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Ensaios sobre

LITERATURA
E METAFICÇÃO

Flávio Pereira Camargo


Vanessa Gomes Franca
Zênia de Faria
(Organizadores)

2018
© 2018, Flávio Pereira Camargo, Vanessa Gomes Franca, Zênia de Faria (Organizadores)

Capa e Projeto Gráfico: Julyana Aleixo Fragoso

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C172e Camargo, Flávio Pereira


Ensaios sobre literatura e metaficção / Flávio Pereira Camargo;
Vanessa Gomes Franca; Zênia de Faria (Org.). – Goiânia : Editora
da Imprensa Universitária, 2018.

164 p.

Inclui referências
ISBN: 978-85-93380-42-6

1. Literatura brasileira. 2. Críticas sobre narrativas.

3. Estudo da literatura brasileira. I. Título.

CDU 82.95:82.0/82.091
Ensaios sobre
LITERATURA
E METAFICÇÃO

Flávio Pereira Camargo


Vanessa Gomes Franca
Zênia de Faria
(Organizadores)

2018
Universidade Federal de Goiás

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João Pires
Pamora Mariz Silva de F. Cordeiro
Revalino Antonio de Freitas
Salustiano Álvarez Gómez
Sigeo Kitatani Júnior
AGRADECIMENTOS
A publicação deste livro contou com
o apoio financeiro do CNPq, a quem so-
mos gratos. Trata-se de uma coletânea que
reúne trabalhos diversos sobre a questão
da metaficção, contribuindo, de forma di-
reta e indiretamente, com as investigações
sobre a metaficção no âmbito do projeto
de pesquisa “O personagem-escritor e a
questão da narrativa metaficcional” (Edital
MCTI/CNPq/Universal nº 444438/2014-
9), vinculado ao Grupo de Pesquisa “Estu-
dos sobre a narrativa brasileira contemporâ-
nea” (CNPq/UFG).
SUMÁRIO

Apresentação 9

A METAFICÇÃO REVISITADA: UMA INTRODUÇÃO (BIS) 13


Zênia de Faria

A ESPIRAL NARRATIVA DE AIRES: FIGURAÇÕES DO 33


ROMANCE REFLEXIVO
Rogério Fernandes dos Santos

“VALHA-ME DEUS: É PRECISO EXPLICAR TUDO!”: 45


A VOZ METAFICCIONAL MACHADIANA EM MEMORIAL
DO FIM, DE HAROLDO MARANHÃO
Paulo Alberto da Silva Sales, Zênia de Faria

“NÃO, NÃO É FÁCIL ESCREVER. É DURO COMO 67


QUEBRAR ROCHAS”: A METAFICÇÃO NO ROMANCE
A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR
Vanessa Rita de Jesus Cruz, Flávio Pereira Camargo

A AUTORREFLEXIVIDADE NAS ESCRITAS DA FICÇÃO E 87


DA HISTÓRIA
Paulo Alberto da Silva Sales
Notas sobre o leitor e a narrativa metaficcional infantil 107
e juvenil brasileira
Edilson Alves de Souza, Flávio Pereira Camargo

ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO 129


DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA:
Vanessa Gomes Franca, Flávio Pereira Camargo

SOBRE OS AUTORES 161


APRESENTAÇÃO
Esta coletânea reúne trabalhos distintos sobre a questão da metafic-
ção, contribuindo, de forma direta e indiretamente, com as investigações
sobre a metaficção no âmbito do projeto de pesquisa “O personagem-
-escritor e a questão da narrativa metaficcional” (Edital MCTI/CNPq/
Universal nº 444438/2014-9), vinculado ao Grupo de Pesquisa “Estudos
sobre a narrativa brasileira contemporânea” (CNPq/UFG).
Os ensaios constantes nesta coletânea oferecem ao leitor, por um
lado, uma perspectiva teórico-crítica sobre a metaficção, e, por outro lado,
proporcionam uma leitura verticalizada das distintas configurações da me-
taficção em algumas obras da literatura brasileira e de outras literaturas,
demonstrando a multiplicidade das reflexões críticas sobre o tema em tela.
No capítulo que abre o volume, intitulado “A metaficção revisita-
da: uma introdução (BIS)”, de Zênia de Faria, considerando os diversos
estudos realizados nos últimos quarenta anos sobre a noção de metaficção
e de formas vizinhas, e considerando ainda as diferentes posições dos
críticos e teóricos sobre a questão, bem como a multiplicidade de termos
utilizados para designar esse tipo de narrativa, a autora nos apresenta um
texto que se constitui uma introdução a uma revisão dessa problemática,
a partir do exame de alguns de seus pressupostos básicos, de alguns dos
referidos termos, e, inclusive, da relação metaficção-pós-modernidade.
Em seguida, Rogério Fernandes dos Santos, no texto “A espiral
narrativa de Aires: figurações do romance reflexivo”, propõe a leitura dos
romances Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), de Machado de
Assis, tendo como linha condutora sua constituição reflexiva, aliando-os
à tradição de romances e romancistas autoconscientes formulada inicial-
mente por Robert Alter. Em seu texto, o autor pretende, ainda, situar

9
brevemente o romance entre os diversos projetos romanescos do século
XIX, salientando o enunciado ficcional do conselheiro Aires como um
discurso crítico a esses projetos.
No capítulo seguinte, “Valha-me Deus: é preciso explicar
tudo”, Paulo Alberto da Silva Sales e Zênia de Faria tratam da dicção
metaficcional típica dos romances de Machado de Assis, sobretudo
das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Memorial de Aires e de Esaú
e Jacó, que é retomada na narrativa Memorial do fim, de Haroldo Ma-
ranhão. Publicado em 1991, esse romance apresenta inúmeros mo-
mentos digressivos, vários comentários sobre o fazer literário, críticas
ao leitores distraídos, ironia e riso melancólico resgatado de Machado
de Assis e, agora, introjetado nele mesmo como personagem da tra-
ma, o “horror à linha reta” – expressão de José Paulo Paes ao tratar da
narrativa de Tristran Shandy – além dos comentários sobre as perso-
nagens machadianas (agora multifacetadas e que atendem por vários
nomes no enredo do Memorial do fim) transitam livremente no leito
de morte de Machado de Assis apresentado por Maranhão. Esses são
alguns dos aspectos discutidos por Sales e Faria que, também, des-
tacam aspectos da metaficção historiográfica presentes no romance,
principalmente de alguns períodos históricos do século XIX que são
resgatados e problematizados pela autorreferencialidade narrativa.
Por sua vez, Vanessa Rita de Jesus Cruz e Flávio Pereira Camargo,
em “Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas”: a metaficção
no romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, propõem um exame
dos procedimentos e das estratégias metaficcionais utilizadas por Clarice
Lispector na construção do romance A hora da estrela, procurando evi-
denciar o autoquestionamento estético e as suas implicações para a cons-
trução da narrativa e para a sua recepção por parte do leitor.
No capítulo subsequente, “A autorreflexidade na escrita da ficção
e da história”, Paulo Alberto da Silva Sales discute o problema da escri-
ta voltada sobre si mesma nos discursos da historiografia e da ficção. O
pensar no que se está escrevendo, a crítica à escrita que se está escrevendo
e a seleção do eventos na narração dos fatos se tornaram fundamentais à
escrita da história desde os Anais no início do século XX. Com a Nova

10 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


História e a Meta-história, o historiador, apoiado nos aspectos da narra-
tiva ficcional, faz, de forma semelhante, o que os ficcionistas metaficcio-
nais fazem ao colocar a crítica e a autorreflexão dentro da história que
está sendo contada. Na pós-modernidade, essas narrativas se misturam
e se complementam, fato este que Sales aponta a partir dos estudos da
metaficção historiográfica, do novo romance histórico e da meta-história.
Em seguida, no capítulo “Notas sobre o leitor e a narrativa me-
taficcional infantil e juvenil brasileira”, Edilson Alves de Souza e Flá-
vio Pereira Camargo afirmam que, após a segunda metade do século
XX, no cenário literário brasileiro, proliferou um conjunto signifi-
cativo de produções direcionadas ao público infantil e juvenil. Mais
que uma marca quantitativa, muitas dessas obras destacaram-se pela
adesão a novas perspectivas narrativas, como aquelas metalinguísticas,
metadiscursivas e metanarrativas presentes em textos metaficcionais.
As novidades estruturais emergentes nesses textos demandavam for-
mas mais ativas de engajamento de seus leitores. Paralelamente a essas
inovações narrativas, estudiosos, como Umberto Eco (1991, 2011),
Roland Barthes (2004), Hans Robert Jauss (1994), Wolfgang Iser
(1996; 1999) e Linda Hutcheon (2013), trouxeram novas reflexões
sobre a recepção de obras literárias, nas quais postulavam uma função
mais participativa do leitor enquanto receptor e corresponsável pelo
processo de construção dos sentidos de um texto. As teorias do leitor e
os percursos das narrativas metaficcionais infantis e juvenis coaduna-
ram na configuração de um tipo de leitor ideal que atendesse às novas
peculiaridades ficcionais: o leitor metaficcional.
Por fim, no último capítulo, dando continuidade ao exame da me-
taficção na literatura infantil e juvenil brasileira, Vanessa Gomes Franca
e Flávio Pereira Camargo, em “Aspectos metaficcionais em O fantástico
mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira: questões sobre o personagem-
-escritor, a tradição oral e a tradição escrita”, afirmam que na literatura
infantil e juvenil pós-moderna há certa recorrência da estratégia meta-
ficcional de desnudar os elementos da criação ficcional, evidenciando ao
leitor que ele está diante de um constructo. Dentre os textos da literatura
infantil e juvenil brasileira que utilizam recursos metaficcionais, levando

Apresentação 11
o leitor a descobrir, a construir, a descontruir e a reconstruir significados,
a preencher lacunas e a perceber comentários críticos, a partir do desnu-
damento de aspectos que compõem o texto literário, os autores destacam
O fantástico mistério de Feiurinha, do escritor paulista Pedro Bandeira.
Neste livro, o autor retoma alguns dos contos de fadas mais conheci-
dos e, por meio deles, num exercício metaficcional que exibe uma au-
toconsciência dos procedimentos da criação literária, comenta a própria
literatura, evidenciado sua constituição diacrônica desde a tradição oral
(contador, história e ouvinte) até à tradição escrita (escritor, livro e leitor).
Ante o exposto, Franca e Camargo apresentam uma análise da referida
obra tencionando evidenciar e discutir de que forma a narrativa em ques-
tão estabelece o jogo metaficcional, desvelando o seu status de artefato.
Dessa forma, este volume apresenta leituras com vieses críticos e
teóricos variados sobre as distintas configurações da metaficção ao longo
dos anos. Espera-se que o leitor encontre, nas páginas que seguem, mate-
rial de pesquisa para auxiliar as suas próprias reflexões sobre a questão da
metaficção e do personagem-escritor, além de contribuir para ampliar a
recepção crítica das obras em tela.
Flávio Pereira Camargo
Vanessa Gomes Franca
Zênia de Faria

12 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


A METAFICÇÃO REVISITADA:
UMA INTRODUÇÃO (BIS)*1
Zênia de Faria

“[...] the lowest common denominator of metafiction is


simultaneously to create a fiction and to make a statement
about the creation of that fiction.”
Patricia Waugh

“A autorreflexão [...] estabelece uma relação lúdica entre


o autor e o texto; logo, ela é ligada ao processo de escrita.
É um ato privado, mas que se torna público, uma vez
que permite ao leitor ser testemunha das relações lúdicas
entre
o autor e sua criação.”
Raymond Federman

A História Literária registra, desde o século XVII, no Ocidente,


o surgimento de um tipo de texto ficcional que se volta sobre si mesmo,
que é uma ficção que contém em seu bojo questionamentos ou co-
mentários sobre seu estatuto linguístico, narrativo e sobre seu processo
de produção e de recepção. Por um lado, tais ocorrências colocam em
evidência o caráter de artefato da obra literária, fazendo com que a ilu-
são de realidade da obra ficcional seja rompida; por outro, as narrativas
assim construídas são invadidas pela crítica e/ou pela teoria literária,
tornando-se, assim, uma forma híbrida, em que a ficção, a crítica e a
teoria partilham o mesmo espaço literário. Aliás, a consciência de tal
hibridismo do texto narrativo pertencente a esta categoria levou certos
críticos a os considerarem de um ponto de vista bastante radical, como
* Uma primeira versão deste texto foi apresentada, como comunicação, com o título “A metaficção revisitada”, no
XII Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC), realizado em Curitiba – PR,
de 18 a 22 de julho de 2011. O texto não foi publicado nos Anais do Congresso. Uma segunda versão foi publicada In:
Signótica. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. v.24, 2012, p. 237-251.A presente versão foi
ampliada em alguns pontos e sofreu alguns reajustes, para maior precisão e clareza.

13
é o caso de Michael Boyd que faz a seguinte afirmação: “Porque eles não
procuram contar mais uma história, mas examinar o próprio processo
de contar histórias, os romances reflexivos devem ser vistos como obras
de teoria e crítica literária”1 (1983, p. 20).
Desde o último quartel do século XX, metaficção, narrativa me-
taficcional, ficção pós-moderna ou narrativa pós-moderna são os ter-
mos predominantemente utilizados para designar tais tipos de narrati-
vas. Geralmente, Dom Quixote de la Mancha2 é considerado o precursor
dos textos que seguem essa linhagem. Assim, desde o século XVII, e ao
longo dos séculos subsequentes, o aparecimento de narrativas voltadas
para si mesmas e que se autoquestionam tem sido uma constante, com
ênfase particular em alguns períodos, como ocorreu no início de século
XVII, na França, no século XVIII, sobretudo na França, Inglaterra e
Alemanha e como ocorreu num tempo bem mais próximo de nós, ao
longo do século XX, principalmente a partir dos anos 50. De fato, no
século passado, houve uma verdadeira proliferação desse tipo de texto
ficcional não só na Europa, particularmente no chamado Novo-roman-
ce francês — por volta dos anos cinquenta/sessenta — mas também
na América, particularmente nos Estados Unidos, nos anos sessenta/
setenta e, inclusive, na América Latina e no Brasil. Com relação às nar-
rativas metaficcionais publicadas a partir da segunda metade do século
XX, costuma-se falar de ficções pós-modernas, visto que a metaficcio-
nalidade, segundo alguns teóricos, seria uma das marcas de pós-mo-
dernidade em literatura. Aliás, é interessante observar que, para outros
teóricos, as narrativas voltadas sobre si mesmas e que contêm questio-
namentos sobre si mesmas no interior da própria obra são uma marca
de modernidade. Marthe Robert, por exemplo, em Roman des origines,
origines du roman (p.11), considera Dom Quixote o primeiro romance
moderno, exatamente por possuir tais c características.
No entanto, a teoria não acompanhou o desenvolvimento da prá-
tica, isto é, se, ao longo dos tempos modernos, os autores nunca deixa-
ram de produzir narrativas metaficcionais, ou de natureza semelhante, o
1 “Because they do not seek to tell another story but to examine the story-telling process itself, reflexive novels
must be seen as works of literary theory and criticism”. A tradução das citações aqui apresentadas são de nossa
autoria, salvo indicação em contrário.
2 A primeira parte desse romance foi publicada em 1605, e a segunda, em 1615.

14 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


mesmo não acontecia com a tomada de consciência desse tipo de fenô-
meno literário pelos teóricos e pelos críticos literários. De fato, a não ser
pela discussão dessa questão e pelas teorizações do conceito de “ironia
romântica”, realizadas por Friedrich Schlegel e pelos demais membros
do chamado Círculo de Iena, na Alemanha, no final do século XVIII,
essa problemática só passou a fazer parte da preocupação dos teóricos e
críticos literários a partir dos anos setenta, como veremos.
Assim, a partir dos anos setenta, talvez devido à proliferação acima
referida, de romances metaficcionais no século XX, não só teóricos e crí-
ticos literários, mas também romancistas — sobretudo em certos países
da Europa, nos Estados Unidos e no Canadá — se debruçaram sobre as
narrativas mais características dessa tendência, na tentativa de analisá-las,
de definir sua natureza, de determinar diferentes aspectos e procedimen-
tos que as caracterizam.
Hoje, fazendo uma retrospectiva dos estudos teóricos e/ou das
análises críticas publicadas nos últimos quarenta anos, a respeito de
tais narrativas ou de diferentes aspectos que as caracterizam, verifica-se
um fato singular: por um lado, os diversos estudiosos que se ocuparam
dessa questão e que escreveram o que podemos considerar os textos
teóricos fundadores desse domínio de estudos criaram e/ou utilizaram
uma quantidade enorme de termos para designar o tipo de narrativa
de que aqui nos ocupamos; por outro lado, outros autores que retoma-
ram o termo metaficcção e/ou seus derivados, em suas considerações
teóricas sobre essa problemática, se distanciam de seus predecessores
ou dão continuidade a suas reflexões na tentativa de melhor apreen-
derem e delimitarem os aspectos distintivos desse tipo de narrativa,
embora, geralmente, em suas abordagens, assumam, para caracterizar
os fenômenos literários em questão, o mesmo ponto de partida a saber:
metaficção é ficção sobre ficção.
Para dar uma ideia da variedade e multiplicidade de termos e
noções criadas/utilizadas pelos referidos estudiosos, em suas reflexões
teóricas sobre essa questão, para caracterizar os fenômenos literários a
que aludimos, citamos alguns dos termos por eles propostos, a saber:
antirromance, metaficção, narrativa pós-moderna, ficção pós-moderna,

A METAFICÇÃO REVISITADA: UMA INTRODUÇÃO (BIS) 15


narrativa narcisista, ficção autorreferencial, ficção reflexiva ou autorrefle-
xiva, ficção autoconsciente, antificção, não ficção, narrativa antimiméti-
ca, metaficção historiográfica, fabulação, ficção neo-barroca, romance de
introversão, ficção introspectiva, superficção, transficção.
Apesar da extensa lista, outros termos ainda poderiam ser citados,
mas acreditamos que os que acabamos de enumerar sejam suficientes
para ilustrar nossas considerações sobre o assunto. O que ocorre é que,
embora não sejam sinônimos, muitos desses termos são utilizados por
alguns críticos como tais, sendo às vezes empregados uns pelos outros.
Considerando, pois, a diversidade das posições dos autores que
estudaram a questão da narrativa metaficcional e de produções literárias
que se aproximam desse tipo de texto, e considerando ainda a multipli-
cidade de termos que foram criados e são utilizados para designar tais
tipos de objetos literários, um dos aspectos de nossa pesquisa consiste em
examinar os principais termos e noções utilizados por diferentes teóricos,
nesse domínio, para verificar em que medida a diversidade terminológica
remete a noções semelhantes, ou em que medida a utilização e criação de
termos se justifica em virtude de os referidos termos designarem procedi-
mentos ou fenômenos literários de natureza diferente.
É evidente que, diante da amplitude da matéria a ser examina-
da, o quadro do presente trabalho não permite um estudo exaustivo da
questão. Por isso, limitar-nos-emos, aqui, a examinar apenas alguns dos
termos listados, para mostrar um pouco aos leitores os rumos de nossas
reflexões sobre a problemática aqui exposta3, apoiando-nos em alguns
de seus pressupostos básicos. Esta é a razão pela qual introduzimos os
termos “uma introdução” no título deste artigo. A pesquisa que ora de-
senvolvemos situa-se numa perspectiva teórica. No entanto, como nos-
sa meta pressupõe a verificação das razões das retomadas, alterações ou
substituições de termos, confrontados às noções que eles remetem ou aos
objetos literários que eles designam, isto só pode ser feito a partir de uma
abordagem comparativa, analítica e cronológica do material em questão.
Por isso, tentaremos começar do começo, isto é, das primeiras colocações
teóricas relativas ao que hoje chamamos metaficção. E, no começo, como
3 O presente artigo se situa no contexto de uma pesquisa mais ampla que estamos desenvolvendo sobre o
assunto em questão.

16 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


veremos, o termo passe-partout para designar o tipo de obra das quais nos
ocupamos era antirromance.

Antirromance
De fato, ao longo dos tempos, pelo menos desde o século XVII, o
termo antirromance era utilizado para designar ficções que transgrediam
as normas artísticas ou que, por procedimentos diversos (particularmente
a paródia), criticavam a escrita romanesca no interior da própria obra fic-
cional. No entanto, o leque de transgressões dos chamados antirromances
e a multiplicidade de aspectos criticados pelas narrativas que recebiam tal
designação eram bastante variados. Sendo assim, duas obras consideradas
como antirromances podiam ser de natureza bem diferente. É por esta ra-
zão que Gérard Genette considera esse termo, “do ponto de vista teórico,
ao mesmo tempo muito restrito e muito vago” (1982, p. 168)4
No Dicionário de Termos Literários, de Joseph Shipley, de 1970,
Dom. Quixote é considerado um antirromance, porque foi escrito como
uma reação contra os romances de cavalaria. Esta obra de Cervantes é
hoje incluída entre as ficções metaficcionias mais representativas desse
gênero e, mesmo, como já dissemos, considerada como sua principal pre-
cursora. O romance Tristran Shandy, de Laurence Sterne, também é ci-
tado no dicionário de Shipley como um antirromance, por constituir um
“protesto contra as convenções das formas romanescas”. Hoje, é consenso
entre a maior parte dos teóricos e críticos, que esse romance de Sterne é
um dos exemplos mais representativos de ficção metaficcional.
Sobre a possível origem do termo antirromance, a nosso ver, não
se pode ignorar o romance Le Berger Extravagant, de Charles Sorel,
publicado, na França, em 1627. Assim como Cervantes escreveu Dom
Quixote parodiando os romances de cavalaria, Sorel escreveu Le Ber-
ger Extravagant, parodiando os romances pastorais do século XVI e
início do século XVII. Em seu livro, Sorel critica, nos romances de seu
tempo, a falta de realismo, a incapacidade de o romance representar o
real e, sobretudo, os excessos de romanesco. Esses aspectos, segundo
4 Aliás, em Palimpsestes, Genette trata do antirromance sobretudo como “prática hipertextual complexa” que
se aparenta por alguns de seus traços à paródia” (1982, p 168)

A METAFICÇÃO REVISITADA: UMA INTRODUÇÃO (BIS) 17


ele, levam o leitor “ao caminho da perdição” (SOREL, 2011, p. 229),
encorajam o crime, corrompem os bons costumes e são inimigos da
verdadeira religião, por fazerem acreditar nos deuses da mitologia. Eis
como o próprio autor, no prefácio, apresenta suas intenções ao escrever
esse romance: “o desejo que tenho de trabalhar pela utilidade pública
levou-me a compor um romance que zombasse dos outros, e que fosse
como o túmulo dos romances” (p.1).5 Não restam dúvidas de que Le
Berger Extravagant foi fortemente inspirado em Dom Quixote, como
se pode ver por este brevíssimo resumo: o protagonista — um jovem
burguês, filho de um rico comerciante — ficou tão transtornado com
as leituras dos romances pastorais, que, vestindo-se de pastor como os
descritos nesses romances, comprou alguns carneiros, que levava para
pastar nas margens do Sena e, confundindo realidade e ficção, passou
a acreditar que vivia as aventuras dos heróis desses romances. Em seu
delírio romanesco, passa por situações análogas às vividas por Dom
Quixote, em que é alvo de escárnio e de zombaria.
Em 1633, a segunda edição desse mesmo romance foi publica-
da por Sorel, com “o título L’Anti-Roman” (COULET,1975, p.198).
Pode ser, pois, que Sorel tenha sido o criador do termo antirromance.
Já em uma época mais recente, em 1947, Jean Paul Sartre, no Pre-
fácio que escreveu para Portrait d’un inconnu, de Nathalie Sarraute, clas-
sifica como antirromance, esse romance da escritora francesa, bem como
ficções de Vladimir Nabokov, de Evelyn Waugh e os Moedeiros Falsos, de
André Gide. Vejamos de que maneira Sartre define antirromance, nesse
prefácio (1956, p.9):
Os antirromances conservam as aparências do romance; são obras de
imaginação que nos apresentam personagens fictícias e nos contam sua
história. Mas é para melhor desiludir: trata-se de contestar o romance
por meio dele próprio, de destruí-lo sob nossos olhos, enquanto se finge
edificá-lo, de escrever o romance de um romance que não é escrito [...].6

5 “le desir que j’ay de travailler pour l’utilité publique m’a fait prendre le dessein de composer un livre qui se
moquast des autres, et qui fust comme le tombeau des romans, et des absurditez de la poésie”.
6 “Les anti-romans conservent l’apparence et les contours du roman; ce sont des ouvrages d’imagination qui
nous présentent des personnages fictifs et nous racontent leur histoire. Mais c’est pour mieux décevoir: il s’agit de
contester le roman par lui-même, de le détruire sous nos yeux dans le temps qu’on semble l’édifier, d’écrire le roman
d’un roman qui ne se fait pas [...]”.

18 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


Ao contrário de alguns críticos, Sartre não vê no antirromance a
morte do gênero, mas um sinal da vitalidade desse tipo de narrativa que
soube acompanhar a tendência e as inquietações da época em que foi pro-
duzido. É o que se pode verificar, na sequência de seu comentário anterior:
“Essas obras estranhas e dificilmente classificáveis não dão testemunho da
fraqueza do gênero romanesco, revelam apenas que vivemos em uma época
de reflexão e que o romance está refletindo sobre si próprio” (p.9)7.
Achamos importante salientar que, até o momento atual, século
XXI, antirromance continua sendo um termo genérico utilizado — prin-
cipalmente por aqueles que não estão familiarizados com as teorias sobre
a metaficção ou domínios teóricos vizinhos — para designar obras ro-
manescas que, de alguma maneira, subvertem as convenções do gênero.

Ironia romântica
Que seja de nosso conhecimento, a primeira abordagem teórica sig-
nificativa da questão que nos ocupa foi a noção de “ironia romântica” tal
como proposta por Friedrich Schlegel8, no âmbito do primeiro Roman-
tismo alemão, na virada do século XVIII, decorrente do questionamento
sobre “a busca de um elemento que possibilitasse à literatura dos autores
modernos atingir a objetividade que a literatura dos antigos lograra atin-
gir” (MEDEIROS, 2014b, p.39).
A partir da antiga ironia socrática, que ele reinterpretou — e dos
conceitos de reflexividade propostos por Johann Gottlieb Fichte —,
Schlegel construiu sua teoria da ironia romântica, em que desenvolve a
ideia de uma poesia transcendental9 e vê o romance como uma poesia da
poesia. Em outras palavras, para Schlegel, a ideia de poesia da poesia é a
base de sua definição de romance. Por isso, pode-se dizer que o primeiro
romantismo alemão foi o primeiro movimento a valorizar o romance
que, como se sabe, era um gênero literário considerado bastardo, até o
7 “Ces oeuvres étranges et difficilement classables ne témoignenet pas de la faiblesse du genre romanesque,
elles marquent seulement que nous vivons à une époque de réflexion et que le roman est en train de réfléchir sur
lui-même”.
8 Segundo Pierre Schoentjes (2001, p.100), a primeira ocorrência do termo “ironia romântica”, em Schelegel
dá-se em 1797.
9 “O adjetivo ‘transcendental’, que remete aos escritos de Fichte, significa que, nesse tipo de ironia, a reflexão
sobre o processo criador ocupa o lugar central, assim como o ‘eu’, na filosofia fichteana” (MEDEIROS, 2014b, p.57).

