sagrados para as celebrações;
▪ No uso e na aplicação de um vocabulário novo no culto, não se usa mais o termo sacerdote,
sacrifício, etc.

1.2.1- Atitude de Jesus


a. Em primeiro lugar, Jesus participa do culto e respeita os costumes de seu povo. Freqüentas
as reuniões sinagogais dos sábados (Lc 4,16; Mc 1,21-39; 3,1-6; 6,2; Mt 4,23; 9,35; 12,9;
13,59; Lc 2,41-42;Jô 2,13; 5,1; 7,2-14; 10,22-23 ..).
b. Jesus assume uma atitude crítica diante das práticas e das prescrições cultuais de seu povo.
Ele tem uma atitude de liberdade soberana sobre o sábado ( Mc 2,23-28; os ritos tradicionais
de purificação antes das refeições (Mc 7,1s);
c. Jesus assume e expressa o comportamento dos profetas (Mc 11,15-17 / Is 56,7; Jr 7,3-11; Mt
9,13; Os 6,6) e ao mesmo tempo resume e centraliza toda a lei no cumprimento do amor a
Deus e ao próximo, condiciona o valor ou a nulidade do culto no amor e no perdão dado ao
irmão (Mt 5,23-24; 15,5-9 / Is 29,13; Mc 12,33;
d. Um culto em espírito e verdade. Jesus face ao formalismo litúrgico proclama o culto “em
espírito e verdade” (Jô 4,20-24). A liturgia que Deus espera de seus verdadeiros adoradores.
Um culto que não se alicerça sobre as forças mágicas dos ritos (sua repetição mecânica) (cf
Mc 7,11; Mt 15,5) e nem na multiplicação de palavras (Mt 6,7). O culto espiritual não tem
sentido de espiritualismo, numa contraposição entre o culto exterior e o interior. Um culto
“em espírito e verdade”, no entender de Jesus significa: para uma autêntica adoração de
Deus, é previamente necessário que o homem seja capacitado por Deus, por esse mesmo
sentido, que seja preenchido e perpassado pelo Espírito de Deus. No verdadeiro culto, tem
lugar um encontro com Deus, que o próprio Deus possibilita com sua graça ao homem.
Somente assim o homem, na totalidade de sua existência, poderá ser sacerdote de si mesmo,
ser alguém que “pratica a verdade” (Jô 3,21) e cumpre o novo mandamento do amor (Jô
13,35).

1.2.2- Bases do novo culto


O povo israelita confessava: “o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor” (shemá Israel). As
primitivas comunidades cristãs passam a aclamar que “Jesus é o Senhor” (Fl 2,11). O verdadeiro culto a
Deus é, agora, realizado em nome de “Jesus Cristo”. Embora a Igreja primitiva não tenha quebrado
repentinamente com o culto sinanogal judaico, mas introduz um novo fermento: “o evangelho é o
fundamento do culto cristão”.
O primitivo culto neotestamentário está perpassado por duas convicções fundamentais:
▪ Jesus de Nazaré, o crucificado, foi ressuscitado por Deus. Tudo o que, a partir de
agora, pode merecer o nome de culto, está marcado por este acontecimento
definitivo, que Deus realizou em favor dos homens;
▪ O Ressuscitado por Deus é Jesus de Nazaré, o crucificado, que Israel rejeitou e
ajustiçou condenando-o à morte.
Estas duas convicções revelam a centralidade cristológica que o novo culto foi
assumindo. A Carta aos Hebreus é uma leitura em chave cristológica da realidade do culto do Antigo
Testamento. É a cristologização da linguagem de culto: Jesus Cristo crucificado e ressuscitado é a
realidade íntima e perene da celebração litúrgica e que, em conseqüência, a liturgia é o exercício da fé e a
epifania de Cristo na fé.
1.2.3- A existência como culto:
O culto em verdade e espírito e a cristologização da liturgia desencadearam uma nova
convicção: a existência íntegra do fiel no mundo, vivida na fidelidade ao Espírito de Cristo, pode chegar a
converter-se em “Culto espiritual”, no culto perfeito dos último tempos, segundo a expressão de Paulo:
“exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva,
santa e agradável a Deus, este é o vosso culto espiritual” (Rm 12,1-2).
Paulo convida a um novo culto: é culto da vida, da vida inserida no mundo e que não cede
às solicitações mundanas. Um culto no qual os dons recebidos do Espírito são colocados a serviço da
comunidade e do mundo. Mas só pode prestar este culto quem se deixa dirigir e modelar pelo Senhor.
Somente uma comunidade que leve Deus a sério pode oferecer no mundo esse “culto espiritual” 1. Enfim,
o novo culto realizado na vida diária no mundo, sob a presença dinamizadora do Espírito e suscitado pelo
acontecimento que é Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado.
A vida como culto, expressão do louvor e da ação de graças em Cristo e no Espírito, não
existe senão no interior da realidade dialética do “já ainda não”, dentro das coordenadas do tempo e do
espaço, na dimensão da corporeidade e da historicidade, para ser expressão comunitária da fé, necessita
dos sinais e dos símbolos. O culto da vida, tem necessidade da liturgia eclesial – da expressão de uma
comunidade de fé2.

1.3- A reunião comunitária


As comunidades primitivas celebravam, reunidas em assembléias litúrgica. O vocábulo exxlèsia
que, no Antigo Testamento, evocava (em grego) assembléia de Israel no deserto, designa, no NT, a
reunião concreta dos fiéis num lugar definido. A assembléia litúrgica é o lugar em que se manifesta a
própria existência da Igreja. Ela é a epifania da Igreja. O rito de introdução na assembléia é o batismo
“em nome do Senhor Jesus”.
O Ato dos Apóstolos ao narrar as primeiras conversões, nos oferece um esquema básico do
processo de ser cristão:
▪ A evangelização (o 1o anúncio);
▪ A adesão a Cristo – a proposta do evangelho = a conversão e a Fé.
▪ O batismo = sinal da fé (cf At, 41; 8,12; 18,8);
Ato dos Apóstolos ao falar da vida comunitária, apresenta quatro elementos fundamentais:
▪ O ensinamento dos apóstolos e a comunhão fraterna (koinonia);
▪ A fração do pão e as orações.
Notemos que, com exceção das orações, os demais elementos são genuinamente
cristãos. Os cristãos fazem um paralelismo com os paradigmas de um culto judeu: escuta da palavra –
culto – observância da lei // ensinamento dos apóstolos – fração do pão – comunhão fraterna.
Os cristãos foram gradativamente se separando da adesão ao templo. De qualquer modo,
a fé na ressurreição de Jesus, marcava a comunidade cristã no âmbito das comunidades de cultura judaica.
Os cristãos vão tomando consciência de que possuem seu próprio tamid – suas orações e seu culto –
oferecido por meio de Jesus Cristo.

1
Cf E. KÄSEMANN, El culto en la vida cotidiana del mundo, em: Ensayos exegéticos, 1978, pp. 21-28.
2
E. SCHILLEBEECKX, El culto secular y la liturgia eclesial, em: Dios, futuro del hombre, Salamanca, 1970. pp. 106-124.
II – LITURGA NOS SÉCULOS II E IV
O cristianismo se estende em diversas regiões do mundo greco-latino. As comunidades
cristãs vão se solidificando em sua identidade e originalidade. Aos poucos, a Igreja nascente vai se
transformando na grande Igreja ou Igreja universal. Os períodos de paz (no II séc.) favoreceram a ação
evangelizadora e a organização interna da Igreja. Isto se refletiu na elaboração teológica e nas formas de
culto, nas expressões literárias e artísticas. Com o Edito de Milão, os cristãos passam a tomar parte em
novo ambiente e numerosos membros das classes dirigentes se convertem à fé cristã. Aumenta o número
de cristãos, mesmo sem uma boa qualidade.

2.1- Desenvolvimento litúrgico


Nos primeiros dois séculos as características do culto são frágeis e vagas, a partir do III
século se mostram muito mais vigorosas e claras. Em resposta às necessidades das comunidades cristãs
surgem novas e vigorosas formas litúrgicas. As comunidades celebram uma liturgia que, apesar de sua
simplicidade, era bela, variada e rica. Uma liturgia, diferente nas expressões locais e particulares,
mantinha o núcleo cristológico. Hipólito de Roma, com sua Traditio Apostólica, é o maior expoente desta
época. Ele se apresente como um defensor vigoroso dos valores tradicionais e procura defender a fé
católica transmitida pelos Apóstolos.
Neste período, o catecumenato e o batismo conheceram um grande desenvolvimento
eclesial. Solidifica-se como instituição da Igreja. Tudo isto deve-se a uma série de fatores:

▪ ao vigor da ação evangelizadora;


▪ a forte vontade de manter a qualidade dos novos convertidos;
▪ O vigor da jovem comunidade cristã;
▪ as ameaças crescentes das seitas heréticas, especialmente do gnosticismo;
▪ a concorrência que se estabeleceu com os cultos mistéricos.
A celebração eucarística conheceu um tríplice movimento evolutivo:
▪ a celebração da ceia pelo próprio Jesus Cristo, durante um banquete situado entre dois ritos,
preexistentes, mas transformados por Jesus- o rito do pão e do cálice de vinho;
▪ a celebração eucarística na época apostólica, os ritos do pão e do vinho, vão para o final do
banquete;
▪ abandona-se o banquete como suporte da celebração. Desaparecem as mesas, exceto aquela do
presidente. Caem em desuso os termos neotestamentários: fração do pão”, “ceia do Senhor”. A
denominação de “oração de ação de graças” dada ao conjunto da celebração, é substituída por
“eucaristia”.3
O dia de culto das primitivas comunidades cristãs, firma-se na metade do II século. A
diversidade de títulos que recebe nos indica a riqueza de significado que tem esse dia para as comunidades
cristãs. A mais antiga denominação é Kyriaké, “o dia do Senhor ressuscitado”4. A Carta de Barnabé alude
ao oitavo dia, expressão enquadrada no contexto judeu-cristão. Justino fala do “primeiro dia da semana”,
relacionando-o com a criação do mundo5.
A definição da celebração anual da páscoa passa por todo um processo. Para os cristãos
era tranqüilo que o domingo é Páscoa. Aos poucos evolui a idéia de uma celebração anual da Páscoa. As
controvérsias centraram-se na data em que se devia celebrar a festa pascal. As comunidades da Ásia

3
Para elucidar melhor a evolução da Eucaristia cf. Didaché 14,1s; Justino, I Apologia 67, Hipólito, Traditio Apostólica 9.
4
Cf Ap 1,10; DIDACHÉ 14,1;
5
JUSTINO, I Apologia, 67;
Menor tinham o costume de celebrar a Páscoa na mesma data dos judeus – dia 14 de Nisã. Outras
comunidades, como as de Roma, do Egito, da Grécia e da Palestina, celebravam a Páscoa anual, não no
dia dos judeus, mas no domingo que segue ao dia 14 de Nisã. Depois de muitas polêmicas, e sob a
mediação tolerante de S. Irineu, acertou-se que a Páscoa cristã passa a ser celebrada no domingo seguinte
ao dia 14 de Nisã.

A influência do Gnosticismo
O fenômeno do gnosticismo, particularmente atuante nos séculos II e III, teve profundas
influências no campo litúrgico. O gnosticismo caracterizava-se pelo desprezo ao material e corporal. Isto
dá início à concepção dualista. As comunidades cristãs se vêem diante de um novo desafio. Haviam lutado
contra as concepções grosseiras e materialistas do ambiente pagão e judeu e acentuaram o “culto
espiritual”. Um culto que não tem necessidade de lugares, datas sagradas ou manifestações externas e
barulhentas. Um culto que nasce da adoração e sai do coração, floresce na oração de ação de graças e se
estende na vida. A Igreja passa:
▪ a defender o lado exterior e material da religião cristã e do seu culto;
▪ a valorizar a oferenda interior do coração e os elementos matérias das expressões da
fé crista;
No fim do século II ou no começo do século III, Minúcio Félix escrevia: “Não temos
altares”. Era um desafio que reivindicava o caráter espiritualista do culto cristão. O altar evocava o altar
dos antigos sacrifícios. Os cristãos ofereciam vítimas espirituais (Rm 12,1-2). Em suas reuniões os
cristãos se colocavam em volta de uma mesa comum e participavam da “vitima espiritual” representada
pelo Corpo e pelo Sangue do Senhor em memória de sua morte (1Cor 11,20.27).
Santo Irineu de Lião mostra que a eucaristia tem suas raízes na criação material, no pão
e no vinho, que são da terra, elementos da criação, que transformação em Corpo e Sangue de Jesus Cristo.
Assim a Eucaristia é constituída pelo elemento espiritual: a invocação de Deus, e o elemento material-
terreno: o pão e o vinho, elementos da criação material que procedem do próprio Deus. Antes, acentuava-
se a “ação de graças” pronunciada sobre os dons terrenos, agora, ressalta-se a dimensão material dos
elementos da celebração cristã. A “ação de graças” (eucaristia) cede espaço às palavras: “oblação”,
“sacrifício”.
Por influência do gnosticismo ocorrem diferentes mudanças:
▪ a comunidade reunida ao redor de seu bispo ou presidente da celebração, sentado na
cadeira presidencial, agora o centro é o altar, como o lugar do sacrifício;
▪ as mesas de madeira, ao redor das quais se reuniam os fiéis, cedem lugar ao altar de
pedra6;
▪ Os fiéis são convidados a levarem oferendas para o altar;
2.1.1- Simplicidade da Liturgia Primitiva
A Liturgia primitiva é maravilhosamente simples. Esta é a primeira nota que salta à vista
quando alguém lê as informações das primeiras testemunhas: Didaché, São Justino, Tertuliano, S.
Hipólito, etc. Os símbolos culturais são claros e expressivos.
Tertuliano escrevendo sobre o batismo, maravilhava-se pela estupenda simplicidade dos
ritos batismais: “Não há nada que chame tanto atenção da gente como o contraste entre a aparente
simplicidade das obras divinas e a grandeza dos efeitos prometidos. É isto que ocorre aqui. Tudo se
desenvolve com a máxima simplicidade, sem teatralidade, sem pompa”7.

