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Linha D'Água (Online), São Paulo, v. 29, n. 2, p. 97-121, dez. 2016
ARGUMENTATION IN A MATERIALIST
PERSPECTIVE OF DISCOURSE
Resumo: Neste trabalho, propomos uma reflexão acerca das bases teóricas que fundamentam o estudo da argumentação numa
perspectiva materialista do discurso. Primeiramente, apresentamos um panorama do relevante lugar que o sujeito passou a ocupar
nos estudos sobre argumentação, apoiando-nos em Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996 [1958]), Toulmin (2006 [1958]), Plantin
(1996), Maingueneau (2011 [1994]) e Amossy (2007, 2011 [2008], 2013). Depois, concebendo as ideologias como força ma-
terial que contitui o indivíduo como sujeito, recorremos aos trabalhos de Fuchs & Pêcheux (2001 [1975]), Pêcheux (2001 [1969]),
1997 [1975]) e Orlandi (1998), para discutir a argumentação como parte dos efeitos de sentido entre os sujeitos do discurso. Para
tanto, destacamos a interdiscursividade, a antecipação e as formações imaginárias como conceitos centrais para o entendimento do
mecanismo de argumentação no discurso. Por fim, analisamos o pronunciamento do deputado Mário Covas feito durante a sessão
parlamentar de 12 de dezembro de 1968, que antecedeu o AI-5.
Abstract: This paper proposes an articulation between the Toulmin model of argumentation and the textual-interactive perspective for
the analysis of a polemic television interview granted by Fernando Haddad to César Tralli, in the news program SPTV, transmitted by Globo
Network, during his campaign for mayor in 2012. This proposal is justified insofar as the Toulmin model allows a schematic formalization
of the argumentative structure that supports a critical analysis of the process, whereas the textual-interactive perspective allows compre-
hending the dynamics of the local production and interpretation of meaning in the conversational text, providing explanatory tools for the
construction of the argumentative scheme, which involves the variation in the explicitation of the components of the model and in the con-
figuration of its reciprocal relations. Thus, we could conclude that: (1) the interviewer tends to build the Claim through a question, so that
the guest may answer it in form of a Rebuttal, in a process permeated by a face-work dynamics, oriented towards the preservation of his
own face, of the interviewer’s face and of his party’s face, whereby the guest aims to characterize the interviewer’s reasoning as fallacious;
(2) Warrants and, especially, Backings tend to be implicit; and (3) the argumentative schemes tend to be construed under complex chains.
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2236-4242.v29i2p97-121 97
Linha D'Água (Online), São Paulo, v. 29, n. 2, p. 97-121, dez. 2016
Introdução
Em seu Manual de Retórica, Plebe & Emanuele (1992 [1988]) dedicam um capí-
tulo inteiro à crítica do que eles chamam de “o mito da argumentação”. Começam
por apontar o que seria uma contradição na obra de Perelman, acusando-o de
“fazer o mundo da retórica deslizar do plano lógico-filosófico para o plano mera-
mente sócio-psicológico” (p. 106) e, ainda, afirmam que:
1
Conceito formulado por Michel Foucault, em A arqueologia do saber, de 1969, e reformula-
do por Pêcheux, no quadro teórico da Análise do Discurso, como “aquilo que, numa formação
ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo
estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma
arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc.)” (PÊCHEUX,
1997 [1975], p. 160).
2
Conforme Amossy (2011 [2008], p. 129), “a retórica clássica, definida como a arte de
persuadir – [é], nesse sentido, sinônimo de argumentação”.
3
No original: “Ils recherchent dans la pensée argumentative un moyen de fonder une racio-
nalité spécifique, à l’oeuvre dans les affaires humaines.”.