A METAFICÇÃO REVISITADA: UMA INTRODUÇÃO (BIS) 19


século XVIII10. Assim, a reflexão teórico-crítica literária, no interior da
própria obra ficcional, é um dos pontos fulcrais da ironia romântica, que
vê o ato reflexivo de criticar a própria obra como uma atividade criadora.
Para compreender bem a ironia romântica de Schlegel, é fun-
damental ter em mente sua concepção de poesia, que é extremamente
abrangente. Para ele, a poesia romântica deve englobar todos os gêneros
— e mesmo fundi-los —, englobar todos os tipos de discurso e outros
elementos extra-linguísticos, como se pode ver, neste excerto do Frag-
mento 116, publicado na revista Athenaeum11:
A poesia romântica é uma poesia universal progressiva. Sua destinação não
é apenas reunificar todos os gêneros separados da poesia e pôr a poesia
em contato com a filosofia e a retórica. Quer e também deve ora mesclar,
ora fundir poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia-de-arte e poesia-de-
natureza12, tornar viva e sociável a poesia, e poéticas a vida e a sociedade.
[...] . [A poesia] abrange tudo o que seja poético, desde o sistema supremo
da arte, que por sua vez contém em si muitos sistemas, até o suspiro, o
beijo que a criança poetizante exala em canção sem artifício (1997, p. 64).

Para não deixar dúvida sobre a abrangência de sua concepção de


“poesia”, Schlegel conclui o referido fragmento com a seguinte afirmação:
“O gênero poético romântico é o único que é mais que um gênero e é,
por assim dizer, a própria poesia(...)”.
Segundo Walter Benjamim (1993, p.52), “Schlegel era um filó-
sofo-artista ou um artista filosofante” (grifos nossos). De fato, por um
lado, o ponto de partida de suas reflexões sobre a ironia romântica era
predominantemente filosófico, pois ele buscava conexões entre a filo-
sofia socrática e a de sua época. Por outro lado, ele desenvolveu suas
ideias sobre a ironia romântica, como crítico literário, a partir da aná-
lise de textos literários de grandes escritores, como Cervantes, Sterne,
Diderot, Shakespeare, Goethe e Tieck. Como se sabe, as obras Dom
Quixote de la Mancha, A vida e as opiniões de Tristran Shandy e Jacques
10 Evidentemente estamos nos referindo, aqui, ao romance da modernidade.
11 Schlegel nunca expôs sua concepção de ironia romântica, de modo sistemático. Suas ideias sobre essa
questão foram apresentadas em fragmentos publicados nas revistas Lyceum e Athenaeum, esta última, fundada
com seu irmão Auguste Wilhelm Schlegel, em 1798. Para Schlegel, o fragmento é “uma forma genuína de filosofia
crítica, que não admite qualquer pensamento como um sistema que se apresente acabado”.
12 TzvetanTodorov (1977, p. 231,233) traduz esta última expressão por “poesia natural”. Em seu entender, esta
se refere à poesia popular, e a poesia-de-arte refere-se à poesia artificial, isto é, mais elaborada.

20 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


o fatalista e seu amo, de autoria, respectivamente, dos três primeiros
citados são consideradas precursoras da narrativa metaficcional. Em
uma das clássicas resenhas crítico-literárias de Shlegel, a “Caracteriza-
ção sobre o Wilhelm Meister”,
o crítico descreve como Goethe inseriu diversas teorizações sobre
o teatro, o romance, os gêneros poéticos, e mesmo sobre a atividade
de crítico de literatura dentro de seu romance. Schlegel afirma que o
romance de Goethe é perpassado por um hálito de ironia que empresta
à obra a objetividade necessária(...). Assim, a ironia romântica poderia
acontecer na obra com uma dimensão autocrítica e reflexiva que o autor
realiza através de diversos procedimentos, ou através da busca pela ilusão
ficcional (apud MEDEIROS, 2014b, p.41).

Outra resenha crítico-literária de Schlegel, citada como exemplo


por Medeiros, é a do Gato de botas, famosa peça de Ludwig Tieck, em que
o filósofo alemão mostra como “os atores espalhados na platéia faziam o
público acreditar que estavam criticando a encenação, quando, em verda-
de, eram também parte da própria peça”(p.41-42).
O leitor tem uma grande importância para a ironia romântica.
Para Schlegel, o leitor não pode ser passivo, ele deve ser atuante e engajar-
-se na leitura, considerando que, “se a ironia é um modo de escrita, ela é
também um modo de leitura. A dinâmica de pensamento da ironia não
existe no poema, senão com a condição que o leitor participe ativamente
na constituição de um sentido”13 (SCHOENTJES, 2001, p.107). Além
disso, a participação do leitor implica uma atitude de distanciamento
deste, em relação ao texto que está lendo, pois, ainda segundo Schoen-
tjes, conforme o reza o referido filósofo “o leitor deve ser um observa-
dor crítico da narração e estar sempre consciente do caráter ficcional da
obra”(p.108).14 Do mesmo modo, o próprio criador deve manter uma
distância com relação à ficção que produz, já que é durante a escrita que
ele sente sua dupla natureza de criador e de observador.
Amarillys Chanady, em seu artigo sobre “a metacrítica da me-
taliteratura” (1997, p.141), comenta que Helmut Prang, em sua Die
13 “si l’ironie est un mode d’écriture, elle est aussi un mode de lecture. La dynamique de pensée de l’ironie
n’existe dans le poème qu’à condition que le lecteur participe activement à la constitution d’un sens”.
14 “Le lecteur doit être un observateur critique de la narration et rester toujours conscient du caractère fictionnel
de l’oeuvre.”

A METAFICÇÃO REVISITADA: UMA INTRODUÇÃO (BIS) 21


Romantische Ironie, 1970), bem como outros teóricos da ironia ro-
mântica salientam que esta forma, sobretudo romanesca e teatral, é
caracterizada pela distância evidente que o autor toma em relação à
sua obra, pela autoconsciência formal, pela destruição da ilusão rea-
lista e pela autorreferencialidade.15 Mas, segundo ela, para Prang,
na ironia romântica, não se deve considerar como ironia toda a ên-
fase sobre a forma.
Embora nos demais países da Europa, a ironia romântica não te-
nha tido o mesmo impacto que na Alemanha, a partir de Friedrich Schle-
gel, como observa Medeiros (2014a, p. 56), “a ironia passa a significar a
reflexão e a metarreflexão artísticas, descrevendo a atitude daquele que
cria perante sua própria obra e existência, sendo, portanto, igualmente,
uma reflexão filosófica”. Assim, a partir do século XIX — além do
emprego dos termos ironia e irônico, em sua acepção retórica tradicional
cuja presença já era comum nos textos literários, pelo menos desde os
autores da antiguidade clássica — passamos a encontrar ocorrências da
expressão “romance irônico”: 1) na acepção ampla e imprecisa em que o
termo “antirromance” era empregado, isto é, como ruptura do cânone; 2)
no sentido mais semelhante ao de metaficção — isto é, para designar um
texto caracterizado pela autorreflexividade16 .
Pela breve incursão que fizemos no domínio da ironia romântica,
particularmente no que diz respeito à posição de Schlegel e no que diz
respeito à questão da reflexividade, não se pode negar que há vários pon-
tos comuns entre a teoria deste filósofo-crítico literário e as modernas
teorias sobre a metaficção, elaboradas desde os anos setenta do século XX,
tais como as de Linda Hutcheon (1984), Patrícia Waugh (1985) e ou-
tros teóricos citados ao longo deste artigo, como se poderá constatar nas
páginas que se seguirão. No entanto, não podemos nos esquecer de que,
apesar de ser um artista-filosofante ou um filósofo-artista, como afirmou
Benjamim, o ponto de partida das reflexões de Schlegel sobre a ironia
15 E nós acrescentaríamos, pela importância atribuída ao leitor.
16 Por exemplo, em sua Histoire du Roman moderne, publicada em 1962, R.-M.Albérès, intitula o capítulo VII
“Roman ironique”, e nesse capítulo, como no cap. VIII, ele trata do que ele considera o “romance irônico” nas várias
acepções às quais acima nos referimos, sem filiar essa denominação a uma tendência teórica específica. Entre as
diversas obras por ele examinadas nesses capítulos e por ele consideradas como romance irônico encontram-se ro-
mances considerados particularmente metaficcionais, como Paludes e Os moedeiros falsos, de Gide, Névoa, de Miguel
Unamuno, Contraponto, de Huxley, além de outros.

22 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


romântica é predominantemente filosófico. Por isso, as diferenças entre as
implicações filosóficas das teorias da ironia romântica e as da metaficção,
tal como as propostas pelos teóricos e críticos literários a partir do último
quartel do século XX, não podem ser negligenciadas.

Metaficção
De acordo com nossas pesquisas, desde os estudos de Schlegel, na
virada do século XVIII, até o início dos anos 70, a discussão teórica sobre a
questão da autorreflexividade, da autorreferencialidade, da autoconsciên-
cia — enfim, sobre o que hoje se considera metaficção em literatura, foi
praticamente inexistente, com exceções esparsas, dentre as quais pode-
mos citar, por exemplo, Mark Schorer (1948), que afirmou que a crítica
moderna começa com o romance moderno, isto é, como parte constitu-
tiva das narrativas dos romances modernos, e Roland Barthes, que, em
1959, em seu artigo “Literatura e Metalinguagem” (1964, p.106) foi um
dos primeiros teóricos a apontar a dupla consciência da literatura:
A literatura não refletia jamais sobre ela mesma (às vezes sobre suas figuras,
mas jamais sobre seu ser), ela não se dividia jamais em objeto observador e
ao mesmo tempo observado; enfim, ela falava, mas não se falava. E depois,
provavelmente com os primeiros abalos da boa consciência burguesa, a
literatura se pôs a se sentir dupla: ao mesmo tempo objeto e olhar sobre
esse objeto, fala e fala dessa fala, literatura-objeto e metaliteratura.17

Um grande número de críticos concorda com a afirmação de Larry


McCaffery, segundo a qual o termo metaficção foi criado pelo crítico e
romancista norte-americano, William Gass, em 1970, em sua obra Fiction
and the Figures of Life, para caracterizar as narrativas ficcionais de José Luis
Borges, Flann O‘brien e John Barth. Segundo Gass (p.25), “de fato, muitas
das ficções chamadas antirromances são, na verdade, metaficções”.
Em 1976, ao comentar o artigo de Gass, em que este crítico in-
troduz pela primeira vez o termo “metaficção”, Larry McCaffery (1976,
17 La littérature ne réfléchissait jamais sur elle-même (parfois sur ses figures, mais jamais sur son être), elle ne
se divisait jamais en objet regardant et regardé; bref,elle parlait mais ne se parlait pas. Et puis, probablement avec les
ébranlements de la bonne conscience bourgeoise, la littérature s’est mise à se sentir double: à la fois objet et regard
sur cet objet, parole et parole de cette parole, littérature-objet et méta-littérature.

A METAFICÇÃO REVISITADA: UMA INTRODUÇÃO (BIS) 23


p.22) também acha que o termo antirromance tem uma abrangência
muito ampla, porque ele pode incluir todas as obras experimentais que
rompem com as convenções. Por isso, ele indica a característica definido-
ra das narrativas metaficcionais que, a seu ver é a preocupação, no próprio
texto, com o seu próprio fazer ficcional.
Parece-nos, que Gass, ao propor o termo metaficção, por achá-
-lo mais adequado para designar as obras dos autores citados anterior-
mente, deixa implícito, ao mesmo tempo, o livre trânsito que o termo
“antirromance” tinha entre os críticos seus contemporâneos ou que o
precederam, para designar narrativas experimentais ou que implica-
vam uma transgressão do cânone.
Depois de Gass, Robert Scholes foi um dos primeiros a empregar
o termo metaficção, em seu artigo “Metafiction”, publicado em 1970.
Mas ele não dá uma definição precisa do termo. Aí, ele tenta explicar a
natureza da ficção experimental daquela época, ao analisar obras de John
Barth, Donald Bartheleme, Robert Coover e William Gass. Ele separa
esses textos em quatro categorias, sendo que, em cada um dos textos ana-
lisados, ele enfatiza apenas um dos seguintes aspectos: formal, filosófico,
comportamental e estrutural. Scholes estabelece uma relação entre o que
ele considera as diversas manifestações de metaficção nas ficções que ele
analisa e as referidas tendências críticas. Examinado esta proposta do re-
ferido teórico, Linda Hutcheon pergunta: “onde está o meta nesta meta-
ficção?”. (HUTCHEON,1984, p.21).
Em um estudo posterior, Scholes (1979, p.16) definia a “metafic-
ção” ou “ficção autorreflexiva”, como ele também denominava esse tipo
de ficção, como, “a ficção que assimila a crítica ao processo ficcional,
ou a ficção que, transgredindo suas próprias leis, condena-se à morte,
porque se envolve na super-elaboração masturbatória de suas próprias
complexidades.”18
Gérard Genette também pode ser visto como um dos precursores
da reflexão em torno da questão que nos ocupa. Em sua obra Figures III
(1972,), ao tratar dos, “níveis narrativos”, ele propõe as noções de “meta-
narrativa”, de “narrativa metadiegética” e de “metalepse narrativa”. Esta
18 “the fiction that assimilates criticism into the fictional process, or, the fiction that assaulting its own laws,,
threatens itself to death because it is self-involved in the masturbatory over elaboration of its own complexities.”

24 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


última se caracteriza pela passagem de elementos de um nível narrativo
para outro, ou, como ele mesmo especifica: trata-se de “toda intrusão
do narrador ou do narratário extradiegético no universo diegético (ou
de personagens diegéticos no universo metadiegético, etc) ou vice-versa
[...]”19 (p.244). Exemplos desse caso podem ser encontrados em Jacques
o Fatalista e seu amo, de Diderot, em que o autor/narrador extradiegético
participa das ações de algumas das histórias por ele narradas
Um sobrevôo pelas definições de metaficção revela que, várias den-
tre elas, para considerar um texto como metaficcional levam em conside-
ração a relação entre ficção e realidade, e inúmeros estudiosos da metafic-
ção viram esse gênero, ou categoria, como sendo, em primeiro lugar, uma
reação contra a ficção realista e uma recusa do mimético.
Robert Alter, por exemplo, que utiliza o termo “romance auto-
consciente” em vez de metaficção, em seu livro Partial Magic: The Novel
as a Self-Conscious Genre, assim define esse tipo de romance: “Em resumo,
um romance autoconsciente é um romance que sistematicamente ostenta
sua condição de artifício e, ao fazer isso, questiona a relação problemática
entre um artefato imitando a realidade e a realidade.”20 (1978, p.x). Esse
crítico, no referido livro, escreve uma história do romance baseada no
pressuposto de que a reflexividade é a função dominante sempre que o
realismo está em baixa e vice-versa. A reflexividade, diz ele, era importan-
te para o romance, na fase inical de seu desenvolvimento, como é o caso
de Dom. Quixote, e particularmente das obras do século XVIII, como
Tristran Shandy, de Laurence Sterne, e Jacques le Fataliste, de Diderot.
Mas, acrescenta ele, a reflexividade foi completamente eclipsada, quando
o realismo tornou-se o modo dominante, no século XIX.
De fato, vários críticos concordam em afirmar que, foi apenas mais
tarde, com escritores como Borges, Beckett e Nabokov, que a ficção vol-
tou-se novamente para o “polo” reflexivo, e o período pós-moderno foi, é
claro, segundo eles, o ponto alto do romance reflexivo.
O teórico Mas’Ud Zavarzadeh, por sua vez, refletindo na mes-
ma direção em que Robert Alter e, deixando claro de que modo ele
19 “toute intrusion du narrateur ou du narrataire extradiégétique dans l’univers diégétique (ou de personnages
diégétiques dans un univers métadiégétique, etc) ou inversement[...]”.
20 “A self-conscious novel, briefly, is a novel that systematically flaunts its own condition of artifice and that by
so doing probes into the problematic relationship between real-seeming artifice and reality”.

A METAFICÇÃO REVISITADA: UMA INTRODUÇÃO (BIS) 25


considera a relação metaficção/ mimesis/realidade, comenta:
Esta intensa autorreflexividade da metaficção é causada pelo fato que a
única realidade concreta para o metaficcionista é a realidade de seu próprio
discurso. Assim, sua ficção volta-se para si mesma, transformando o
processo da escrita no assunto da escrita.21 (1976, p.39)

Patrícia Waugh, em seu livro Metafiction: The Theory and Practice


of Self-Conscious Fiction, publicado inicialmente em 1984, além de exa-
minar o modo como a narrativa metaficcional se declara um artefato,
ao questionar elementos fundamentais de sua estrutura narrativa, coloca
também em discussão a maneira como, ao sugerir a possível ficcionali-
dade do mundo fora do universo ficcional, a metaficção leva o leitor a se
questionar sobre a relação entre ficção e realidade. Aliás, esses aspectos
estão presentes na definição que ela dá desse termo:
Metaficção é um termo atribuído a escritos ficcionais que auto
conscientemente dirigem sua atenção para seu status como artefato, para
questionar o relacionamento entre ficção e realidade. Ao apresentar uma
crítica a seus próprios métodos de construção, tais escritos não apenas
examinam as estruturas fundamentais da narrativa ficcional, eles também
exploram a possível ficcionalidade do mundo fora do texto ficcional.22
(WAUGH,1985, p.2; grifo da autora)

Linda Hutcheon, em Narcissistic narrative: the metaficcional paradox,


define “narrativa narcisista” ou “metaficção” como uma “ficção sobre a fic-
ção – isto é, a ficção que inclui dentro de si um comentário sobre sua pró-
pria identidade narrativa ou lingüística”.23 (1984, p.1). Uma das grandes
diferenças entre a proposta de Hutcheon e as de outros teóricos é sua in-
sistência na participação do leitor, como característica da metaficção. Aliás,
para ela, tal participação seria o marco diferenciador entre a metaficção
contemporânea e a metaficção existente anteriormente. Esta autora explica
21 “This intense self-reflexiveness of metafiction is causead by the fact that the only certain reality for the me-
taficcionist is the reality of his own discourse; thus his fiction turns in upon itself, transforming the process of writing
into the subject of writing.”
22 “Metafiction is a term given to fictional writing which self-consciously draws attention to its status as an
artefact in order to pose questions about the relationship between fiction and reality. In providing a critic of their own
methods of construction, such writing not only examines the fundamental structures of narrative fiction, they also
explore the possible fictionnality of the world outside the literary fictional text”.
23 “fiction about fiction – that is, fiction that includes within itself a commentary on its own narrative and/or
linguistic identity”

26 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


em 1984, no prefácio para a edição de bolso de Narcissistic Narrative, que
ela, nessa obra, resistiu em usar a etiqueta “ficção Pós-modernista”, já cor-
rente naquela época para designar o tipo de narrativa em questão, e preferiu
o termo “metaficção”, porque o termo “pós-modernismo” lhe parecia uma
etiqueta muito limitada para um fenômeno literário contemporâneo tão
amplo como a metaficção. Entretanto, nesse mesmo prefácio, ela estabelece
uma relação estreita entre metaficção e pós-modernismo:
A autoconsciência formal e temática da metaficção, hoje, é paradigmática
da maior parte das formas culturais do que Jean-François Lyotard chama
de nosso mundo “pós-moderno” — dos comerciais de televisão ao
cinema, dos livros cômicos aos vídeos artísticos. Ultimamente, parecemos
fascinados pela habilidade de nossos sistemas humanos se referirem a eles
mesmos num processo infinito de espelhamento. (p.xii)24

No entanto, apesar de sua rejeição inicial à “etiqueta” pós-moder-


nismo, Hutcheon, acaba admitindo “que seria loucura negar” que a me-
taficção era reconhecida como uma manifestação do pós-modernismo
(1984, p. xiii). Assim é que, dois de seus livros publicados posteriormente
sobre o assunto recebem os títulos Uma poética do Pós-modernismo e A
política do Pós-modernismo. Para designar o que considera como ficção
pós-moderna, essa teórica cunhou o termo “metaficção historiográfica”,
termo que coloca em evidência duas especificidades desse tipo de narrati-
va: seu caráter de meta-discurso e sua relação com a historiografia, como
se pode verificar em suas próprias palavras:
Com esse termo, refiro-me àqueles romances famosos e populares que,
ao mesmo tempo, são intensamente autorreflexivos e, mesmo assim, de
maneira paradoxal, também se apropriam de acontecimentos e personagens
históricos [...]. (HUTCHEON, 1991, p.21).

Mais adiante, sobre a função da metaficção historiográfica, ela


esclarece: “sua ‘autoconsciência teórica’ sobre a história e sobre a ficção
como criações humanas ‘passa a ser a base para repensar e reelaborar as
formas e os conteúdos do passado’ “ (1991, p.22, grifos nossos).
24 “The formal and thematic self-counsciouness of metafiction today is paradigmatic of most of the cultural
forms of what Jean-François Lyotard calls our “postmodern“ world – from television comercials to movies, from comic
books to video art.We seem fascinated lately by the ability of our human systems to refer to themeselves in an endless
mirroring process”.

A METAFICÇÃO REVISITADA: UMA INTRODUÇÃO (BIS) 27


Assim, a metaficção historiográfica implica uma textualização de
nosso conhecimento do passado, bem como um questionamento, uma
revisão da história oficial. Isto ocorre devido a diferentes procedimentos
da metaficção, tais como a paródia, a ironia, a intertextualidade etc. No
entanto, dois outros aspectos contribuem bastante para a atitude crítica
desse tipo de narrativa: os personagens históricos são trazidos para o pri-
meiro plano, e seus protagonistas são os ex-cêntricos, os marginalizados,
as figuras periféricas da história oficial, ao contrário do que se verifica no
romance histórico tal como visto por Luckàcs. Segundo a concepção des-
te teórico, os personagens históricos são relegados a papéis secundários,
e os protagonistas são tipos — “uma síntese do geral e do particular, de
todas as determinantes essenciais em termos sociais e humanos “ (apud
HUTCHEON, 1991, p.151).
Além de tentarem definir a metaficção, apontando, por exemplo,
aspectos que a caracterizam — e se tal fenômeno literário constitui um
gênero, um modo ou uma categoria literária —, os textos sobre tal pro-
blemática, hoje bastante numerosos, são perpassados por discussões polí-
ticas e ideológicas. Isto é compreensível, principalmente, se lembrarmos
que: por um lado, vários estudiosos da questão, consideram a narrativa
metaficcional sinônimo de narrativa pós-moderna; por outro lado no fi-
nal do século XX, as discussões em torno da questão do Pós-modernismo
eram o centro de preocupação do mundo acadêmico e, nessas discussões,
uma das temáticas predominantes era a relação entre artes versus política,
sociedade, cultura e realidades históricas.
Para Wenche Osmundsen — uma das estudiosas da questão da
metaficção —, o pós-modernismo talvez seja melhor definido como
uma crise epistemológica que atingiu o mundo Ocidental a partir
da 2ª Guerra Mundial, e consistiria no reconhecimento da natureza
provisória, convencional e fabricada de todas as estruturas culturais e
sociais. A referida crítica lembra que, de fato, a noção de Pós-moder-
nismo não se limita ao domínio artístico, e seus teorizadores mais co-
nhecidos, Jean-François Lyotard, Jürgen Habermas e Jean Baudrillard
apresentam o Pós-modernismo como um fenômeno que abrange to-
dos os aspectos da vida contemporânea. O “momento reflexivo”, diz

28 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


ela, isto é, o reconhecimento da ficcionalidade de todos os sistemas
sociais e culturais, é central na maior parte das definições de Pós-
-modernismo, e a metaficção, definida como ficção que reconhece
sua própria ficcionalidade, tem sido vista como a tradução natural do
pós-modernismo para uma forma literária (OSMUNDSEN, 1993,
p.84). Talvez isto explique o fato de os termos “ficção pós-moderna”
e “metaficção” terem sido usados frequentemente como sinônimos.
Desde os primeiros críticos que se debruçaram sobre a questão
da autorreflexividade, várias críticas têm sido feitas aos textos metafic-
cionais ou Pós-modernos, por várias razões. Em primeiro lugar, os ter-
mos autoconsciente, autorreflexiva, ficção introspectiva, romance de
introversão, narrativa narcisista utilizados para designar esse tipo de
texto acabam fazendo com que a reflexividade literária seja assimilada
à imagem de um self humano, psicologicamente negativo, problemá-
tico. Por esta razão, Hutcheon comenta que os termos acima referidos
são utilizados pelos diferentes teóricos em um sentido completamen-
te neutro. Ela faz questão de afirmar que designação “narcisista” de
sua proposta teórica não tem um teor psicológico, nem psicanalítico,
embora ela tenha utilizado o mito de Narciso para fundamentar suas
reflexões. Na verdade, diz ela, não é o autor que é descrito como
narcisista, é a narrativa. Para ela, a narrativa narcisista, em suma, é
o processo tornado visível (HUTCHEON, 1984, p. 6 e 8). Assim,
reforçando essa ideia, ela introduz em seu estudo a noção de mimese
do processo, ou seja, do processo de construir a narrativa, caracterís-
tico da narrativa narcisista. Nesse tipo de narrativa, é desvelado como
a arte é criada, e não apenas o quê é criado. À noção de mimese do
processo, Hutcheon opõe a noção de mimese do produto, ou seja,
a história contada, que é característica do romance do século XIX,
particularmente do romance realista.
Outra crítica que é feita aos textos autorreflexivos é que o au-
tocentramento do gênero impede o envolvimento desse tipo de texto
com aspectos exteriores aos processos da própria escrita. A reflexivi-
dade, segundo tais leituras seria uma marca do abandono, pela ficção,
dos valores humanistas associados ao realismo, da perda dos elos vitais

A METAFICÇÃO REVISITADA: UMA INTRODUÇÃO (BIS) 29


com a história e com a verdade (OSMUNDSEN, 1993, p.84). Esse
tipo de crítica, somada ainda à acusação de hermetismo da maioria
dos textos Pós-modernos, acaba situando tais tipos de textos numa es-
pécie de limbo ideológico, em que não podem ser considerados como
instrumentos políticos válidos, por sua incapacidade de engajamento
com as causas políticas e sociais.
Foi, inclusive, por tais julgamentos negativos sobre a metafic-
ção que Patrícia Waugh iniciou seu livro Metafiction com a seguinte
indagação: “Por que estão dizendo coisas tão horríveis sobre ela [a me-
taficção]?”(1985, p.7)25. Ao tentar defender a metaficção contra essas
acusações, Patrícia Waugh e um número crescente de críticos tentam
mostrar os aspectos políticos e ideologicamente positivos das práti-
cas literárias radicais. Assim, ao salientar a dimensão social e cultural
desse tipo de texto, a argumentação de seus defensores no tocante à
natureza política da metaficção é um contra-argumento à acusação de
que tal tipo de ficção é exclusivamente autocentrada e apolítica.
Aliás, em seu texto The Politics of reflexivity, Robert Siegle coloca
no mesmo plano o realismo e as estruturas aristocráticas e capitalistas e
declara que a reflexividade é uma teoria proletária, uma dimensão per-
manentemente revolucionária da literatura, que persiste em resistir aos
ataques de qualquer paradigma que tente obscurecer suas próprias quali-
dades auto-transformadoras (Apud OSMUNDSEN,1993, p.86).
Diante dessas posições a favor e contra a metaficção como instru-
mento de crítica e/ou de ação política e cultural, um grande número de crí-
ticos, atualmente, reconhece a dificuldade em se generalizar sobre políticas
das formas literárias. A esse respeito, assim se pronuncia Patrícia Waugh:
Um problema que é de crucial importância, e que talvez só possa ser
resolvido uma vez que o próprio Pós-modernismo tenha ele mesmo se
tornado um “pós” fenômeno, é a questão do status politicamente “radical”
dos textos esteticamente radicais.26 (1984, p.148; grifos da autora).

Com estas palavras de Waugh, concluímos esta apresentação, que


sendo apenas uma “introdução” não pretendia ser nem exaustiva, nem
25 “Why are they saying such awful things about it” [metafiction]?
26 “An issue which is of crucial importance, and which may only be resolved once post-modernism has itself
become a ‘post’ phenomenon, is the question of the politically ‘radical’ status of aesthetically radical texts”.