6
Cf. NEUNHEUSER B., O movimento litúrgico: panorama histórico e linhas teológicas, em Anmnesis l, p. 67-68
7
TERTULIANO, De Baptismo 2,1.
Mais tarde, Santo Agostinho, como representante da Igreja na África, insistirá
novamente sobre este ponto, em sua carta a Genaro, ressaltando o insignificante número dos sacramentos
cristãos, a facilidade de sua celebração e a riqueza de seu conteúdo 8.
2.1.2- Simplicidade da celebração do Batismo
Os Atos dos Apóstolos descrevem com sobriedade exemplar o batismo do eunuco
realizado pelo diácono Filipe no caminho de Jerusalém a Gaza (At 8,26-39): breve anúncio de Jesus
pronunciado por Felipe; confissão de fé em Jesus Cristo, filho de Deus, por parte do eunuco; imersão na
água.
A Didaché, o documento cristão mais antigo da literatura pós-apostólica, procede da
comunidade de Antioquia, prescreve assim, em sua versão original, a celebração do batismo: “Acerca do
batismo, batizado desta maneira: em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, em água viva”. 9 Mais
tarde, a mentalidade marcadamente casuística aumentará uma série de prescrições que se distanciam
sensivelmente da simplicidade quase lacônica da redação original: “se não tens água viva, batiza com
outra água; se não podes faze-lo com água fria, fazê-o com quente. Se não tiveres nem uma nem outra,
derrama água na cabeça três vezes em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”.10
Justino também transmite uma singular simplicidade quanto ao rito batismal: “Quantos
se convertem e te fé de que são verdadeiras essas coisas que ensinamos e dizemos, e prometem poder
viver conforme a elas se lhes instrui sobretudo para orarem e peçam, com jejuns, perdão a Deus de seus
de seus pecados, anteriormente cometidos, e nós rezaremos e jejuamos juntamente com eles. Logo os
conduzimos a um lugar onde haja água, e pela mesma, forma de regeneração com que nós também fomos
regenerados, eles também são regenerados”11.
À luz dessas descrições seria anacrônico pensar em batistérios ou lugares especiais
reservados para o batismo. Este celebra-se em qualquer lugar onde haja água, seja de fonte, seja de rio ou
mar; sob o teto ou ao ar livre. Tudo fica condicionado às exigências reais de cada comunidade. As
renúncias, os exorcismos, os ritos de unção, consignação e imposição das irão aparecendo
progressivamente e de modo crescente.
2.1.3 – Simplicidade da Eucaristia
No início do cristianismo a celebração da eucaristia, limitada às vezes, em algumas
comunidades, ao domingo, e as eventuais celebrações do batismo, poucas eram as práticas religiosas e
culturais que se observavam nas comunidades primitivas.
A estrutura da celebração eucarística aparece desde o princípio elaborada com grande
simplicidade e maravilhosamente clara. São Justino nos informa com certa precisão sobre a modalidade
primitiva da celebração eucarística. Seu testemunho é tanto mais valioso enquanto a celebração cristã é
vista e interpretada com os olhos e a mentalidade de um leigo, acentuando inconscientemente valores que
jamais chamariam a atenção de uma mentalidade. Uma celebração da Palavra, abertamente inspirada no
culto da Sinagoga, precede à Eucaristia. Os elementos que a integram são simples e bem definidos: leitura
dos escritos apostólicos e dos profetas, homilia ou sermão daquele que preside a assembléia, oração da
comunidade e provavelmente canto dos salmos.
A eucaristia iniciava com o beijo da paz. Apresentam-se os dons de pão e de vinho
àquele preside. Este pronuncia a oração de “ação de graças” sobre os dons; parte-se o pão e se repartem os
dons consagrados entre os membros da assembléia12.

8
Cf. SANTO AGOSTINHO, Carta, 54.
9
DIDACHÉ, 7,1.
10
AUDET, J.P., A DIDACHÉ, Instruções dos Apóstolos, Paris, 1958, p. 104-120, 257-267.
11
JUSTINO, Apologia 1.61
12
Cf S. JUSTINO, Apologia I, 65 e 67.
2.1.4 – Calendário litúrgico
O cristianismo primitivo não conheceu um calendário litúrgico complexo como o atual.
Até o 4o século o ano litúrgico conta com uma só festa, a Páscoa. Esta é a festa por excelência. Cada
semana, o Dia do Senhor, o domingo vem a ser uma celebração semanal da Páscoa, atualizada
misteriosamente na celebração eucarística, memorial da morte e da ressurreição do Senhor. A Páscoa
anual celebra este mesmo mistério, mas com um relevo e uma acentuação especial.
Gradualmente, em torno da festa pascal irá se criando um período de preparação que se
prolongará progressivamente com o correr do tempo, até chegar a seis semanas no tempo de Eusébio de
Cesaréia, no século IV; e outro período de prolongamento, denominado de Pentecostes, por constituir um
espaço de cinqüenta dias consecutivos. Só no século V segundo as informações de Egéria, aparecerá a
oitava da Páscoa e a celebração do dia quinquagéma em memória da vinda do Espírito Santo. Nesta época
também começam a surgir as festas relacionadas ao ciclo do Natal.

2.1.5 – Outras orações.


À parte da celebração eucarística, limitada às vezes, em algumas igrejas, ao domingo, e
as eventuais celebrações do batismo, poucas eram as práticas religiosas e cultuais que se observavam nas
comunidades primitivas.
A Didaché prescreve os jejuns da quarta-feira e da sexta-feira, a recitação do Pai Nosso
três vezes ao dia13. À luz do mandato do Senhor “orai sem cessar”, vão se organizando as reuniões da
oração da manhã e a prece da tarde.
Enfim, a liturgia primitiva caracterizava-se por linhas puras e simples, transparente nas
expressões simbólicas e sem supérfluos acréscimos, de uma clara funcionalidade e de um vigor juvenil.
2.1.6- Da espontaneidade (improvisação) à fixação
A história da liturgia, de fato, assegura-nos que no começo, existia uma tradução oral
uniforme quanto ao essencial, garantia a unidade fundamental e não haviam fórmulas fixas. As orações,
por sua vez, brotavam da inspiração de quem presidisse as celebrações. A qualidade e o estilo dessas
fórmulas dependiam, fundamentalmente, da sensibilidade religiosa e da espiritualidade do presidente. O
fenômeno da “improvisação” resultou direta ou indiretamente na multiplicidade de orações eucarísticas.
Foi um tempo fecundo, impulsionado pela inspiração profética e espontânea.
O primeiro testemunho de inspiração profética e espontânea, o encontramos na Didaché:
“Deixai aos profetas fazer a bênção (a ação de graças) como eles o queiram” 14. Essa prerrogativa,
entretanto, ainda que os profetas a possuam de modo especial, não é exclusiva deles. Quem quer que seja
o que preside uma celebração eucarística, goza deste poder.
Um segundo testemunho vem de S. Justino. “ O que preside eleva orações de ação de
graças segundo suas possibilidades. E o povo aclama dizendo: Amém” 15. Com a expressão “segundo as
suas possibilidades” não se refere a certo “poder” sacramental atribuído aos sacerdotes. Cremos que tal
interpretação sofre de um lamentável erro de perspectiva ao querer julgar um feito histórico antigo com
moldes estruturais e ideológicos de nosso tempo. Mas antes nos inclinamos a pensar, com a maioria dos
autores, que aqui se trata do poder criador que se atribui ao que pronuncia a ação de graças conforme sua
capacidade, isto é, conforme a profundidade de sua fé.
Na Traditio Apostólica de Hipólito há um testemunho ainda mais claro que não oferece
dúvidas e que, em parte, interpreta as palavras de Justino. Existe um primeiro texto que segue

13
DIDACHÉ VIII,1.
14
IDEM, X,7.
15
S. JUSTINO, Apologia I, 67.
imediatamente à anáfora que Hipólito apresenta como modelo. A alusão à anáfora é evidente. Diz assim:
“Se alguém oferece azeite, que dê graças da mesma forma que para oferenda do pão e do vinho; não com
as mesmas palavras, porém com o mesmo sentido”16. E pouco mais adiante, mas sempre fazendo alusão
ao texto da oração eucarística proposta por ele, diz: “O Bispo dê graças conforme dissemos antes. Não é
necessário que diga as mesmas palavras que propusemos, como se tivera estudado de memória a
eucaristia. Pelo contrário, que cada um reze conforme sua capacidade. Se alguém é capaz de orar muito e
de dizer um texto solene, está bem. Se outro, ao orar, diz uma prece muito simples, que ninguém lhe
impeça. O que importa é que sua oração seja ortodoxa”17. A espontaneidade e a improvisação refletiam
um caráter próprio da oração “no espírito, ou seja, do “culto espiritual: nascimento da oração pela
presença do Espírito em nós, sem formulações estudadas e fixas.
Aos poucos a espontaneidade e a improvisação vão cedendo lugar à uma certa fixação,
porque a oração devia ser expressa não apenas com “solenidade de expressão e mais ainda com palavras
adequadamente pensadas e precisas no seu significado. Aqui já se manifesta a mentalidade jurídica
romana que julgava válido o que era estabelecido: “O direito está ligado à palavra na sua expressão”. A
partir disto passa-se a fixar as fórmulas cultuais18.
Nesta perspectiva da fixação, é sintomático que a própria Traditio Apostólica que
incentivava a espontaneidade, traz uma série de fórmulas litúrgicas. Por que isto? Talvez já se evidencie a
preocupação:
▪ De se preservar a tradição;
▪ De se precaver contra as possíveis ameaças de erros heréticos, fruto da ignorância;
▪ De se invalidar o rito (influência pagã), isto faz com se valorize mais a palavra
escrita do que a oração espontânea, sob a inspiração do Espírito.
Da tendência de se estabelecer textos fixos e oficiais, e o abandono da espontaneidade
primitiva, surge os “libelli”. Fascículos contendo o conteúdo das celebrações. É o primeiro passo de uma
regulamentação oficial das formas e que darão origem aos livros litúrgicos propriamente ditos: os
sacramentários que irão se estruturando lentamente, mas de modo progressivo. A aparição dos
sacramentários marca praticamente o fim da improvisação espontânea. O primeiro ensaio de
regulamentação está representado no chamado Sacramentário Veronense: uma espécie de coleção de
“Libelli”, de fascículos diversos aos quais se pode recorrer eventualmente em ocasiões de festas ou
solenidades.
Paralela à sistematização das orações cultuais, irá amadurecendo a formulação
sistemática das normas a serem seguidas nas celebrações do culto que, em seu primeiro estágio, o de
Ordens Romana, só pretenderão ser, não uma regulamentação oficial fixa, mas simples pauta ou diretório.
2.1.7 – Das casas à Basílica
As primitivas celebrações cristãs realizavam-se nas “salas de uma casa” particular ou
familiar, adaptada para a ocasião – eram as “Domus ecclesiae” – casas da assembleia (cf At 20, 5-12; Fm
1,2.). Aos poucos os cristãos vão assimilando os costumes, as tradições e expressões do império que,
agora é cristão. Os conceitos também mudam. O Senhor que havia nascido numa pobre gruta de Belém,
agora passa a ser cultuado no interior da basílica. A Deus e a Jesus se emprestam as categorias, antes
tributadas ao imperador. A basílica – casa do rei ou sala de audiências do rei (“basileus”) - é adaptada para
o culto cristão19. “Aplicam-se à celebração do Imperador do céu muitos gestos e palavras que
correspondem ao imperador da terra e inicialmente, o imperador cristão, sem deixar de ser homem, reflete
a majestade do Deus que os cristãos adoram.

16
BOTTE B. A Tradição Apostólica de Santo Hipólito, n. 9 . Münster, 1963,pp. 18-19.
17
IDEM,p 28-29.
18
Cf. NEUNHEUSER B., O movimento litúrgico: panorama histórico e linhas teológicas, em Anmnesis l, p. 64-65.
19
JOUNEL J., Lugares de Celebração, em Dicionário de Liturgia, Paulinas, 1992. pp. 695-697. Cf. BOROBIO D. A
Celebração Cristã, Vol I, Loyola. 1990.pp 76-79.
2.1.7- Do grego popular ao Latim
A primeira pregação da mensagem cristã teve lugar em um meio ambiente humilde e
popular, diríamos hoje: pequenos comerciantes, marinheiros, pescadores, prisioneiros de guerra, escravos,
expatriados, emigrantes do Oriente estabelecidos nas grandes cidades do Ocidente, especialmente nos
locais de portos de mar. A língua falada por estas pessoas oriundas da Ásia e dispersas por todo o império
era o Koiné ou grego popular.
Nesta língua foi proclamada, pela primeira vez, a mensagem cristã. Dela se serviram os
Apóstolos para escrever suas cartas e os evangelistas para redigir os seus evangelhos. Esta também foi a
língua usada pelos bispos e presbíteros para proclamar a grande oração eucarística nas assembléias
litúrgicas, na fração do pão.
Gradualmente vai se abrindo caminho a um processo de latinização no meio das
comunidades cristãs do Ocidente. O aumento considerável dos que falavam latim provocou a necessidade
urgente do latim como língua cristã. A latinização, entretanto, não será obra de um diz. É aos poucos que
ela vai se tornar a língua oficial da Igreja.
Os primeiros textos traduzidos do grego para o latim foram da Sagrada Escritura, na
segunda metade do século II. Assim aparecerá a chamada: Vetus Latina (Velho Latim). Quase
simultaneamente irão aparecendo versões de outros textos não bíblicos, tais como as Cartas de São
Clemente de Roma. Mas o grego permanecerá sendo a língua da Igreja de Roma até o século III e nas
celebrações litúrgicas continuará a ser usado até o final do século IV. A passagem do grego para o latim
na liturgia de Roma, e de modo concreto no que se refere ao cânon ou à oração eucarística, viria a ser
efetuada no pontificado do papa Damaso (366-384). A Igreja da África foi a primeira a exprimir-se em
língua latina e foram os africanos Tertuliano, Cipriano e Agostinho e outros que forjaram
fundamentalmente o vocabulário teológico e litúrgico da Igreja do Ocidente.
2.1.8 – Massificação da Comunidade eclesial
A paz constantineana e o fim das perseguições religiosas contra os cristãos, mantidas
durante muito tempo dentro do Império Romano, provocaram uma curva considerável no
desenvolvimento histórico do cristianismo, da Igreja e de suas instituições. Assistimos então a um
fenômeno de massificação no interior das comunidades cristãs, fruto, em parte, das conquistas
conseguidas pela Igreja no correr de vários séculos de expansão incessante. No entusiasmo dos anos de
paz e de crescimento, mais por conveniências sociais e políticas do que por razões de fé, vai se debilitando
fatalmente a força e o vigor do anúncio primitivo.
Onde mais se fez sentir a avalanche da massificação foi nas celebrações litúrgicas.
Quando a massa dos novos cristãos invade a assembléia, esta perde sua primitiva vitalidade, se
despersonaliza, debilita-se o carisma profético dos primeiros tempos. A comunidade se vê abrigada a
abandonar a “Domus ecclesiae”, simples e familiar para transladar-se à suntuosa basílica. O simples e o
familiar cedem espaço ao maravilhoso, transcendente e teofânico da liturgia romana. A liturgia assume o
cerimonial da basílica imperial. Toda a celebração eucarística desenvolve-se em meio a uma grande
magnificência e uma suntuosidade que se distancia muito da primitiva simplicidade.
Efetivamente, podemos dizer que o triunfalismo constantiniano fez a sua entrada na
liturgia da Igreja Católica.
▪ As vestes e as insígnias pontificais serão uma herança direta das insígnias e
condecorações honoríficas próprias dos altos dignitários do império. A partir da paz constantiniana os
bispos recebem o título de “ilustres” e o papa o de “gloriosíssimo Papa”, equiparando-se assim aos
príncipes imperiais. O manto que o Papa leva desde o século V e posteriormente levarão também os
bispos, é uma insígnia honorífica, reservada originariamente aos altos dignitários imperiais. Do pálio
(manto) derivará depois a estola dos sacerdotes. As mesmas origens profanas e honoríficas terão a
dalmática e a planeta dos antigos senadores romanos;