4
Nesse sentido, podemos dizer que há uma reinscrição dessas teorizações na tradição da re-
tórica aristotélica, na qual o tipo de raciocínio desenvolvido não é o demonstrativo, tal como o
é na Dialética, mas sim o argumentativo, pois a arte retórica versa sobre aquilo que é provável,
que é do âmbito da opinião, apresentando, como ponto de partida, premissas verossímeis ao
invés de verdadeiras: a retórica é “a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso
com o fim de persuadir” (ARISTÓTELES, 1998 [c.330-326 a.C], p. 48).
Passa-se, então, do domínio dos universais, que implica a retórica orientada pelo
logos como razão atemporal, ao domínio do social em sua relatividade e suas
variações históricas e culturais (AMOSSY, 2011 [2008], p. 133).
[...] quando o analista do discurso se volta para a argumentação, não é com a in-
tenção de estabelecer o modelo dos processos de validação, mas de relacioná-los
a um gênero do discurso histórica e socialmente situado (MAINGUENEAU,
2011 [1994], p. 71).
[...] se recusa a pôr na origem do discurso “um sujeito enunciador individual que
seria dono de si mesmo” (MAZIÈRE, 2005, p. 5): o locutor, como o auditório,
é sempre atravessado pela fala do outro, pelas ideias preconcebidas e pelas evi-
dências de uma época e, por isso, condicionado pelas possibilidades de seu tempo
(AMOSSY, 2013, p. 8, tradução nossa).
É a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o que é
um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc., evidências que
fazem com que uma palavra ou um enunciado “queiram dizer o que realmente
dizem” [...] (PÊCHEUX, 1997 [1975], p. 160).
Assim, meu propósito para o tópico seguinte deste trabalho consiste em apre-
sentar alguns dos mecanismos discursivos mobilizados para a produção dos efeitos
de argumentação e sua relação com a posição ideológica materializada no discurso.
[...] considerar as ideologias como idéias e não como forças materiais e [...]
em conceber que elas têm sua origem nos sujeitos, quando na verdade elas
[...] é igualmente evidente que quem melhor puder teorizar sobre as premissas
– do que e como se produz um silogismo – também será o mais hábil em entime-
mas, porque sabe a que matérias se aplica o entimema e que diferenças este tem
dos silogismos lógicos (ARISTÓTELES, 1998 [c.330-326 a.C], p. 46).
[...] tomada de posição não é, de modo algum, concebível como um ‘ato originário’
do sujeito-falante: ela deve, ao contrário, ser compreendida como o efeito, na
forma-sujeito, da determinação do interdiscurso como discurso-transverso [...]
(PÊCHEUX, 1997 [1975], p. 171-172).
5
Nos termos de Fuchs (1985, p. 112): “De fato, esta retórica se sustenta, enquanto princípio,
na consideração daquilo que chamamos hoje ‘a situação de enunciação’. ‘Podemos distinguir três
elementos em qualquer discurso: aquele que fala, o assunto sobre o qual se fala, aquele a quem se
fala’, diz Aristotéles [em sua Retórica]. Essa filiação, há muito tempo esquecida, em particular pe-
los linguistas, começa a renascer nos últimos anos: a ‘história do estudo das estratégias discursivas
não é nada mais do que a história da retórica’, afirma Le Guern (1978)”.
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Conforme Pêcheux & Fuchs (2001 [1975], p. 239), “o termo ‘ilusão necessária’ foi introduzido
pela primeira vez por P. de Goffic” na obra coletiva A propos des relatives, organizada por Fuchs
e Milner, em 1974.
em 1978, que foi publicada na forma de anexo nas traduções inglesa e brasileira de
Les vérités de La Palice.
Uma vez que já apresentamos, neste trabalho, o conceito de sujeito discursivo
numa concepção não subjetivista, podemos iniciar, sem esses conflitos teóricos,
nossa exposição acerca dos efeitos de argumentação no funcionamento discur-
sivo e, logo, sua relação com as condições de produção do discurso. Retomando
a citação de Pêcheux sobre a definição da noção de funcionamento discursivo,
não é demais destacar que o que está em jogo nessa reformulação do conceito de
funcionamento linguístico de Saussure proposta por Pêcheux não é apenas o lin-
guístico, mas também o discursivo. Isso significa que o mecanismo de colocação
dos protagonistas e do objeto de discurso – as “condições de produção” do discurso
– consiste num processo de construção sócio-histórica e ideológica dos sentidos,
que se materializa na articulação entre a base linguística e os processos discursivos.