30 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


conclusiva, mas apenas, levantar alguns problemas relativos à questão da
metaficção e apontar para algumas das direções de nossa pesquisa.

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32 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


A ESPIRAL NARRATIVA DE AIRES:
FIGURAÇÕES DO ROMANCE
REFLEXIVO
Rogério Fernandes dos Santos

A ficcionalização do processo editorial


Esaú e Jacó e Memorial de Aires atestam a permanência da reflexão
radical, que Machado de Assis iniciou nos anos de 1880, ao tornar o
romance palco para a formulação crítica da literatura e de suas potencia-
lidades narrativas no campo formal. Para Roberto Schwarz a obra macha-
diana pode ser apreendida como parte da crise da cultura burguesa que já
no final do século 19 dedicava-se a destruir formas literárias.
Levado pelo sentimento que tinha das coisas brasileiras e sintonizado com
o fin de siécle europeu, Machado não olhava o dia seguinte com entusiasmo.
Em sua obra, construção e destruição estão intimamente associadas. Uma
impressionante pesquisa e invenção de formas nacionalmente autênticas
acompanha-se da afirmação irônica (e enfática) de sua arbitrariedade. O
romance de Machado participa da edificação da literatura brasileira, e
também da destruição de formas a que as vanguardas em toda a parte
começavam a se dedicar, como parte da crise geral da cultura burguesa que
se anunciava. (SCHWARZ, 2006, p. 170)

Os dois romances estão unidos por meio do mesmo autor ficcional,


o conselheiro Aires, e mesmo editor ficcional, M. de A, pressuposto1 na
advertência de Esaú e Jacó e creditado na advertência de Memorial de Ai-
res. Ambos surgiram num período de turbulência política que compreen-
de os primeiros anos da República: crise do governo provisório, renúncia
de Floriano Peixoto, da Revolta da Armada, da lei Áurea, da Revolução
Federalista e Guerra de Canudos, elementos que, como apontou a crítica
em vários momentos2, são alegorizados na ficção machadiana. Para além
1 Pressuposto por não vir assinada a advertência.
2 Sobre a interpretação dos romances de Machado de Assis como alegorias da História do Brasil no final do

33
da alegoria da história, a ficcionalização de procedimentos narrativos e
o questionamento da apreensão da realidade enquanto verdade objetiva
proposto por Machado nos permite incluir Esaú e Jacó e Memorial de
Aires na tradição de romances autorreflexivos3, linhagem iniciada na mo-
dernidade com a publicação de Dom Quixote, de Cervantes e continuada
ao longo dos séculos por Laurence Sterne e Diderot4.
Publicado em 1904, diretamente em livro, Esaú e Jacó é o roman-
ce que leva ao extremo a dialética do duplo como estrutura instável da
ficção. Além disso, mais significativa do que a instabilidade ficcional é a
proposição de um alterego ficcional, que distancia Machado de Assis da
autoria do romance e instaura a natureza enganosa da narrativa. Marthe
Robert aponta efeito semelhante em Dom Quixote, “o jogo de antíteses
se repete através de todas as personagens da narrativa, que por este mo-
tivo, está literalmente povoada de duplos” (ALTER, 1978, p.21). Sendo
a narrativa uma categoria instável, nenhuma oposição pode produzir a
resolução de uma síntese, e assim cada par de antíteses, seja incorporada
às personagens do romance ou à sua estrutura narrativa, tende à inversão
dessas antíteses. Trata-se de uma forma de ficção baseada na “natureza da
imitação” (ALTER, 1978, p.23), chamando a atenção para a artificialida-
de da narrativa e sua condição precária de representação, constantemente
oscilante entre as diversas instâncias da duplicidade que se anulam mu-
tuamente em uma espiral de valores e contra valores.
O experimento romanesco da imitação se dá principalmente no
foco narrativo, que se desloca da primeira pessoa, foco da maioria dos
romances de Machado a partir da década de 1880, salvo Quincas Borba,
para o narrador em terceira pessoa, e vice-versa, como extensão do tema
do duplo. A pluralidade de vozes antes estabiliza a estrutura narrativa do
que a dispersa, pelo fato de deixar claro tratar-se de figurações ficcionais.
século 19, consultar: GLEDSON (2003).
3 Diante da diversidade de conceitos – autorreflexivo, metaficcional, autoconsciente, narcisista, autorreferen-
cial –, que designam em linhas gerais o mesmo fenômeno, procurei adotar em minha análise o termo autorreflexivo
ou reflexivo, por serem termos abrangentes e consagrados do vocabulário da teoria literária. Quando for necessário
reportar a algum conceito específico adotarei a denominação dada pelo teórico que a cunhou.
4 A divisão da história do romance moderno em duas tradições, a realista e a autoconsciente (ou autorreflexiva),
foi proposta por Robert Alter nos anos de 1970. “Uma medida da genialidade de Cervantes é o fato de ter sido ele o
iniciador de ambas as tradições do romance: a sua justaposição das fantasias literárias extravagantes à realidade larvar
aponta o caminho aos realistas, a sua manipulação saborosamente ostentosa do artificio que ele constrói estabelece
um precedente para todos os futuros romancistas autoconscientes.” (ALTER, 1998, p. 107.)

34 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


Com isso, em uma espiral, Machado parodia a pretensa objetividade do
romance, perscrutando a moldura realista5 alinhando-a à forma de seus
romances anteriores construídos enquanto simulacros de objetividade,
símile de relato autobiográfico. O ponto de vista, nesse caso, é desfocado
desde a advertência ao leitor, que é aglutinada para dentro da ficção, dan-
do conta da gênese do romance.
Quando o conselheiro Aires faleceu, acharam-se-lhe na secretária sete
cadernos manuscritos, rijamente encapados em papelão. Cada um dos
primeiros seis tinha o seu número de ordem, por algarismos romanos,
I, II, III, IV, V, VI, escriptos a tinta encarnada. O sétimo trazia este
título: Último.
A razão desta designação especial não se compreendeu então nem depois.
Sim, era o último dos sete cadernos, com a particularidade de ser o mais
grosso, mas não fazia parte do Memorial, diário de lembranças que o
conselheiro escrevia desde muitos anos e era matéria dos seis. Não trazia a
mesma ordem de datas, com indicação da hora e do minuto, como usava
neles. Era uma narrativa: e, posto figure aqui o próprio Aires, com seu nome
e título de conselho, e, por alusão, algumas aventuras, nem assim deixava de
ser a narrativa estranha à matéria dos seis cadernos. Último porquê? (ASSIS,
1977b, p.61)

Com a morte do conselheiro – o último da grande linhagem de


narradores/autores machadiana, súmula dos procedimentos autorreflexi-
vos – foram encontrados sete cadernos manuscritos, seis deles com seu
número de ordem, “por algarismos romanos, I, II, III, IV, V, VI, escritos
a tinta encarnada. O sétimo trazia este título: Último.” O sétimo é o
caderno que diverge dos outros seis, nele há uma narrativa “escripta com
um pensamento interior e único6” [...] “que aparado das páginas mortas
ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barca de Pe-
trópolis.” (ASSIS, 1977b, p.61) A nota de advertência torna-se parte do
processo de construção narrativa, historiando o encontro do manuscrito
e singularizando-o: o único dos cadernos escritos em forma de roman-
ce é selecionado para publicação (e o próprio modo como a narrativa
se organiza possibilita aferirmos a concepção de romance adotada pelo
5 “Voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos o Realismo, assim não sacrificaremos a verdade estética.”
(ASSIS, 1975, p. 903).
6 O grifo é meu.

A ESPIRAL NARRATIVA DE AIRES: FIGURAÇÕES DO ROMANCE REFLEXIVO 35


autor Aires). O autor, conselheiro Aires, é, ele mesmo, síntese do autor/
narrador machadiano. Personagem de sua própria narrativa, como o fora
Brás Cubas e Bento Santiago. O que os diferencia no processo de cons-
trução ficcional é o fato de que a narrativa de Aires passou pelo crivo de
um editor, segunda instância narrativa do romance. Note-se que a decan-
tada objetividade é completamente pulverizada com o jogo de espelhos
que se estabelece entre formas narrativas, autorias e tema. A forma de
um dos cadernos, Último, é narrativa, e difere dos outros seis cadernos
chamados de Memorial, “diário de lembranças que o conselheiro escrevia
desde muitos anos.” (ASSIS, 1977b, p.61) Último é um romance escrito
pelo conselheiro e editado por um editor anônimo. Se levarmos adiante
o pacto ficcional proposto pelo autor e estendermos esse universo fictício
à advertência, é razoável supor que o editor tenha sido o mesmo M. de
A. que editou os primeiros seis cadernos que dariam origem ao romance
Memorial de Aires. Na Advertência ao Memorial ele assume o trabalho de
editor dos dois romances:
Quem me leu Esaú e Jacó talvez reconheça estas palavras do prefácio:
“Nos lazeres do oficio escrevia o Memorial, que, apesar das páginas mortas
ou escuras, apenas daria (e talvez dê) para matar o tempo da barca de
Petrópolis. (ASSIS, 1977b, p.63)

Assim, o personagem editor M. de. A. torna-se parte da constru-


ção ficcional, organizando a publicação dos diários após a publicação
do sétimo caderno do conselheiro, Último (alterado pelo editor para
Esaú e Jacó). M. de. A. seleciona passagens, organiza capítulos, modifica
títulos e planeja a trajetória editorial dos cadernos de Aires, aventando
a possibilidade de publicação do restante dos escritos do diplomata no
final da Advertência ao Esaú e Jacó. A publicação do sétimo caderno
justifica-se pelo fato de esse possuir uma “escripta com um pensamento
interior e único.” (ASSIS, 1977a, p.61) Ou seja, a coesão narrativa de
um romance. O mesmo não ocorre com o Memorial, anotações diárias
do conselheiro que foram organizadas a posteriori pelo editor de manei-
ra a se extrair um enredo.
Do total de seis cadernos, o editor ficcional extraiu “a parte relativa
a uns dous anos (1888-1889)” de modo a construir um enredo. O papel

36 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


de composição do romance assume assim uma perspectiva industrial e
sua composição não está isenta da intervenção de agentes externos ao
processo criativo do autor. M. de A. não se furta a intervir no material
deixado por Aires, no intuito de abastecer o mercado de romances. Se
Brás Cubas desmonta o status ficcional do romance, deixando entrever as
linhas que regem a ação, Aires deixará à mostra o processo de composição
em conjunto, do emergente campo editorial que vinha se formando no
final do Império e início da República. Ao ficcionalizar a relação entre au-
tor e editor, está-se pondo em primeiro plano os moldes de composição,
salientando as forças que agem no campo literário ainda no momento de
gestação criativa. No ato de editar, M. de. A. suprime o que ele chamava
na Advertência de Esaú e Jacó de “páginas mortas ou escuras” e torna-se
parte do processo de sentido dos dois romances escritos pelo autor ficcio-
nal conselheiro Aires. Com isso, Machado ficcionaliza o processo de edi-
ção de sua obra, tornando pública as decisões editoriais que determinara
a publicação de seus dois últimos romances.

Assimetrias e projetos de romance


A duplicidade instaurada em Esaú e Jacó, como dito, se dá
desde as páginas iniciais, onde se faz presente os diversos registros de
expressão popular e socialização do final do século 19.
Era a primeira vez que as duas iam ao morro do Castelo. Começaram de
subir pelo lado da rua do Carmo. Muita gente há no Rio de Janeiro que
nunca lá foi, muita haverá morrido, muita mais nascerá e morrerá sem lá
pôr os pés. Nem todos podem dizer que conhecem uma cidade inteira.
Um velho inglês, que aliás andara terras e terras, confiava-me há muitos
anos em Londres que de Londres só conhecia bem o seu club, e era o que
lhe bastava da metrópole e do mundo. (ASSIS, 1977a, p.63)

O narrador conjuga na mesma sentença a sua experiência cosmo-


polita “Um velho inglês [...] confiava-me” com o registro local da visita de
duas senhoras ao morro do Castelo. Durante todo o capítulo, as simetrias
e naturalizações, como já registramos, são componentes estruturais do ro-
mance, entre os diversos registros narrativos, e as assimetrias sociais, vão

A ESPIRAL NARRATIVA DE AIRES: FIGURAÇÕES DO ROMANCE REFLEXIVO 37


se avolumando em busca de síntese. O club inglês evocado pelo narrador
é do mesmo nível de significados para as duas senhoras que o morro ou a
cabocla que faz previsões.
O íngreme, o desigual, o mal calçado da ladeira mortificavam os pés às duas
pobres donas. Não obstante, continuavam a subir, como se fosse penitencia,
devagarinho, cara no chão, véu para baixo. A manhã trazia certo movimento;
mulheres, homens, crianças que desciam ou subiam, lavadeiras e soldados,
algum empregado, algum lojista, algum padre, todos olhavam espantados para
elas [...] (ASSIS, 1977a, p.63)

O caminho até a vidente é “íngreme” e “desigual”, assim como são


desiguais o club e o morro do castelo e as diversas camadas sociais com
que se deparam as senhoras ao longo de seu trajeto. Mulheres, homens,
crianças, lavadeiras, soldados, empregados, lojistas, padre. Trata-se de um
retrato da sociedade carioca em seu miúdo, postas em um mesmo plano,
construindo-se um espaço pela ficção em que essas camadas se relativi-
zam7, passando a compartilhar experiências subjetivas.
O desenho proposto pelo narrador perpassa o período em que
o romance foi escrito e dele extraí um comentário agudo da sociedade
brasileira. As assimetrias buscam resolução no plano da forma, susten-
tada sob o ritmo de uma canção popular entoada pelo pai da cabocla,
que pontua as previsões conjugando a toada com o movimento dos
quadris da vidente.
Lá dentro, a voz do caboclo velho ainda uma vez continuava a cantiga do
sertão:
Trepa-me neste coqueiro,
Bota-me os cocos abaixo.
E a filha, não tendo mais que dizer, ou não sabendo que explicar, dava aos
quadris o gesto da toada, que o velho repetia lá dentro:
Menina da saia branca,
Saltadeira de riacho
Trepa-me este coqueiro,
Bota-me os cocos abaixo. (ASSIS, 1977a, p.67)

7 “[...] a cabocla, o morro com seus populares, a senhora da alta-roda e o narrador cosmopolita compõem uma
situação cheia de complexidade real e literária, em que as imensas distâncias que separam os polos da sociedade bra-
sileira se relativizam, criando um espaço comum. As posições sociais afastadas, os interesses contrários e as crenças
incompatíveis se determinam mutuamente [...] (SCHWARZ, 2014, p. 168).

38 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


Ao concluir suas predições, a cabocla compõe o espaço ficcional
com “o gesto da toada” de seus quadris, cujo ritmo cadenciado subs-
titui o “dizer” e o “explicar” das predições. A elipse entre a predição
e as expectativas de Natividade em saber mais de seu futuro forma-se
pelo retrato da escravidão intuída na cantiga do sertão. A cena, reple-
ta de registros narrativos (o gestual da cabocla, a letra da cantiga do
sertão, os duplos que vão se apresentando como símiles da dualidade
em busca de síntese etc.), pode nos servir como comentário crítico à
recepção dada ao romance de Machado de Assis nos anos de 1870,
notadamente Helena (o experimento machadiano com o romance
melodramático), e as formulações propostas por Franklin Távora (ex-
plicitadas em O Cabeleira, publicado no mesmo período que os ro-
mances iniciais de Machado) que postulava a favor de um romance
regional cuja expressão se desse através da pesquisa etnográfica e dos
costumes populares, pedra de toque do que o autor chamou de “ro-
mances do Norte”8. Uma série de obras nas quais descreve as tradições
populares que, segundo ele, foram esquecidas pelos escritores do sul9.
Sintetizando, é importante salientar a duplicidade de registros narra-
tivos (a predição, a cantiga, a dança, os interditos e alusões típicas da
oralidade) que se ligam e determinam as experiências de sociabilidade
(e seus espaços de difusão) à forma narrativa reflexiva que se pauta
pela toada da cantiga, que preenche os vazios da narrativa como co-

8 Comparativamente são dois projetos de romance propostos na década de 1870. O romance urbano de intriga
amorosa e ascensão social machadiano seguirá um caminho sem a adesão de outros romancistas, ao contrário de
Távora, que terá uma linha de continuidade muito mais nítida com a participação de autores em sintonia com sua
proposta. Távora acena para uma elite letrada que vai se formando ao longo da década, amparada no “bando de ideias
novas” em circulação vindas da Europa e no anseio em ver as proposições científicas e de análise da realidade em
um romance que trate desse novo país que se descortinou a partir do conflito da guerra do Paraguai. Além do projeto
romanesco de Machado e Távora, um terceiro projeto foi proposto por Aluísio Azevedo na década de 1880 e atendeu,
assim como Távora, às ansiedades intelectuais de seu momento histórico. Aluísio propõe seu projeto romanesco calca-
do no postulado naturalista, sem, no entanto, ser integralmente um autor naturalista. Sua obra forma-se na tênue linha
da militância pela profissionalização do escritor, alternando folhetins, claramente escritos como produto de cultura de
massa (ainda em formação no Brasil do oitocentos), com romances de tese, seu real interesse. Trato rapidamente des-
tes autores para ilustrar um pouco o terreno em que Machado irá circular com sua obra romanesca e sugerir que ele irá
aglutinar ficcionalmente essas “tensões” do campo literário brasileiro do século 19. O naturalismo formará escritores
como Júlio Ribeiro, Adolfo Caminha e Domingos Olímpio. Machado permanecerá em sua linha de composição roma-
nesca, solitário. Mas essa solidão também lhe dará liberdade de composição. Em crônica de 1950, Carlos Drummond
de Andrade atesta, com grande ironia, que Machado de Assis é antes ruptura do que continuidade. Diz o poeta: “Não
é recomendável que se institua um modelo dessa ordem, num país ainda novo, que deve cultivar sobretudo as suas
forças primitivas e telúricas. Ai de nós se tal exemplo frutificar! Mas, felizmente, não frutificará. Alguns dos mais belos
nomes da nova geração assim o garantem.” (ANDRADE, 2013, p. 106).
9 Sobre o tema, consultar: SANTOS (2010).

A ESPIRAL NARRATIVA DE AIRES: FIGURAÇÕES DO ROMANCE REFLEXIVO 39


mentário às predições, mas também como reflexão crítica ao campo
literário do século 19.
Sendo assim, ao longo do romance, o narrador organiza o seu
discurso em pequenos blocos quase autônomos, compostos por fábu-
las, anedotas, pequenos episódios cotidianos, o que adensa o impres-
sionismo da narrativa, calcada nas opiniões – interpretações – pessoais
de Aires. A representação do real passa pelo filtro de suas impressões
a respeito do que ele observa. Desse modo, sua subjetividade volatiza
criticamente as convenções da narrativa realista/naturalista até então
reinantes. De um fato extraliterário (o encontro de sete cadernos em
forma de diário) o romance se constitui enquanto narrativa romanes-
ca (o episódio dos gêmeos em constante desacordo), enquanto estudo
das paixões (a escolha e motivações de Flora), e enquanto comentário
sobre a própria narrativa. O fato de o sétimo caderno ter sido encon-
trado já na forma de um romance pode indicar que Aires separou de
seus diários os eventos que poderiam compor uma trama romanesca.
No final do capítulo XII, anota o narrador.
Não cuides que não era sincero, era-o. Quando não acertava de ter a mesma
opinião, e valia a pena escrever a sua, escrevia-a. Usava também guardar
por escrito as descobertas, observações, reflexões, críticas e anedotas, tendo
para isso uma série de cadernos, a que dava o nome de Memorial. (ASSIS,
1977a, p.68)

Aires cuidava de observar e registrar em seu diário aquilo que es-


tava em desacordo com a opinião comum, e, a partir daí, extraía matéria
para sua narrativa, cuja epígrafe “Dico, que quando l’anima mal nata...” 10
dá o tom da consciência do autor sobre o gênero e seu paratexto:
Ora, aí está justamente a epígrafe do livro, se eu lhe quisesse por alguma, e
não me ocorresse outra. Não é somente um meio de completar as pessoas
da narração com as idéias que deixarem, mas ainda um par de lunetas para
que o leitor do livro penetre o que for menos claro ou totalmente escuro.
(ASSIS, 1977a, p.68)
10 Augusto Meyer vê na citação uma “versão machadiana” ao tema da hereditariedade e os fatores predisponentes
transmitidos pelo sangue, tema caro à ficção naturalista. Para Meyer, seguindo a trilha indicada por Alcides Maia, a citação
fornece “ao mesmo tempo a chave das verdadeiras intenções do autor, com referência ao tribunal dos mortos, no episó-
dio dantesco. Não pode haver punição alguma, nem prêmio eterno, se a alma nasceu predestinada ao erro, ao desvio, à
desventura.” (MEYER, 1986, p. 335).

40 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


Está aí, como matéria ficcional, o procedimento de ficção crítica,
recurso para completar a elipse que se faz presente entre o texto e o
leitor. Aires ainda solicita, para completar a elaboração do romance, o
auxílio do leitor.
[...] há proveito em irem as pessoas da minha história colaborando nela,
ajudando o autor, por uma lei de solidariedade, espécie de troca de serviços,
entre o enxadrista e os seus trebelhos. (ASSIS, 1977a, p.68)

A metáfora do embate entre leitor e autor se potencializa para o


embate entre enxadristas, como forma de se fixar o movimento do discur-
so; há ainda, para aquele que “tenha boa visão para reproduzir na memó-
ria as situações diversas”, a possibilidade de excluir o tabuleiro; assim, sem
diagramas, o autor acha por bem demonstrar a matéria sem as fixações
predeterminadas de uma forma objetiva, e o romance está posto com o
mínimo de estrutura. Apenas o embate entre pessoa e pessoa, Deus e o
Diabo, caráter e caráter11.

Memorial de Aires, duplo de Esaú e Jacó


Um breve corte sincrônico referente ao período de publicação
de Esaú e Jacó, 1904 e Memorial de Aires, 1908, nos permite verificar
o quanto o romance de Machado se posicionava a contrapel o em
relação ao romance praticado então. A literatura da época tem como
destaque a obra de Coelho Neto, autor prolixo que segundo Lúcia
Miguel-Pereira percorreu “na sua obsessão da escrita de efeito [...]
todas as correntes literárias da sua época. Romântico por inclinação
natural, foi realista em alguns livros, simbolista noutros, fez incursões
pelo romance de aventuras e pelo regionalismo.” (MIGUEL-PEREI-
RA, 1958, p.262) Ainda segundo Miguel-Pereira “ninguém na lite-
ratura brasileira encarna mais dramaticamente o problema da forma
do que esse escritor” cujas “frases prolixas, difusas, onde a função do
adjetivo é muito mais importante do que a do substantivo”, revelando
11 “O contraste de dous caracteres”, justificativa de composição do primeiro romance de Machado, Ressurreição,
proposto pelo próprio em advertência à primeira edição. Aqui, o contraste entre caracteres, “simples elementos que
fazem o interesse do livro” é mais uma vez evocado, no embate entre leitor e autor, irmão e irmão, romance e diário
íntimo, narrativa de costumes e reflexão metafísica. Sobre o tema, consultar: SANTOS (2017).

A ESPIRAL NARRATIVA DE AIRES: FIGURAÇÕES DO ROMANCE REFLEXIVO 41


a tendência a impressionar-se mais com o aspecto exterior das coisas
do que com a sua essência.
Note-se que o problema da forma, salientada por Lúcia Miguel-
-Pereira na obra de Coelho Neto, é a mesma questão ficcionalizada pelo
romance, em outra chave e com rendimentos diversos, pois o ficcionista
se ocupa em perscrutar os limites da representação do estrato social
singular do Brasil moderno, do poder da ficção em formular questões
referentes à arbitrariedade da ficção e das articulações dessa ficção em
torno da fragmentação do sujeito (o autor/narrador/editor não seria já
um prenúncio daquilo que viria ser a fragmentação do eu moderno?).
A prosa do detalhe e da fratura que é o Memorial de Aires, em que
as digressões assumem a forma de anotações esparsas e devidamente loca-
lizadas no tempo, visto que o diário nos dá o dia em que a ação se passou,
e muitas vezes a hora. Referidas a um curto espaço de tempo, os anos de
1888 e 1889, as anotações dão conta não da intimidade do autor narrador,
como pode sugerir a adoção da forma de diário íntimo, gênero romântico
por excelência, mas do outro, das pequenas desventuras de um casal de
idosos, D. Carmo e Aguiar. Assim, distancia-se da fórmula romântica que
consagrou o gênero do romance em forma de diário íntimo e aproxima-se
da objetividade de um narrador limitado ao seu ponto de vista e às suas
reflexões em torno do que vê. Lembremos que é este um dos objetivos do
Memorial apresentados no romance anterior, Esaú e Jacó.
Quando não acertava de ter a mesma opinião, e valia a pena escrever a sua,
escrevia-a. Usava também guardar por escrito as descobertas, observações,
reflexões, críticas e anedotas, tendo para isso uma série de cadernos, a que
dava o nome de Memorial. (ASSIS, 1977a, p.90)

Mário Alencar aponta que no Memorial de Aires, contrariando as


expectativas de um relato autobiográfico, há um “romance alheio”, pois o
autor fala pouco de si “[...] um diário de anotações da vida alheia, com a
naturalidade de observações e comentários, com o interesse crescente de
um romance, e ao cabo, um romance, é caso único.” (ALENCAR, 1908,
p.2) Ao designar o derradeiro romance de Machado como um “romance
alheio” e “único”, Alencar atesta o estranhamento proposto pelo narrador
Aires, extensão subjetiva daqueles cadernos encontrados em uma gaveta e

42 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


organizados de modo a se extrair um sentido. Atesta, ainda, a permanên-
cia da destruição formal que tanto desorientou a crítica em 1881 com a
publicação de Memorias Póstumas de Brás Cubas. “As memórias são um
romance12?”, questiona um desorientado Capistrano de Abreu diante das
cabriolas narrativas de Brás Cubas. São e não são, responde Brás Cubas.
Fechando o arco de estranhamentos diante da forma romance cultivada
por Machado, iniciada por Capistrano, Mário de Alencar atesta a deso-
rientação permanente causada pelo romance machadiano.

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_____. Prosa de ficção (de 1870 a 1920). Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.

12 Sobre a recepção crítica aos romances de Machado de Assis, consulte: GUIMARÃES (2004).

A ESPIRAL NARRATIVA DE AIRES: FIGURAÇÕES DO ROMANCE REFLEXIVO 43


SANTOS, Rogério Fernandes. A evocação do romance e o espírito suspeitoso
em Ressurreição (1872), de Machado de Assis. In: Machado Assis em Li-
nha. 2017, vol.10, n.21, p. 67-87. 
_____. O reflexo de Helena. Modelos literários e nacionalidade em Helena
(1876), de Machado de Assis. Dissertação de mestrado. DLCV, FFLCH, USP.
2010.
SOUSA, J. Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Institu-
to Nacional do Livro, 1955.
SCHWARZ, Roberto. Duas notas sobre Machado de Assis. In: ___. Que horas
são? São Paulo: Companhia das letras, 2006, p. 165-178.
_____. Dança de parâmetros. In: Novos estudos CEBRAP, 100, novembro de
2014, p. 163-168.