Encontramos também uma série de cerimônias litúrgicas assimiladas do protocolo
imperial. Assim, o ajoelhar-se ou inclinar-se dos clérigos quando passam diante do bispo ou o
antiqüíssimo rito da “sustentação”, segundo o qual, os cônegos que assistem ao bispo o acompanham
sustentando-lhes os braços. Não se trata de uma simples ajuda material, senão de uma cerimônia
honorífica que remonta ao cerimonial da corte imperial. O mesmo pode-se dizer do uso do incenso e dos
candelabros ou dos círios que os acólitos levam em procissão no início e no fim de uma celebração solene.
▪ Contudo, temos que ver o aspecto positivo desses acontecimentos históricos. Tudo é
sinal de um enorme progresso da Igreja, de um enriquecimento considerável e de uma real penetração em
todas as esferas da sociedade. Ao mesmo tempo, a era constantineana, ao liberar a Igreja das trevas que a
constrangiam quase desde o seu nascimento, reconduzindo-a à clandestinidade e ao silêncio, contribuiu a
que essa tomasse consciência de sua presença visível no mundo e de sua estrutura hierárquica,
manifestando-a visivelmente nas celebrações litúrgicas. Uma nova concepção de liturgia começa a abrir
caminho. Da espontaneidade e da simplicidade originais vai dar-se um passo até ao sagrado e hierático,
assegurado por uma ordem ritual que sem dúvida nós qualificamos de exagerada. Apesar de tudo, o
mistério salvador que se celebra continua sendo o mesmo, ainda que as formas rituais e o estilo tenha sido
profundamente transformado.
2.1.9- As grandes Famílias Litúrgicas
A comunidade de Jerusalém se constituiu no ponto de partida. O anúncio da Boa Nova de
Jesus nas línguas dos povos de então, vão originar uma diversificação. Atos dos Apóstolos (At 3,9-
11;6,1) testemunha a diversidade. Formaram-se as comunidades de Samaria (At 8,5-25, de Cesareia (At
8,40), Damasco (At 9,1), Antioquia (At 13,1), de Chipre (At 13,4ss), em toda a Ásia, Grécia e finalmente
em Roma e Espanha.
Particular importância te as comunidades cristãs de origem pagã, cristãos helenistas e
romanos que, nos séculos II e III, foram constituindo o núcleo das igrejas cristãs. Do meio destes povos
surgiram as grandes metrópoles do mundo de então: Antioquia, Corinto, Roma, Alexandria e Éfeso. Estes
lugares se transformaram em centros de influência e de irradiação. Estas cidades eram sede de bispado e
desenvolviam uma liturgia que possuía seu estilo próprio. Daqui se deduz a formação das famílias
litúrgicas concretas.
a- Famílias litúrgicas do Ocidente20:
A liturgia latino-africana e romana, milanesa (ou ambrosiana), hispânica antiga (ou
visigótica), e a galicana. A riqueza litúrgica dessas famílias teve um singular desenvolvimento após a paz
e a liberdade constantinense.
b- Famílias Litúrgicas do Oriente21:
O Ramo Siro-antioqueno, Ramo Alexandrino e os grupos sírio-orinetal, o grupo
anticalcedoniano, grupo calcedoniano;
c. Processo de formação das Famílias ou dos ritos Litúrgicos
As famílias ou ritos litúrgicos passaram por três estágios:
Período de Gestação
Em meio às vicissitudes humanas, questões teológicas, aquisições culturais se foram
acumulando, estratificando e condicionando idéias e estilos na produção de uma futura escola eucológica.
O passo inicial do período da gestação pode ter sido a passagem de uma língua para outra – do grego para
o latim em Roma. A adoção de uma nova língua supõe todo um esforço de adaptação ao novo contexto
cultural.

20
Cf PNELL J., Liturgias Locais e Antigas, em: Diocionário de Liturgia, p. 670-676.
21
Cf GELSI.D., Orientais Liturgias, em: Diocionário de Liturgia, pp. 870-878
Período de Criatividade:
A comunidade de fé, que já possui uma certa identidade, começa a expressar seu modo de
contemplar e celebrar o mistério de Cristo. Elabora suas celebrações. Para isto necessita e depende de
bons pensadores e escritores, capazes de redescobrir com idéias novas as verdades eternas.Estes
pensadores compõem os textos litúrgicos pensando numa determinada comunidade de fiéis.
Período da Codificação
Durante o período da criatividade, os autores compuseram várias missas para as festas e
celebrações das comunidades cristãs (disto surgem os libelli) os compiladores vêm e juntam os libelli,
corrigem as lacunas e os organizam de modo que se apresentem como um referencial para as demais
celebrações. Assim surgiram os diferentes sacramentarios: Veronense, Gelasiano e o Gregoriano.
Na formação do rito romano desempenham particular influência: O Papa Damaso (366-
384), O Papa Inpcêncio I (401-417), Leão Magno (440-461). Gelásio (492-496), Vigílio (537-555),
Gregório Magno (590-604)22.

2.1.10- Outros ritos latinos

a)- Liturgia na Igreja Africana


A liturgia que se celebrava na África latina, desde os tempos de S. Ciprinao de Cartago foi
influenciada pelos acontecimentos políticos que provocaram a erradicação total das comunidades cristãs
florescentes. Resquícios da antiga liturgia latina da África sobreviveram nas liturgias da Gália e da
Espanha. O rito Afro-latino não chegou à fase da codificação.
b)- Liturgia Ambrosiana
É o rito litúrgico da Igreja de Milão. Denomina-se de “ambrosiano” por sua referência a
Santo Ambrósio. Tem forte influência oriental e romana.
c)- Liturgia Galicana
É a liturgia originária das regiões das Gália. Sofreu influência da liturgia africano-latina e
romana. Foi sufocado pelo rito romano-latino.
d)- Liturgia Céltica
É a liturgia da região da Irlanda, rica em hinos.
e)- Liturgia Hispânica (visigótica)
É o rito que conheceu uma singular evolução em todas as suas fases. Quando ocorreu a
invasão dos árabes (711), o rito já havia encerrado seu processo de formação. A presença árabe impediu
que a liturgia hispânica tivesse maior desenvolvimento, a exemplo da liturgia romano-latina.

III. Liturgia nos Séculos V a XI


3.1 – A figura do Papa Gregório Magno (590-604).
Gregório Magno é uma figura ímpar na história da liturgia ocidental. No campo da liturgia,
ele se destacou nas seguintes obras:

22
Cf PNELL J., Liturgias Locais e Antigas, em: Diocionário de Liturgia, p. 672-675.
▪ Deu grande realce ao culto estacional como forma adequada de catequese do povo
simples. O culto estacional consiste na procissão de uma Igreja (Igreja oração) para uma
outra, na qual se pára, se estaciona (igreja estacional) para celebrar a eucaristia);
▪ Escreve inúmeras homilias;
▪ Deseja e trabalha para que a liturgia se transforme no alimento espiritual para o povo
simples e inculto, em vista disso realizou uma grande renovação do culto, orientada por
uma finalidade pastoral e pela simplificação dos ritos;
▪ Tem toda uma preocupação com a linguagem litúrgica – direta, acessível ao povo
simples e isenta de pretensões literárias;
▪ Reformou o lecionário, o sacramentário e o antifonário; É provável que ele tenha sido o
autor do Sacramentário Gregoriano;
▪ Reduziu o número das leituras para duas (em vez de três);
▪ Realizou um trabalho especial na área do canto e da expressão musical, reforçando a
schola cantorum. Situou a schola cantorum entre o povo e o presbitério. Enriqueceu a
liturgia com novas melodias;
▪ Como bispo de Roma, preocupou-se com a organização litúrgica da cidade. A obra
liturgia de Gregório, pensada e organizada para o povo de Roma, obteve êxito também
em outras cidades e Igrejas.
3.2- A liturgia romana pura
Nos séculos V a VIII a Igreja de Roma conheceu o momento auge de sua liturgia. É a época
clássica. Do amadurecimento das formas e expressões, numa mesma língua. Nesta época de ouro da
Liturgia Romana, além da oração eucarística, obtiveram um significativo desenvolvimento os textos
eucológicos, que dizem respeito: orações da coleta. Orações sobre os dons, prefácios, cânon romano,
orações depois da comunhão, orações sobre o povo. Diferentes tipos de orações eucarísticas se
desenvolveram: do estilo romano, caracterizado por uma prece eucarística invariável. Cânon único e
imutável para todos os dias. Do estilo gálico, composta ao estilo de um mosáico, por muitos elementos
variáveis. Com a paz constantineana surgem grandes edifícios ( a Igreja de São João de Latrão e sobre os
túmulos dos apóstolos e mártires.
A missa romana clássica caracterizava-se:
▪ Por uma entrada solene dos celebrantes, acompanhada pelo canto do intróito, culminando na
oração da coleta;
▪ A procissão das oferendas acompanhada pelo canto do ofertório e concluída pela oração sobre
os dons;
▪ A procissão da comunhão dos fiéis, acompanhados pelo canto de comunhão, encerrando com a
oração da pós-comunhão;
Nessa época ainda não havia as missas privadas. Conhecem-se três formas de celebração da
eucaristia:
▪ A celebração solene (missarum sollemnia) de toda a comunidade eclesial da cidade, em torno
do bispo, reunida em statio correspondente. O bispo presidia cercado pelos presbíteros e demais
ministros. Era a celebração presidida pelo Bispo de Roma em sua cátedra, em comunhão com
todo o povo. Servia de modelo para as demais celebrações presididas pelos presbíteros nos
titulii (Igrejas paroquiais das cidades ou círculos menores;
▪ A missa de um presbítero, no “titulus” fora da cidade, com seus respectivos fiéis;
▪ A missa de um grupo menor, reunido em circunstâncias especiais;
Nesta época a eucaristia é a santa ação, que celebra o memorial da morte e ressurreição de Cristo,
culmina na “prex eucharistica” (cânon romano). A celebração visa adorar a Deus Pai, mas por meio de
Jesus Cristo, na representação do seu sacrifício único. Só com muita reserva falda da adoração ao sagrado
alimento, do corpo e do sangue de Cristo.
Quanto ao estilo dessa liturgia romana clássica deve-se observar:

▪ No que diz respeito aos elementos formais: é uma liturgia objetiva, sóbria, simples, breve e
pouco sentimental e destituída de verbosidade. Prima pela disposição clara e lucidez, de uma
grandeza sagrada e humana ao mesmo tempo, espiritual e de grande valor literário;
▪ Quanto aos elementos teológicos: A oração romana sempre se orienta para o Pai, por Cristo,
no Espírito Santo. Doutra parte, as liturgias orientais, gálicas ou visigodas, por vezes se dirigem
ao Senhor Jesus e poucas vezes ao Espírito Santo;
▪ Na liturgia romana pura não há manifestações exteriores de veneração ou de adoração dos
elementos sagrados, nem intenções de explicar com argumentos teológicos ou especulativos a
presença real do corpo e do sangue de Cristo;
▪ A celebração eucarística aparece ligada à comunidade local, expressão da total da comunidade,
normalmente presididas pelo bispo;
▪ As comunidades dos “Titulus” recebem o fermentum da missa episcopal, como sinal de
intercomunhão com aquela comunidade;
▪ A comunidade local não se esquece, em sua celebração litúrgica, da Igreja universal.
Os livros litúrgicos também encontram um particular desenvolvimento:
▪ O Sacramentárium: livro que contem todas as orações do sacerdote que celebra a missa e os
grandes sacramentos. A liturgia Latina dispunha dos Sacramentários:
• Veronense, também chamado de Leonino, uma coletânea particular de
orações atribuídas a Leão magno e a outros papas dos séculos V e VI, de
conteúdo muito rico;
• Gelasianum e o Gregorianum 9séculos V e VI);
▪ O Lectionarium: livro que contém os textos do Antigo e do Novo Testamento para serem
proclamados pelos ministros. No começo as leituras bíblicas eram escolhidas livremente na
Bíblia. Depois passou-se a indicar com sinais no texto bíblico os trechos para serem lidos e se
redigiram litas de tais indicações.
▪ Evangeliarium para os textos Evangélicos do uso do diácono;
▪ Epistolarium, livro das cartas, do uso do leitor
▪ O Líber Antiphonarius: com textos e as melodias da “schola cantorum”, subdividido em
antiphonarius Missae e em antiphonarius officiii (L.das horas);
▪ O Ordo romanus: livro que descrê o modo de executar as ações litúrgicas;
▪ Destaque particular, neste tempo era dado à Vigília Pascal. Celebrada com toda a solenidade.
Bem como às festas do natal e da Epifania, as memória dos mártires, dos apóstolos e da
Virgem Mãe de Deus.
▪ Neste período eloqüente é a celebração da iniciação cristã: a preparação dos catecúmenos nos
quarentas dias anteriores à Páscoa, a administração dos sacramentos do batismo, da
confirmação e da primeira participação na eucaristia na noite da Vigília Pascal.
▪ Quanto ao Officium divinum (liturgia das Horas), há poucos dados desta época. Tratava-se
mais das horas principais: laudes e vésperas. Esta oração esteve muito restrita a grupos
piedosos, os monges. A construção dos mosteiros acontece junto ou próximos da grande
basílica.
3.3 - Encontro da Liturgia Romana com a Franco Germânica
A liturgia pura de Roma emigra para os países francos, levada por iniciativa dos peregrinos
e mais tarde, pela iniciativa oficial. Em 754, Pepino, o Breve, decreta a adoção da liturgia romana em todo
o Império Franco, em base ao sacramentário que o Papa Adriano I havia enviado ao rei pelos seguintes
motivos:
▪ Pela liturgia única e uniforme, o governo buscava a unidade do império;
▪ Por fim a secular concorrência entre a Liturgia Romana e a Liturgia Gálica
▪ Por fim à compilação e à desordem do culto no império franco;
O imperador Carlos Magno reafirmou a obrigação da liturgia Romana pura em todas as
Igrejas do império. Todavia, de imediato a liturgia clássica de Roma não agradou ao povo. Este resistia
abandonar certas práticas, costumes, ritos, orações e festas. O Imperador diante desta situação ordenou a
composição de um apêndice ao missal romano, onde são incluídos certos elementos litúrgicos locais
criando, assim, uma liturgia híbrida. Houve também uma certa anarquia litúrgica, uma vez que cada Igreja
se apropriava dos ritos, textos e cerimônias que julgava útil ao clero e aos fiéis. Uma situação que gerou o
fenômeno de vitalidade criadora. Conseqüentemente:
▪ a nova liturgia mista é mais rica do que as formas simples da antiga liturgia romana;
▪ Acrescenta a esplendida consagração do Círio Pascal;
▪ Introduz as missas votivas;
▪ Abre espaço às orações mais de cunho pessoal- individual, sobretudo orações rezadas,
em particular pelo sacerdote (as tais de apologias: orações que reconhecem a culpa e
pedem perdão). Orações que pouco a pouco, invadiram a celebração eucarística;
▪ Muitas orações com uma nova índole, dirigidas a Jesus Cristo e não mais ao Pai, como
na liturgia romana;
▪ Das orações emerge uma forte consciência de pecado, como que de uma angústia diante
do juízo final eminente;
▪ O caráter comunitário é relegado a um segundo plano;
▪ Ganha ênfase a dimensão clerical, diminui a participação do povo – espectador de uma
ação realizada pelo clero;
▪ O sacerdote que oficia as orações se mantém diante do altar e de costas para o povo e
celebra de modo isolado;
▪ O altar se transforma num reliquiário (deposito de relíquias) e depois suporte de bustos-
reliquiários e de estátuas. Cria-se uma multiplicidade de altares – o altar devocional –
concentra a atenção sobre as relíquias e as imagens e não tem mais o objetivo de servir
de “esa do Senhor” para a comunidade. Será o lugar de onde será exposto à veneração o
santo23
▪ O sacerdote assume praticamente todos os papéis numa celebração;
▪ Surge o “missal plenarium”, no qual se encontram: as orações, as antífonas, as leituras,
os prefácios, o cânon romano e todo o ordenamento da celebração;
▪ Surge também o Pontifical: livro que contém todos os elementos e rubricas do culto
celebrado pelo bispo. Em 950, no mosteiro Santo Albano em Mogúncia é elaborado o
Pontifical Romano-Germânico.