Nessa mesma linha, Orlandi retoma os postulados de Pêcheux, afirmando que:
Mais adiante, Orlandi destaca a relevância dessa noção ao afirmar que “o fun-
cionamento discursivo [...] é a atividade estruturante de um discurso determinado,
por um falante determinado, para um interlocutor determinado, com finalidades
específicas” (ORLANDI, 2011 [1983]), p. 125). É preciso destacar que a retomada
de Orlandi se justifica pela ênfase que a autora aplica não apenas na ideia de repre-
sentação imaginária dos interlocutores construída no e pelo discurso, mas, sobretudo,
na ideia da relação que esses interlocutores mantêm com a formação ideológica.
Desse modo, passemos a observar como Pêcheux já se preocupava, desde
a AAD69, com a argumentação no funcionamento discursivo. Embora extensa,
acompanhemos a citação:
Desse excerto, podemos destacar, entre tantos conceitos, alguns que podem
nos parecer fundamentais para a compreensão da argumentação no discurso: a in-
terdiscursividade (“um discurso remete a tal outro”; “o discurso se conjuga sempre
sobre um discursivo prévio”); o esquecimento n. 1 (“ele ‘orquestra’ os termos prin-
cipais ou anula os argumentos”); o esquecimento n. 2 (“o orador sabe que [...]”);
a deriva do sentido (“este acontecimento era alegado, com as “deformações” que a
situação presente introduz”); as formações imaginárias (“Isso implica que o orador
experimente de certa maneira o lugar de ouvinte a partir de seu próprio lugar de
orador”); a antecipação (“Esta antecipação do que o outro vai pensar parece cons-
titutiva de qualquer discurso”).
Devido aos limites deste trabalho, iremos me eximir de discutir todas as possi-
bilidades acima aventadas para o estudo da argumentação no discurso, para apenas
sublinhar de que maneira podemos nos apropriar do que Pêcheux diz sobre o meca-
nismo discursivo da antecipação, especificamente no que tange à sua afirmação sobre
o orador experimentar o lugar de ouvinte a partir de seu próprio lugar de orador,
lembrando, mais uma vez, que orador e ouvinte são concebidos como forma-sujeito.
Entendemos que esse lugar onde o orador “espera” o ouvinte – e, para com-
pletar o quadro, onde o ouvinte também “espera” o orador; onde Proponente e
Conforme Plantin (2008 [2005], p. 64), Proponente, Oponente, Terceiro são os papeis argu-
7
mentativos do modelo dialogal, no qual “situação argumentativa típica é definida pelo desenvolvi-
mento e pelo confronto de pontos de vista em contradição, em resposta a uma mesma pergunta”.
{
Imagem do lugar de A para o “Quem sou eu para lhe falar assim?”
IA (A)
sujeito colocado em A
A
IA (B) Imagem do lugar de B para o “Quem é ele para que eu lhe fale
sujeito colocado em A assim?”
{
Imagem do lugar de B para o “Quem sou eu para que ele me fale
IB (B) sujeito colocado em B assim?”
B
Imagem do lugar de A para o “Quem é ele para que me fale
IB (A)
sujeito colocado em B assim?”
8
MDB (Movimento Democrático Brasileiro) foi o partido político que abrigou os opositores
ao regime ditatorial militar após a instauração do bipartidarismo no Brasil pelo AI-2, de 27 de
outubro de 1965. A sigla GB diz respeito ao extinto estado da Guanabara.
governo militar, o que desencadeou uma resposta imediata por parte do regime
militar: a edição do Ato Institucional n. 5, em 13 de dezembro de 1968.