44 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


“VALHA-ME DEUS:
É PRECISO EXPLICAR TUDO!” *1:
A VOZ METAFICCIONAL MACHADIANA EM MEMORIAL

DO FIM, DE HAROLDO MARANHÃO

Paulo Alberto da Silva Sales, Zênia de Faria

Dever potente me faz psiu. Abandono o grave e


expectante e revigorado moribundo. Afasto-me do
vexame daquela polca dançada na antecâmara onde a
morte, sentada e polida, não denunciava impaciência.
Até hoje, ninguém perdeu uma pratinha por esperar. O
leitor não seria e não é exceção. Adeus; não me demoro.
Haroldo Maranhão

Introdução
No presente ensaio, apresentamos uma leitura da narrativa Memo-
rial do Fim: a morte de Machado de Assis, do escritor paraense Haroldo
Maranhão (1927 – 2004), publicada em 1991, caracterizando-se por um
forte teor de autorreferencialidade. Esse romance dialoga com obras de
Machado de Assis, além de explorar traços biográficos deste autor, enfo-
cando, ao longo da narrativa, os últimos dias do Bruxo do Cosme Velho.
Nossa leitura se detém, particularmente, em dois aspectos dessa obra. Na
primeira parte, destacamos os aspectos metaficcionais, característicos das
* Trata-se uma frase dita pela personagem Brás Cubas, que encerra o capítulo CXXXVIII das Memórias Póstumas.
Nesse momento do enredo machadiano, essa personagem faz uma menção “a um crítico” e discorre sobre o que havia
escrito anteriormente. Logo em seguida, no capítulo CXXXIX, Brás Cubas convida o leitor a imaginar como Brás Cubas
seria o ministro de estado, fato, esse, que não aconteceu. Esse capítulo é feito somente de pontos finais e espaços em
branco. Nesses e outros tantos comentários dessa personagem salientam o aspecto crítico dentro da ficção, tornando-
-a metaficcional. Haroldo Maranhão, por sua vez, tomou emprestada a já citada frase de Brás Cubas do capítulo CXXX-
VIII e, por meio dela, iniciou o último capítulo de Memorial do Fim, que seria o capítulo LIV, intitulando-o Post-Scriptum.
Nesse Post-Scriptum, a voz narrativa cede lugar ao próprio Haroldo Maranhão, autor, que explica a suposta origem das
citações machadianas. O problema é que, por se tratar de uma ficção, portanto, inventada, as justificativas apresen-
tadas por Maranhão são ludibriosas e alimentam o caráter hermético de seu jogo textual. Isso é confirmado quando
vamos às fontes citadas por Maranhão e não as encontramos, já que elas não conferem com as indicações originais.

45
narrativas de Machado de Assis, que são desenvolvidos com maior com-
plexidade na escrita romanesca de Maranhão, uma vez que este roman-
cista nortista joga com elementos da realidade e da ficção, mesclando-as.
Na segunda parte, além da metaficcionalidade, refletimos sobre como a
historiografia é questionada a partir das vozes metaficcionais presentes
em Memorial do fim. Esse questionamento é feito a partir da presença de
personalidades históricas da época, tanto dos imortais da Academia Bra-
sileira de Letras e outros amigos de Machado de Assis – que iam visitá-lo
no seu leito de morte –, quanto de personalidades políticas, tais como
o Barão do Rio Branco, e mesmo o diplomata Joaquim Nabuco2. Co-
meçaremos, então, nossa reflexão a partir das estratégias metaficcionais
presente no romance de Maranhão.

A metaficção no engenho de Haroldo Maranhão


Herdeiro, diretamente de Dom Quixote, de Tristram Shandy, de
Jacques, le fataliste, de Viagens à roda do meu quarto e, principalmente,
de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Esaú e Jacó, Dom Casmurro, Me-
morial de Aires, além de grande parte dos contos de Machado de Assis, o
romance de Maranhão, além de sua intertextualidade evidente com essas
obras, é uma ficção autoconsciente que problematiza o ato de escrever em
si mesmo através do desnudamento do labor ficcional. Ao questionar e
problematizar, em todos os níveis, o ato de escrever em si e as naturezas
ontológicas da ficção, da biografia, da história, das cartas e dos diários,
o Memorial de Maranhão é, sem dúvida, uma escritura marcadamente
autorreflexiva. O teor metaficcional de toda a narrativa de Maranhão é,
assim, a mola impulsora que torna o romance uma ficção que se auto-
questiona e convoca o leitor para ser coautor do texto.
Desde a epígrafe que escolhemos para iluminar nossa reflexão,
constatamos que a voz narrativa de Maranhão faz comentários autorre-
flexivos sobre o ato da escrita, deixando de lado, por instantes, a con-
2 Machado de Assis e Joaquim Nabuco eram grandes amigos, muito embora tivessem posições opostas quanto
à política brasileira da época. O que ressaltamos, aqui, é que eles mantiveram uma longa produção epistolar, datadas
de vários momentos da vida de Machado de Assis. Os assuntos dessas missivas são vários. Maranhão, muito prova-
velmente, se serviu de algumas dessas epístolas para construir alguns dos capítulos do Memorial do fim, no qual, o
próprio Joaquim Nabuco questiona sobre a saúde do escritor fluminense.

46 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


centração sobre o que estava sendo narrado: os últimos dias de vida de
Machado de Assis e, para sermos mais precisos, o ano de 1908. Salien-
ta-se, aqui, também, o caráter digressivo e irônico dos comentários do
narrador de Maranhão, ao tratar do estado quase fúnebre do Conse-
lheiro Ayres (nome atribuído pelo próprio Machado a si mesmo em vá-
rios momentos no enredo), agora, ficcionalizado, em sua residência no
Cosme Velho. Por essas e outras razões, a diegese de Maranhão, apesar
de bastante hermética e por mesclar ficção e realidade, usa estratégias
da narrativa ficcional para trabalhar a ironia machadiana contra o seu
próprio criador. Vejamos como isso acontece.
A autorreflexividade se instaura na narrativa em vários níveis. Esta
estratégia é notória desde a forma como os vários eus que conduzem a tra-
ma as apresenta até nas maneiras como eles se apropriam dos fragmentos
e enxertos textuais de natureza fictícia e não fictícia de textos de Machado
de Assis. Os comentários dos narradores sobre eventuais acontecimentos
externos à narrativa dos fatos, e mesmo a perda do foco central de contar
a estória memorialística do escritor fluminense são mesclados a comentá-
rios de ordem crítica sobre a escrita do romance. Os fatos que, a princí-
pio, seriam desimportantes à uma estória de cunho biográfico, passam a
ser fundamentais no enredo de Maranhão.
Em vários momentos do Memorial do fim, percebe-se o tom di-
gressivo shandiano. Em Laurence Sterne, no seu romance Vida e opi-
niões do cavaleiro Tristran Shandy, as tentativas de narrar uma história
retilínea são sempre entrecortadas por comentários que fogem com-
pletamente do propósito de apresentar biografia. Esse aspecto foi reto-
mado por Machado de Assis que, por sua vez, assumiu sua admiração
pela forma shandiana no prólogo das Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Logo, seguindo a esteira de seus antecessores, Maranhão resgata a prá-
tica digressiva e a aplica em seu jogo textual. Para ilustrar, podemos
comentar os três capítulos iniciais do romance de Maranhão e examinar
como essas estratégias estão configuradas.
No capítulo I, intitulado “Dona Marcela”, a voz narrativa focaliza
Machado de Assis em sua residência. Não obstante, os leitores inquietos
percebem que, contudo, este capítulo já apresenta fortes indícios inter-

“VALHA-ME DEUS: É PRECISO EXPLICAR TUDO!”: A VOZ METAFICCIONAL MACHADIANA EM MEMORIAL DO FIM, DE 47
HAROLDO MARANHÃO
textuais com a ficção do Bruxo do Cosme velho, desde o título até a pri-
meira frase do primeiro parágrafo: “Nunca me há de esquecer este dia”,
que remete diretamente ao conto “Missa do galo”. A partir de então, os
limites entre realidade e ficção começam a se esvanecer, e a digressão e os
comentários metafictícios demonstram essas instabilidades. No capítulo
seguinte, capítulo II, intitulado “O bom e o mal uso das portas”, a voz
narrativa usa do artifício digressivo para explicar a transposição de perso-
nagens machadianas para o universo ficcional de Maranhão. A metáfora
das transposições das portas explicita essa questão, como podemos obser-
var no trecho abaixo:
Ninguém transpõe portas pela razão de que ocasionalmente se mantenham
abertas. Quem as inventou teve o propósito de interpor um fácil, leve muro,
menos pétreo e quase imaginário, que estipulasse mera separação entre
exterior e interior, do que estivesse fora do posto adentro. O arbítrio seria do
dono da porta, ou do violador dela; este, indivíduo de maltas, a adjudicar-se
o poder de abri-la com rudeza maior ou menor, dependente da qualidade
da madeira e do humor do bruto. Cuidemos portanto que D. Marcela
Valongo não ultrapassou por ultrapassar a porta do Cosme Velho, apenas
porque surpreendesse franqueada a meia folha. Impante caminhou, impante
sim, com a familiaridade chancelada (parece claro) pelo Conselheiro, que
empregou o próprio sinete na papa do lacre. Terá procedido a bela estranha,
mais bela que estranha, em hora equivocada, por estouvamento ou distração?
Ora! Seria uma verdade sem pernas, que não se aguentaria em pé, porque na
privação de fundamento nada se sustenta. (MARANHÃO, 2004, p. 15 – 16,
grifos nossos)

Por meio desses comentários digressivos e de natureza autorre-


flexiva, destacamos a presença da ironia, tal como destacamos no ex-
certo acima. Além disso, por meio da hipertextualidade, noção essa de
Gérard Genette, em seu livro Palimpsestes: la littérature au second degré,
nota-se que o romance se arquiteta, em vários momentos, por meio
da paródia e do pastiche, fato, este, que o configura como uma forma
espacial. Essa forma espacial, tal como apontou André Scoville (2003),
caracteriza-se pelo jogo textual que trabalha com espelhamentos e com
a mistura de nomes de personagens que transitam no heterocosmo fic-
tício machadiano e passam, então, a ser peças no jogo romanesco de

48 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


Maranhão. E não só isso: as personagens ficcionais do romancista cario-
ca se confrontam com personalidades reais e históricas contemporâneas
a Machado de Assis, tais como sua esposa D. Carolina – identificada
como “D. Carmo” –, Joaquim Nabuco, José Veríssimo, Graça Aranha,
Mário de Alencar, dentre outras, além de figuras sui generis que tanto
podem ser fictícias quanto terem pertencido à história, tais como a pe-
culiar personagem Perpétua Penha Nolasco, escritora novata que pede a
Machado que faça um prefácio a seu livro para que, com isso, ela tenha
sucesso em sua publicação e vendas.
A diegese de Maranhão, nesse propósito, é um jogo montado em
uma arena flutuante e desprovida de realismo. Nesse jogo, os atos des-
critos na narrativa se dão como verdadeiros lances de jogos, e o próprio
ato de lançar uma peça no jogo fictício é questionado. Tal aspecto está
presente no fato de a voz narrativa chamar a atenção dos leitores distraí-
dos – à maneira shandiana, maistreniana e machadiana – em relação aos
desperdícios de concentração e à perda do foco central dos leitores nos
eventos narrados, enfim, à interrupção da leitura por causas frívolas. Uma
das inúmeras vozes presentes na narrativa nos alerta:
Tem-se que açular a memória dos leitores distraídos. Entre um e outro
capítulo eles desperdiçam verbo e tempo, em palestras frívolas; bebem
xerez e fumam charutos. O intervalo de uma leitura dura horas, ou dias,
ou sempre. Leitores assim, se pudesse, demitiria de leitor meu. Pelo santo
nome de Deus, senhores avoados: Jovita era uma das criadas do Conselheiro
Ayres. A que mais se afeiçoou à Leonora. Não, não. Recuso-me a lembrar-
lhes quem foi Leonora. É demais. (MARANHÃO, 2004, p. 163)

No excerto acima, notam-se comentários que destoam do foco


central da narrativa e passam, então, a fazer uma crítica aos leitores que
não fazem uma leitura atenta do texto. Esse tipo de comentário que, aliás,
é típico das narrativas machadianas, vem carregado de uma nova estra-
tégia ficcional: trabalhar de forma lúdica os nomes das personagens do
universo de Machado de Assis com personalidades históricas, portanto,
reais, e com outras, cuja origem os leitores não conseguem identificar.
Por isso, a voz narrativa, mais uma vez, na citação anterior, explicou: “Se-
nhores avoados: Jovita era uma das criadas do Conselheiro Ayres”. Essa

“VALHA-ME DEUS: É PRECISO EXPLICAR TUDO!”: A VOZ METAFICCIONAL MACHADIANA EM MEMORIAL DO FIM, DE 49
HAROLDO MARANHÃO
Jovita é uma personagem muito presente na narrativa que se camufla com
a feição de Leonora do Memorial de Aires.
Outras personagens femininas também são embaralhadas no
jogo metafictício de Maranhão. As personagens que mais aparecem no
jogo de Maranhão são D. Carmo (referência à D. Carolina, esposa de
Machado), Fidélia, a viúva Noronha, da narrativa Memorial de Aires,
Marcela Valongo, a meretriz do romance Memórias Póstumas de Brás
Cubas, dentre outras. Nestes amálgamas, o leitor vê-se confuso diante
dessas personagens que atendem por nomes diferentes em vários mo-
mentos do enredo. Não obstante, o astuto narrador, de forma irônica,
ainda faz questão de torná-las menos identificáveis: “Marcela, foi o que
entendeste? Escutaste mal. Falei Fidélia. “Aguiar sem Carmo é nada?”.
Vejamos, vejamos. Desatemos laços, se pudermos. FidéLIA lia o mar a
MARcela”. (MARANHÃO, 2004, p. 21)
Além das misturas nas representações das personagens femininas,
a autorreferencialidade aparece em vários capítulos da narrativa de Ma-
ranhão. Em alguns deles, até mesmo no título, percebe-se que a voz nar-
rativa leva o leitor a refletir sobre questões voltadas para eventualidades
cotidianas que tiram o foco da narração da morte de Machado e acabam
remetendo à criação ficcional. Nos capítulos “O bom e o mau uso das
portas”; “Capítulo da toalha”; “Embaraçosos contos”; “Entre parenthe-
sis”; “Saltemos por cima de tudo”; “Vírgula”; “Pulo pequeno e velhusco”;
“In extremis”; “Pinga-se ponto final”; “Não se pinga o ponto final” e “Post
scriptum”, detectamos a mimese do processo3 problematizada em um
grau mais elevado, do que dos romances de Machado.
Nessas problematizações, não só dos atos da escrita em si, mas,
também, das referencialidades externas ao texto literário e da própria
intertextualidade que o romance estabelece com a ficção e com a bio-
grafia machadiana, a metaficção em Maranhão questiona a própria
teoria romanesca como um gênero mimético. Para Linda Hutcheon,
(1984, p. 6), a autorreflexividade questiona os engenhos internos das
estruturas linguísticas e discursivas do que está sendo narrado com o
crivo avaliativo e julgador dos leitores. Já em Dom Quixote, consta-
3 Linda Hutcheon (1984), em Narcissistic narrative, trabalha com a noção de mimesis do processo que consiste
em inserir, no enredo da narrativa ficcional, comentários sobre o próprio fazer literário.

50 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


tamos que, na forma romanesca metaficcional, o ato narrativo em si
mesmo é, para o leitor, parte da ação.
Hutcheon (1984, p. xv e xvi) destaca que, nas narrativas narcisistas,
o autor empírico e mesmo o autor ficcionalizado, não aparece como um
Deus criador como pensavam os prosadores e poetas românticos. O autor,
na pós-modernidade, perde sua aura. Por isso, esse autor, segundo a referida
teórica, passa a ser encarado como um “artesão inserido em um produto so-
cial que tem o potencial de participar na mudança social através do leitor”4.
No caso específico de Memorial do fim, no jogo textual de Mara-
nhão, Machado de Assis é transfigurado, tornando-se uma criação fictícia
deste último. O Machado de Assis de Maranhão joga com as outras per-
sonagens advindas de outras narrativas do próprio Machado. Isso aconte-
ce, porque Maranhão assume, ao fim da narrativa, em seu Post Scriptum
(2004, p. 195), ser um admirador e um leitor voraz da ficção e da bio-
grafia de Machado de Assis, bem como da crítica sobre este. Tal aspecto é
verificado quando percebemos as variedades literárias presentes no tecido
ficcional do Memorial do fim: a historiografia, os gêneros intimistas e a
ficção propriamente dita. Nesse amálgama, Maranhão faz a ficção ser, ao
mesmo tempo, uma crítica da ficção que estamos lendo, aspecto, este,
característico da metaficção.
As instancias narrativas, por sua vez, questionam o estatuto ilusório
das referencialidades das personagens presentes no Memorial do fim. Se
compararmos, por exemplo, o romance Memorial do fim com o Memo-
rial de Aires, podemos fazer várias conexões no que tange às questões da
metaficção e da transfiguração das personagens entre os dois romances.
No diário do Conselheiro Aires, por exemplo, o teor autorreflexivo
está presente do início ao cabo do romance. Por meio do próprio formato
em diário que foi romancizado pela ficção, o ato de escrever tornou-se, já
em Machado de Assis, um ato de fazer teoria e crítica literária na ficção.
Esse aspecto também é muito recorrente em Esaú e Jacó. Nesta última
narrativa, nos seus cento e vinte e um capítulos, os fatos narrados sobre a
vida dos irmãos que, já no título, fazem referência à Bíblia, não chegam

4 No original, em inglês, Hutcheon (1984, p. xv – xvi): “In today’s metafiction, the artist reappears, not as a Go-
d-like Romantic creator, but as the inscribed maker of a social product that has the potencial to participate in social
change through the reader”.

“VALHA-ME DEUS: É PRECISO EXPLICAR TUDO!”: A VOZ METAFICCIONAL MACHADIANA EM MEMORIAL DO FIM, DE 51
HAROLDO MARANHÃO
a representar coisa alguma. A dúvida e a oscilação sobre os fatos narrados
e para onde esses fatos se encaminharão, como bem apontou o crítico
Hélio Guimarães (2012), são matérias recorrentes na ficção machadiana
e em especial neste romance publicado em 1904, ano da morte de Dona
Carolina. Em Esaú e Jacó, há a ideia de que nada se conclui e nada acon-
tece. A voz narrativa conduz o leitor, nesse romance, aos bastidores da
ficção, ao passo que levanta questões sobre os métodos que desnudam os
procedimentos da escrita. Nas palavras do próprio crítico,
o romance multiplica assim as possíveis chaves interpretativas para o
ódio figadal e inexplicável que une os dois irmãos gêmeos protagonistas,
convocando a mitologia clássica, o Antigo Testamento, o Novo Testamento,
a história das relações coloniais entre Brasil e Portugal, a história do
Brasil e por aí vai... [...] Estamos diante de um romance em abismo, com
vários planos de sentido correntes, o que torna difícil determinar se há
e qual seria o nível alegórico principal. [...] O deslocamento crescente
da responsabilidade interpretativa para o leitor é marca do romance
machadiano. De Ressurreição ao Memorial de Aires, as narrativas se tornam
cada vez mais exigentes conosco, leitores, que acostumamos chegar à
última linha com muito mais dúvidas e perguntas do que tínhamos ao
abrir o livro. Em Esaú e Jacó, a participação decisiva do leitor no processo
ficcional é discutida na própria narrativa, que o representa como figura-
chave do jogo ficcional. (GUIMARÃES, 2013, p. 15 – 16)

Vários aspectos apontados pelo crítico na citação anterior tam-


bém são aplicáveis à rapsódia5 de Maranhão: as múltiplas possibilidades
de leitura oferecidas pelos acontecimentos singulares da narrativa, além
de uma série de dúvidas relativas a uma interpretação ou não de dife-
rentes passagens do romance. Neste, o leitor é convidado a dar “um”,
“dois” ou mais “saltos”6 sobre os aspectos supostamente biográficos e
passa a ser um agente da construção narrativa. Em Memorial do fim, no
capítulo VII “Intrometediço; posto de banda pelo autor”, percebemos
uma mistura de traços, aspectos e fatos que remetem de forma evidente
5 A noção de rapsódia adotada aqui está relacionada à ideia de texto heterogêneo e permeado por diferentes
formas de composição e pelas constantes digressões feitas pelas instâncias narrativas. Para tanto, baseamo-nos nos
estudos de Massaud Moisés (1978), em seu Dicionário de termos literários e em Tristran Shandy, de Laurence Sterne,
para os quais a rapsódia equivale a compilação de temas e assuntos heterogêneos e de origem variada, podendo ser
associado à noção de miscelânea.
6 Referimo-nos, aqui, ao capítulo XIII das Memórias póstumas de Brás Cubas, quando o Brás Cubas convida o leitor
a dar alguns saltos sobre a recriações das lembranças da enfadonha escola.

52 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


às Memórias Póstumas de Brás Cubas e que são, agora, reelaboradas na
escritura de Maranhão:
Em lugar do capítulo LXXI, passa este a prevalecer, arredando o outro.
Decisão capital assim encerra avanço sem mais volta. Ao deliberar-se
alguém, inabalavelmente, por uma viagem a Friburgo, não o desconvencerá
ninguém a meter-se na barca de Petrópolis.
E tanto não é projeto fraco, sujeito a guinadas, que peremptoriamente
resolvo não suprimir o LXXI, que permanecerá em novo sítio pelo resto da
eternidade; mas incluir este antes do LXXII, que trocará o cabeçalho pelo
número LXXIII.
Precisava trazer a rol que não poucas vezes, sem que entendesse o porquê,
falava a Virgília com a sensação de falar a Valéria, turbação a acreditar-
se à memória, que ostenta sinais de apagamento; ou aos vês de ambos
os nomes, conquanto ninguém deva alimentar dúvida de que Virgília é
Virgília e Valéria é Valéria, duas nítidas criaturas que eu fundia numa só.
Por quê? (MARANHÃO, 2004, p. 35)

Por meio da apropriação do trecho metafictício presente na auto-


biografia de Brás Cubas e por suplementá-la com de jogos de espelha-
mentos, Maranhão, além de problematizar a escrita de Machado, que
já era autorreflexiva, torna sua narrativa duplamente autoconsciente,
ou melhor, metaficcional ao quadrado. E não só o teor metaficcional é
revigorado, mas, principalmente, há a recuperação do riso melancólico
e da ironia mórbida e a pachorra de Brás Cubas, como se percebe na
seguinte passagem:
todavia, importa dizer que este livro é escrito com a pachorra, com a pachorra de
um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica,
de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica
nem destrói, não inflama nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos
do que apostolado. Vamos lá, verifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto.
Deixemos a história com os seus caprichos de dama elegante. Nenhum de nós
pelejou a batalha de Salamina, nenhum escreveu a confissão de Augsburgo;
pela minha parte, se alguma vez me lembro de Cromwell, é só pela ideia de
Sua Alteza, com a mesma mão que trancara o Parlamento, teria imposto aos
ingleses o emplasto Brás Cubas. Não se riam dessa vitória comum da farmácia
e do puritanismo. Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública,
ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras modestamente particulares,

“VALHA-ME DEUS: É PRECISO EXPLICAR TUDO!”: A VOZ METAFICCIONAL MACHADIANA EM MEMORIAL DO FIM, DE 53
HAROLDO MARANHÃO
que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem?
Mal comparando, é como a arraia-miuda, que se acolhia à sombra do castelo
feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a
comparação não presta. (MACHADO DE ASSIS, 2008, p. 47)

Escrita com pachorra, com comparações sem relação com o assun-


to central da trama que, como já salientamos, e com digressões nas quais
não se conclui absolutamente nada, a narrativa de Brás Cubas empresta
ao romance de Maranhão a forma shandiana do “horror à linha reta”7 e o
desdém de narrar fatos heroicos de maneira ordenada. E não apenas isso:
as digressões facilitam a movimentação das personagens que circulam no
enredo. Aí, percebemos os mecanismos de espelhamentos entre as per-
sonagens e da (não) distinção entre realidade e ficção. Personagens ma-
chadianas como D. Carmo, Fidélia, Marcela (Valongo) e as reais como
Leonora (Hylda), D. Carolina, Jovita Maria de Araújo, Perpétua Penha
Nolasco, dentre outras de menor importância no enredo, são peças fun-
damentais do “jogo de xadrez” de Maranhão, já que, na troca de nomes
e de papéis, a movimentação que cada personagem executa é estratégica
dentro dos princípios que regem o tabuleiro.
A personagem Leonora, no capítulo XXXIX, “O namenlose freude!8”,
por exemplo, submete-se, em parte, ao jogo criado, dentro da ficção, pelo
Conselheiro/Machado e regido pela voz narrativa. Ela e Machado entram
em cena e representam um diálogo irreverente acerca do questionamento
de seus nomes próprios que serão reescritos no heterocosmo fictício:
Hylda é Hilda, e Hilda é Leonora. Leonora?
- Hilda, façamos um jogo.
- Um jogo, Sr. Machado?
- [...] Nunca mais, nunca mais vou chamá-la de Hilda. Concorda?
- Por que? Não entendo. Mas se Hilda é meu nome!
- Não é, não. É um jogo. Nosso. Só nosso. Você passa a ser Leonora.
- [...] Francamente... Não atinei com o espírito do seu jogo.
- Nosso jogo. Eu serei..., bem. Pensei em Florestan. Não, não. Florestan
é espanhol e eu não sou espanhol. Eu serei o Aguiar ou o Ayres. Ayres
também é espanhol, mas eu gosto de Ayres.
7 Expressão do crítico José Paulo Paes (1998) para designar a ausência de linearidade na narrativa de Tristran
Shandy.
8 “Oh Alegria inominável!”. Tradução nossa.