23
Cf. NEUNHEUSER B., O movimento litúrgico: panorama histórico e linhas teológicas, em Anmnesis l, p. 68- 69.
3.4 – Decadência da Liturgia Romana
A partir do pontificado de Gregório Magno (590-604), a criatividade litúrgica romana
começa a declinar. Os diferentes movimentos migratórios do Oriente para o Ocidente nos séculos VII e
VIII marcaram Roma com sua influência. A liturgia romana se vê perpassada pela influência oriental.
Alguns exemplos dessa influência:
▪ A introdução do agnus Dei na missa;
▪ A adoração da Cruz na sexta-feira santa;
▪ A introdução das festas marianas: assunção, Natividade de Maria, Purificação e
Anunciação;

No século IX a vida romana chega a índices deploráveis, inclusive a liturgia.


A vida litúrgica estava ameaçada de morte. Neste momento crítico, é a liturgia híbrida
franco-germânica que vem e salva a liturgia romana.
Sob o reinado dos Otões regressa a Roma a liturgia, agora híbrida franco – romana.
Observe-se que se faz uma nova adaptação. A liturgia romana combinada com a liturgia franco-germânica
se expressa acentuando os seguintes aspectos:
▪ elementos formais: o calor afetivo, uma expressão mais forte do sentimento lírico em contra
partida com a sobriedade romana, a riqueza do vocabulário e do simbolismo, a intensidade
da ação dramática;
▪ elementos litúrgico-teológicos: a multiplicação das orações privadas durante a celebração
litúrgica, uma consciência profunda de pecado e da culpa, o direcionamento da oração a
Cristo e não mais ao pai, deixando à margem a função mediadora entre Deus e os homens;

3.5 – Idade Média


3.5.1- Dimensão Jurídica da Liturgia
A liturgia será, cada vez mais, aquela forma de culto que é realizada de conformidade com o
regulamento e a ordem da Igreja hierárquica, que é executada em nome da Igreja (universal) por pessoas
delegadas para tanto. Esta concepção jurídica, aplicada ao culto litúrgico:
▪ afastará definitivamente o povo da liturgia. Liturgia é um campo reservado às pessoas
consagradas para tal serviço. O povo é um sujeito passivo. A ele cabia assistir o espetáculo. A lei exige
que o fiel veja o desenvolvimento da ação celebrativa. Afirmava-se que: quanto mais silenciosamente se
assistir ao espetéculo sagrado, tanto maior será a eficácia das palavras do sacerdote”;
▪ contribuirá fortemente para a materialização do culto. Para que uma ação seja, de fato,
litúrgica deverá realizar-se conforme o determinado pela lei. Ela será válida, verdadeiro ato de culto, se a
pessoa pronunciou as palavras e realizou os gestos segundo o estabelecido. A validade não depende do
estado do ministro. Mesmo que o ministro esteja em pecado o alto litúrgico não pode falhar (cria-se aqui a
duplicidade de personalidade). O que importa é rezar e agir em nome da Igreja.
▪ Favorecerá o formalismo e as expressões externas da liturgia: a mentalidade jurídica,
visando sobretudo à exatidão material no uso das formas e dos gestos, no número e na ordem das palavras
que deviam ser pronunciadas, só podia levar a ação litúrgica ao formalismo. A liturgia é algo que “tem de
ser feito” e feito “de certa maneira”. Seu valor depende não da ação responsável pessoal individual,
quanto da presença da Igreja, considerada como mandante e, portanto, única responsável pela celebração;
E sendo a Liturgia é ação exterior do culto e uma realidade reservada ao sacerdote, resultava
que:
▪ A liturgia é mais liturgia dependendo de seu aparato exterior. Com isto ganha
ênfase o cerimonialismo, a dimensão externa do rito;
▪ O sacerdote e mais sacerdote, quanto maior for sua magnificência exterior;
▪ Multiplicam-se as celebrações e para as quais se fixavam cuidadosamente as
ofertas dos fiéis. O valor exterior, mas puramente mágico, do rito litúrgico
atinge seu máximo na chamada missa seca e na missa bifaciata, tri-
quatrifaciata24

3.5.2 – A reação do povo


À prática e à mentalidade materialista da liturgia, o povo reagiu no intuito de manter viva
sua fé, de duas maneiras:

3.5.2.1- A explicação alegórica25


Alegoria: (em grego – transposição) é a obra literária que representa uma coisa para dar
entender outra. Ou alegoria é tratar com uma realidade para figurar outra realidade.
O uso da alegoria litúrgica foi muito comum e chegou até os nossos dias. O alegorismo litúrgico
deve sua origem à confusão que se produziu entre símbolo e alegoria. A alegoria está muito próxima do
símbolo. Este é algo concreto, palpável, é uma coisa, um fato ou uma pessoa, que além da realidade
visível, mostra, esconde ao mesmo tempo, outra realidade invisível. A alegoria é uma linguagem figurada
usada para interpretação das coisas, ou dos fatos. Ela não é uma realidade concreta, objetiva. Ela está
vinculada à interpretação subjetiva. O alegorismo facilmente se perde na busca de estranhos significados
que deveriam ser dados às pessoas, às coisas, aos gestos. Muitas vezes constituídos de elucubrações e
fantasias. Assim por exemplo, na missa, para Amalário de Metz (século IX): “o cálice é o sepulcro do
Senhor”; “O que preside a celebração é José de Arimatéia que sepulta Jesus”. “O gesto do sacerdote lavar
as mãos depois do ofertório simbolizava o gesto de Pilatos lavar suas mãos no momento de condenar
Jesus”. As janelas de vidro das igrejas são as santas Escrituras, que mantém afastados os ventos os ventos
e as chuvas do mal; O padre fazia três cruzes sobre as ofertas de pão e de vinho, para significar os três
(sacerdotes, escribas e fariseus) a quem Judas vendeu Jesus, etc.
Quando é que se passa usar facilmente a alegoria: quando se desconhece o sentido do rito, das
partes do rito, dos gestos e dos símbolos, como sinais sacramentais do Mistério Pascal de Cristo. A
alegoria entrou e se fortaleceu na liturgia, quando:

▪ faltou uma sólida catequese litúrgica, porque faltava uma teologia da liturgia;
▪ não havia interesse pela ação litúrgica, apelou-se para as interpretações fantásticas,
feitas de estranhas aproximações;
▪ a clericalização da liturgia – esta era propriedade do clero, os leigos não tinham
conhecimento do sentido profundo da ação litúrgica; A catequese aos fieis se
restringia ao estudo das vestes, dos gestos e sobre o porque na missa há palavra
pronunciadas em voz alta e outras em baixa voz. Na liturgia tida como um
espetáculo, tinha-se a preocupação de se explicar tudo quanto pudesse ser percebido
exteriormente pelo povo. Estas explicações esvaziavam o mistério do culto cristão
e o interesse de atrair o povo.

24
Cf IDEM, p. 71-72.
25
Cf IBIDEM, p. 73-77
3.5.2.1- O devocionismo26
O devocionismo, diferente do alegorismo que desejava manter o contado do povo com a
liturgia, deseja substituí-la e desclericalizá-la. O devocionismo representa um grito de independência, de
libertação do jugo clerical. Os leigos desejam organizar, a exemplo das comunas e corporações, suas
expressões cultuais. Com a multiplicidade de devoções tem-se a impressão do ressurgir de um “novo
cristianismo”, mais do que um cristianismo que se tornou na “religião das devoções com um forte espírito
de libertação”. Isto pode ser melhor exemplificado no quando que segue:

A liturgia A devoção:
- é uma obrigação. =é de livre opção;
- é em latim = é na língua do povo
- é do sacerdote = das pessoas devotas
- exige o mínimo espiritual = requer o máximo de fervor
- tem um cerimonial fixo = o rito depende de cada devoto
- é um momento reservado = nasceu para sustentar a vida
e desligado da vida cotidiana nas obras de caridade e penitência
- Deus transcendente e distante = Deus está próximo e poderoso;
Na Idade Média desenvolveu-se amplamente uma forma de devoção especial em torno da
humanidade de Jesus Cristo. As formas artísticas plastificaram maravilhosamente essas novas correntes
espirituais. Analisando a história da arte descobrimos que o “Kyrios Pantocrator”, que presidia
majestosamente as suntuosas basílicas constantineanas, transforma-se, a Idade Média em um Cristo
humanizado e sofredor27.
O mistério do nascimento do Senhor é o que com maior insistência atraiu a atenção
espiritual dos humanos da Idade Média. Disto se originará o extraordinário culto e piedade a Maria, dada a
sua estreita vinculação com o Mistério da natividade. As manifestações deste desenvolvimento
progressivo do culto mariano tomarão formas e tonalidades distintas. Alcuíno introduz no seu
sacramentário a missa de “Santa Maria no sábado”, os monges de Cluny, introduzem o costume de recitar
antífonas marianas no final do ofício, além do pequeno ofício de Nossa Senhor (que chega até nossos
dias).
A Igreja primitiva nunca celebrou a Paixão do Senhor separada da Ressurreição. Os dois
mistérios eram celebrados na unidade do mistério pascal. A Igreja da Idade Média separou, entretanto, a
celebração dos dois mistérios. Surge então uma forma de piedade abertamente sentimental motivada,
sobretudo, pela meditação dos sofrimentos de Jesus Cristo. No contexto espiritual e ideológico medieval,
adquire mais relevo a meditação piedosa da paixão que a celebração sacramental dos mesmos mistérios da
morte na Cruz.
A história da arte reflete o novo rumo, as tendências da piedade cristã. As primeiras
gerações de cristãos representavam a Cristo na sede ou na cruz com uma coroa e o manto real, com os
olhos abertos, como um rei e vencedor sentado em trono de majestade. A Idade Média, entretanto,
imaginou a Cristo na cruz como um moribundo justiçado e fracassado, assistido pelas mulheres ao pé da
cruz, objeto de ternos sentimentos, de compaixão e de tristeza.

Neste ambiente espiritual, como em terra fértil, brotam as devoções privadas, as quais
acentuar-se-ão dia após dia, cada vez mais intensamente. O divórcio entre piedade litúrgica e piedade do
povo torna-se uma realidade. Os fiéis não encontram mais na liturgia oficial um espaço apropriado para
expandirem seus sentimentos religiosos. Buscam outras formas de piedade, de cunho altamente
sentimental, que mais nada tem haver com a liturgia da Igreja. Entre a nutrida floração de exercícios de
26
IBIDEM ,pp 77-80
27
Cf BOROBIO D. A Celebração Cristã, Vol I, Loyola. 1990 .pp 104-106.
oração às cinco chagas, à coroa de espinhos e à flagelação, emergem as atitudes espirituais da humildade,
da compaixão, cuja expressão máxima culminará no chamado “dom das lágrimas”.
Um abismo, cada vez mais amplo se abre entre o clero e o povo. No contexto sócio-
religioso medieval o clero adquire uma clara configuração de casta especial.
Este distanciamento entre o clero e o povo repercutirá sensivelmente na vida litúrgica.
Alguns autores afirmam que a celebração cultual da Idade Média, foi concebida mais em função do clero
do que da comunidade eclesial. Destacamos alguns sintomas desse fenômeno:
▪ A estrutura da igreja: O coro e o presbitério são reservados exclusivamente ao clero e se
separam do lugar reservado aos fiéis mediante altas grades e balaustradas. Na realidade, na estrutura
dessas igrejas não se previu um lugar especial para os fiéis. Eles vão ocupar os lugares nas naves laterais.
▪ O lugar do altar foi idealizado em função da comunidade eclesial que realiza a liturgia.
Nas belas igrejas góticas de corte francês se colocará o altar ao fundo da nave central, junto com o coro
que ocupa toda a abside. E onde se coloca o altar mais no centro, é cercado de uma grande balaustrada e
unido ao coro mediante um espaçoso corredor, que costumava ser chamado de via-sacra. Tudo isso nos
faz pensar que o lugar do altar e a estrutura das igrejas era concebido não em função de uma liturgia
eclesial, senão em vista de uma liturgia clerical.
▪ A liturgia é eminentemente clerical. Um espetáculo para se ver e pouco ouvir. De fato, a
comunidade medieval nem pode ouvir as palavras, nem as entendes e apenas pode ver o desenvolvimento
dos ritos. Por tudo isso não nos parece estranho que homens piedosos nesses séculos obscuros da história
da liturgia recolhiam-se na meditação silenciosa e na recitação piedosa de orações breves e simples: Pai
nosso, Ave Maria, Glória ....
▪ Surge uma nova piedade eucarística. Pouco a pouco vai prevalecendo o costume de não
comungar na celebração eucarística. Tanto é assim que o Concílio de Latrão, em 1225 imporá a obrigação
de comungar, ao menos uma vez por ano. Os fiéis se contentavam em “assistir” a missa. Outras vezes
percorriam várias Igrejas para poder presenciar a elevação da hóstia, depois da consagração. Dessa época
provém o costume de se tocar as campainhas das Igrejas no momento da consagração a fim de anunciar
aos fiéis o momento da elevação da hóstia consagrada.
A piedade eucarística vai centralizando-se, cada vez mais, e de modo quase exclusivo, numa
forma de culto da adoração à presença real de Cristo nas espécies consagradas. Ainda que esta seja uma
atitude digna de toda a consideração e respeito, não constitui a postura essencial do cristão ante a
eucaristia, nem pode ser considerada como núcleo básico da devoção eucarística. A eucaristia, em seu ser
essencial, é um banquete, uma comida, ainda quando isto não isente ao crente de uma postura de adoração
cultural à presença real de Cristo.

Existem outra série de manifestações que ilustram melhor esta mentalidade:


= ninguém podia tocar o corpo do Senhor, senão os ministros;
= nem se quer era permitido levar a comunhão à uma pessoa em perigo de morte;
= necessitava-se de uma permissão pontifícia para tocar no cálice;
= durante a lavação dos corporais e purificadores (sanguineos) deviam-se recitar uma série
ininterrupta de orações;
= multiplicam-se as missas privadas e devocionais, especialmente nos mosteiros.