Assim, desse pronunciamento, abordaremos apenas um dos argumentos
apresentados devido à sua importância na argumentação do parlamentar. Acom-
panhemos a seguinte sequência discursiva9:
Creio, Sr. Presidente, creio, Srs. Deputados, que a frente poderá ser contestada.
Eu entretanto me auto-absolvo, porque, sendo engenheiro, acho inteiramente
válido consultar a figura do Ministro da Justiça neste episódio, desta natureza
(DIÁRIO OFICIAL DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000, p. 102-103).
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Conforme Perelman & Olbrechts-Tyteca (1996 [1958], p. 76), “só estamos em presença de um
fato, do ponto de vista argumentativo, se podemos postular a seu respeito um acordo universal,
não controverso”.
Muitos argumentos são influenciados pelo prestígio. [...]. Mas existe uma série de
argumentos cujo alcance é totalmente condicionado pelo prestígio (Id., p. 237).
O argumento de prestígio mais nitidamente caracterizado é o argumento de
autoridade, o qual utiliza atos ou juízos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas
como meio de prova a favor de uma tese (Id., p. 348).
plenário da Câmara para o orador (“Quem é ele para que eu lhe fale assim?”), a
constituição do sujeito orador é atravessada pela imagem do advogado que enuncia
num tom que lhe permite se aproximar do júri (o plenário da Câmara) para sensi-
bilizá-lo, como o fazem os defensores, ao passo que a constituição dos sentidos do
objeto do discurso desliza da “deliberação” política de afastar ou não um deputado
para o “julgamento” de não apenas um deputado, mas de toda os deputados, ou
seja, do valor de representatividade, de democracia.
Por meio de sequências de enunciados que valorizam o parecer do Minis-
tro da Justiça e de itens lexicais “lição”, “guia” e “orientação” e “orientar”, o pro-
nunciamento do parlamentar/“advogado” Mário Covas apresenta ao plenário da
Câmara a imagem do Ministro da Justiça como um jurista que possui autoridade
máxima sobre o assunto para, inclusive, enunciar no lugar do próprio orador o
seguinte enunciado-sentença: “o abuso do direito político praticado, sem dúvida,
pelo incontinente Deputado não atenta contra a ordem democrática” (DIÁRIO
OFICIAL DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000, p. 103). Considerando o
ponto de vista do orador sobre o objeto do discurso, isto é, a questão implícita “De
que lhe falo assim?” (PÊCHEUX, 2001 [1969], p. 84), é importante notar como a
construção da imagem do objeto do discurso também participa da constituição da
própria imagem do orador.
Enfim, podemos concluir que, do ponto de vista da análise argumentativa, se-
ria razoável dizer que o orador Mário Covas evoca, por meio dessa citação ao pare-
cer do Ministro Gama e Silva, as vozes do establishment para amparar seu ponto de
vista, o que consistiria num exemplo de estratégia argumentativa astuciosa, a saber:
o orador integra favoravelmente ao seu discurso o argumento daquele que encami-
nhou o pedido para processar seu próprio colega de partido. Mas, do ponto de vista
da análise discursiva, os efeitos de sentido de argumentação desse pronunciamento
endereçado a uma frente ampla são complexos, pois tais efeitos constituem uma
fissura no discurso oposicionista da formação discursiva do MDB, materializando
não a ruptura com o regime, como no pronunciamento de defesa do próprio de-
putado Márcio Moreira Alves, mas a manutenção da subsistência clandestina da
democracia no regime ditatorial.
Considerações finais
Referências
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Eni Puccinelli Orlandi et al. Campinas: Ed.UNICAMP, 1997 [1975].
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Françoise; HAK, Tony (Org.). Por uma análise automática do discurso. 3.ed. 1.reimpr. Campinas:
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TOULMIN, Stephen. Os usos do argumento. 2.ed. Tradução de Reinaldo Guarany. São Paulo:
Martins Fontes, 2006 [1958].