54 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


- [...] O Senhor!
- Vamos só olhar uma vez para trás. Uma vez. Preste atenção. A Hilda tratava
o Machado de Sr. Machado. A Leonora, não. A Leonora trata o Ayres de
(você é quem falou ainda agora) trata o Ayres de... meu amiguinho. A-li-
ás, a-li-ás, você já me escreveu uma vez: a sua amiguinha... Hylda! Não
esqueci. Minha memória é pouca para matérias aborrecidas. Tudo o que é
agradável eu guardo na minha gaveta mágica.
- Gaveta mágica?
- Tenho. Uma gaveta mágica. É o meu segredo. Não digo a ninguém.
- [...] Você é Leonora, ex-Hilda. [...] Pensa que não reparei? Agora tem uma:
Leonora é Leonora, não Leonoura, como cenoura; uma letra desequilibra,
desequilibra ou não desequilibra? Leonora eu tirei da caixa mágica.
(MARANHÃO, 1991, p. 130 – 131)

O diálogo entre Machado e Leonora apresenta um dos aspectos


mais salutares do romance de Maranhão: o esmaecimento da referen-
cialidade em prol da construção do devir com repetição crítica. Não há
possibilidade de fundar uma identidade fixa no romance. Um persona-
gem pode ser outro ao mesmo tempo e no mesmo lance, assim como
acontece na narrativa de Lewis Carrol, Alice no país das maravilhas.
Além disso, a mesma personagem Hilda/Hylda é designada em mo-
mentos diferentes por nomes distintos, como Marcela e Fidélia, embora
essas duas últimas sejam readaptações ficcionais, ou melhor, ficções da
ficção dentro de outra ficção.
Entretanto, há uma personagem inserida na narrativa que, dife-
rentemente das outras citadas anteriormente, tem uma função sui generis.
Anunciada no capítulo XXI e, como sua primeira aparição na trama dá-se
no seguinte que, não menos intencionalmente, tem como título o seu
nome: “Perpétua Penha Nolasco”. Essa figura curiosa aparece na trama
com um único propósito: obter um prefácio escrito por Machado de
Assis para apresentar o romance que ela escreveu, e sua presença, dentro
dos fios narrativos. Poderia ser um indício biográfico criado pela ficção
que se autorrepete. Neste capítulo, percebemos a indignação da voz nar-
rativa diante da atitude da “nova” escritora e, por tal razão, a instância que
conduz a trama expressa:

“VALHA-ME DEUS: É PRECISO EXPLICAR TUDO!”: A VOZ METAFICCIONAL MACHADIANA EM MEMORIAL DO FIM, DE 55
HAROLDO MARANHÃO
A romancista não se vexa de maçar a paciência alheia pedinchando prefácios!
É costume que se instalou no Império, e que prospera na República. Pede-
se, a uma figura em voga, endosso para letras cujo desconto o próprio
emitente não fia. Já se imaginou Os Lusíadas – de prefácio? Hoje, não
se saberia mais quem fosse o autor do prefácio, conquanto pudesse haver
enxergado até com os olhos ambos, enquanto o apadrinhado, de olho
escoteiro, mais amplamente esquadrinhou os assuntos da poesia, das
batalhas e de Goa. (MARANHÃO, 2004, p. 84)

A personagem Perpétua é focalizada constantemente pelos narra-


dores que a inserem na teatralidade autorreflexiva do romance, tendo em
vista que essa figura representa, mesmo ironicamente, uma espécie de
personificação da angústia da influência (BLOOM, 2002) contida nos
escritores atuais em relação a seus precursores. O que a romancista almeja
é obter uma “transferência de personalidade”, a partir do consentimento
do prefácio feito por Machado. Logo, ao ostentar um nome de peso já na
abertura do romance, Perpétua acredita que seu livro será sucesso absolu-
to. A “beletrista” vai à procura de Dr. Lúcio para que esse último entregue
uma carta ao enfermo no Cosme Velho. Entretanto, não só o Conselheiro
Machado findava no seu leito como Dr. Lúcio, que habitava a Tijuca,
estava quase cego e com problemas de saúde. Mesmo assim, a romancista
estreante consegue a carta e a entrega a Machado de Assis.
A narrativa da saga de Perpétua, cujo nome faz jus a sua causa de-
vido a suas peripécias, foram temas dos capítulos XXVIII, XXIX, XXXIV
e XXXVII do romance Memorial do fim, intitulados “O homem é péssi-
mo”; “Lêmures”; “Sebo!” e “Um olhar vítreo”. Após os infortúnios, Paulo
Jatobá, o nome adotado pela romancista, consegue, enfim, ter o tão alme-
jado prefácio. Com ares triunfantes, Perpétua tenta de forma desajeitada,
explicar o motivo que a fez tomar esse posicionamento:
O senhor é o grande culpado, Conselheiro. Viu? Com seus romanções!
Então, me atrevi a escrever o meu romancezinho, que está aqui. Será a
primeira pessoa a lê-lo, ouviu? A primeira! Nem meu irmão, ouviu? Dr.
Lúcio quis dar uma olhadinha, não lhe nego. Mas disse de mim para mim:
o privilégio será do Conselheiro Ayres. Por sinal que ele foi muito amável
com a apresentação que fez. Trouxe-lhe a mensagem; fica aqui na mesinha-
de-cabeceira. Ele está um pouco fraquinho da vista, sabia? Coisa de nada.
(MARANHÃO, 2004, p. 124 – 125)

56 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


No capítulo XXXVII, Machado, embora não respondesse a ne-
nhuma das intervenções de Paulo Jatobá, fitou-lhe um “olhar vítreo”,
desde o primeiro até o último momento em que a personagem estava em
cena. E a petulância da escritora em importunar o grande escritor flumi-
nense vai ainda mais longe:
O estilo? Ora, o estilo. O estilo é o seu, Conselheiro: o senhor ensina os
novatos a escrever, ouviu? É um livrinho que captura o leitor do primeiro
ao tópico final, ouviu? Poderá fazer um misteriozinho, não é mesmo?
Quem será esse Paulo intrigante? E esse Jatobá de quem não se ouviu falar?
Ora, temos um mestre em desatar enigmas; estou falando com ele, é ou
não é? [...] Então, meu mestre e glória nacional? Vamos! Ânimo! Coragem!
Querido Conselheiro: vai custar-lhe nada, um mínimo de ocupação
que nestes dias de repouso consiste nisto: pensar. Estou mentindo?
(MARANHÃO, 2004, p. 134)

Além de Perpétua, há também a presença fundamental da criada Jo-


vita Maria de Araújo, que teve participação importante no desvendamento
dos enigmas criados por Maranhão, ou melhor, atuou no jogo de forma
decisiva a dar sentido aos fatos. Além dessas personagens, o romance agre-
ga, também, figuras históricas que entram no palco armado por Maranhão.
Em virtude disso, comentários sobre o fazer literário e outras con-
catenações de aspectos desimportantes à biografia tradicional vão sendo
descritas no enredo, ao passo que a morte de Machado avança. A história
se faz presente na metaficção de Maranhão e ela é questionada através
da presença desarticulada de várias pessoas contemporâneas a Machado.
Aliás, romances que trazem fatos e personagens históricas para o centro
das ações têm sido produzidas, com frequência, no romance brasileiro
contemporâneo, a partir da década de 1970, tal como constatado por
Antonio Roberto Esteves (2007, p. 114), o que caracteriza o novo ro-
mance histórico ou a metaficção historiográfica.

“VALHA-ME DEUS: É PRECISO EXPLICAR TUDO!”: A VOZ METAFICCIONAL MACHADIANA EM MEMORIAL DO FIM, DE 57
HAROLDO MARANHÃO
A história questionada na metaficção de
Maranhão
Ao descrever o estado quase fúnebre de Machado de Assis, Mara-
nhão convoca para o jogo textual as personagens/atores José Veríssimo,
Mário de Alencar, Rio Branco, Euclydes da Cunha, Raimundo Correia,
Astrogildo Pereira, Joaquim Nabuco, Dr. Miguel Couto, Albuquerque,
Lobo Neves, Graça Aranha, Dráuzio Barreto, Dr. Lúcio de Mendonça,
e o próprio Machado de Assis, que responde por Conselheiro Ayres e
Aguiar. Isto, porque, os personagens/atores citados, na verdade, em sua
maioria, pessoas da vida real, contemporâneos de Machado – escritores,
médicos, diplomatas – comparecem ao leito de morte de Machado para
visitá-lo e mesmo para perturbá-lo.
No capítulo III, intitulado “Uma carta”, identificamos essas
presenças desarticuladoras de personalidades reais na ficção de Mara-
nhão. Aqui, José Veríssimo escreve a Medeiros informando-lhe a real
situação de Machado:
Rio, 25-09-908.
Meu querido Medeiros.
Deixei o nosso mestre indisputado nem pior nem melhor. A doença não
estagnou, e nem vejo como possa estagnar. Deus? Medeiros: Deus existe?
Qual de nós acredita? O Mário? O Graça? O Lúcio? O Rodrigo? O Nabuco
acredita, mas está em Washington, e além do mais Deus não fala inglês.
A doença avança devagar; mas sempre avança, e quem saberá se mais
devagar realmente? Que sabemos dos organismos vivos e esfaimados que
nos roem internamente? A medicina foi além do impossível. [...] Em dados
momentos, acredito que desfaleça. Será a ausência, agravando-lhe o fim?,
doença sobre doença, o mal maior sobre o mal menor; e nem se saberá qual
o menor e qual o maior, que um, enfim, humilha mas não mata.
(MARANHÃO, 2004, p. 19 – 20)

Além da inserção do crítico literário José Veríssimo, há também a


visita desconcertante de “um certo calvo” no enredo, isto é, a personagem
histórica Barão do Rio Branco, Ministro de Estado permanente durante a
primeira República. Ele é uma das poucas, se não a única figura satirizada
pelo narrador, como se constata no trecho a seguir:

58 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


Sob o gabinete de Ouro Preto, a calva hoje tão excelsa era antes uma
calva baça que transitava não em carruagem mas nos bonds; e servia
de chufas à meninada; [...] E não se despreze a hipótese de algum
moleque, atiçado por sujeito de baixa monta, ter-lhe chimpado uma
chulipa com o nó dos dedos. [...] Cabeças descalvadas cativam e
encorajam a faceia. (MARANHÃO, 1991, p. 140)

Nesta passagem, percebe-se uma crítica irônica na descrição da


personagem histórica Barão do Rio Branco que beira a zombaria. Ela
é feita por meio de uma visão paródica na qual a voz narrativa ironiza
e ridiculariza o físico dessa mesma personagem. Apesar deste procedi-
mento ser tipicamente paródico, ele também pode ser incorporado pelo
jogo textual e imagético construído pelo pastiche. Nesse pastiche que
Maranhão faz de Machado de Assis, há espaço para elogios, homenagens,
críticas, censuras e depreciações.
Por outro lado, a presentificação da figura de Lobo Neves, per-
sonagem da ficção machadiana, a saber, de Memórias Póstumas de Brás
Cubas, manifesta-se em um sonho que o escritor/moribundo tivera. O
pensamento onírico também traz novas informações que são amarradas à
imensa rede palimpséstica:
O autor escusa-se de omitir a palestra que entretiveram Lobo Neves e
o Sr. Machadinho; porque, dando com uma porta do gabinete cerrada,
não ousaria transpô-la por um dos fáceis arranjos que sabem empregar
os autores. Foi importante o que se disseram? Não foi? Trataram da
organização do gabinete João Alfredo? (MARANHÃO, 2004, p. 48)

Nesta passagem, a voz narrativa apresenta indagações e ambigui-


dades ao criar a expectativa de um instante de diálogo entre personagens
reais e ficcionais. Além das menções de personalidades históricas e fic-
cionais, há recriações bem mais inusitadas no corpo do romance, princi-
palmente quando se referem ao Conselheiro Machado. As diversas vozes
do texto, paulatinamente, carnavalizam a morte do autor carioca por in-
termédio de cenas com tons bem humorados. Referem-se a ele como o
“vice-morto”, “mortíssimo”, “subvivo”; é retratado de forma sarcástica e
pessimista, ou, na própria visão do narrador: os “moribundos fatigam-se
da gente que se veste de compungida e que rouba o ar bom do aposento,

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HAROLDO MARANHÃO
para expelir um mau. Morrem, sempre mais um passo, dos murmúrios
exasperantes e da expectação agourenta.” (MARANHÃO, 1991, p. 107)
Assim, Memorial do fim como algumas das narrativas pós-moder-
nistas, tenta manter a autorreflexão associada ao contexto histórico, abri-
gando personalidades históricas desprovidas de versões unívocas, ao mes-
mo tempo que convivem com entidades ficcionais. Nesses limites quase
invisíveis, essas personagens são recriadas por Maranhão e, ao mesmo
tempo, convivem com personagens ficcionais, o que alimenta o caráter
metaficcional do romance. Há de se destacar, também, que a diegese,
ao abarcar personalidades históricas brasileiras, desestrutura os alicerces
dos discursos oficiais através da perspectiva das escritas da Nova Histó-
ria (BURKE, 1992) no universo literário, dos mecanismos da metafic-
ção historiográfica (HUTCHEON, 1991) e do novo romance histórico
(AÍNSA, 1991). Nesse sentido, a revisão da história é feita através da
retomada de um período histórico longínquo, a saber, do início do século
XX, e de períodos históricos que, de alguma maneira, se ligam a ele.
Essa tendência de a literatura pós-modernista recuperar fatos his-
tóricos e os reescrevê-los, é entendida por Fredric Jameson (2007) no seu
estudo “O romance histórico ainda é possível?” como o ponto culmi-
nante na diferenciação do que ele reconhece como romances históricos
no modernismo e no pós-modernismo. Para Jameson (2007, p. 187) o
romance histórico resultou em tentativa sem sucesso no modernismo,
porque seria muito difícil distinguir tais romances de outras obras não-
-históricas, visto que o modernismo pregava a ruptura com o passado e
a criação de algo original e inconfundível que pudesse marcar a época.
Eis como o pós-modernismo, na visão de Jameson (2007, p. 187) repen-
sa essa condição. É com seu fundamental desafio à estética modernista,
às formas e aos procedimentos linguísticos caracteristicamente moder-
nistas, que o movimento pós-modernista volta a abrir um campo em
que o romance histórico pode renascer, mas mediante uma abordagem
nova e original do problema da referência histórica. Na impossibilidade
da criação de um romance histórico no modernismo, embora o teórico
norte-americano deixe em aberto as especulações, admita-se o pressupos-
to pós-modernista de que “hoje em dia a verdade histórica é abordada

60 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


não pela via de verificação ou mesmo da verossimilhança, mas, sobretudo
por meio do poder imaginativo do falso e do fictício, das mentiras e dos
engodos fantásticos.” (JAMESON, 2007, p. 201)
Memorial do fim apresenta uma nova abordagem dos fatos históri-
cos que são amarrados aos fragmentos de pastiches de Machado de Assis
costurados no enredo. A presença desarticulada de personalidades histó-
ricas, ao abalar referências históricas e temporais na movimentação do ro-
mance, leva o narrador do capítulo XXIV a questionar: “Escrevi história?
Não teria acertado em dizer opereta? Talvez ópera; não disse e não diria
ópera bufa; cada qual dos bandos reputando-se a infusão paregórica da
federação.” (MARANHÃO, 1991, p. 83)
O período histórico recriado é o início do século XX, ou me-
lhor, o ano de 1908 marcado pela morte real de Machado. Mas essa
retomada não impede que outros períodos históricos sejam resgatados
e bricolados ao jogo textual, tal como regem os princípios do pasti-
che. O capítulo XV, “Um evento de 1876”, representa um momento
distinto dos outros nos quais se apoia o enredo. O narrador convida o
leitor à constatação do evento:
Convido o leitor a retomar comigo ao ano de 1876; que lhe restará senão
acompanhar-me, sujeitando-se à minha onipotência, que efetua guinadas
finas e volteios movidos à ação do capricho? O autor manda; o leitor, se
for bom, sujeita-se. Tirano? Quem fez a sensata indagação? Tirano. Não
estaria aqui quem lhe negasse razão. (MARANHÃO, 2004, p. 59 – 60)

O episódio narrado, de maneira alguma, refere-se a feitos gran-


diosos ou de grandes homens que o discurso histórico consagrou. Como
afirma a voz narrativa de Maranhão sobre a historiografia: “já a perdi
de vista e de lembrança,” (MARANHÃO, 1991, p. 57) até porque “os
referenciais históricos, mero décor, necessariamente não são históricos.”
(1991, p. 185) Nessa perspectiva, o excerto, como todo o capítulo, re-
fere-se à problematização do próprio fazer literário e ao questionamento
da Histórica, ao passo que chama a atenção do leitor para o fato que será
narrado, já que não deixará de ser uma mera eventualidade que poderia
ter acontecido com qualquer pessoa daquela época e que não surtiu efeito
algum, visto que

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HAROLDO MARANHÃO
anos são foscos ou rutilantes, ditosos ou macambúzios, ou são um pouco de
umas e outras cousas. O ano de 1876 deixou a memória de uma cidade bufa,
ao se permitirem bengalas a fedelhos tibéricos, ensandecidos pelo junco de
malinar e de dar gozos ao diabo. Mais tarde se inventariam novas modas.
Já então se consentiria o uso do especial ornato às mulheres. Mulheres! De
bengalas! Adeus, pobre mundo! (MARANHÃO, 2004, p. 60 – 61)

No capítulo XXIV, a voz narrativa faz referência ao Império e ao


gabinete do Visconde de Ouro Preto, mais especificamente ao minis-
tério de Demétrio Ribeiro. A discussão central baseia-se nos resquícios
monárquicos que ainda resistem à ascensão da República porque “são
trabalhos, os mesmos, que se deram no Império e se dão na República”.
(MARANHÃO, 1991, p. 83) Percebe-se no referido capítulo a intenção
da recriação de um momento da história brasileira através de “assuntos
nublosos” que avaliam criticamente, com a visão problematizadora do
narrador, os fatos ocorridos:
O Sr. Custódio! Esse homem de Itapira bateu palmas à porta do
governo pelas mãos dos procuradores Jules Géraud & Leclerc, agentes
de privilégios. Sorriu-se quieto na cama, enquanto alguém chegava mal
pisando o soalho, para não agastar quem apenas mantinha os olhos
fechados. De olhos assim, e face calma, o moribundo, sem dores e sem
mais incômodos, em dilatados passeios por países das lembranças. Sim,
sim, Jules Géraud & Leclerc. Exatamente. Exatamente Custódio, tendo
ficado o couce do nome no ano de 92. Nesse 92 o itapirense suplicou ao
Presidente Floriano benefícios e vantagens para uma supina e supimpa
invenção, que foi causando risos por onde circulavam os papeis: um
cognac cristalizado! (MARANHÃO, 1991, p. 84)

A fina condenação do momento histórico é feita pelo viés da fan-


tasia e da possibilidade de recriar o passado e reavaliá-lo. Esta é uma ca-
racterística de certos romances pós-modernistas e que também se faz pre-
sente em Memorial do fim. Em contrapartida, diferentemente dos outros
romances que se apoiam na historiografia e reescrevem “a História vista
de baixo”9 (SHARPE, 1992) – assim como ocorre nos romances Viva
o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, Galvez, o imperador do Acre,
9 Ao utilizarmos essa noção, estamos nos referindo aos estudos de Jim Sharpe, sobretudo, aos estudos da nova
história, cujos discursos dos silenciados pela historiografia são revistos e são considerados como arquivos importan-
tes para a nova historiografia.

62 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


de Márcio Souza, Cães da província, de Luiz Antonio de Assis Brasil e
em A casca da serpente, de J. J. Veiga – , no romance de Maranhão, há
mais vestígios de reorganização de extratos textuais que primam em criar
suas próprias referências, tendo como pano de fundo, alguns aspectos da
História protagonizada por alguns membros da elite nacional, já citados
anteriormente. O que diferencia esse romance dos outros e o que o torna,
de certa forma, mais hermético é sua capacidade de não só resgatar e pro-
blematizar períodos e fatos passados, mas também, de inserir no corpo do
texto reorganizações de textos e de personagens de diferentes momentos
de nossa história política e literária.
Nesse sentido, a metáfora do caleidoscópio que, no texto de Ma-
ranhão, é constituída pela sua constante movimentação de eixos e partes
desconexas que são reajustadas pelo jogo textual do pastiche, representa
o não-lugar e o descaminho articulado pelo romance. Por ser uma cons-
trução em pastiche, a obra possibilita uma reviravolta temporal que não
demarca momentos precisos. O que Maranhão fez foi entrelaçar diferentes
épocas e elementos de diferentes naturezas, inclusive, de outros textos de
Machado, desconstruindo-os para construir sua própria narrativa. Para que
se visualize melhor esses procedimentos, voltemo-nos à capa do romance
publicado pela editora Planeta em 2004. Nela, constatamos uma paisagem
turva, mas que o leitor consegue identificar, como pano de fundo, o Rio de
Janeiro machadiano. Já na capa da primeira edição que também estamos a
utilizar nas citações, há a marca específica machadiana: o olhar e os óculos.
Partindo dessas questões, entendemos que o acréscimo da palavra fim no
romance de Maranhão, não pode ser entendido como uma consequência
última e que não há mais possibilidades de se ler Machado de Assis. Lê-se
o outro na aporia. A linguagem de Maranhão cria novas “realidades” que
não têm compromisso com a verossimilhança aristotélica, mas sim, com a
envergadura textual e com sua própria realidade discursiva:
Como se vai ver, não se pingam ii; muito menos ponto final. O procedimento,
de se porem pontos, e finais, induz terminação peremptória de alguma cousa
certa. Ponto. Final. Não se graceja com pontos finais; nunca se soube disso.
O assunto de que se cuida está de pé, animosíssimo, airoso se mexe, sorri.
Por ora, apalpo uma necessidade intimativa do corpo restringida ao nariz.
Narizes movem-se a rapé como as carroças a bois, e meu rapé não sei onde

“VALHA-ME DEUS: É PRECISO EXPLICAR TUDO!”: A VOZ METAFICCIONAL MACHADIANA EM MEMORIAL DO FIM, DE 63
HAROLDO MARANHÃO
o pus. Desço a uma tabacaria. Narizes clamam cuidados mais extensos e
intensos que romances. Romances interrompem-se. Sei de autor que
escreveu dous capítulos e deixou o resto para depois. O depois não houve,
porque, enquanto andava o depois, o romancista bateu o pacau. O rapé não
sabe fazer-se esperar. Até hoje, não apurei qual o mais importante à vida, se
o ar, ou se o rapé. (MARANHÃO, 2004, p. 183)

Por sua forma autoconsciente e autorrepetida, o romance de Mara-


nhão cria a partir do já dito, seja nas construções dos novos lances feitos
nos jogos de palavras, seja no revisionismo histórico feito pela metaficção
historiográfica ou mesmo pelo teor paródico, isto é, irônico e crítico da
desconstrução da noção de biografia tradicional. Por isso, repetir é ino-
var. Ser original a partir da diferença e repetição é rememorar e refazer o
outro de outra forma, semelhante na forma mas com singularidades na
essência. E revisitar o Bruxo do Cosme Velho, com novas roupagens e
mélanges entre a ficção/história/biografia significa fazer reviver o maior
escritor brasileiro em nossa contemporaneidade.

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64 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


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HAROLDO MARANHÃO
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José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

66 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


“NÃO, NÃO É FÁCIL ESCREVER. É
DURO COMO QUEBRAR ROCHAS”:
A METAFICÇÃO NO ROMANCE A HORA DA ESTRELA,
DE CLARICE LISPECTOR*1
Vanessa Rita de Jesus Cruz, Flávio Pereira Camargo

Breves considerações sobre a narrativa


metaficcional
Metaficção, literatura de exaustão, narrativa metaficcional, narra-
tiva autorreflexiva, narrativa narcisista, antirromance e pós-modernismo
são alguns dos termos utilizados pela teoria e pela crítica literária para
designar a ficção que fala da própria ficção. Alguns deles não expressam,
de fato, o que caracteriza o termo metaficção e se mostram pejorativos.
Além disso, poucos são os teóricos que têm se debruçado sobre os estudos
da metaficção, mas, como nos aponta Linda Hutcheon (1984), ela não é
um fenômeno novo, não pode ser considerada uma manifestação da pós-
-modernidade, uma vez que, desde Cervantes, com o seu Dom Quixote, a
metaficção já estava presente no gênero romance. O que há de diferente
é que, após o século XIX, a metaficção aparecerá com maior frequência,
de modo mais explícito e de diferentes formas.
O que vem a ser, então, a metaficção? Vejamos algumas definições.
Segundo Hutcheon, a metaficção trata-se de uma narrativa “autor-
referencial ou autorepresentacional: ela fornece, dentro de si, um comen-
tário sobre seu próprio status como ficção e como linguagem, e também
sobre seus próprios processos de produção e recepção”2 (HUTCHEON,
1984, p. xii).
Patricia Waugh, por sua vez, a conceitua da seguinte maneira:
*
Uma versão anterior deste texto foi publicada na revista Ecos (Cárceres), vol. 14, p. 112-135, 2013. A presente
versão foi ampliada em alguns pontos e sofreu alguns reajustes, para maior precisão.
2 No original: “self-referring or autorepresentational: it provides, within itself, a commentary on its own status
as fictional and as language, and also on its own processes of production and reception”. Todas as traduções são de
nossa autoria.

67
Metaficção é um termo dado à escrita ficcional que auto-conscientemente
e sistematicamente chama a atenção para seu status como um artefato, a fim
de colocar questões sobre a relação entre ficção e realidade. No fornecimento
de uma crítica de seus próprios métodos de construção, tais escritos não
só examinam as estruturas fundamentais da ficção narrativa, eles também
exploram a possível ficcionalidade do mundo fora do texto literário
ficcional3 (WAUGH, 1984, p. 02).

A definição de Wenche Ommundsen desdobra-se na escrita e na


leitura: “A metaficção se apresenta aos seus leitores com alegorias da ex-
periência ficcional, chamando a nossa atenção para o funcionamento do
artefato ficcional, sua criação e recepção, a sua participação nos sistemas
de significação da nossa cultura”4 (1993, p. 12). Por sua vez, Gustavo
Bernardo conceitua a metaficção como “uma ponte interna, e nela se
pensa a ficção dentro da ficção” (2010, p. 37).
Todas essas definições elencadas por nós evidenciam que a meta-
ficção preocupa-se em mostrar o status ficcional da narrativa e os seus
procedimentos de construção/composição interna, envolvendo não so-
mente os aspectos de produção, mas também aqueles referentes à recep-
ção da obra. O termo metaficção, segundo Waugh (1984), foi utilizado
inicialmente pelo romancista americano William H. Gass, em 1970,
porém termos como “meta-política” e “meta-retórica” vêm sendo uti-
lizados desde a década de 1960 para se referir a esse tipo de narrativa.
A metaficção não é um subgênero do romance. Trata-se de uma
ficção que se volta sobre si mesma, que se dobra sobre seu estado on-
tológico, que se autoquestiona. O romance metaficcional rompe, pois,
com a ilusão de realidade criada pelo romance realista do século XIX. Por
isso, alguns críticos vão denominá-lo de antirromance, uma vez que esta
forma de escrita rompe com os padrões que vigoravam na arte de escrever
romances. Dom Quixote, por exemplo, obra considerada a precursora do
romance metaficcional, parodia em seu interior o romance de cavalaria,
3 No original: “Metafiction is a term given to fictional writing which self-consciously and systematically draws
attention to its status as an artefact in order to pose questions about the relationship between fiction and reality. In
providing a critique of their own methods of construction, such writings not only examine the fundamental structures
of narrative fiction, they also explore the possible fictionality of the world outside the literary fictional text”.
4 No original: “Metafiction presents its readers with allegories of the fictional experience, calling our attention
to the functioning of the fictional artefact, its creation and reception its participation in the meaning-making systems
of our culture”.

68 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


desmascarando certas convenções literárias. Cabe ao leitor, então, uma
tomada de consciência de seu papel no universo ficcional, assim, não
verá nesse romance uma destruição do gênero, mas – usufruindo de seus
conhecimentos sobre as formas literárias consideradas tradicionais – uma
forma de um novo fazer literário, a possibilidade de uma leitura mais
aberta, desvencilhada de amarras com os sistemas vigentes.
No entanto, essa mudança, qualquer que seja sua causa, permitiria, em termos
literários, para a transformação da forma dentro do conteúdo: o assunto
iria mudar novamente a partir da escrita do romancista. Romances então
começam a refletir sobre sua própria gênese e crescimento. O espelhamento
envolvido começa a minar o realismo tradicional em favor de um nível mais
introvertido de mimesis literária5 (HUTCHEON, 1984, p. 12).

Para alguns escritores e críticos, a metaficção representa o fim,


a desintegração ou até mesmo a morte do gênero romance quando,
na verdade, vemos, com Hutcheon (1984), que ela se apresenta como
uma transformação do gênero, uma nova “roupagem”. Se a metafic-
ção representasse a morte do romance, poderíamos dizer, então, que
ele declinou a partir do momento em que “nasceu”, visto que, como
apontam vários autores, dentre eles Hutcheon (1984), Waugh (1984)
e Ommundsen (1993), este fenômeno literário sempre existiu e é ine-
rente a todos os romances. Porém, nos romances modernos se apre-
senta de forma mais explícita e mais intensa. É a metaficção que dá ao
romance a sua verdadeira identidade enquanto ficção.
O romance metaficcional mostra que não há um mundo de ver-
dades absolutas, eternas, o que há são construções provisórias, artifícios
da linguagem. É essa instabilidade e flexibilidade que proporcionou a
sobrevivência do gênero, uma vez que não ter uma identidade fixa, o
deixava vulnerável, como aponta Waugh (1984). Alguns elementos que
denotam essa realidade ordenada estabelecida pelo romance realista já
têm sido questionados e evitados pelos romancistas que se valem da
estratégia metaficcional. O romance realista passava para o leitor a ideia

5 No original: “Nevertheless, such a change, whatever its cause, would allow, in literary terms, for the transfor-
mation of form into content: the subject matter would change again from the novelist to his writing. Novels then begin
to reflect and to reflect upon their own genesis and growth. The mirroring involved begins to undermine traditional
realism in favour of a more introverted literary level of mimesis”.