Para exemplificar: somente em duas igrejas de Breslau havia mais de 260 altaristas, sacerdotes
que tinham como ofício rezar missas e assistir ao ofício coral. Os motivos dessa multiplicação de missas
privadas foram: a necessidade pastoral que exigia a celebração de diversas missas para atender à
comunidade cristã; a devoção dos fiéis que pediam a celebração da missa por suas intenções particulares:
defuntos, promessas, pedidos de graças especiais, etc....; a devoção dos sacerdotes, que, por outra parte,
encontravam nas muitas missas celebradas a remuneração econômica.
3.5.3- Transformações e decadência
A Cúria romana fez sucessivas reformulações dos livros litúrgicos nos séculos XII e XIII,
especialmente do Pontifical, do Missal e do Breviário. Mas as variantes do tempo não permitiam que tais
reformas surtissem os efeitos desejados.
O próprio movimento “devocional” não salvou a vida espiritual do povo. Com efeito, acontecia
que, vindo a faltar uma visão teológica do culto cristão e da expressão que ele tinha na liturgia e devia ter
na “devoção” e nas “devoções”, o movimento devocional imitou no plano laical os mesmos defeitos que o
levaram a se afastar da liturgia clerical. Em vez de ter apenas uma liturgia doente de materialismo e
imbuída de supertição e por vezes de magia, agora entrará o devocionismo.
A situação decadente da piedade cristã na Idade Média haverá de provocar a reação protestante
e a reforma de Trento que, ao menos nesse campo, não chegará a realizar uma renovação radical e
definitiva. A crise irá se prolongando até o começo do século XX, em que movimento litúrgico lançará as
bases de uma verdadeira renovação.

IV – Reforma do Concílio de Trento


4.1- Reforma Protestante28
As reformas litúrgicas de Martinho Lutero e dos seus companheiros continham importantes
reinvindicações positivas:
- a liturgia em língua vernácula – do povo; Lutero rezava a missa em alemão. O culto
cristão é um culto da Palavra, como pode surtir frutos se a comunidade não entende a
língua. Ordena que o batismo seja administrado em língua vernácula. O povo relutou
abandonar a língua tradicional. Mas em meados do século XVI, os protestantes, enfim
libertaram-se do latim.
- a participação do povo na liturgia;
- a comunhão sob as duas espécies;
- a ênfase no comunitário em vista da superação do excessivo cunho privado;
- a recepção da sagrada comunhão durante a celebração eucarística;
- substitui os salmos por cantos populares;
- acentua o caráter pedagógico dos textos, convertendo o prefácio e as demais partes da
oração eucarística em exortações aos que iriam receber a comunhão;
Lutero além de não aceitar a missa devocional e privada, ataca a compreensão da eucaristia
como sacrifício. Não faz uso das vestes sagradas, mas apenas seculares. Com Zwilling destrói as imagens
e todos os laterais da igreja. Pregou a liberdade no que dizia respeito às formas obrigatórias, e isto
provocou uma anarquia geral nas comunidades e nas expressões litúrgicas.

4.2- Obra do Concílio de Trento.


O concílio de Trento lançou as bases teológicas fundamentais para uma renovação
litúrgica. Na sessão XXII (17 de setembro de 1562) o Concílio expôs a doutrina católica sobre a
eucaristia. Estas são as afirmações mais importantes:
1. A celebração da eucaristia é um verdadeiro sacrifício em que se recorda e renova de
forma incruenta a paixão do Senhor Jesus;

28
Cf NEUNHEUSER B., O movimento litúrgico: panorama histórico e linhas teológicas, em Anmnesis l, pp 81-84; Cf.
BOROBIO D. A Celebração Cristã, Vol I, Loyola. 1990 .pp 114-115.
2. Louva a dignidade e a excelência do Cânon romano da missa “livre de todo erro, de tal
modo que nele não contém nada que não inspire piedade e santidade, que não eleve até
Deus a alma daqueles que oferecem o sacrifício.
3. Reconhece como autêntico o rito com o qual a Igreja celebra a eucaristia;
4. Exorta os fiéis “a participar da missa não espiritualmente, senão participando
sacramentalmente do banquete eucarístico...”. Essa exortação nós consideramos de
grande importância, especialmente tendo em conta o contexto histórico que a cerca.
Recorde-se o abandono da comunhão sacramental que chegou a ser um fenômeno
alarmante.
5. Ainda que o Concílio não tenha considerado oportuno introduzir a língua vernácula na
celebração eucarística, entretanto recomendou que os sacerdotes pregassem e
anunciassem a palavra de Deus. na sessão XXV confiou ao Papa Pio V a
responsabilidade de preparar as novas publicações. Em 1568 aparecia o Breviário; no
ano de 1570 era publicado o Missal Pio V. E os outros livros aos poucos, sob o
pontificado de Clemente VIII, em 1596 foi publicado o Pontifical Romano e o
Cerimonial dos Bispos (1600) Paulo V publicou o Ritual Romano (1614).
4.3- Critérios que nortearam as publicações dos novos livros litúrgicos:
4.3.1- Fidelidade à tradição: é o que hoje se denomina volta às fontes. Pio V afirma que
o trabalho foi levado a cabo “depois de haver confrontado diligentemente as fontes mais antigas e
veneráveis da Biblioteca Vaticana e das outras bibliotecas, e depois de haver consultado os escritos de
autores antigos e autorizados”.
4.3.2- Simplicidade: Essa tendência à simplicidade se manifesta especialmente na
supressão de um grande número de missas votivas, na simplicidade do calendário, especialmente na
redução das festas dos santos a um número razoável; na depuração de textos e ritos; as seqüências,
sobretudo as introduções no último período da Idade Média, foram supressas.
4.3.3- Uniformidade: Durante a Idade Média quase todas as igrejas mantiveram seus
próprios usos e costumes litúrgicos, leve vestígio da autonomia litúrgica de que gozavam as igrejas locais
durante os primeiros séculos. Trento iniciará um trabalho de unificação a toda prova e de centralização. A
unificação e uniformização geral foi favorecida com a invenção da imprensa. Em vista da unidade e
uniformidade os livros litúrgicos foram precedidos das Rubricas. Desse modo ficou asfixiado qualquer
tipo e perigo de anarquia.
4.3.4- Obrigatoriedade: A obrigatoriedade é uma conseqüência da uniformidade.
Efetivamente, não haveria sido possível conseguir a unidade desejada se as rubricas não tivessem
aparecido avalizadas com a força moral da obrigatoriedade, precisamente este é o momento em que o
monopólio litúrgico de Roma e a centralização chegam a seu momento culminante.
4.3.5- Centralidade máxima na Santa Sé: só o que é definido por Roma é legitimamente
litúrgico.
É difícil avaliar os méritos da reforma de Trento. Ela libertou a Igreja da crise do século
XVI e lhe deu novamente bases sólidas, já experimentadas ao longo dos séculos, mediante um culto
autêntico. Ao lado dos méritos, existem limitações por causa das exigências impostas pela luta contra os
reformadores protestantes, os padres conciliares não foram capazes de assumir as reinvindicações
positivas da reforma dos reformadores. Em vista da unidade e do controle criou-se uma liturgia uniforme e
que permaneceu à margem da vida religiosa do povo. Esta vida criou para si novas formas e se refugiou
ainda mais na piedade popular e na cultura, especialmente do barroco cristão.
A reforma tridentina, apesar de importante e benéfica sob certos aspectos, não gerou uma
nova concepção de culto através de suas definições teológicas. O que consegui foi um maior apego às
formas da Idade Média, uma confirmação da mentalidade jurídica e rubricista e um novo tipo de esplendor
externo.
4.4- A Obra Litúrgica pós-Trento
Depois do Concílio de Trento, a Igreja vive um sentimento de segurança, uma sensação de
pisar em solo firme. Vive uma atmosfera de vitória e de festa, realidades que influenciaram a liturgia.
A mentalidade eclesial e teológica dessa época considerava a liturgia como um fato
puramente exterior, sem nexo com a vida e a experiência interior. Assim se costumava definir a liturgia:
“A forma oficial do culto externo da Igreja”. Progressivamente a liturgia vai se confirmando no âmbito
das leis rituais que regulamentam o culto litúrgico. É a época áurea do rubricismo e das cerimônias.
Assim, as coisas, à luz desses critérios podia pensar-se que a liturgia conseguia sua finalidade primordial
quando as cerimônias desenvolvidas de modo ordenado, Ito é, segundo as rubricas, embora faltasse em
absoluto com a participação interior do espírito.

4.4.1- A Influência da cultura barroca


A celebração litúrgica era, exteriormente, algo grandioso que impressionava pela beleza e
pelo decoro, mas era ao mesmo tempo apenas um espetáculo a que se assistia. Seu sentido de
acontecimento de salvação escapava, da mesma maneira que antes;
O povo continuava com suas devoções, agora, mais meditativas;
A liturgia oficial era vista como uma moldura, ou como medida do tempo, dentro co qual
cada um separadamente ou todos juntos poderão fazer a própria ou a comum devoção: a recitação do
terço, ou alguma meditação.
Freqüenta-se um pouco mais a eucaristia. A comunhão, normalmente acontece fora da
missa. A exposição do santíssimo, a procissão de Corpus Christi e outras em honra a Maria e aos santos,
os tríduos, as novenas, serão sempre as formas devocionais preferidas pelo povo. A liturgia permanece
ainda clerical, da qual o povo deverá se manter distante. Não deverá conhecer diretamente os textos. A
regra da época era: “nada se deve trocar, nada deve ser inovado. Louis Bouyer acusa essa mentalidade de
monifisismo. Toma conta a idéia de que a liturgia e seus ritos eram de origem divina, instituída pelo
próprio Senhor.
As grandes expressões da liturgia barroca:
▪ Os corais polifônicos- época de ouro da polifonia. As grandes composições de missas
barrocas, verdadeiras obras de arte.
▪ A festa de Corpus Christi. A polêmica com os reformistas referente à presença real
de Cristo leva a uma ênfase especial, tanto na teologia como na expressão litúrgica e
popular. É a festa eucarística que se concentra em torno da procissão, passeio triunfal
do Senhor no meio do povo cristão;
▪ As exposições do Santíssimo Sacramento e a devoção à eucaristia: as quarenta horas,
a adoração perpétua, a adoração reparadora. Cria-se todo um cerimonial ao redor da
exposição.
▪ Atribui-se a Jesus Cristo, à presença sacramental títulos honoríficos: rei dos reis;
▪ A devoção a Virgem Maria, mãe de Deus. Proliferam as grandes procissões e
peregrinações à Mãe de Deus e novas festas: do Rosário, do Nome de Maria, das
Mercês, do Carmo, da Imaculada Conceição etc.;
▪ Há toda uma tendência aos contornos:
= multiplicam-se os altares laterais, sustentando as imagens dos santos das
devoções populares;
= os ornamentos se tornam expressão decorativa e alegórica;
= a pregação se desliga da missa e se torna autônoma;
= a comunhão eucarística se independiza da celebração e se reduz a uma
nova devoção de teor moral e ascético.

4.4.2- Reforma no tempo do Iluminismo


No século XVIII, o século da Ilustração, começa a manifestar-se em diversos lugares um
descontentamento generalizado com a situação real da liturgia. Pipocam iniciativas, no sentido da
renovação litúrgica, cujo desejo de fundo, é a participação comunitária, a simplicidade, evitando-se todos
os elementos supérfluos, o uso da inteligência para compreender o que acontece na liturgia, em favor de
uma maior edificação do povo.
Eis algumas tentativas, nem sempre bem-sucedidas:
▪ A reforma litúrgica projetada por Bento XIV (1740-1758), visava uma revisão do calendário
e que eliminava todas as festas modernas;
▪ As liturgias locais das dioceses da França e a elaboração de novos livros litúrgicos;
▪ O Sínodo de Pistóia (1786). Este reiterava:
o Um só altar na igreja;
o Participação ativa dos fiéis na missa;
o Comunhão com as hóstias consagradas na própria missa;
o Abolição das espórtulas da missa;
o Redução das procissões;
o Restrição na exposição das relíquias dos santos sobre o altar;
o Música mais simples, grave e adaptada ao sentido das palavras;
o Ornamentação que não distraia e ofenda o espírito;
o Reforma do breviário e do missal;
o Redução do excessivo número de festas, de novenas devocionais e
um maior destaque ao comunitário;
o Leitura em um ano da Sagrada Escritura no Ofício;

No tempo do iluminismo, a liturgia não era considerada uma ação salvífica de Cristo, da
qual a comunidade participava, mas uma função educativa do povo, um meio para o progresso moral do
indivíduo. Disso decorre a valorização da pregação, a exigência de compreensão dos textos litúrgicos. E
pela primeira vez, no século XVIII acentuou-se a importância da pastoral litúrgica e se viu a liturgia como
fonte primordial da vida cristã. Mas isto tudo se manteve restrito aos círculos de intelectuais. Para a época
do iluminismo, a liturgia se reduz a um meio de educação destinado à humanização do individuo, mas já
não é entendida como “adoração de Deus em espírito e verdade”.

V-MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO LITÚRGICA

Na segunda metade do século XIX brilham no horizonte os primeiros raios do que se


transformaria no Movimento de Renovação Litúrgica29. As bases deste movimento eram: retorno às fontes
litúrgicas, pastoral litúrgica, ciência litúrgica, magistério da Igreja sobre a liturgia.
5.1- O retorno às fontes
O pioneiro do Movimento de Renovação de Litúrgica é Dom Próspero Guéranger (1805-
1897), abade do mosteiro de Solesmes (França). Começando pela restauração da vida beneditina de seu

29
Cf NEUNHEUSER B., op.cit., pp 88-102; Cf. BOROBIO D..pp 126-135; Cf NEUNHEUSER B., Movimento Litúrgico,
em: Dicionário de Liturgia. Ed. Paulinas. 1992.pp 787-798.
mosteiro e outros depois, influenciou a vida litúrgica. Os mosteiros transformaram-se em autênticos focos
de irradiação litúrgica.
O pensamento de Guéranger pode ser resumido nos seguintes itens:
▪ A liturgia é por excelência a oração do Espírito na Igreja, é a voz do corpo de Cristo, da
esposa orante do Espírito;
▪ Há na liturgia uma presença privilegiada da graça;
▪ Na liturgia se encontra a mais genuína expressão da Igreja e de sua tradição;
▪ A chave de inteligência da liturgia é a leitura cristã do Antigo Testamento, bem como a
do Novo Apoiada no Antigo;
Estas proposições esclarecem os conceitos fundamentais do pensamento de Guéranger:
liturgia, Igreja e leitura da Bíblia.
A descoberta da liturgia foi para Guéranger descoberta do mistério da Igreja, por meio da
experiência espiritual dessa mesma liturgia e da leitura assídua dos padres, artífices das primeiras formas
da liturgia romana. O sentido eclesial do pensamento de Guéranger, garantiu a renovação litúrgica de
Solesme. O pioneiro do Movimento Litúrgico aprendeu também, com a própria liturgia e com os próprios
padres, o que considerou a chave de compreensão dos textos e ações simbólicas do culto da Igreja: a
leitura cristã do AT e do NT.
Guéranger formulou e divulgou seu pensamento através de suas obras: “O Ano Litúrgico e
as “Instituições Litúrgicas”. Os críticos de sua obra de renovação litúrgica o acusam de:
▪ De uma certa tendência ao arqueologismo. Ele quis restaurar formas e costumes
litúrgicos antigos que dificilmente podiam adaptar-se às condições históricas de seu
tempo. Isto levou uma certa artificialidade e uma interpretação subjetiva de certos usos
litúrgicos da antiguidade;
▪ A insistência no culto da presença real do Senhor na eucaristia, mais importante que o
banquete eucarístico. Louis Bouyer chega afirma que na comunidade monástica de
Guéranger era maior a participação na bênção do santíssimo do que na sua celebração;
▪ Faltou a Granger uma maior formação científica e uma visão histórica. Por esta carência
exaltou a liturgia de Roma e menosprezou as outras tradições litúrgicas cristãs.
5.2- A Pastoral Litúrgica
O monge beneditino da abadia de Mont-César, dom Lamberto Beauduin (1873 – 1960),
inspirou o Movimento de Renovação Litúrgica em bases pastorais. Com ele começa uma nova fase que
dará à renovação litúrgica todo um enfoque abertamente pastoral. Em setembro de 1909 por ocasião do
Congresso Nacional de Molines, Dom Beauduin pronunciou um histórico discurso, no qual afirmava: “É
preciso democratizar a liturgia”. Como capelão de operários, sua obra de renovação estava não tanto
voltada para o passado, quanto para o presente e o futuro. Ele entedia que a liturgia, como oração da
Igreja:
▪ Impregnava a paróquia com um novo rito de ação;
▪ Inspirava a piedade e a vida cristã no culto da Igreja;
▪ Era necessário promover a participação dos batizados na liturgia;

À luz deste pensamento, o Congresso de Molines formulou as seguintes tarefas:


▪ Difusão do missal traduzido como livro dos cristãos;
▪ Aumento do caráter litúrgico da piedade por meio da participação na missa
dominical;
▪ Promoção do canto gregoriano segundo as orientações de Pio X;
▪ Organização de retiros anuais para os responsáveis pela pastoral litúrgica;
Da obra litúrgica de Beauduin emergiu com força o sentido eclesial-comunitário e a
exaltação dos valores objetivos do culto cristão, em contraposição ao sentido individual e/ou
individualista, subjetivo e/ou subjetivista das atividades espirituais dos fiéis. O próprio vigor do
movimento litúrgico levou repetidas vezes ao exagero dos valores adquiridos: do sentido eclesial-
comunitário, passava-se ao comunitarismo e, da exaltação, nunca suficiente, dos valores objetivos da
salvação cristã, passava-se ao objetivismo e ao panliturgismo. Do fermento à participação e das chamadas
missas comunitárias, passou-se a questionar a missa celebrada sem a presença das pessoas. Da valorização
do culto eclesial, passou-se à marginalização e à censura das devoções, das práticas ascéticas, dos
exercícios espirituais metódicos, bem como do culto ao reservado e do acesso devocional ao sacramento
do perdão.
No pós-Guerra surgiu um debate das relações entre liturgia e compromisso cristão.
Especialista em liturgia e Sacerdotes comprometidos com a pastoral nos meios rurais e urbanos, bairros e
centros das cidades, engajados na Ação Católica e nos movimentos especializados, reivindicavam uma
maior inserção da liturgia nas realidades e nos valores humanos e sociais e uma maior acomodação do
culto cristão às novas situações da sociedade. Neste meio, emergia, de ordinário, a problemática da
linguagem litúrgica.
5.3 - A dimensão teológica da Liturgia
A obra de Guéranger estava destinada a dar os seus frutos. O pensamento de
Lamberto Beauduin fez com a liturgia desse um verdadeiro salto qualitativo no plano teológico. Esse autor
define a liturgia como:
“o culto da Igreja”. E são tidos como liturgia “todos os atos de culto que a Igreja
reconhece como próprios ”. “O sujeito único e universal do culto da Igreja é o Cristo Ressuscitado e
glorioso, que está sentado à direita do Pai. É ele quem exerce o nosso culto. É ele o único mediador entre
Deus e a humanidade, pontífice eterno da Nova Aliança, Pontífice único que realiza, aqui na terra”, toda
a nossa liturgia.
Em virtude da presença ativa de Cristo faz com que o culto se revele como
“exercício do sacerdócio de Cristo” e se torne “história da salvação em ação”. Portanto, Beauduin lanças
as bases teológicas da Sacrosanctum Concilium.
“Liturgia como mistério da salvação” ou a liturgia como “obra da salvação”, vista
como realidade sobrenatural sempre presente e ativa na liturgia. O Beneditino Odo Casel (1886-1948),
aceita a definição de “liturgia como culto da Igreja”, mas se pergunta: qual é mesmo a natureza da liturgia
como culto da Igreja e o modo como ele se realiza na Igreja. Em outras palavras, Casel se pergunta pelo O
“que” e o “como” da ação litúrgica. A partir da experiência mítica de “mistério” chega a duas conclusões
sobre a liturgia:
▪ Na base da celebração há um mito, isto é, um fato com valor de significado universal –
um fato valorizado.
▪ Existe um rito, chamado mistério, que atualiza e renova o mito, ou torna presente o fato
valorizado (o mito);
Portanto, em base à religião dos mistérios – mágico-agrários, Odo Casel conclui que a
liturgia cristã, chamada de mistério, tem como componentes essenciais:
▪ A existência de um acontecimento primordial de salvação;
▪ Este acontecimento torna-se presente através do rito;
▪ A pessoa de todos os tempos, através do rito, realiza a sua universal história da
salvação.

Para Odo Casel, a liturgia (o culto cristão) não é tanto uma ação humana que busca contato
ou estabelecer relação com Deus, quanto um momento da ação salvífica de Deus em favor do homem. Por
esta razão ele conceitua a liturgia como: “ação ritual da obra salvífica de Cristo, ou seja, presença, sob o
véu dos símbolos, da obra divina da redenção”. Em palavras mais simples, Odo Casel define a liturgia:
“é o mistério cultual de Cristo e de sua Igreja”; ou “A liturgia é o mistério de Cristo e da Igreja”.
O pensamento de Odo Casel é de suma importância, pois coloca no cume e ponto de partida
da Liturgia:
▪ O acontecimento salvífico de Jesus Cristo.
▪ A liturgia não é apenas uma “instituição” que veio de Jesus Cristo;
▪ A liturgia é a continuação ritual do mistério de Jesus Cristo. Este mistério se torna
presente pela ação simbólico-ritual.
▪ A liturgia se constitui num “momento de salvação”;
Odo Casel faz da liturgia um momento sempre atualizador da história e do mistério da
salvação.
5.4 - O Magistério da Igreja.
5.4.1- Significado e atividade do Papa Pio X
Foi o Papa Pio X quem deu caráter oficial às manifestações que deram o primeiro impulso
ao movimento litúrgico. Durante o seu pontificado os esforços de renovação litúrgica entram por um
caminho seguro. É então que começa de fato a reforma litúrgica eclesial, que chegará ao seu ponto
culminante no Vaticano II. Detenhamo-nos brevemente para examinar as distintas decisões emanadas da
Santa Sé, durante o pontificado de Pio X.
 Tra le sollecitudini (22.11.1903) (entre as solicitudes) Motu próprio de música
sacra. Este documento assinala as diretrizes que haverão de dar vida à renovação litúrgica. Num dos
artigos afirma o Papa: “Sendo nosso vivíssimo desejo que o verdadeiro espírito cristão cubra toda sua
vitalidade e se mantenha vivo em todos os fiéis, é necessário conferir, antes de tudo, a santidade e
dignidade do templo onde, com efeito, os fiéis se reúnem para beber tal espírito em sua fonte primeira e
indispensável, que é a participação ativa nos sagrados mistérios e na oração pública da Igreja”. (mais
tarde este texto é assumido pela SC 14).
Num outro texto, diz o Papa: “Ao reformar e fomentar a Sagrada liturgia, deve se ter em
conta essa plena e ativa participação de todo o povo, porque é a fonte primária e necessária onde os fiéis
hão de beber o espírito verdadeiramente cristão”. Todavia, o papa ainda não aprova a língua vernácula
para as solenes ações litúrgicas.
 Sacra Tridentina Synodus (22 de novembro de 1905). Baseado na doutrina do
Concílio de Trento, o papa fomenta a comunhão freqüente na celebração eucarística.
 Quam singulari (08 de agosto de 1910) – documento para promover acesso das
crianças, de até 5 anos, à comunhão eucarística. “As crianças, ao chegarem ao uso da razão, sejam
admitidas à primeira comunhão eucarística, desde que conheçam os elementos fundamentais da doutrina
cristã”.
 Divino Affanti (1o de novembro de 1911), O Papa Pio X estabelece uma nova
ordem para a recitação dos salmos no Ofício Divino. O número de salmos nas matinas é reduzido para 18
aos domingos, 12 nos outros dias da semana e o número fixo é de 9. Determina que nas festas dos santos
não se recita mais os salmos solenes, mas os feriais. Os salmos foram de tal forma dispostos, que passam a
ser recitados no curso de cada semana.
 Abhinc duos annos (23 de outubro 1913). Nesse documento o papa manifesta sua
intenção de reformar o Calendário Litúrgico da Igreja, tendo como base os seguintes critérios:
▪ estabelecer os princípios segundo os quais serão admitidas novas festas na Igreja;
▪ revisar as lições hagigráficas segundo um critério válido de sua piedade histórica;
▪ eliminar os sermos apócrifos dos padres;
▪ redigir um novo códice de rubricas.
5.4.2- Três prioridades aparecem no magistério litúrgico do Papa Pio X:
-> A renovação da música sacra, uma vez que não se pode cantar e orar na missa, mas cantar e
orar a missa. Neste sentido diz o papa: “deve-se condenar como grave abuso o fato de, nas celebrações
sagradas, a liturgia aparecer no segundo plano e como que a serviço da música, quando a música não
passa de parte da liturgia e humilde serva desta”.
-> A aproximação entre batizados e a comunhão eucarística, que rompeu um distanciamento
de séculos entre os fiéis, aplainou o caminho para a participação sacramental da eucaristia, mesmo que a
catequese oferecida a respeito da comunhão devesse ser aperfeiçoada.
-> A reforma do Calendário ou do Ano Litúrgico e do breviário.

5.5- Obra e Significado do Papa Pio XII


Durante o pontificado de Pio XII a renovação litúrgica foi tomando uma prioridade maior.
A preocupação pelo problema litúrgico, especialmente no âmbito da pastoral, ganhou nova consciência
eclesial. As reformas empreendidas pelo Papa, especialmente as referentes à Semana Santa, marcaram as
bases para a reforma ulterior promovida pelo Vaticano II. Fecundo o pontificado de Pio XII no que diz
respeito à liturgia.
 Mystici Corporis ( 29 de junho de 1943). Nesta encíclica o Papa aborda temas
relacionados com a liturgia;
 Divino Affante Spíritu (30 de setembro de 1943). Nesta encíclica fala-se da liturgia
enquanto esta manifesta o sentido espiritual da Sagrada Escritura;
 In cotidianis precibus (25 de março de 1945). Refere-se à nova tradução latina dos
salmos na recitação do ofício divino.
 Mediator Dei (20 de novembro de 1947)30 . É tida, esta Encíclica, como a Carta Magna
da renovação litúrgica. Pois, é o primeiro documento pontifício que trata diretamente
do tema da liturgia. Representa a intervenção papal mais importante antes do Concílio,
no que se refere à renovação litúrgica. Nessa Encíclica percebe-se o estado de
efervescência que o movimento litúrgico suscitara, especialmente nos países da Europa:
França e Alemanha. O Papa corrige e condena muitos abusos e sobretudo, estabelece as
bases doutrinais e teológicas que abrirão um caminho seguro para a reforma e a
renovação litúrgica.

5.6- A Encíclica Mediator Dei compõe-se de quatro partes:


1a parte: trata da “natureza, origem e progresso da Liturgia, com os seguintes
capítulos: a liturgia, culto público; a liturgia, culto interno e externo; a liturgia é regulada pela Hierarquia
da Igreja; progresso e desenvolvimento da liturgia; tal progresso não pode ser deixado à iniciativa
particular;
2a Parte: trata especificamente do Culto Eucarístico: natureza do culto eucarístico;
participação dos fiéis no sacrifício eucarístico; a comunhão eucarística; a adoração da eucaristia;
3a Parte: trata do Ofício Divino e o Ano Litúrgico: A natureza do ofício divino; ciclo
dos ministérios, no Ano Litúrgico; as festas dos santos;
4a Parte: apresenta algumas diretrizes pastorais: recomendam-se vivamente as outras
formas de piedade não estritamente litúrgicas; o espírito litúrgico e o apostolado litúrgico;
 Em 28 de novembro de 1947, as Dioceses da França introduzem o ritual em língua vernácula;
 Em 21 de março de 1950, é aprovado o ritual em língua vernácula para as dioceses da Alemanha;

30
IBIDEM, pp. 95-102.
 Em 9 de fevereiro de 1951, restauração da Vigília Pascal “ad experimentum”. Antes deste dia, a
liturgia da Vigília Pascal era celebrada no sábado pela manhã.
 Em 6 de janeiro de 1953: através da Constituição Apostólica “Christus Dominus” e a Instrução do
Santo Ofício sobre a nova disposição referente ao jejum eucarístico. É introduzida a possibilidade de
celebrar missa pela tarde.
 Em 16 de novembro de 1955, através da Instrução Máxima Redemptionis nostrae mysteria, instaura-se
o novo ordo da Semana Santa.
 Em 23 de dezembro de 1955: é publicada a Encíclica “Musicae Sacrae Disciplina”, sobre a música
sacra na liturgia;
 Em 19 de março de 1957: “Sacram Communionem”, simplifica a normas sobre o jejum eucarístico e
amplia as faculdades para se rezar missas vespertinas;

5.7– Papa João XXIII


O grande mérito do Papa João XXIII foi a convocação e a preparação do Concílio
Vaticano II . Em 26 de Julho de 1960, aprova e publica o Novum Codex Rubricorum. Mais que o
pensamento e programa de reforma litúrgica do Papa, este documento revelava os objetivos da
Congregação dos Ritos em matéria de liturgia:
▪ Manter-se, em questão de reforma litúrgica, estritamente fiel ao plano de rubricas;
▪ Encerrar a reforma litúrgica iniciada com Pio XII e que devia ser levada a termo fora do
Concílio;
▪ Bloquear o programa do Papa João XXIII, que reservava para o Concílio o estudo de princípios
fundamentais e gerais da reforma liturgia em projeto. O que se desejava era uma clara
afirmação do centralismo em matéria de liturgia, centralismo que havia sido motivado pelas
numerosas novidades publicadas.

VI – O Vaticano II e a Liturgia Renovada


6.1- Origem da questão litúrgica
Quando o Concílio foi inaugurado, os temas de discussão foram programados conforme na
seguinte ordem:
a. as fontes de revelação;
b. a guarda e a pureza da fé;
c. a ordem moral cristã;
d. a castidade, matrimônio, família e virgindade;
e. a sagrada liturgia;
Os quatro primeiros esquemas foram preparados pela comissão teológica e o quinto tema foi
preparado pela comissão litúrgica. Na segunda sessão conciliar (16 de 10 de 1962) foi comunicado aos
Padres Conciliares a alteração da ordem dos temas. Em vez de se começar a discussão do esquema
dedicado às fontes de revelação, deveria-se abordar diretamente o esquema que começa com a liturgia.
Quais teriam sido as causas desta prioridade dada à liturgia?