“NÃO, NÃO É FÁCIL ESCREVER. É DURO COMO QUEBRAR ROCHAS”: A METAFICÇÃO NO 69


ROMANCE A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR
de que a arte imita a realidade, de que o “mundo ficcional” é um espe-
lho do “mundo real”.
O clássico romance realista de trama bem feita dá ao leitor a sensação de
completude que sugere, por analogia, que a ação humana é de alguma forma
inteira e significativa, ou o oposto, no caso da arte por si só que pode dar
qualquer ordem ou sentido para a vida. O moderno, ambíguo romance
pode sugerir, por outro lado, menos insegurança óbvia ao novo ou a falta de
coincidência entre a necessidade do homem de ordem e de sua experiência
real do caos do mundo contingente, de certa curiosidade sobre a capacidade
da arte para produzir ordem “real”, mesmo por analogia, através do processo
de construção ficcional6 (HUTCHEON, 1984, p. 19).

A ficção pode até estabelecer um elo com a vida, mas não há a


intenção de espelhar o real, uma vez que a noção de verdade é arbitrária;
a realidade é multifacetada e tem-se uma linguagem que nem sempre é
clara. A própria literatura é uma construção fictícia que se vale da lingua-
gem. Ela não imita a natureza e a realidade tal como são. O que a literatu-
ra faz é estabelecer com essa realidade certa verossimilhança que se realiza
no mundo ficcional. A ideia de que a linguagem “reflete passivamente
uma forma coerente, significativa e objetiva do mundo7” não é mais acei-
ta (WAUGH, 1984, p. 03). O romance metaficcional, como artifício da
linguagem, não pode “representar” o mundo, mas pode “representar” os
discursos do mundo por meio da linguagem. Há, então, uma mudança
de foco de uma realidade externa para um processo subjetivo e imaginati-
vo. Para Hutcheon, a arte sempre foi ilusão e sempre teve consciência de
seu status ontológico.
Há algumas mudanças visíveis provocadas pela metaficção. Pri-
meiro, o foco de atenção desloca-se para o processo de criação da nar-
rativa. Muda-se o foco da história contada para o como essa história é
contada, uma vez que a ênfase no produto tenta criar um espelhamento
entre a obra e a realidade exterior. Segundo, o papel do leitor se altera
6 No original: “The classic realistic novel’s well-made plot might give the reader the feeling of completeness
that suggests, by analogy, either that human action is somehow whole and meaningful, or the opposite, in which case
it is art alone that can impart any order or meaning to life. The modern, ambiguous, open-ended novel might suggest,
on the other hand, less an obvious new insecurity or lack of coincidence between man’s need for order and his actual
experience of the chaos of the contingent world, than a certain curiosity about art’s ability to produce “real” order,
even by analogy, through the process of fictional construction”.
7 No original: “passively reflects a coherent, meaningful and ‘objective’ world”.

70 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


gradativamente e a leitura deixa de ser confortável: o leitor assume na nar-
rativa metaficcional o papel de colaborador, de coautor. O interesse da
metaficção reside no texto e nas suas implicações para o leitor e a leitura,
preocupando-se com o processo, com o modo de “contar a história” e não
somente com o produto, com “a história contada”.
O interesse aqui é um pouco sobre o texto, sobre a manifestação literária
desta mudança, e sobre as implicações resultantes para o leitor. Ao
contrário de Gerald Graff, eu não diria que na metaficção a conexão vida-
arte foi cortada ou completa ou resolutamente negada. Em vez disso, diria
que esta ligação “vital” é reforjada, em um novo nível - em que o processo
imaginativo de contar histórias, em vez de a do produto (a história
contada). E é o novo papel do leitor que é o veículo dessa mudança8
(HUTCHEON, 1984, p. 03).

Sendo assim, a narrativa metaficcional tem o seu foco na mimesis


do processo, enquanto a narrativa realista ocupava-se da mimesis do produ-
to. Para Hutcheon, a mimesis do processo não é uma ruptura do romance,
é um continuum. A metaficção ajuda a perceber o contexto de produção e
de recepção, contestando a supressão do papel da produção textual a que
se detinha o realismo, pois na narrativa metaficcional tanto o processo
quanto o produto são discursos.
Segundo Hutcheon, o grau de participação do leitor é que distingue
a denominada metaficção pós-moderna da metaficção anterior. O leitor
passa a ter um papel mais ativo para o romance enquanto gênero miméti-
co, tornado-se um coprodutor. O leitor é “assaltado” por todos os lados e
se vê obrigado a interpretar, a organizar e a controlar os sentidos do texto
que está lendo. Eis o paradoxo do papel do leitor: “Por um lado, ele é
forçado a reconhecer o artifício, a “arte”, do que ele está lendo; por outro,
são feitas exigências explícitas sobre ele, como um co-criador, exigindo res-
postas intelectuais e afetivas comparáveis ​​em escopo e intensidade às de sua
experiência de vida9” (HUTCHEON, 1984, p. 05). O leitor, ao mesmo
8 No original: “The interest here is rather on the text, on the literary manifestation of this change, and on the
resulting implications for the reader. Unlike Gerald Graff, I would not argue that in metafiction the life-art connection
has been either severed completely or resolutely denied. Instead, I would say that this “vital” link is reforged, on a new
level – on that of the imaginative process of storytelling, instead of on that of the product (the story told). And it is the
new role of the reader that is the vehicle of this change”.
9 No original: “On the one hand, he is forced to acknowledge the artifice, the “art”, of what he is reading; on the
other, explicit demands are made upon him, as a co-creator, for intellectual and affective responses comparable in

“NÃO, NÃO É FÁCIL ESCREVER. É DURO COMO QUEBRAR ROCHAS”: A METAFICÇÃO NO 71


ROMANCE A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR
tempo em que participa como colaborador – agindo afetiva, intelectual e
imaginativamente –, também é forçado a reconhecer que aquilo que lê é
ficção, artifício, arte, linguagem, discurso. Assim, o que ele lê é fruto de
um processo e não de um produto. A própria narrativa convida o leitor a
participar do processo metaficcional, como diz e exemplifica Ommundsen:
“Você está prestes a começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se numa
noite de Inverno um viajante.” Esta é a primeira frase do livro de Calvino por
esse nome, já sinalizando algumas preocupações metaficcionais: um lembrete
de que esta história é um romance, a função do autor e o fato da publicação,
o papel do leitor na experiência ficcional. Por meio de um narrador intruso,
aborda o leitor diretamente, Calvino claramente rotula seu romance como
uma metaficção, o leitor é desde o início muito alertado para o fato de que
este será um livro sobre leitura, escrita e ficcionalidade10 (1993, p. 6).

As narrativas metaficcionais demandam outro tipo de leitor. Um


leitor que participa. O autor reaparece enquanto categoria que poten-
cializa a participação desse leitor, ou seja, o próprio autor o leva a perce-
ber seus dois papéis: o de leitor e o de colaborador, de coprodutor. Vale
ressaltar que a metaficção tem seu foco não apenas no leitor e no autor
empírico, como indivíduos históricos, mas nos processos de produção e
de recepção dos textos, em que autor e leitor estão inscritos na narrativa.
O leitor é uma função do texto, é um elemento constituinte da narrativa,
assim como a função autor assumida, geralmente, por um personagem-
-escritor/personagem-leitor que exerce, ainda, a função de narrador.
A abertura dada pelos textos metaficcionais para que o leitor par-
ticipe, efetivamente, da construção do texto faz com que este tenha duas
posições subjetivas: a do produtor e a do leitor, ou seja, o leitor não é
mero receptor de informações e de verdades prontas e acabadas. Podemos
falar de uma leitura compartilhada em que o leitor passa do papel de con-
sumidor para o papel de colaborador, pois
existe um conjunto de relações sociais entre produtor e público que
scope and intensity to those of his life experience”.
10 No original: “‘You are about to begin reading Italo Calvino’s new novel, If on a winter’s night a traveler.’ This
is the first sentence of Calvino’s book by that name, already signaling a number of metafictional concerns: a reminder
that this story is a novel, the function of the author and the fact of publication, the role of the reader in the fictional ex-
perience. By means of an intrusive narrator addressing the reader directly, Calvino clearly labels his novel as a metafic-
tion; the reader is from the very start alerted to the fact that this will be a book about reading, writing and fictionality”.

72 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


talvez pudesse ser revolucionado por uma mudança nas forças de produção
que iria transformar o leitor em um colaborador, em vez de um consumidor.
Hoje, na metaficção, o artista reaparece não como um Deus, como criador
romântico, mas como o fabricante de inscrição de um produto social que
tem o potencial para participar na mudança social por meio de seu leitor11
(HUTCHEON, 1984, p. XV).

Por isso, faz-se necessário que autor e leitor compartilhem certos


códigos sociais, linguísticos e culturais.
Alguns textos metaficcionais são diegeticamente autoconscientes
(o caráter metaficcional se apresenta no interior da narrativa; são tex-
tos autoconscientes de seus processos narrativos), enquanto outros têm
consciência de sua constituição linguística (o caráter metaficcional se dá
no nível da língua, no uso de marcadores linguísticos, por exemplo). No
modo diegético, o leitor é levado a reconhecer que, por meio da leitura,
ele também cria um mundo ficcional e que a narrativa, como universo
fictício, possui personagens e ação. No modo linguístico, reconhece-se o
caráter ficcional da narrativa por meio de códigos linguísticos (a palavra
“romance” escrita na capa do livro, por exemplo). O modo linguístico e
diegético primam pelos processos criativos do leitor e do escritor.
Cada um desses modos pode se apresentar de duas maneiras: ex-
plícita ou implicitamente. Na primeira, a autoconsciência aparece de for-
ma explícita nas tematizações, por meio de alegorizações, uso de mise en
abyme, metáforas ou comentários narrativos sobre a identidade diegética
ou linguística dos textos. Nos textos metaficcionais explícitos é dito ao
leitor, explicitamente, que aquilo que ele lê é ficção. Na forma implícita,
o processo metaficcional é internalizado na narrativa, levando o leitor a
criar um universo fictício separado do universo empírico. Tanto na forma
implícita quanto na explícita o foco da narrativa narcisista não muda:
deve-se ampliar e atualizar o texto por meio da leitura, sendo o leitor, ex-
plícita ou implicitamente, forçado a assumir a responsabilidade que lhe é
dada em relação ao texto, ou seja, no mundo romanesco o leitor também
é criador da linguagem literária e assim como o romancista, por meio das
11 No original: “there exists a set of social relations between producer and audience that could perhaps be revo-
lutionized by a change in the forces of production that would turn the reader into a collaborator instead of a consumer.
In today’s metafiction, the artist reappears, not as a God-like Romantic creator, but as the inscribed maker of a social
product that has the potential to participate in social change through its reader”.

“NÃO, NÃO É FÁCIL ESCREVER. É DURO COMO QUEBRAR ROCHAS”: A METAFICÇÃO NO 73


ROMANCE A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR
palavras, atualiza o mundo existente em sua imaginação. Ambos, escritor
e leitor, criam mundos fictícios por meio da linguagem.
A escrita metaficcional pode incluir, explícita ou implicitamen-
te, todas ou algumas das estratégias que proporcionam à narrativa me-
taficcional esse espelhamento sobre o processo de sua construção, tais
como a paródia, a intertextualidade, as metáforas, as alegorizações, a
mise en abyme, o enigma, a piada, o trocadilho, o anagrama, a alusão,
a citação e a ironia intertextual.
Waugh (1984) pondera que, na sociedade atual em que os indiví-
duos são obrigados a desempenhar papéis, o romance, com o estudo de
suas personagens, tem ajudado na melhor compreensão da subjetividade
no mundo empírico, ou seja, o conhecimento que temos do mundo tem
sido mediado pela linguagem, de modo que a ficção tem sido útil para o
entendimento da realidade empírica. O leitor, enquanto função que atua-
liza o texto, deve preencher os espaços que há entre o mundo empírico e o
mundo ficcional. Para tanto, entram em jogo os conhecimentos linguís-
ticos, os elementos objetivos e os subjetivos que fazem o leitor reavaliar
a sua relação com ambos os mundos. A narrativa metaficcional traz, ao
mesmo tempo, liberdade e responsabilidade para o leitor, pois ele tem a
liberdade de participar ativamente do processo de interpretação da obra,
mas é sua a responsabilidade de colaborar com a produção desses textos,
ao invés de consumi-los passivamente.
A metaficção não representa uma crise do romance realista, mas
uma transformação e uma reflexão sobre o processo de escrita ficcional.
Metaficção, então, não abandona “o mundo real” para os prazeres
narcisistas da imaginação. O que ela faz é reexaminar as convenções do
realismo, a fim de descobrir – através de sua própria auto-reflexão – uma
forma de ficção que é culturalmente relevante e compreensível para os
leitores contemporâneos. Em nos mostrar como a ficção lirerária cria
seus mundos imaginários, a metaficção nos ajuda a compreender como
a realidade que vivemos no dia a dia é igualmente construída, de forma
semelhante na “escrita”12 (WAUGH, 1984, p. 18).

12 No original: “Metafiction, then, does not abandon ‘the real world’ for the narcissistic pleasures of the imagi-
nation. What it does is to re-examine the conventions of realism in order to discover – through its own self-reflection
– a fictional form that is culturally relevant and comprehensible to contemporary readers. In showing us how lirerary
fiction creates its imaginary worlds, metafiction helps us to understand how the reality we live day by day is similarly
constructed, similarly ‘written’”.

74 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


A narrativa metaficcional, neste sentido, não quer ignorar ou des-
truir as convenções do realismo, antes busca revelá-las e até certo ponto
desmascará-las, explicitando ao leitor os procedimentos internos de cons-
trução da própria narrativa, estabelecendo uma ruptura com a ilusão de
realidade criada pelo romancista realista.

Leitura de A Hora da Estrela sob a perspectiva


metaficcional
O romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, publicado em
1977, pode ser analisado sob a perspectiva da narrativa metaficcional.
Trata-se de uma obra que aborda, ao mesmo tempo, questões referentes
à linguagem, à construção da narrativa e à compreensão da existência
humana. Logo nas primeiras páginas do livro, na Dedicatória do Autor
– autor que na verdade não se sabe referir-se a Clarice Lispector ou a
Rodrigo S. M., personagem-escritor que também atua como narrador da
narrativa –, percebemos a relação dialógica que se trava com o leitor: “...
Trata-se de livro inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta esta que
espero que alguém no mundo ma dê. Vós? É uma história em tecnicolor
para ter algum luxo, por Deus, que eu também preciso. Amém para nós
todos” (LISPECTOR, 1998, p. 10). Mais adiante, lemos: “os senhores
sabem mais do que imaginam e estão fingindo de sonsos” (LISPECTOR,
1998, p. 12). O leitor passa do papel de mero consumidor para o papel
de colaborador, porque “a ficção não depende apenas de quem a constrói,
mas também de quem a lê” (PIGLIA, 2006, p.28).
No enredo da obra, temos a presença de um personagem-escritor
que também exerce a função de narrador da narrativa, sendo o mediador
entre o texto e o leitor. Trata-se de um narrador inscrito na narrativa,
que se autodenomina a personagem mais importante da história que vai
escrever. É um personagem-escritor que fala dos processos de construção
de sua obra, além de discutir questões concernentes à linguagem literária.
Rodrigo S. M., personagem-escritor, mostra que escrever é tornar atos e
fatos em palavras, é questionar-se.
Embora Rodrigo S. M. diga optar por uma forma de narrar tra-

“NÃO, NÃO É FÁCIL ESCREVER. É DURO COMO QUEBRAR ROCHAS”: A METAFICÇÃO NO 75


ROMANCE A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR
dicional: “não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de
originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma
história com começo, meio e “gran finale” seguido de silêncio e de chu-
va caindo” (LISPECTOR, 1998, p. 13), vemos que há uma ruptura
com o romance tradicional, quando ele questiona e explicita seu modo
de narrar para o leitor, rompendo com a linearidade do romance tradi-
cional e fazendo uso de digressões diversas acerca da composição de sua
narrativa. Assim, durante o curso da narrativa, ele vai falando como a
sua história é simples, sem luxo, medíocre, quando, na realidade, faz o
contrário do que diz que fará.
Em vários trechos de A Hora da Estrela o processo de escrita e o
papel do intelectual na sociedade são problematizados. Vejamos: “Que
ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho”
(LISPECTOR, 1998, p. 11); a construção das personagens “é trabalho
de carpintaria” (LISPECTOR, 1998, p. 14); “Não, não é fácil escrever.
É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espe-
lhados... O que me proponho contar parece fácil e à mão de todos. Mas
a sua elaboração é muito difícil” (LISPECTOR, 1998, p.19). Nesta pas-
sagem, especificamente, o personagem-escritor explicita como o trabalho
com a escrita é árduo, sofrido. É um trabalho artesanal que exige muita
dedicação: “para falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias e
adquirir olheiras escuras por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão,
sou um trabalhador manual” (LISPECTOR, 1998, p.20); “Esta história
são apenas fatos não trabalhados de matéria-prima e que me atingem
direto antes de eu pensar” (LISPECTOR, 1998, p.69), uma história não
lapidada, não disciplinada; “Estou absolutamente cansado de literatura;
só a mudez me faz companhia. Se ainda escrevo é porque nada mais
tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte. A procura da palavra
no escuro. O pequeno sucesso me invade e me põe no olho da rua” (LIS-
PECTOR, 1998, p. 70), a literatura é a procura da palavra no escuro.
Todos os trechos transcritos da obra de Lispector (1998) evidenciam
a mimesis do processo. Rodrigo S. M. mostra ao leitor o quanto o trabalho
com a linguagem, com a palavra é sofrido, árduo, um trabalho manual.
Ele explicita ao leitor as engrenagens da narrativa, o seu status ontológico

76 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


enquanto ficção – a ficção como resultado do labor estético, do trabalho ar-
tesanal do artista, que lida com a palavra, extraindo dela sua obra-prima –,
assim como expõe os procedimentos de construção de personagens, como
é o caso de Macabéa. Rodrigo S. M., na condição de personagem-escritor,
se coloca como carpinteiro, como lavrador, ou seja, como aquele homem
que trabalha manualmente, que carpe, que lavra. Enfim, são metáforas da
própria condição do escritor na sociedade e de seu papel.
A Hora da Estrela é uma obra que traz diversas estratégias meta-
ficcionais de forma explícita, dentre elas o uso da mise en abyme – nar-
rativa encaixada em outra narrativa – no nível da enunciação. O autor
empírico do romance cede lugar a um narrador que é criado no universo
intradiegético da narrativa. A característica que explicita a myse en abyme
da enunciação é a presentificação de um narrador/personagem-escritor
que explicita os processos de construção da narrativa, através dos quais a
metodologia e o objeto da escrita são descritos para o leitor, revelando,
ainda, a condição que o levou a escrever a sua narrativa.
O personagem-escritor Rodrigo S. M. cria e narra a história e ao
questionar o seu modo de narrar, ao questionar a estrutura da narrativa e
a busca pelo seu estilo (marcado por uma suposta simplicidade), apresen-
ta a personagem de sua “história”, Macabéa, uma nordestina de 19 anos,
virgem, que migra de Maceió para o Rio de Janeiro. Uma personagem
que não tem consciência de sua existência, um indivíduo sem identida-
de: “Quero antes afiançar que essa moça não se conhece senão através
de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu?”
cairia estatelada e em cheio no chão” (LISPECTOR, 1998, p. 15). Ele
diz que vislumbrou a sua personagem no rosto de uma moça nordestina
que viu na rua da cidade do Rio de Janeiro. Vemos que Macabéa é uma
nordestina que migra para o Rio, temos, então, a representação de uma
coletividade, que nos leva a refletir sobre a situação de vários nordestinos
que migram para os grandes centros em busca de melhores condições e
acabam por viver na miséria. A literatura, assim como outros campos do
saber, nos oferece um meio de escrever e descrever uma memória social.
O sujeito discursivo do romance em questão, representado pela per-
sonagem Macabéa, pertence a uma classe que, socioeconômica e historica-

“NÃO, NÃO É FÁCIL ESCREVER. É DURO COMO QUEBRAR ROCHAS”: A METAFICÇÃO NO 77


ROMANCE A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR
mente, é tida como inferior: é mulher, pobre e nordestina, em oposição ao
sujeito narrador: homem, de classe média e de outras regiões do país. Aqui,
percebemos que esses sujeitos se inscrevem em posições sociais diferentes, o
que lhe permitem ou não a insurgência. Os elementos históricos e sociais,
tais como as questões de gênero, de classe social, de classe trabalhista e de
origem, ajudam-nos a atribuir sentido à história desse sujeito Macabéa.
Desde criança, Macabéa é marcada pela falta. Teve uma infância
sem brincadeiras. É órfã e após a morte de sua tia – responsável por lhe
inculcar crenças e discursos religiosos – muda-se para o Rio de Janeiro,
onde divide quarto com mais quatro moças, trabalha como datilógrafa
e quando não está no trabalho está em casa ouvindo a Rádio Relógio.
Conhece Olímpico de Jesus, também nordestino, metalúrgico, por quem
se apaixona, mas ele acaba trocando-a por sua colega de trabalho, Glória.
Tanto Olímpico quanto Macabéa exercem profissões que não exigem ne-
nhuma reflexão: “metalúrgico e datilógrafa formavam um casal de classe”
(LISPECTOR, 1998, p. 45), ao contrário do trabalho do personagem-
-escritor que exige muita reflexão. Olímpico sonha ser deputado e finge
para Macabéa que conhece mais das palavras do que ela – o domínio da
linguagem representa superioridade e poder.
Como pontuam Eduardo Guimarães e Eni Orlandi (2006), o
político é um elemento próprio das relações sociais. Na sociedade, há
divisão desigual dos sentidos e o político faz essa divisão: há “vozes” mais
autorizadas e há “vozes” menos autorizadas. Macabéa e Olímpico, em
certo sentido, pertencem a um mesmo grupo, se considerarmos a classe
social e a etnia, mas se considerarmos a sociedade machista e patriarcal na
qual vivemos, ele estaria em uma posição superior a ela, pelo fato de ser
homem, teria “direito” à voz.
Por insistência de Glória, Macabéa consulta uma cartomante que
lhe diz que ela terá um futuro maravilhoso e ela acredita nas palavras da
cartomante, mas o futuro que a espera é aquele do qual Rodrigo S. M.
quer fugir, a morte. Aliás, o nome de Macabéa já é a sentença do seu
destino: a mãe dera-lhe esse nome devido a uma promessa feita a Nossa
Senhora da Boa Morte, caso ela “vingasse”.
Segundo Rodrigo S. M., Macabéa tinha medo da morte e por isso

78 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


vivia de menos, para gastar pouco da vida e ela não acabar; mal sabia ela
que esse seria o destino que o seu criador lhe daria, tentando convencer
o leitor de que se pudesse faria diferente: “ela nascera para o abraço da
morte. A morte que é nesta história o meu personagem predileto [...].
As coisas são sempre vésperas e se ela não morre agora está como nós na
véspera de morrer, perdoai-me lembrar-vos porque quanto a mim não me
perdoo a clarividência” (LISPECTOR, 1998, p. 84), ou seja, a morte é
natural, todos irão morrer e com Macabéa não pode ser diferente, ainda
mais tendo em vista o lugar social que ela ocupa.
A forma como Rodrigo S. M. constrói essa personagem mostra-
-nos, durante todo o decorrer da narrativa, a sua marginalização, depre-
ciação e passividade. Os marcadores linguísticos que o narrador usa para
se referir a Macabéa são sempre de negação, de falta, de ausência, carrega-
dos de preconceito: “escrevia mal”, “cadela vadia”, “esvoaçada magreza”,
“pobreza de corpo e espírito”, “feia”, “nariz entupido”, “incompetente
para a vida”, “tola”, “sem sangue”, “cerzideirinha mosquito”, “doce e obe-
diente”, “olhos enormes, redondos e saltados”, “ar de desculpa por ocupar
espaço”, “encardida”, “cheiro morrinhento”, “era café frio”, “raquítica”,
tinha “suor que cheirava mal”, “pálida e mortal”, “calada”, “assexuada”,
“neurótica”, “torta”, “roía unhas até o sabugo”, “era um acaso”, “matéria
vivente”, “voz crua e desafinada como ela”, “insignificante”, “magricela”,
“suja”, “ovários murchos”, “idiota”, “mentirosa”, “pensamentos gratuitos
e soltos”, “enjeitadinha”, “sem seio”, “feroz e desajeitada”. Macabéa não
atende aos padrões de beleza física, não sabe se comportar, não segue
os padrões de higiene. É essa a imagem que o narrador constrói dela.
Ela é uma personagem criada por meio do discurso dele, marcada pela
falta, pela carência, pelo silêncio, em oposição ao lugar que ele ocupa: é
homem, mora no Rio de Janeiro e é escritor, trabalho que exige reflexão,
ligado ao trabalho intelectual.
Um leitor de segundo nível (ECO, 2003), atento não somente
ao como a história vai terminar, provavelmente, desconfiaria desse per-
sonagem-escritor, uma vez que é a partir de sua visão que conhecemos
Macabéa. Ela é uma personagem desprovida de discurso e temos um
personagem-escritor que é homem, heterossexual, branco e intelectual

“NÃO, NÃO É FÁCIL ESCREVER. É DURO COMO QUEBRAR ROCHAS”: A METAFICÇÃO NO 79


ROMANCE A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR
responsável pela representação de uma personagem feminina, nordestina,
imigrante, pobre e silenciada. A ideologia dele influencia na construção
de sua personagem. Ele, incansavelmente, tenta convencer o leitor de que
Macabéa é passiva, de que a iniciativa de não falar é dela, e ele faz isso por
ela: “Ela falava, sim, mas era extremamente muda. Uma palavra dela eu às
vezes consigo mas ela me foge por entre os dedos” (LISPECTOR, 1998,
p. 29); “Maca, porém, jamais disse frases, em primeiro lugar por ser de
parca palavra. E acontece que não tinha consciência de si e não reclamava
nada, até pensava que era feliz” (LISPECTOR, 1998, p. 69).
A representação que Rodrigo S. M. faz de Macabéa se dá por
meio da linguagem, é uma representação linguística. A personagem
Macabéa, assim como outras personagens femininas da obra – Glória
e a cartomante – são marcadas pelo silenciamento e pela submissão.
Macabéa é marcada pela ausência do domínio da linguagem, como
Fabiano, em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, mas tem fascínio pela
linguagem: escuta a Rádio Relógio todas as madrugadas e coleciona
anúncios que recorta de jornais.
Raras vezes Macabéa é a dona do seu discurso. Ela pensa não sa-
ber usá-lo: “Acho que não sei dizer” (LISPECTOR, 1998, p. 48). Vivia
perguntando ao namorado o significado das coisas que ouvia na Rádio
Relógio, porque acredita ser desprovida da compreensão da linguagem:
“É que muita coisa eu não entendo bem” (LISPECTOR, 1998, p. 50);
“Não sei o que está dentro do meu nome” (LISPECTOR, 1998, p.56). A
primeira vez que ela fala em discurso direto na obra já indica a submissão,
a humildade, após o chefe, com brutalidade, dizer-lhe que vai mandá-la
embora: “– Me desculpe o aborrecimento” (LISPECTOR, 1998, p. 25).
Quando Clarice Lispector insere Rodrigo S. M. na narrativa, ela
cede lugar para que este personagem-escritor também fale. Essas diferen-
tes vozes discursivas da narrativa, de Lispector e da personagem Rodrigo
S. M., marcam na obra o plurilinguismo de que fala Bakhtin. Para Bakh-
tin (1988), o plurilinguismo significa as diferentes linguagens que cons-
tituem o discurso de um romance. A introdução de um narrador na obra
já evidencia a não existência de apenas a linguagem do autor. Este pode
utilizar-se da linguagem de outrem para proferir o “seu” discurso. Nos dis-