6.2- Razões da prioridade dada à Liturgia


Examinando os fatos de passagem, sem aprofundar muito, encontramos uma série de motivos de
ordem eminentemente práticos. Diz-se que os esquemas previstos para a discussão na aula conciliar ainda
não tinham sido redigidos definitivamente, o que é mais grave, apresentavam sérias dificuldades, pelo que
eram previstas intermináveis discussões durante as assembléias. Alguns observavam mais tarde que o
Concílio preferiu enfrentar primeiro os temas de menor importância para poder dedicar-se depois, com
mais tranqüilidade e tempo à discussão dos grandes temas doutrinais.
Em troca, se os fatos são examinados com maior atenção, descobre-se motivos de maior
envergadura:
a)- O Concílio Vaticano II foi iniciado sob o signo da “pastoral”. A esse respeito são muito
eloqüentes as palavras de João XXIII no discurso de inauguração: “Nosso dever não é guardar esse
precioso tesouro (da doutrina cristã), como se unicamente nós ocupássemos da antiguidade, senão
também dedicar-nos com vontade diligente, sem temores, ao trabalho que exige nosso tempo,
prosseguindo o caminho que a Igreja recorre há vinte séculos. Se a tarefa principal do Concilio fosse
discutir um ou outro artigo da doutrina fundamental da Igreja, repetindo com maior difusão o ensino dos
Padres e teólogos antigos e modernos ... para isso não era necessário um Concílio”.
b)- Dessas palavras de João XXIII, se deduz a firme decisão de evitar por todos os meios a
tendência ao “doutrinalismo”. Os Concílios anteriores centraram sua atividade na definição de dogmas e
na condenação de erros. Não foi esse o objetivo e nem o estilo do VaticanoII, cuja preocupação constante
centrou-se em torno dos grandes problemas pastorais e missionários. Naturalmente, a preocupação
pastoral não exclui, mas antes supõe, maior profundidade nos princípios teológicos fundamentais que
urgem e determinam a ação pastoral da Igreja.
c)- Finalmente, os bispos que geralmente são pastores, aceitaram favoravelmente essa disposição
referente à troca de programa. Evidentemente esses manifestaram-se muito mais sensíveis ante aos
problemas pastorais que ante aos problemas de tipo teológico. Esse é o verdadeiro motivo pelo qual os
Padres do Concílio acolheram satisfeitos a determinação de iniciar as discussões com o esquema da
liturgia. Porém é antes mais decisivo o juízo que o próprio Concílio expressa nos números 1 e 2 da
Constituição Sacrossanctum Concilium, o primeiro documento conciliar que apareceu à luz pública.

6.3- Palavras do Concílio


Eis o texto conciliar: “Este sacrosanto Concílio propõe-se fomentar, dia-a-dia entre os fiéis a vida
cristã, adaptar melhor às necessidades de nosso tempo as instituições que estão sujeitas a mudanças,
promover tudo aquilo que possa contribuir a união de quantos crêem em Jesus Cristo e fortalecer o que
serve para convidar a todos os homens ao seio da Igreja. Por isso, crê que lhe corresponde de um modo
particular prover a reforma e ao fomento da liturgia” (Proemio art 1).

Estes sãos 4 objetivos propostos pelo Concílio:


▪ incrementar a vida cristã;
▪ adaptar as instituições ao tempo – às necessidades do tempo;
▪ favorecer a união de todos os que crêem em Jesus Cristo – espírito ecumênico;
▪ dar novo vigor ao espírito missionário.

6.4- A Constituição da Sacrosanctum Concilium compõe-se e subdivide-se:


▪ Proemio (art. 1-4);
▪ Princípios gerais para a reforma em incremento da Sagrada liturgia (Io Capítulo, art. 5
a 46);
▪ O Mistério Eucarístico (IIo Capítulo, art. 47 a 58);
▪ Os outros sacramentos e os sacramentais (IIIo Capítulo, art 59-82);
▪ Ofício divino (IVo Capítulo, art 83 a 101);
▪ Ano Litúrgico (Vo Capítulo, art 102 a 111);
▪ A Música Sacra (VIo Capítulo, art 112 a 121);
▪ Arte Sacra e Alfaias Litúrgicas (VIIo Capítulo, art 122 a 130).
A estrutura interna da Constituição Conciliar é formada por princípios doutrinais e normas
práticas. O entrelaçamento de princípios e prática corresponde ao binômio: teologia-celebração, o que
corresponde à essência da liturgia. Se, na celebração, a teologia é marginalizada, cai-se no rubricismo ou
na invenção arbritária. O entrelaçamento de princípios e prática tem como objetivo a reorientação da
teologia e da celebração litúrgica da Igreja, visando obter uma melhor participação dos fiéis.
O Vaticano II desemboca numa teologia da liturgia, não partindo de uma pesquisa “a
priori”, mas orientado por uma nova leitura e por uma reflexão da litúrgica em chave pastoral, a tal ponto
que seria mais acertado falar, de uma teologia da celebração litúrgica. Esta postura de uma teologia da
celebração litúrgica torna possível a superação de duas posições prejudiciais:

a) a posição de uma liturgia como fato tradicional. Na liturgia era preciso distinguir o fator
“tradição”, que faz da liturgia um elemento de contato vivo com Cristo, das numerosas
tradições que se lhe haviam acrescentado no decorrer do tempo e que não só a
deformavam, mas também revelavam-se ser um véu e um diafragma que impediam a
liturgia de ser atual.
Esta posição é superada pelo Vaticano II integrando a liturgia na “história da salvação. A
celebração é momento histórico de salvação. Assim, a liturgia retomava o lugar de
verdadeira “tradição”, isto é, transmissão do mistério de Cristo através de um rito, que é ao
mesmo tempo realização e revelação do mesmo mistério, de modo sempre novo e sempre
adaptado à sucessão dos tempos e à variedade de lugares. Daqui derivava a legitimidade e a
necessidade de uma “atualização”litúrgica, que fizesse da liturgia não mais uma “forma”
isolada da realidade, mesmo contingente, do momento, mas abrindo pelo contrário o
caminho para uma mobilidade e um pluralismo, que estivessem em correspondência com o
contínuo devir da vida.
b) a posição da Liturgia-valor jurídico: era preciso sair da visão “estático-jurídica”que
parecia ser o caráter próprio e típico da liturgia, no sentido de que o valor desta consistia
todo em “ser feita, isto é, em ser um rito externamente realizado segundo a norma das leis
rubricais e como manda o cerimonial. Com efeito, a rubrica abonava, em grande parte, a
validade do rito, e a cerimônia garantia o “espetáculo sagrado”, necessário para a
edificação espiritual dos que a ela assistiam”.
Esta posição estático-jurídica, foi superada pela apresentação e compreensão da liturgia
numa perspectiva “dinâmico-teológica”: No rito e com o rito é Cristo quem age e atua.
Assim, a liturgia é ação de Cristo e da Igreja. Deste modo realizava-se, a reavaliação da
liturgia como “ação de Cristo”, isto é, mistério de salvação atuante na Igreja, e como ação
sacramental, a liturgia continua a obra e o mistério de Jesus Cristo.

VII. O PÓS-CONCÍLIO:
7.1- Reforma litúrgica pós-conciliar na America Latina e Caribe
Destacamos aqui algumas linhas básicas da busca de reforma litúrgica pós-conciliar na AL e no
Caribe, refletidas e propostas nos principais documentos do CELAM: Medellín (1968); Puebla (1979);
Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007).
7.1.1- Medellín (1968)
Linhas gerais da situação litúrgica na AL, segundo esse documento do episcopado:
• Os esforços em busca de renovação são crescentes, mas ainda insuficientes;
• Houve mudanças nos ritos, mas não na mentalidade, com o perigo de cair em novo ritualismo;
• Sente-se a enorme dificuldade em adaptar a liturgia às diversas culturas;
• O bispo nem sempre exerce seu papel de liturgo, promotor, regulador e orientador do culto;
• A liturgia não está suficientemente integrada na educação religiosa;
• O número de peritos (professores) para apoiar o trabalho de renovação litúrgica é escasso.
A segunda conferência do episcopado latino-americano, reunida em Medellín (Colômbia) em
1968), apoiada na constituição conciliar Lumem Gentium e na Encíclica Populorum Progressio de Paulo
VI, fez uma releitura da constituição conciliar sobre a Liturgia (SC) para o contexto social e eclesial
concreto deste continente.
Em todo o documento a grande pergunta é: à luz do Vaticano II, qual é a missão da Igreja no
Continente Latino-americano, caracterizado, de um lado, pela miséria, opressão, dependência econômica,
dependência política e dependência cultural, e, de outro, por um desejo impaciente de mudança e
transformação em todos os níveis?
Ler o documento de Medellín, integrando seu capítulo 9, que trata da liturgia, com a introdução
geral, que aborda a Páscoa como realidade concreta que acontece hoje, “quando se passa de condições
menos humanas para condições mais humanas”, poderíamos destacar três eixos fortes que orientam a
reforma litúrgica no Continente.
a)- Medellín intuiu e expressou uma estreita união entre liturgia e libertação, liturgia e história,
liturgia e transformação. Percebe-se no documento uma “liturgia da libertação”. A Páscoa que a liturgia
celebra deve incluir também as intervenções de Deus na histórica concreta do povo pobre e oprimido do
Continente31.
b)- A insistência no homem latino-americano como “sujeito” da transformação do Continente.
Isso significa que, também em termos litúrgicos, o povo pobre e oprimido emerge como sujeito das ações
litúrgicas das comunidades32.
c) - A liturgia há de se libertar de seu formalismo, de sua rigidez ritualista, e resgatar uma
liturgia na cultura do povo, num ambiente doméstico de comunicação informal, em que o povo se sinta à
vontade para expressar-se. Ao ser preparada pelo povo, a liturgia na Igreja dos pobres vai ganhando um
“rosto” mais popular, com traços característicos da cultura dos pobres do lugar (seus símbolos, seu modo
de falar, pensar, decorar, rezar, cantar, tocar, adorar, etc.)33.
7.1.2- Puebla (1979).
Passaram-se dez anos e o grande sonho de mudança e transformação do documento de Medellín
parecia não se realizar. O povo latino-americano estava ainda mais na miséria, na opressão e na
dependência econômica, política e cultural.
A terceira conferência geral do CELAM, realizada em Puebla (México) em 1979), constatando
essa realidade, desenvolve seu projeto de evangelização levando em conta três grandes temas: opção
preferencial pelos pobres, religiosidade popular, e comunicação e participação.
Ao tratar da liturgia, o documento o faz em conjunto com os temas “oração particular” e
“piedade popular” (Puebla 896-963). Em outras palavras, no trabalho de evangelização da América
Latina, deve-se integrar necessariamente liturgia e religiosidade popular numa mútua fecundação. A
liturgia, baseada numa autêntica teologia e purificada dos vícios do passado, deverá adaptar-se sabiamente
a essa cultura típica (catolicismo popular), aprendendo com ela, ao mesmo tempo, que essa cultura deverá
também ser purificada pelo espírito da liturgia herdado da tradição antiga da Igreja e retransmitido pelo
Concilio Vaticano II. Eis, então, o desafio da inculturação da liturgia na realidade cultural típica latino-
americana (Puebla 940).

31
. Cf. BUYST,I., Medellín na Liturgia, in: REB 48 (1988),p. 864-866)
32
. IBIDEM, p. 870. Cf CELAM, Liturgia para América Latina, p. 63.
33
. IBIDEM, p. 861.
Tudo isso dento de um espírito de comunhão e participação. Em outras palavras, reafirma-se o
caráter eminentemente comunitário da liturgia, na qual todos podem participar de modo pleno, consciente
e ativo, sentindo-se verdadeiros atores das ações celebrativas com sua cultura (cf Puebla 896-903).
7.1.3- Santo Domingo (1992).
A 4ª Conferência geral do CELAM, realizada em Santo Domingo em 1992, situa-se no contexto da
grande campanha do papa João Paulo II a favor da “nova evangelização” de todos os povos, cada um com
a sua cultura.
Nesse contexto, o documento final da Conferência destaca como grande desafio a inculturação do
Evangelho entre os povos da América Latina e do Caribe com sua cultura religiosa típica. O título do
documento expressa esta preocupação: Nova Evangelização, Cultura Cristã e Inculturação. Enfatiza o
profundo sentido evangelizador da celebração litúrgica segundo o Espírito do Vaticano II nas diferentes
culturas (SD, nn. 34-35). Ao mesmo tempo, retoma a religiosidade popular como valor cultural que não
pode ser esquecido no trabalho da evangelização (SD, 36). Mas especificamente ao que se refere à
liturgia, o documento afirma: “Resta ainda muito por fazer quanto a assimilar em nossas celebrações a
renovação litúrgica impulsionada pelo Concilio Vaticano II ...” (SD,n. 43).
Manifesta-se com certeza a nítica preocupação em torno de uma sã inculturação da liturgia em
todos os níveis, em especial em relação às culturas nativas (cf SD, n. 248).
7.1.4 – Documento de Aparecida
Para quem procura no documento um capítulo ou item com o título “liturgia”, não vai encontrar. A
referência aos assuntos ligados à liturgia, por exemplo, sobre a iniciação à vida cristã”, a “piedade popular
como espaço de encontro com Cristo”. Um maior destaque é dado à Eucaristia, como lugar privilegiado
do encontro do discípulo missionário com o Senhor (DA, 251). Aborda a importância do preceito
dominical (DA 252), a celebração dominical da Palavra de Deus (DA, 253), a oração pessoal e
comunitária (DA, n 255). A liturgia (eucaristia) é tratada no item com o título: “Lugares de encontro com
Jesus Cristo” (DA, 246-265), através da “escuta da Palavra” (lectio divina) (DA 247), da celebração da
Eucaristia (DA, 251).
A liturgia foi apenas considerada entre os “lugares de encontro pessoal com Jesus Cristo e na
formação dos discípulos missionários. Em nenhum item se considera o mistério pascal de Jesus Cristo.
Muito mais do que o Documento apresenta, a liturgia é, na realidade, o lugar de encontro mais profundo,
intenso e íntimo com o Pai do céu por nosso Senhor Jesus Cristo na unidade do Espírito Santo.

VIII- Movimento Litúrgico no Brasil


O Movimento Litúrgico já havia feito uma longa caminhada. Caminhada paciente e difícil, tanto na Europa
como aqui no Brasil, no sentido de devolver a liturgia a todo o povo de Deus. No Brasil, iniciado em 1933 como
todo o vigor de um movimento pelo monge beneditino D. Martinho Michler e difundido por outros pioneiros como
os beneditinos, Dom Beda Keckeisen, Dom Plycarpo Amstalden, Dom Hildebrando Martins, Dom Tomás Keller, o
Franciscano Frei Henrique G. Trindade e o Bispo Dom Mario de Miranda Vilas Boas, e apoiado por centenas de
entusiastas da Ação Católica, o Movimento passou por inúmeras peripécias. Seus promotores foram
impiedosamente criticados e acusados de hereges pelos conservadores, por causa de exageros e novidades errôneas
que, segundo eles, estavam introduzindo no culto da Igreja, tanto no nível da prática como no nível da compreensão
da liturgia. A discussão em torno da renovação da liturgia era deveras acalorada.

8.1- Obstáculos à reforma e renovação litúrgica conciliar


Na década de 1960 surgiu um grupo de cristãos reacionários liderados pelo então bispo da diocese
de Campos (RJ), D. Antônio de Castro Mayer, os quais simplesmente não aceitaram as reformas do
concílio Vaticano II, alegando que a liturgia de Pio V (1570: logo depois do concílio de Trento) é “a
verdadeira liturgia romana“. Puro desconhecimento histórico! Pois, na verdade, a liturgia de Pio V não é
liturgia romana pura. Ela vem cheia de elementos de origem franco-germânica herdados do século IX.
Hoje há duas liturgias na diocese de Campos: uma da reforma do concílio Vaticano II, e a outra,
tradicionalista, que celebra a liturgia nos moldes medievais e pós-tridentinos (de fundo romano-franco-
germânica, portanto).
Se, por um lado, havia os tradicionalistas reacionários, por outro, houve também os afoitos e
apressados que, sem conhecer a fundo o espírito da reforma do Vaticano II, cometeram graves abusos e
desvios. Lembramos a afronta de padres à religiosidade e à nossa cultura religiosa popular, quebrando
igrejas, derrubando artísticos altares, alijando os “santos” para fora do recinto sagrado, sob pretexto de
reforma litúrgica. Sem contar, como escreve D. Clemente Isnard, certas iniciativas esdrúxulas promovidas
“por algum padre ignorante de liturgia e desejoso de fazer coisas novas”. Mas não só isso: “outro
escolho... foi e tem sido o descaso, a rotina, a acomodação...
Outro problema, que dificultou a agilidade do processo de reforma, foi sem dúvida o número
reduzido de pessoal especializado para ajudar na formação litúrgica que se fazia urgente. Isso, sobretudo
nas décadas de 60 e 70. A falta de material bibliográfico e de formação litúrgica em todos os níveis tem
sido uma das grandes dificuldades para levar adiante o processo de reforma.
Mas há esperanças... esta falta de formação se alia o próprio “imaginário litúrgico” do povo
brasileiro profundamente estruturado em moldes medievais e pós-tridentinos, como acima aludimos.
Afinal, foram cinco séculos de evangelização nestes moldes! ... Neste sentido, entende-se porque o
espírito da reforma litúrgica do Vaticano II tem tido enormes dificuldades em “penetrar” no nosso
“catolicismo popular”. Ainda mais com o poder atual da mídia que, desconhecendo o espírito da
“Sacrosanctum Concilium”, muitas vezes justifica e reforça o clericalismo e o individualismo religioso
que herdamos.
Uma última dificuldade se liga ao uso de folhetos nas celebrações. A iniciativa, louvável em
parte (pelo reconhecido zelo pastoral em prol de uma participação mais ativa), mas, dependendo da forma
como o folheto é usado, pode bloquear a criatividade e a inculturação da liturgia. E o que é mais sério:
pelo fato de ser um “descartável”, ele pode contribuir para “banalizar” a sagrada liturgia, sobretudo
quando simplesmente substitui o livro (lecionário, evangeliário etc.) ao se proclamar a Palavra viva de
Deus no ambão (mesa da Palavra). Sem falar do uso sem critério de cantos nas celebrações, uso muitas
vezes favorecido por hinários mais adequados para encontros catequéticos, pastorais e “devocionais” do
que para celebrações litúrgicas...
8.2- Realizações
8.2.1- Traduções:
À medida que os livros litúrgicos romanos foram sendo revistos e publicados em suas edições
típicas, no Brasil se encaminhou logo um intenso, longo, e penoso trabalho de tradução dos textos
litúrgicos para o português. Para tanto, foi constituída na CNBB uma Comissão Nacional de Liturgia (a
partir de 1964: Secretariado Nacional de Liturgia), sob a presidência de D. Clemente José Carlos Isnard,
OSB. O trabalho foi imenso, com muitas reuniões, discordâncias e suados acordos, idas e vindas a Roma e
a Portugal. Hoje os livros litúrgicos estão todos traduzidos.

8.2.2- O Missal Romano:


Dentre os livros litúrgicos mais significativos traduzidos hoje, por causa das adaptações já
introduzidas, destacamos alguns. Em primeiro lugar, o Missal Romano, ressaltando, sobretudo a partir de
1993, a nova tradução sobre a 2ª edição típica: nesta foi acrescida “grande variedade de introduções ao ato
penitencial, à oração sobre as oferendas, ao Pai-nosso e ao abraço da paz, bem como fórmulas para o
envio no fim da missa”, além de “aclamações para todas as orações eucarísticas”. E por falar em oração
eucarística, uma delas foi feita especialmente para ser usada no Brasil: é a Oração Eucarística V, composta
de forma ritmada, apropriada para ser proclamada e cantada no nosso jeito brasileiro.
8.2.3- A Liturgia das Horas
Outro livro importante é o da Liturgia das Horas, com os salmos e responsórios traduzidos em
forma ritmada, cadenciada, para serem cantados também no nosso jeito brasileiro. E por falar em Liturgia
das Horas, um livro (não oficial, mas oficioso) que faz sucesso é o Ofício Divino das Comunidades: uma
tentativa bem-sucedida de inculturação da Liturgia das Horas à índole da maioria dos brasileiros.
8.2.4- Os Rituais e Hinários
Para a celebração do matrimônio foi elaborado um Ritual alternativo do matrimônio, adaptado
para o Brasil a partir da 2ª edição típica com a nova Introdução Geral. O Ritual do batismo de crianças
recebeu uma tradução adaptada à índole do povo brasileiro. O mesmo já sucedeu com Ritual de Iniciação
Cristã de Adultos. Outros, como o Ritual de Exéquias e o Ritual de Bênçãos, estão em vias de tradução
adaptada. Convém também lembrar o Hinário Litúrgico da CNBB em três volumes, que recolhe, para os
diferentes tempos do ano litúrgico, o melhor da música litúrgica composta no Brasil nestes ricos anos pós-
conciliares.
8.3- Encontros Nacionais
D. Clemente Isnard testemunha que “o interesse pela renovação da liturgia se estendeu na década
de 60 como um rastilho de pólvora”. Daí que, nesta mesma década foram realizados vários Encontros
Nacionais de Liturgia, refletindo sobre diferentes temas: Pastoral da Assembléia Litúrgica, Iniciação
cristã, Pastoral da Penitência, Matrimônio, Domingo, Arte Sacra. Também se realizaram na mesma década
muitos Encontros de Música Sacra, ocasião em que se criaram e se divulgaram inúmeros cantos
litúrgicos de boa qualidade, que vieram contribuir enormemente para a participação ativa do povo na
liturgia.
Na linha da formação, há que se destacar na mesma década o funcionamento do Instituto
Superior de Pastoral Litúrgica (ISPAL) no Rio de Janeiro. Pessoas que estudaram no ISPAL hoje estão na
linha de frente da pastoral litúrgica no país.
A partir de 1964, implantou-se no Brasil, sob o comando da CNBB, a Campanha da
Fraternidade: uma forma tipicamente brasileira de se viver a Quaresma dentro do ano litúrgico,
enfocando cada ano um problema social que mais nos aflige. O mesmo se diga das “novenas de Natal”:
uma forma bem brasileira de viver o tempo do Advento.
8.4- Publicações Litúrgicas da CNBB
Na década de 70, a CNBB desenvolveu um grande projeto de pastoral sacramental, publicando
uma série de documentos de orientação sobre diferentes sacramentos: Sacramentos da iniciação cristã
(1974), Penitência (1976), Matrimônio (1978), Unção dos enfermos (1979), Batismo das crianças (1980).
Também foi publicado um documento intitulado “Pastoral da música litúrgica no Brasil” (1976). Em
1977, na tentativa de adaptar a liturgia ao povo mais simples, foi aprovado e publicado pela CNBB um
“Diretório para missas com grupos populares”. Infelizmente, este documento teve um fim inglório, pela
proibição que sofreu da Sagrada Congregação para o Culto Divino, não obstante inúmeras tratativas de
diálogo.
8.5- Encontros Nacionais de Professores
A década de 80 também foi muito rica. Destaca-se pelos Encontros Nacionais de Professores de
Liturgia, promovidos pela Linha 4 (Liturgia) da CNBB. Num destes encontros, realizado em Salvador
(BA), nos dias 07 a 11.07.1983, surgiu a idéia de realizar um amplo levantamento sobre a situação da
liturgia no Brasil. Um questionário foi distribuído pela CNBB para todas as dioceses, Ordens e
Congregações Religiosas. Sobre as respostas, devidamente tabuladas e sintetizadas, uma equipe de
liturgistas elaborou uma avaliação da situação da liturgia no Brasil. Todo esse material foi publicado sob o
título Liturgia: 20 anos de caminhada pós-conciliar (Estudos da CNBB 42). A partir desse levantamento
germinou e veio à luz o importante Documento 43 da CNBB (Animação da vida litúrgica no Brasil:
elementos de pastoral litúrgica), publicado em 1989.
Os Encontros Nacionais dos Professores de Liturgia resultaram na fundação da Associação dos
Liturgistas do Brasil (ASLI), por ocasião do 10° Encontro realizado em Vitória (ES), nos dias 13 a
17.02.1989. Um ano depois, no Encontro realizado em Curitiba (PR), nos dias 06 a 09.02.1990, seus
estatutos foram aprovados em caráter definitivo, sendo depois registrados em Cartório. A ASLI se reúne
uma vez por ano para estudo de um tema específico, bem como para intercâmbio de experiências,
articulações de atividades científicas e pastorais dos liturgistas etc.
A partir de 1984 funciona, na Faculdade de Teologia N. S. da Assunção (São Paulo), o curso
de pós-graduação em Liturgia. Ao mesmo tempo constituiu-se na Faculdade o Centro de Liturgia,
composto por uma equipe de liturgistas que, além de pensar e programar o curso de pós-graduação em
Liturgia, também organiza e promove um Curso de Verão (dois janeiros) e Semanas de Liturgia para
agentes de pastoral em geral. Trata-se de um Centro irradiador de animação da vida litúrgica para o Brasil
e a América Latina, possibilitando o progresso da ciência e da pastoral litúrgicas em nosso meio.
O Centro de Liturgia desenvolveu, adotou, e vem promovendo uma metodologia própria para a
produção da ciência litúrgica em nosso país (incluída a promoção da formação litúrgica!), pela qual se
parte da constatação e análise de práticas celebrativas bem concretas (primeiro passo), reflete-se
teologicamente sobre esta realidade à luz da Tradição (segundo passo) e se tira conclusões para o
aperfeiçoamento destas práticas (terceiro passo). Nesta linha, no campo da formação litúrgica se
desenvolveu também a eficiente metodologia do “laboratório litúrgico”, já bem difundida pelo Brasil
afora, promissora de uma liturgia verdadeiramente inculturada, pois possibilita uma mútua fecundação
entre Liturgia e Religiosidade Popular (cf. Puebla, 465).
8.6- Formação Litúrgica - cursos
Cursos de Verão, mais ou menos na mesma linha metodológica, são desenvolvidos também no sul
do Brasil e no Nordeste. Sem contar as inúmeras Semanas e Cursos de Liturgia realizados pelo país afora,
em paróquias, dioceses, seminários, com o clero e o povo. Sobretudo o povo tem demonstrado uma
enorme vontade em se aprofundar na liturgia, ainda mais quando percebe nela a fonte por excelência de
espiritualidade cristã engajada na luta em favor da vida. O grupo “Celebra”, com núcleos em várias
regiões do país, vem igualmente prestando um ótimo serviço de formação litúrgica nos meios populares.
Na mesma esteira de trabalho em prol da formação litúrgica temos que lembrar igualmente as inúmeras
publicações já feitas no Brasil em livros e revistas. E por falar em revistas, temos que mencionar a Revista
de Liturgia, bimestral, das Pias Discípulas do Divino Mestre, de São Paulo. Desde 1973 ela vem prestando
excelente serviço às comunidades eclesiais, através de artigos (formativos e informativos) e de subsídios
para preparar as celebrações.
8.7- Uma nova Consciência
À luz dos grandes Encontros do episcopado latino-americano em Medellín (1969) e Puebla
(1979), despertou-se a consciência de que o grande sujeito da liturgia no Brasil e na América Latina é o
povo pobre. Este deverá ser o grande protagonista de uma boa reforma da liturgia. Nesta linha, não
podemos deixar de enfatizar a contribuição das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) no Brasil: nelas
verificamos de forma muito vital o processo de inculturação litúrgica no Brasil, deslanchado pelo
Vaticano II. Cerca de 70% delas celebra o dia do Senhor em torno da palavra de Deus. Tanto é que a
CNBB veio em seu auxílio publicando em 1994 um documento intitulado: Orientações para a celebração
da palavra de Deus (Documento 52). Com os elementos próprios da cultura, em sadia sintonia com os
valores do “catolicismo popular”, conjugando religiosidade popular e liturgia, as CEBs sabem celebrar a
páscoa de Cristo na páscoa do povo e a páscoa do povo na Páscoa de Cristo, e celebram a Eucaristia como
ceia memorial do sacrifício de Cristo em favor dos pobres. O caráter popular e participativo em toda a
ação litúrgica, o caráter pascal das celebrações, a centralidade da palavra de Deus, os novos ministérios, o
caráter ecumênico das celebrações, a valorização do corpo e da natureza, a valorização da linguagem
simbólica, a música, são algumas características da liturgia em processo de inculturação no Brasil por
força das CEBs.
Os negros, com o apoio da Linha 4 CNBB, têm feito um excelente trabalho no sentido de
poderem celebrar o mistério pascal de Cristo com os elementos de sua raça. Pesquisas, publicações,
seminários, celebrações, tudo vem contribuindo para uma liturgia com rosto negro no Brasil.
A CNBB vem incentivando também um processo de inculturação da Liturgia nos meios indígenas.
Neste sentido, para refletir sobre o assunto, ela já promoveu dois seminários, reunindo liturgistas,
missionários e representantes indígenas. O primeiro foi nos dias 29 a 31.08.2000, e o segundo, nos dias 31
a 08-02.09.2001. Entre os índios Xavantes, no Mato Grosso, já existe um avançado ensaio de inculturação
do rito de iniciação cristã e da celebração da Vigília Pascal.
No campo da arte sacra já foram construídos ou restaurados neste período pós-conciliar
belíssimos espaços realmente convidativos para celebrar em comunidade o mistério que nos faz Igreja
(Povo de Deus-Corpo de Cristo) reunido para ouvir a Palavra, celebrar a Páscoa e, na força do
Ressuscitado, trabalhar pelo Reino. A própria CNBB retomou ultimamente, e com crescente sucesso, os
Encontros Nacionais de Arte Sacra: um em Vila Velha (ES), nos dias 11 a 13.07.1996; Deste Encontro até
o presente aconteceram 21 Encontros. O último foi no ano passado, em Curitiba, no mês de setembro.
O pentecostalismo dentro da Igreja Católica tem contribuído para celebrações mais alegres,
espontâneas e vivas nas comunidades, arrebanhando inclusive multidões para momentos celebrativos
cheios de grande emoção. Contudo, apresenta também sérias dificuldades para o avanço da reforma
litúrgica no espírito do concílio Vaticano II. No intuito de esclarecer e ajudar, a CNBB publicou em 1994
um precioso documento intitulado: Orientações pastorais sobre a Renovação Carismática Católica
(Documento 53).34

34
. Cf. CNBB,doc. 43, nn. 5-35; DA SILVA, José Ariovaldo, SACROSANCTUM CONCILIUM, e reforma litúrgica pós-conciliar no Brasil:
in: CNBB, Seminário Nacional em comemoração aos 40 anos da Constituição sobre a Sagrada Liturgia. Ed. CNBB, Brasília (DF) pp. 27-36).

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