80 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


cursos das personagens, como nos mostra Bakhtin, também temos essa
pluralidade de linguagens, e não apenas na fala do autor ou narrador. Os
discursos dessas personagens, constituídos de palavras de outrem, podem
revelar as intenções do autor. Assim, a fala das personagens, do narrador
e do autor podem misturar-se. O discurso não pertencerá a apenas um
locutor, logo, exprimirá diferentes intenções. É preciso ressaltar que as
diferentes vozes estão dialogicamente relacionadas.
As características de personalidade, físicas e psicológicas das per-
sonagens, assim como o painel social que se pretende criar, influenciam
na construção delas. A coerência e a verossimilhança se fazem pela rela-
ção da linguagem da personagem com as condições de produção dessa
linguagem. Vimos que Macabéa tem um acesso restrito ao discurso, por
intermédio da Rádio Relógio e por recortes de jornais.
Podemos tomar a obra em questão como um objeto sócio-histórico,
sendo a linguagem apreendida em uma situação social e histórica. O texto
não é apenas um objeto linguístico, mas também histórico. Sendo assim,
ele é parte de um processo que se desenvolve em diferentes situações sociais,
por isso, essa obra também pode representar uma possibilidade de leitura
que pensa o sujeito em sua relação com o social e o histórico.
Para a construção da personagem Macabéa não podemos descon-
siderar os aspectos sócio-históricos e ideológicos que determinam e regu-
lam o processo de enunciação dessa personagem – mulher, pobre, nordes-
tina, órfã, semianalfabeta – de modo que seus enunciados, embora raros,
possuem uma regularidade linguística, condizente com o espaço social do
qual ela enuncia. A linguagem – o silêncio – de Macabéa é determinante
para que possamos compreender melhor a sua essência e até mesmo o
sentido da obra. Claro que devemos considerar o espaço social que ela
ocupa – um espaço que os nordestinos, migrantes, pobres e, no caso dela,
com o agravante de ser mulher, ocupam –, o seu silêncio expressivo e as
condições pelas quais essa personagem é construída.
Em poucos momentos na narrativa Macabéa demonstrará lucidez:
quando pela única vez se fez a pergunta “quem sou eu?” (LISPECTOR,
1998, p. 32); quando se reconhece em uma classe social, ao ver o livro do
chefe que tinha o título de Humilhados e ofendidos (LISPECTOR, 1998,

“NÃO, NÃO É FÁCIL ESCREVER. É DURO COMO QUEBRAR ROCHAS”: A METAFICÇÃO NO 81


ROMANCE A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR
p. 40); quando, ao sair da cartomante, sente que é gente e tem consciên-
cia de sua existência. Na hora da sua morte será uma estrela, terá o seu
momento de glória. Ela desejava ser artista de cinema, desejava ser vista,
contemplada, queria ser estrela. Quando é atropelada, diante da morte, é
que começa a existir: “Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia de minha
vida: nasci” (LISPECTOR, 1998, p. 80). Ali, caída no chão, as pessoas a
olham pela primeira vez, ela ganha existência. A morte física de Macabéa
é simbólica: representa o seu renascimento, a sua consciência. Ela mesma
questiona se é ou não é gente, se existe ou não: “Desculpe mas não acho
que sou muito gente”/“É que só sei ser impossível, não sei mais nada.
Que é que eu faço para conseguir ser possível?” (LISPECTOR, 1998, p.
48). Dói essa não consciência de Macabéa.
Outro aspecto importante da obra é a fusão entre Rodrigo S. M.
e Macabéa. Ele identifica-se com ela (com o humano e suas relações).
Assim, algumas vezes, independentemente da classe social ou do sexo/gê-
nero, eles se fundem. Ele acaba por esquecer a sua função de personagem-
-escritor/narrador criado por Lispector, e mescla-se com a personagem
Macabéa, criada por ele, mesmo considerando que a realidade do intelec-
tual está distante da realidade de sua personagem, a linguagem os separa.
Em vários momentos, Rodrigo S. M. tenta se aproximar de Maca-
béa, mas são vários os traços que os distingue, tanto bens culturais quanto
materiais: ambos utilizam a linguagem, porém de formas diferentes, ela
como profissão, datilógrafa; ele não escreve para sobreviver: “só escrevo
o que quero, não sou um profissional – e preciso falar dessa nordestina
senão sufoco” (LISPECTOR, 1998, p. 17). Ele sabe inglês e francês, en-
quanto ela não tem domínio algum da linguagem. Ele diz ser um homem
que tem mais dinheiro do que aqueles que passam fome, ou seja, mais do
que Macabéa, mas ainda afirma que, para entender a alma de Macabéa,
tem que se alimentar de frutas e beber vinho branco gelado. Afirma ainda
que enquanto escreve sobre a sua personagem terá que mudar certos há-
bitos para se comparar a ela, “andar nu ou em farrapos” (LISPECTOR,
1998, p.19) e teve que se abster de sexo e de futebol.
Para o personagem-escritor, a Macabéa está de tal forma grudada
nele, sente tanta necessidade de falar sobre ela que é como se vivessem

82 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


juntos: “se vivo com ela” (LISPECTOR, 1998, p. 21). Quando vai se
referir ao lugar onde Macabéa mora com as colegas (espaço da massa mi-
grante na cidade grande) mais uma vez mostra a distância que os separa:
“Rua do Acre. Mas que lugar. Os gordos ratos da rua do Acre. Lá é que
não piso pois tenho terror sem nenhuma vergonha do pardo pedaço de
vida imunda” (LISPECTOR, 1998, p. 30). Para ele, Macabéa é um acaso
já que poderia contar a história de qualquer nordestino. Ele não era um
acaso, porque era escritor, era um fato. “Quando penso que eu podia ter
nascido ela – e por que não? – estremeço” (LISPECTOR, 1998, p. 39).
Nota-se que ao mesmo tempo em que ele diz que quer se apro-
ximar da nordestina, Rodrigo S. M. deseja mantê-la longe. É a subjeti-
vidade do narrador inscrita na narrativa: “Vejo a nordestina se olhando
no espelho e (...) no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo”
(LISPECTOR, 1998, p. 22). O crime contra Macabéa – a morte – é um
crime contra ele também, por isso tenta convencer o leitor de que ele não
é o culpado pela morte dela. Quando Macabéa morre, ele, personagem-
-escritor, também morre: “Macabéa me matou” (LISPECTOR, 1998, p.
86), porque ela era um reflexo dele. Quando Rodrigo S. M. põe fim à
vida dela, sua história acaba, pois ela era objeto de sua escrita. O processo
de escrita caminhava junto com a construção da personagem. A Hora da
Estrela, a morte, era comum a ele e a ela.
Assim, valendo-se da verossimilhança, o personagem-escritor faz o leitor ver
que a autenticidade da narrativa é verdadeira enquanto “verdade ficcional”.
Além disso, o leitor reconhece que tanto o processo quanto o produto
dessa narrativa são discursos linguísticos, porque a própria literatura é um
constructo linguístico: “Será essa história um dia o meu coágulo? Que sei eu.
Se há veracidade nela – e é claro que a história é verdadeira embora inventada”
(LISPECTOR, 1998, p. 12 – grifo nosso). Trata-se de uma realidade fictícia,
pois a narrativa metaficcional, como dissemos anteriormente, não esconde
do leitor que aquilo que ele lê é ficção e não um relato da vida real.

Um leitor semântico – de primeiro nível – (ECO, 2003), não per-


ceberia essa “chamada” que Rodrigo S. M. lhe dá, para que ele seja um
colaborador. Também não perceberia que o personagem-escritor, que
constrói e narra a história, tenta ludibriá-lo em relação à construção de

“NÃO, NÃO É FÁCIL ESCREVER. É DURO COMO QUEBRAR ROCHAS”: A METAFICÇÃO NO 83


ROMANCE A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR
Macabéa, ao afirmar que até gostaria de dar um destino diferente a essa
personagem, mas que nada pode fazer de concreto pela moça, apesar de
amar sua personagem. Rodrigo S. M. diz ao leitor que fará de tudo para
que a moça tenha um futuro feliz, quando desde o início já sabia o seu
fim: a morte. Esse leitor não participaria do “banquete” que convida todo
leitor a não ser apenas consumidor, mas um produtor de sentido.
O que sempre foi uma verdade da ficção, embora raramente consciente,
é trazido à tona em textos modernos: a criação de mundos fictícios e o
funcionamento construtivo, criativo da linguagem em si, são agora
autoconscientes, compartilhados por autor e leitor. O último não é mais
solicitado apenas para reconhecer que os objetos de ficção são “como a
vida”, ele é convidado a participar na criação de mundos e de significado,
através da linguagem. Ele não pode evitar esta chamada à ação por ele
estar pego nessa posição paradoxal de ser forçado pelo texto a reconhecer a
ficcionalidade do mundo, ele também está criando, mas a sua participação,
envolve-o intelectualmente, de forma criativa, e talvez até mesmo
afetivamente em um ato humano que é muito real, isto é, na verdade,
uma espécie de metáfora de seus esforços diários para “fazer sentido” de
experiência13 (HUTCHEON, 1984, p. 30).

Considerações finais
Portanto, o que percebemos na narrativa de Clarice Lispector é o uso
de uma linguagem que pressupõe uma escrita crítica e interpretativa, anali-
sando as estruturas literárias, temáticas e formais que compõem a obra literá-
ria. Por meio da linguagem, o personagem-escritor traz para a ficção mundos
de sua imaginação e os reconstrói com a ajuda do leitor. Como é possível
perceber, a escrita metaficcional não é isenta de ideologia, a própria ação de
narrar é ideológica, porque o rompimento, o “novo” traz em si os discursos
ao qual se opõe. Por isso, Wladimir Krysinski diz que a metaficção deve ser
compreendida em um contexto, não apenas literário, mas também ideoló-
13 No original: “What has always been a truism of fiction, though rarely made conscious, is brought to the fore in
modern texts: the making of fictive worlds and the constructive, creative functioning of language itself are now self-cons-
ciously shared by author and reader. The latter is no longer asked merely to recognize that fictional objects are “like life”;
he is asked to participate in the creation of worlds and of meaning, through language. He cannot avoid this call to action
for he is caught in that paradoxical position of being forced by the text to acknowledge the fictionality of the world he too
is creating, yet his very participation involves him intellectually, creatively, and perhaps even affectively in a human act
that is very real, that is, in fact, a kind of metaphor of his daily efforts to “make sense” of experience”.

84 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


gico e político, uma vez que ela “reconstitui o universo social da literatura,
especialmente a comunidade de escritores, leitores e críticos” (2007, p. 85).
A metaficção também representa a busca de identidade da própria
narrativa e de seus personagens, por isso, na obra que analisamos vimos
que Rodrigo S. M., ao explicitar o seu processo de escrita, também busca
encontrar-se. O romance não deixa de tratar a relação de fissura que há
entre o indivíduo e a sociedade moderna. Cremos que esse novo papel
dado ao leitor pode, por um lado, assustá-lo – encontrar-se na leitura com
um personagem-escritor que atua dentro da narrativa como narrador e
escritor, que lhe explicita como vem construindo a obra e que o chama
a participar dessa construção é algo que pode gerar certo desconforto no
ato da leitura –, gerar embaraço, mas, por outro lado, essa nova realidade
o chama à libertação do convencionalismo e da prisão da passividade.
Terá mesmo o romance morrido, como afirmam alguns críticos contrá-
rios à narrativa metaficcional? Cremos, pelos motivos expostos, que não,
pois o gênero romance, plástico por sua própria natureza, permanece vivo
e está em constante processo de transformação e de inovação.

REFERÊNCIAS
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___. Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades, 2003, p. 55-63.
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______. O leitor modelo. In: ___. Lector in Fabula. São Paulo: Perspectiva, 2004,
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“NÃO, NÃO É FÁCIL ESCREVER. É DURO COMO QUEBRAR ROCHAS”: A METAFICÇÃO NO 85


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HUTCHEON, Linda. Narcissistic Narrative: the Metafictional Paradox. London
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86 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


A AUTORREFLEXIVIDADE NAS
ESCRITAS DA FICÇÃO E DA HISTÓRIA
Paulo Alberto da Silva Sales

In both the covert and overt forms of metafictional narcissism, this focus
does not shift, so much as broaden, to include a parallel process of equal
importance to the text’s actualization – that of the reading. The reader is
explicitly or implicitly forced to face his responsibility toward the text,
that is, toward the novelist world he is creating through the accumulated
fictive referents of literary language.
Linda Hutcheon

Deve ser óbvio que o enfoque contextualista do problema da explicação


histórica pode ser visto como uma combinação dos impulsos dispersivos
que movem o formismo de um lado e os impulsos integrativos que
inspiram o organicismo do outro. Mas, na realidade, uma concepção
contextualista da verdade, da explicação e verificação parecer ser
extremamente modesta naquilo que reclama do historiador e exige do
leitor.
Hayden White

Introdução
As epígrafes acima elucidam as questões com as quais nos detere-
mos neste ensaio: o problema da autorreflexividade na escrita de narra-
tivas ficcionais e históricas da pós-modernidade. Há, nessas narrativas,
segundo os estudiosos Linda Hutcheon (1984) e Hayden White (2008),
o questionamento dos processos de construção e estruturação de suas
estórias que se tornam parte da matéria do enredo narrado. Além disso,
é decisiva, nesses mesmos enredos, a participação ativa do leitor na cons-
trução e na contextualização dos sentidos do texto, aspecto, este, que o
faz compactuar como um coautor dessas mesmas narrativas. Mas, como
a autorreflexividade se materializa nos tecidos da ficção e da história? E o
leitor: porque a presença dele é substancial na construção dessas narrati-

87
vas? Na ficção, estas questões são recentes? Vejamos.
Na narrativa ficcional, o problema da autorreflexividade se encontra
presente em narrativas isoladas dos séculos XVII, XVIII e XIX. Como exem-
plo dessa questão, podemos citar os romancistas Charles de Sorel, Miguel de
Cervantes, Laurence Sterne, Denis Diderot e Machado de Assis. Contudo,
será na pós-modernidade, mais especificamente partir da década de 1960 do
século XX, que as narrativas ficcionais autorreflevixas se intensificarão.
Já nas narrativas históricas, a autorreflexividade se tornou presen-
te, com mais ênfase, a partir dos manifestos da École des Annales, que
culminaria na Nouvelle Histoire e, mais tarde, na Meta-History1. Mo-
tivada pelas estratégias da narrativa ficcional, a narrativa histórica co-
meçou a questionar a forma de se fazer história e de como tratar o fato
histórico. Esse questionamento também contribuiu para o alargamento
da noção de “arquivos” históricos. Logo, as ficções e mesmo inúmeras
estratégias da narrativa ficcional seriam utilizadas pelos “novos historia-
dores” na recriação do fato histórico.
Ao transpor as fronteiras entre os saberes, as escritas da ficção e da
história começaram compartilharam seus objetos de estudo. Transpostos os
limites que separavam a historiografia da literatura, várias narrativas ficcio-
nais latino-americanas e europeias começaram a questionar os fatos histó-
ricos por meio de uma autorreflexividade unida a estratégias hipertextuais,
tais como a paródia e o pastiche. São essas questões que se imbricam, mais
particularmente, entre as escritas autorreflexivas da ficção que examinare-
mos aqui. Iniciaremos com a discussão da autorreflexividade na ficção e,
em seguida, na história e na ficção metaficcional de cunho histórico.

A escrita autorreflexiva na ficção: a metaficção


A prática autorreflexiva, típica da metaficção, é bem anterior à cria-
ção do vocábulo. O termo metafiction começou a ser utilizado por vol-
ta 1970 do século XX dentro da tradição crítica norte-americana como
sinônimo de ficção pós-moderna, criado pelo escritor William Gass, a
1 Tratam-se das etapas pelas quais a historiografia se renovou. Veremos nesta reflexão que a Meta-História,
teorizada nos anos 1980 por Hayden White, utiliza inúmeras estratégias da narrativa ficcional da recriação do fato
histórico.

88 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


partir de seu livro Fiction and figures of life. Contudo, mesmo antes da
teorização de Gass, houve uma proliferação de termos que surgiram des-
de o século XVI para tratar da ficção que volta sobre si mesma. Zênia de
Faria (2004; 2009; 2012) destaca o aparecimento de obras ficcionais no
século XVI que apresentam a ficção do processo, como por exemplo, o
romance Le Berger extravagant, de Charles Sorel, de 1627. Discute Fa-
ria que o referido romance foi denominado como um “antirromance”
porque se apresentava contrário às convenções romanescas vigentes. Era
uma transgressão pautada, principalmente, na estratégia paródica como
artifício demolidor da formalidade. Para Hutcheon (1985), a paródia é
uma das estratégias literárias mais frequentes usadas na tematização da
mimese do processo. Além da paródia, há também a mise en abyme que
torna visível a construção do fazer ficção por meio da metaficção.
Muito utilizada para representar a tematização do processo, a
mise en abyme, geralmente, contém uma crítica no próprio texto. Lucien
Dallenbäch, em Le recit speculaire (1977), apresenta esta modalidade re-
flexiva a partir dos estudos da obra de André Gide. Para Dallenbäch, a
imagem do espelhamento é central para a o entendimento da noção de
mise en abyme, embora se manifeste de maneiras distintas. Há reduplica-
ção nas quais os fragmentos espelhados têm relação de similitude com o
todo que o contém. Existe, também, a reduplicação in infinitum no qual
o fragmento espelhado traz dentro de si outro fragmento espelhado, e as-
sim sucessivamente. Por esse motivo, a mise en abyme é uma modalidade
reflexiva do processor criador da crítica no romance voltado a si mesmo
muito utilizado em narrativas metaficcionais que destroem a ideia de re-
ferência externa à realidade do próprio texto.
A ausência de realismo já era constatada, como já citamos ante-
riormente, em Dom Quixote. Nessa e em outras narrativas autorreflexi-
vas, percebe-se que o problema da ficção sobre a ficção. Segundo Faria,
a teoria não acompanhou a prática. Estas formas híbridas que compar-
tilham tanto ficção e crítica no romance apresentaram uma dissonância
na recepção crítica. Para Faria (2012, p. 238), há alguns teóricos que
consideram o surgimento de tais narrativas voltadas para si mesmas como
marcas de modernidade. Por outro lado, uma gama de estudiosos aponta
a pós-modernidade como o momento de proliferação destas obras cuja
A AUTORREFLEXIVIDADE NAS ESCRITAS DA FICÇÃO E DA HISTÓRIA 89
teoria estamos nos ocupando. Ao consultarmos as críticas especializadas,
constatamos que a questão fundamental é que na contemporaneidade,
mais especificamente no último quartel do século XX, ainda de acordo
com Faria, houve um aumento significativo na produção de narrativas
brasileiras que tornaram ainda mais explícito o grau de representação da
mimese do processo. E para várias realizações distintas, houve a criação de
várias terminologias que tentaram explicar o problema.
O antirromance, por exemplo, foi um termo genérico aplicado
às narrativas que não obedeciam ao realismo formal discutido por Ian
Watt (1990). Laurent Lepaludier (2002) em métatextualité et métafic-
tion, apresenta várias terminologias que são usadas pelos teóricos e crí-
ticos da contemporaneidade ao se referirem às narrativas que voltaram
sobre si mesmas. Antirromance, como já citamos antes, metaficção,
narrativa pós-moderna, narrativa narcisista, ficção autorreferencial, fic-
ção reflexiva ou autorreflexiva, ficção autoconsciente, antificção, não
ficção, narrativa antimimética, ficção pós-moderna, metaficção histo-
riográfica, fabulação, ficção neobarroca, romance de introversão, ficção
instrospectiva, superficção e transficção. Percebemos, também, que tais
termos não são sinônimos, embora sejam empregados constantemente
pela crítica. Nossa escolha, entretanto, pelo termo metaficção tem uma
explicação pautada, principalmente, nos estudos de Hutcheon (1984):
a presença constante e fundamental do leitor como um coautor do tex-
to. Analisemos o excerto abaixo transcrito que começará a ilustrar os
problemas da escritura com teor metaficcional:
Que vale o resumo de um livro?
Prática superficial, difunde, e reanima a ideia corrente segundo o qual a
história é o romance, não um dos seus aspectos, dos que menos ilustram
a arte de narrar. Imaginar desejos, contratempos, embates, desistências,
o triunfo ou a morte prende-se à invenção em estado bruto. Nasce o
romancista com o ato de dispor esses eventos e de elaborar uma linguagem
que não sabemos se os reflete ou se apenas serve-se deles para existir.
(LINS, 2005, p. 16)

Ao questionar a pertinência do enredo nos romances tradicionais, o


narrador do romance A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins, pu-

90 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


blicado em 1967, faz uma ficção que analisa a finalidade da própria ficção.
A questão posta em prova é a seguinte: a instância narrativa não narra fatos
linearmente. Não há a verossimilhança realista tradicional. Em romances
como os de Lins e outros que nos serviremos, o realismo formal é nega-
do em função da visibilidade da mimesis do processo. Por meio de uma
escritura que cria acontecimentos puros, a ficção sobre a ficção cria a au-
torreferencialidade. Os experimentos textuais criam a própria “realidade”.
O heterocosmo da ficção é construído, com bem discute Patricia Waugh
(1984), por meio do abandono da “ilusão ficcional” do romance realista
para a criação de uma ficção que se autoexplica. Seria um processo análogo
ao que Jean Ricardou afirmou certa vez quando discutia a função do nou-
veau rouman: le nouveau roman c’est l’aventure de l’écriture.
A partir das transformações pelas quais o novo romance francês
passou nas suas formas experimentais, começamos a detectar o problema
da narrativa metaficcional. Para Perrone-Moysés (1966), uma das últimas
experiências do novo romance francês se deu no “romance sobre o ro-
mance”. Waugh (1984, p. 6), por sua vez, também destaca a presença da
criação imaginativa que invalida a noção de representação. A extrema au-
toconsciência se firma sobre a linguagem, sobre a forma literária e sobre
o ato de escrever ficção. Apesar das várias possibilidades de apresentação
das dimensões autorreflexivas das narrativas, o ponto em comum que
as une na contemporaneidade, segundo Waugh, é o fato de explorarem
a teoria da ficção através da prática de escrever ficção. O prefixo meta,
na linguagem, ainda segundo Waugh, refere-se à ordem exploratória da
relação entre o sistema linguístico arbitrário e o mundo como o qual
aparentemente se refere. O mundo como um livro. A autorreflexividade
é uma das principais marcas da metaficcionalidade.
A narrativa autorreflexiva apresenta vários aspectos ao status on-
tológico da ficção – de toda a ficção – e sobre a natureza complexa da
leitura. Eis o grande paradoxo da escritura autorreflexiva: a presença ativa
do leitor na construção do texto. A recepção cria o sentido. A autor-
reflexividade pós-moderna concebeu maior liberdade ao leitor que foi
reconquistada com a estética da recepção. Mas essa relação não é simples.
Detenhamo-nos nela e percebamos como ela acontece.

A AUTORREFLEXIVIDADE NAS ESCRITAS DA FICÇÃO E DA HISTÓRIA 91


Em Narcissistic narrative, Hutcheon (1984) se detém, principal-
mente, no paradoxo central da metaficção surgida em fins da década de
60 do século XX: o fato, simultâneo, de o leitor ser atuante e distanciado
na construção de sentidos na escritura. Ele é, ao mesmo tempo, coautor
e parte integrante do texto. O leitor participa tanto na produção e na
interpretação da escritura. Observamos já em Dom Quixote e em menor
grau em Lazarilho de Tormes a presença de diálogos do narrador com o
leitor que passa a integrar e a dar sentido ao heterocosmo autorreflexivo.
O “meta” prólogo ou “anti” prólogo cervantino que abre a primeira parte
do Engenhoso fidalgo Dom Quixote de la mancha já convoca o leitor a ser
o mediador dos fios narrativos:
Desocupado leitor: sem meu juramento podes crer que eu quisera que este
livro, como filho do entendimento, fosse o mais formoso, o mais galhardo e
mais discreto que se pudesse imaginar. [...] Muitas vezes tomei da pena para
escrever, e muitas a deixei, por não saber o que escreveria; e estando numa
delas suspenso, com o papel adiante, a pena à orelha, o cotovelo na mesa e
a mão no queixo, pensando no que diria, entrou de improviso um amigo
meu, espirituoso e avisado. O qual vendo-me tão cismativo, me perguntou
a causa, e não ocultando-lha eu, respondi que estava pensando no prólogo
que tinha de fazer à história de D. Quixote, e que isto me punha de tal sorte
que eu nem o queria fazer, nem menos trazer a luz as façanhas de tão nobre
cavaleiro. (CERVANTES, 2002, p. 31 – 32)

Ao dirigir-se aos “desocupados” leitores, o texto de Cervantes abre


inúmeras possibilidades de leitura, destacando, desde o início, a ideia que
se trata de um texto “aberto” às diferentes idades e às mais variadas for-
mas de entendimento. A crítica Maria Augusta da Costa Vieira (2002),
na apresentação do Quixote, salienta o aspecto metaficcional presente na
narrativa, haja vista que o romancista espanhol introduziu na ficção a
teoria do fazer ficção, como questões de teoria literária que são a maté-
ria principal do enredo, além da forte presença da intertextualidade nas
referências diretas aos romances de cavalaria. Além disso, há a questão
da paródia, do pastiche e da ironia crítica da personagem ao se valer e se
comportar como um cavaleiro medieval à maneira de Amadis de Gaula,
protagonista do ciclo de livros de cavalaria inaugurado no século XIV que
é paradigma do gênero.

92 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


Em Dom Quixote, se o averiguarmos com mais acuidade, per-
ceberemos que os problemas da narrativa autorreflexiva já estavam
todos materializados nos discursos representativos dos “mundos” li-
vrescos do cavaleiro andante. Contudo, na pós-modernidade, o que
perceberemos, é uma maior problematização do grau autorreflexivo
ao trabalhar juntamente ao paradoxo ficcional, a historiografia, os
gêneros memorialísticos, os gêneros não literários e outros textos de
natureza teórico-críticos.
Ao assumir, na contemporaneidade, o espírito pós-estruturalista
da repetição com diferença ao voltar sobre si mesma, a escritura autorre-
flexiva nos ensina, com base em Hutcheon (1984), que estamos tratando
de discursos. Todo discurso é uma enunciação que envolve a produção e
a recepção de sentidos contextualizados. Mas atentemo-nos a um dado
importante: por mais autorreflexivo que seja o romance, ele não abando-
na o mundo ao qual se vincula. Vejamos um exemplo desta relação no
romance A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins:
8 de Agosto
A expressão “período de carência” indica intervalo entre a total ausência de
um direito e o seu exercício: entramos, aí, na incerta posse de um bem que
em princípio pertence e que ainda não nos oferece.
O decreto 72.771, de 6/9/1973, publicado em suplemento ao número
173 do Diário Oficial da União, de 10/9/1973, estabelece no artigo 41 a
carência de doze contribuições mensais para que o sistema previdenciário
estude a concessão de:
auxílio doença,
aposentadoria por invalidez,
pensão por morte,
auxílio reclusão,
auxílio natalidade.
[...] O direito à assistência médica, precária, é obtido a partir da primeira
contribuição. Garantindo, igualmente, o auxílio para enterro.
(LINS, 2005, p. 23 – 24)

A fragmentação e a pulverização do enredo tradicional da escrita


autorreflexiva não elimina e nem deve eliminar fatos históricos, por me-
nores que sejam, marcadores da referencialidade e da realidade empírica.

A AUTORREFLEXIVIDADE NAS ESCRITAS DA FICÇÃO E DA HISTÓRIA 93


Não esqueçamos que a metaficção é uma ficção consciente e não um
tratado teórico. E é justamente por esta razão que o leitor tem o papel
fundamental de suplementar os vazios encontrados no texto: unir tanto
um fato de extração histórica, político e social às digressões e entretem-
pos criados pela mimesis do processo. O excerto anterior, por exemplo,
condena a precariedade do sistema previdenciário brasileiro da época da
redação do romance e de como a “heroína” do romance de Lins, Maria de
França, perpassa as duras barras às questões do INSS. Entre um e outro
comentário crítico dentro da ficção, o narrador ajusta registros históricos
recortados de trechos de jornal e de outros veículos de comunicação que
ligam a ficção ao seu contexto.
Se a autorreflexividade apresenta o mundo como uma construção e
um artifício, a noção de realidade torna-se obsoleta. A linguagem nas escri-
tas autorreflexivas é autoconsciente e constitui a realidade. E são os leitores
quem tem o papel de construir e dar sentido às “realidades”. É o devir louco
análogo ao de Alice tentando achar sentido a tudo que foi destituído do
sentido primeiro. O leitor, na metaficção, dá sentido aos acontecimentos e
os contextualiza. Ele pode, também, criar conexões entre o fato histórico e
a ficção. Nas novas escrituras da história e veremos na metaficção historio-
gráfica, a história é um discurso. A literatura também o é. Para Hutcheon
(1984, p. xvi), “toda realidade se inicia na forma de dizer: História – tanto
pública quanto privada – é um discurso; então, também, é ficção”. Ilustre-
mos esse aspecto com base na análise do trecho do romance de Xavier de
Maistre. O romance Viagem à roda do meu quarto, publicado em 1794,
propõe uma nova forma de contar histórias de viagens e de fatos históricos.
Por meio de uma narrativa extremamente digressiva, fragmentada e sem
perspectiva de um enredo, o narrador nos explica:
Todavia, a minha viagem há de conter mais que isso; pois atravessei o
quarto muitas vezes no comprimento e na largura, ou então diagonalmente,
sem seguir regra ou método. Farei até ziguezagues, e percorrerei todas as
linhas possíveis em geometria, se a necessidade o exigir. Não gosto das
pessoas que são tão donas dos seus passos e das suas ideias, que dizem:
“Hoje eu farei três visitas, escreverei quatro cartas, terminarei esta obra
que comecei”. – A minha alma é de tal modo aberta a toda a sorte de
ideias, de gostos e de sentimentos; recebe tão avidamente tudo o que se

94 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


apresenta!... E porque haveria ela de recusar os gozos que estão dispersos
pelo difícil caminho da vida? Eles são tão raros, tão disseminados, que seria
preciso estar louco. [...] Por isso, quando viajo pelo meu quarto, raramente
percorro uma linha reta: vou da minha mesa até um quadro colocado num
canto. (MAISTRE, 2008, p. 15 – 16)

A alusão ao processo desordenado de criação narrativa que execra


o seguimento de uma regra é o principal tema ironizado no romance de
Maistre. O humor jocoso que a instância faz ao tratar das suas inúmeras
“viagens” em detrimento dos romances de viagens realistas tradicionais são
desveladas pela própria ficção que narra essas novas maneiras inusitadas de
viajar. É o desnudamento do fictício pela mimesis do processo. Além do
aspecto risível presente nos comentários irônicos do narrador em relação às
narrativas de viagens tão comuns no século XVIII e XIX, o excerto discute
o aspecto aberto e inacabado das escrituras autorreflexivas: a contempora-
neidade irá problematizar ainda mais o caráter inacabado e suplementado
pelos leitores que compartilham das experiências da leitura e da criação
fictícia. Além desta questão, há também as críticas às várias interpretações e
leituras superficiais dos leitores, como o excerto abaixo demonstra:
Quando estais lendo um livro, caro senhor, e uma ideia mais agradável
entra de repente em vossa imaginação, a vossa alma imediatamente
se deixa agarrar e esquece o livro, enquanto os olhos vão seguindo
maquinalmente as palavras e as linhas; acabais a página sem
compreendê-la e sem vos lembrardes do que lestes, tendo ordenado à
companheira que continuasse a leitura, não advertiu da ligeira falta que
ia fazer; de modo que a outra continuava a leitura que a vossa alma não
mais ouvia. (MAISTRE, 2008, p. 19 – 20)

Mesmo de forma crítica, a mimesis do processo convoca a atenção/


desatenção do leitor a respeito do que está sendo narrado no momento
do acontecimento. O leitor despercebido é criticado e chamado à atenção
a participar com mais acuidade do processo narrativo. Tal aspecto é mui-
to comum nas narrativas de Machado de Assis, principalmente em Dom
Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas. Diferentemente do realis-
mo crítico lukacsiano, a escritura autorreflexiva não é um produto. Ela é
uma “obra aberta” (ECO, 2007) na qual o desenvolvimento e o progresso

A AUTORREFLEXIVIDADE NAS ESCRITAS DA FICÇÃO E DA HISTÓRIA 95


do “enredo” dependem da atuação ativa do leitor. O narrar tornou-se,
segundo Hutcheon (1984, p. 40) um ato como qualquer outro dentro da
ficção. O conteúdo se expandiu para comportar a própria diegese ou o
processo narrativo em si mesmo. Ou seja,
A literatura mimética [realista] sempre tem criado ilusões, não verdades
literais; Ela sempre tem utilizado convenções, não importando o que
ela deveria escolher para imitar - isto é, criar. A imagem familiar do
espelho mimético sugere, também, uma revelação passiva; o uso de uma
micro ou de uma macro alegoria espelhada ou uma mise in abyme na
metaficção contesta esta mesma imagem de passividade, fazendo, então
um produtivo espelhamento como o ponto central do trabalho literário.
(HUTCHEON, 1984, p. 42)2

Por conta desta liberdade conferida às atribuições de sentido do


leitor, surgiram alguns estudos críticos que colocavam em xeque os li-
mites interpretativos. Umberto Eco, por exemplo, em Interpretação e
superinterpretação (2005) discute os problemas, a natureza do signifi-
cado e as possibilidades e os limites da interpretação. Desde sua Obra
aberta, Eco trata dos direitos do texto e dos direitos do leitor. O pa-
pel ativo do leitor é destacado na leitura de textos voltados à estética.
O questionamento central de Eco nos é útil na medida em que ele
aponta o alargamento das variedades interpretativas por meio do que
ele chama de uma “semiótica ilimitada”. Haveria princípios para julgar
uma interpretação “correta”? Em decorrência das principais correntes
do pensamento crítico contemporâneo, em particular daquele tipo de
crítica pautada na desconstrução derridiana, a escritura autorreflexiva
dá ao leitor a licença de produzir um fluxo ilimitado e incontrolável de
leituras que Eco denominou de “superinterpretações”.
Além da autorreflexividade e autoconsciência narrativa, a escritura
também apresenta uma intenção em si mesma que orienta as formas de
recepção. Vejamos o exemplo paradigmático de Lazarilho de Tormes, cujo
teor narrativo, também é autorreflexivo e convoca a participação do leitor:

2 “mimetic literature has always created illusions, not literal truths; it has always utilized conventions, no matter
what it might choose to imitate – that is, to create. The familiar image of the mimetic mirror suggests too passive a
proves; the use of micro-macro allegorical mirroring and mise in abyme in metafiction contests that very image of
passivity, making the mirror productive as the genetic core of the work”.

96 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


Suplico a Vossa Mercê que receba este pobre serviço das mãos de quem o
faria muito mais rico, se seu poder e desejo estivessem em conformidade.
E como Vossa Mercê esteve pedindo que lhe escreva e relate o caso bem
por extenso, pareceu-me melhor não toma-lo pelo meio, mas começar
bem do princípio, para que se tenha cabal notícia da minha pessoa.
(ANÔNIMO, 2012, p. 25)

Por se tratar de uma espécie de carta de teor biográfico, a dedica-


tória no romance de Lázaro desloca o leitor do universo ficcional para o
universo documental: a orientação à tal interpretação é nítida. A partir da
dedicatória do romance, a pessoa que fala na narrativa não é o autor do
livro, mas Lázaro de Tormes. O leitor é o destinatário implícito da narra-
tiva e se defronta com a existência de um destinatário explícito do texto.
Dessa maneira, o leitor passa, ao longo da narrativa, a acompanhar como
uma testemunha todas as adversidades e infortúnios ligados ao herói pi-
caresco nas suas idas e vindas: “Devo abrir bem os olhos e ficar esperto,
pois sou sozinho e tenho que aprender a cuidar de mim”. (ANÔNIMO,
2012, p. 37) Nesse mesmo ato, o leitor acompanha as advertências de
Lázaro sobre o que narra e porque narra:
Ri comigo mesmo e, embora jovem, notei a sutil dedução do cego. Entretanto,
para não ser prolixo, deixo de contar aqui muitas coisas, tanto engraçadas como
dignas de nota, que com esse meu primeiro amo me aconteceram. Quero
relatar a despedida e acabar com este assunto. (ANÔNIMO, 2012, p. 53)

A presença da autorreflexividade, da autoconsciência, do voltar so-


bre si mesma, das formas espelhadas, das estruturas em abismo e da con-
vocação do leitor nos diversos níveis interpretativos, em maior grau, são
marcas da escritura metaficcional da pós-modernidade. Mas, para Hut-
cheon (1991), o que define o problema das narrativas ditas pós-modernas
da contemporaneidade está no paradoxo que ela chama de metaficção
historiográfica. A história voltada a si mesma motivada pelas estratégias
da narrativa ficcional.

A AUTORREFLEXIVIDADE NAS ESCRITAS DA FICÇÃO E DA HISTÓRIA 97


A escrita autorreflexiva da história: meta-
história e metaficção historiográfica
O problema da narrativa na teoria histórica contemporânea tem
sido objeto de grande celeuma entre os historiadores. Hayden White
(2008), por exemplo, em sua Meta-história, discute os novos métodos e
procedimentos do historiador contemporâneo a partir da teoria da narra-
tiva ficcional. Para White, a historiografia trata-se de uma estrutura verbal
na forma de um discurso em prosa. As estruturas históricas “comportam
um conteúdo estrutural profundo que é em geral poético e, especifica-
mente, linguístico em sua natureza, e que às vezes no paradigma pré-cri-
ticamente aceito daquilo que dever ser uma explicação eminentemente
‘histórica”. (WHITE, 2008, p. 11).
Mas, se a história é uma narrativa feita de estratégias ficcionais ar-
quitetadas em enredos satíricos, poéticos, trágicos, irônicos, romanescos,
poéticos, cômicos e satíricos, como entende White, não identificamos
maneiras de separar, na contemporaneidade, o que seria um fato de ex-
tração histórica de uma criação fictícia. Voltamos, de falto, a não distin-
ção entre história e ficção presente desde o mito grego e nas epopeias de
Homero. Esse hibridismo e indefinição que circunda as narrativas escritas
no último quartel do século XX no Brasil e, também, em outros países
lusófonos tem despertado a atenção da crítica literária contemporânea.
Mas é preciso que expliquemos melhor como White, ao apoiar-se
nos problemas das estratégias ficcionais, revê o problema de voltar-se para
a história como enredos narrados.
Vejamos, primeiramente, o título do estudo de White: meta-histó-
ria. A história voltada para si mesma, debruçada sobre os problemas de
“como” e “o que” narrar. Para repensar este processo, o estudo de Whi-
te se ocupa da análise da historiografia oitocentista. Ele reconhece nos
discursos históricos as estratégias narrativas que permitem penetrar “na
evanescência irônica dos discursos” e retornar “ao teatro dos aconteci-
mentos”. O historiador deve reler, reinventar, rever, reavaliar e princi-
palmente, interpretar os discursos da história. Eis o problema que desta-
camos desde o início de nossa tese. A história entendida como discurso,

98 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


tanto para Foucault, quanto para White, será essencial para entendermos
a análise da narrativa de Maranhão.
Para White, a partir do século XIX, surgiram novas estratégias in-
terpretativas por meio dos estudos dos filósofos da história que foram To-
cqueville, Michelet e Rank, além de algumas provocações de Croce e, em
certa medida, de Hegel e Marx. O diferencial, segundo as considerações
de White, foi não mais desconsiderar a imaginação frente à “objetividade”
e a “racionalidade”, tão caras à historia magistra vitae. O iluminismo era
cético frente às possibilidades de decifração e interpretação de qualquer
fato. Não menos instigante é o subtítulo do estudo de White: “a imagi-
nação histórica do século XX”. A imaginação está contida em estratégias
construídas por meio de argumentações formais e explicadas por meio da
elaboração de um enredo que contém implicações ideológicas. Aqui não
vemos, senão, as teorias da narratologia dos formalistas russos, de estu-
diosos como Gerárd Genette, Mikhail Bakhtin e outros teóricos e críticos
da literatura se servindo à historiografia. Sob este ponto de vista, concor-
damos com White ao dizer na introdução de sua meta-história que não
há a existência de uma história propriamente dita. Há estratégias prefi-
gurativas da ficção no discurso histórico. São elas, de acordo com White,
a metáfora, sinédoque, metonímia e a ironia. E além desses aspectos, há
o fato de a história voltar-se sobre si mesma, tornando-se autorreflexiva.
Segundo os estudos de Hutcheon (1991), principalmente no seu li-
vro Poética do pós-modernismo, a metaficção historiográfica é uma estratégia
da narrativa contemporânea que mescla, no mesmo texto e, de forma si-
multânea, a autorreflexividade da narrativa especular junto à revisão crítica
do fato histórico problematizado na ficção. Por meio da intertextualidade,
da paródia, do pastiche e da ironia, a metaficção historiográfica
não reflete a realidade, nem a reproduz. [...] ele [o romance meta-
historiográfico] recontextualiza tanto os processos de produção e
recepção como o próprio texto dentro de uma situação de comunicação
que inclui os contextos social, ideológico, histórico e estético nos quais
esses processos e esse produto existem. [...] A especificidade do contexto
faz parte da ‘localização’ do pós-modernismo. [...] A contextualização
discursiva do pós-modernismo, mais complexa e mais aberta,
ultrapassa essa autorrepresentação e sua intensão desmistificadora, pois

A AUTORREFLEXIVIDADE NAS ESCRITAS DA FICÇÃO E DA HISTÓRIA 99


é fundamentalmente crítica em sua relação irônica com o passado e
o presente. Isso se aplica à ficção e à arquitetura pós-moderna, assim
como a grande parte do discurso teórico histórico, filosófico e literário
contemporâneo. (HUTCHEON, 1991, p. 64 – 65, grifos nossos)

O “repensar irônico” presente na metaficção historiográfica refuta


a ideia nostálgica de uma retomada do passado com fins idealizantes ou
de uma evasão do presente nostálgico. Muito pelo contrário: o roman-
ce meta-historiográfico confronta o presente com o passado e vice-versa
num jogo crítico e irônico proposto pela paródia. E esta ironia presente
na metaficção historiográfica, movida pela paródia com distância críti-
ca, talvez seja, segundo Hutcheon (1991, p. 62), a “única” maneira de
sermos sérios hoje. Na reelaboração dos tempos passado-presente no ato
fictício, a metaficção historiográfica
numa relação direta contra a tendência de nossa época no sentido
de valorizar apenas o novo e a novidade, nos faz voltar a um passado
repensado, para verificar o que tem de valor nessa experiência passada,
se é que ali existe mesmo alo de valor. Mas a crítica de sua ironia é
uma faca de dois gumes: o passado e o presente julgados a luz do outro.
(HUTCHEON, 1991, p. 63)

O contexto, para a metaficção historiográfica, é tudo. A historio-


grafia, como vimos anteriormente, concentrou seus esforços e métodos
no sentido de tornar-se problemática, especificamente em relação à natu-
reza da narrativa histórica. Esses questionamentos propostos pelo prefixo
meta, tanto na metaficção, na meta-história e na metaficção historiográfi-
ca são advindos das teorias pós-estruturalistas, principalmente, de Derri-
da, Foucault e Deleuze: eles visam “inquietar-nos, a fazer-nos questionar
nossos pressupostos sobre a forma como produzimos significado, como
conhecemos, como podemos conhecer”. (HUTCHEON, 1991, p. 81)
Mas, ao lado das teorizações pioneiras propostas por Hutcheon,
desde Narcissistic narrative, sobre as questões do paradoxo da narrativa
autorreflexiva e, depois, em Teoria da paródia e, mais detidamente, em
Poética do pós-modernismo, sobre a problematização da história pela fic-
ção paródica, irônica e autoconsciente, há outros teóricos, sobretudo, de
língua espanhola, que criaram outras terminologias para tratar de proble-

100 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


mas semelhantes aos que Hutcheon já havia se ocupado. São os casos de
Fernando Aínsa (1991), com “la nueva novela histórica latinoamericana”;
Seymour Menton (1993), em La nueva novela histórica de la América La-
tina e o crítico contemporâneo brasileiro Antonio Esteves (2010) com a
terminologia de romance histórico brasileiro contemporâneo.
Segundo as pesquisas de Aínsa (1991), uma das características mais
evidentes do discurso ficcional, a partir dos anos oitenta do século XX, é
o interesse suscitado pelo romance histórico, característica, essa já discu-
tida amplamente por Hutcheon. Nesse sentido, a corrente da nova nar-
rativa histórica, segundo Aínsa, inscreve-se em uma vasta preocupação da
narrativa latino – americana contemporânea: “O movimento centrípeto
de retirada e de afinco, de busca de identidade através da integração an-
tropológica e cultural do que se considera mais enraizado e profundo”3
(AÍNSA, 1991, p. 82)
Outros teóricos de língua espanhola corroboram com o pen-
samento de Aínsa sobre o novo romance histórico latino-americano.
Peter Elmore (1997) em “La novela histórica en hispanoamérica: filia-
ción y genealogia”, também elenca as particularidades do novo romance
histórico em decorrência das inúmeras transformações ideológicas da
contemporaneidade. Para o teórico, o novo romance histórico apresen-
ta em suas matérias narrativas, as peripécias da construção dos estados
nacionais do século XIX. Esse, talvez, seja um diferencial do novo ro-
mance histórico com a metaficção historiográfica, embora, ao fundo,
tratem das mesmas questões: a reavaliação histórica através dos discur-
sos da ficção. Mas, vejamos algumas especificidades do chamado novo
romance histórico latino-americano.
Para Elmore (1997, p. 39), não é possível compreender o novo
romance histórico sem destacar o trajeto do gênero e nem sem estrei-
tar sua relação com o discurso historiográfico. Essa questão já havia sido
discutida por Hutcheon, especificamente na Poética do pós-modernismo,
mais verticalmente nos capítulos “Historicizando o pós-moderno: a pro-
blematização da história” e em “Metaficção historiográfica: o passatem-
po do tempo passado”. Para ela, a metaficção historiográfica “reinsere os
3 “el moviemento centripeto de repliegue y arraigo, de búsqueda de indentidad a través de la integración atro-
pológica y cultural de lo que se considera más raigal e profundo”.

A AUTORREFLEXIVIDADE NAS ESCRITAS DA FICÇÃO E DA HISTÓRIA 101


contextos históricos como sendo significantes, e até determinantes, mas
ao fazê-lo, problematiza toda a noção de conhecimento histórico”. (HU-
TCHEON, 1991, p. 122)
Semelhante à proposta de Hutcheon, Aínsa (1991, p. 83) con-
cebe que a proposta do novo romance histórico se caracteriza por uma
releitura da história a partir de um historicismo crítico, além de renegar
a legitimação instaurada pelas versões oficiais históricas. A nova narrativa
histórica pode chegar a suprir as deficiências de uma historiografia tradi-
cional e conservadora, ao dar voz às personalidades caladas pelos grandes
relatos. Nesse sentido,

a mudança de legitimação para a significação, para a maneira como os sistemas


de discurso dão sentido ao passado, acarreta uma visão pluralista (e talvez
perturbadora) da historiografia como sendo formada por diferentes, mas
igualmente significativas, construções da realidade do passado – ou melhor,
dos vestígios textualizados do passado (documentos, provas de arquivo,
testemunhos) desse passado. (HUTCHEON, 1991, p. 131)

O novo romance histórico latino-americano proposto por Aín-


sa, Menton e por Esteves, em termos de romances brasileiros da con-
temporaneidade, apontam o extermínio a distância épica do romance
histórico de Walter Scott, uma vez que, por sua natureza aberta, livre
e integradora, a nova narrativa histórica permite maior diálogo com
o passado histórico, ou seja, há um nivelamento temporal já que “se
trata de desapossar a história anterior de sua hierarquia distante e ab-
soluta para atraí-la a um presente que poderá esclarecê-la e entendê-
-la, fato este que a fará abrir-se para o futuro”4 (AÍNSA, 1991, p. 83).
Essa distância épica apontada pelos autores anteriores foi exaus-
tivamente discutida por Hutcheon, principalmente, no seu livro Uma
teoria da paródia. A paródia, pela sua forma autorreflexiva que ataca o
sistema no seu interior e por meio de seu jogo irônico com convenções
múltiplas, a distância entre tempos passado-presente e até mesmo futuro
se aniquila uma vez que o jogo da transconstextualização irônica revi-
taliza textos, discursos históricos, fatos do passado, confronta-os com o

4 “se trata de despojar a la história anterior de su jerarquia distante y absoluta para atraerla hasta un presente que,
sólo esclareciéndola e ingrándola, podrá abrirse paso hacia el futuro”.

102 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


presente e promove um novo olhar sobre a produção discursiva de antes
e de agora no enredo da ficção. A relação estrutural e funcional de revisão
crítica da paródia aliada à autorreflexidade da metaficção e da problema-
tização da história na metaficção historiográfica, também por meio da
intertextualidade promove “uma manifestação formal de um desejo de
reduzir a distância entre o passado e o presente do leitor e também de
um desejo de reescrever o passado dentro de um novo contexto”. (HUT-
CHEON, 1991, p. 157)
O novo romance histórico adentra na condição pós-moderna do
mundo atual no que se refere, sobretudo, a uma descrença no passado
histórico das nações. Os novos romances históricos brasileiros e latino-
-americanos, veremos, são incrédulos e abandonam os perfis marmóreos
dos heróis, os juízos implacáveis sobre os anti-heróis e a aura dos reis
personagens ditos superiores pelo discurso imposto.
E as últimas especificidades elencadas por Aínsa (1991, p. 84) na
configuração do novo romance histórico, referem-se à sobreposição de
tempos históricos distintos e às diferentes modalidades expressivas ou
formais de tessitura romanesca. No que condiz à relação temporal das
novas narrativas históricas, há um tempo diegético – presente histórico
na narração – sobre o qual incidem outros tempos. Essas interferências
podem ser referentes ao passado ou também ligadas ao futuro na forma
de anacronias deliberadas.
Hutcheon também destacou essas questões em relação às sobre-
posições temporais na abordagem da metaficção historiográfica e tantas
outras questões que os teóricos latino-americanos também destacaram.
Dando o crédito às reflexões de Hutcheon tendo em vista que suas pes-
quisas dialogam em maior instância com as teorias pós-estruturalistas.
Mas, também, damos crédito às reflexões em torno das narrativas lati-
no-americanas desenvolvidas por Aínsa, Elmore e Esteves. Aqui, privi-
legiaremos as pesquisas de Hutcheon pelos motivos já elencados, sem
desconsiderar as reflexões importantes dos teóricos latino-americanos.
Por essas e outras razões, observamos a existência de várias narrativas que
apresentam aspectos da nova meta-história, da ficção como um jogo e um
devir, da metaficção e da metaficção historiográfica.

A AUTORREFLEXIVIDADE NAS ESCRITAS DA FICÇÃO E DA HISTÓRIA 103


Considerações finais
Transpostas as fronteiras entre literatura e história na pós-mo-
dernidade, o que constatamos através das reflexões dos teóricos acima
apresentados é que a narrativa é o meio principal de confrontar dis-
cursos e de questionar fatos, sejam eles ficcionais, históricos ou uma
fricção de ambos, simultaneamente. A história tem se apoiado na lite-
ratura para reconstituir fatos passados e se adaptar às novas propostas
da nouvelle histoire. Já grande parte das narrativas ficcionais de fins do
século XX e início do século XXI tem se ocupado dos fatos históricos
com o propósito questionar as versões cristalizadas da historiografia
oficial e promover um novo olhar para o passado que era visto, até o
século XIX, como soberano e inquestionável.

REFERÊNCIAS
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106 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


NOTAS SOBRE O LEITOR E A
NARRATIVA METAFICCIONAL INFANTIL
E JUVENIL BRASILEIRA*1
Edilson Alves de Souza, Flávio Pereira Camargo

Tole et lede [Toma e lê]


(Santo Agostinho)

A leitura pode transformar as mentalidades


(Vincent Jouve)

O ato de ler pode provocar um conjunto de reações, positivas ou


negativas. O efeito de um texto – independente do gênero a que pertença
ou da finalidade para a qual foi escrito – diversifica-se com seu receptor.
Cada um, ao ler um (mesmo) texto, pode reagir de maneira distinta dian-
te do conteúdo lido (ou que lhe foi apresentado). A relação que os sujei-
tos leitores estabelecem com o lido pode tomar diversas proporções, em
vários âmbitos: no intelectual, no emocional, na vida pessoal, espiritual,
entre outros. Tal realidade não impede a possiblidade do contrário, isto é,
a experiência de uma leitura também pode ser inócua e vazia.
Um fato que não pode ser negado é que a leitura pode ser transfor-
madora, como bem assevera Vincent Jouve (2002, p. 22): “a leitura pode
transformar as mentalidades”. Nesse sentido, ela não apenas informa, mas,
de uma forma dialogada, promove reflexão sobre o lido e sobre a situação
em que se encontra seu leitor. Um texto pode exercer influência determi-
nante na vida daquele que lê. Isso nos faz lembrar da conversão ao catolicis-
mo de Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho, como ficou conhecido
o filósofo e teólogo cristão, que viveu entre os séculos IV e V d.C.
Tendo levado uma vida devassa e depravada, o professor de re-
* Este texto está vinculado ao projeto de pesquisa de doutorado “A metaficção e o papel do leitor na literatura
infantil e juvenil brasileira contemporânea”, desenvolvido no Programa de Pós-graduação da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Goiás, com bolsa do CNPq, orientado pelo Prof. Dr. Flávio Pereira Camargo.

107
tórica e já filósofo Agostinho de Hipona, segundo seus próprios rela-
tos, viu-se profundamente compungido: “Quando, por uma análise
profunda, arranquei do mais íntimo toda a minha miséria e a reuni
perante a vista do meu coração, levantou-se enorme tempestade que
arrastou consigo uma chuva torrencial de lágrimas” (Confissões, VIII,
12, 28). Diante do incontrolável choro que lhe tomava, Agostinho
isolou-se, saindo do local em que estava e sentando-se sob uma figuei-
ra. Aí, conflitado com a própria vida que levou, desfazia-se aos pran-
tos “oprimido pela mais amarga dor do coração” até que: “Eis que, de
súbito, ouço uma voz vinda da casa próxima. Não sei se era de meni-
no, se de menina. Cantava e repetia freqüentes vezes: ‘Toma e lê; toma
e lê’” (Confissões, VIII, 12, 29, grifos do autor). Pensando ser um sinal
divino, volta diligentemente para dentro da casa onde se encontrava,
abre e lê uma passagem bíblica (Romanos 13, 13) que lhe convenceu
e converteu a alma: “Não quis ler mais, nem era necessário. Apenas
acabei de ler estas frases, penetrou-me no coração uma espécie de luz
serena, e todas as trevas da dúvida fugiram” (Confissões, VIII, 12, 29).
Toda experiência transformadora de leitura parece ser um feixe de luz
que ilumina o entendimento que habita a escuridão. Por isso, é tão
marcante; por isso, muda as mentalidades.
Este é um episódio curioso e representativo do que ocorre em mui-
tas experiências de leitura e do que pode ocorrer com as diversas formas
de contato que os próprios textos permitem, em si, a partir de suas es-
truturas: a mudança de postura e de perspectiva. Observamos que, junto
com a recepção, é preciso considerar o “projeto” (o intento) da produção
– e, nesse caso, não se trata da intenção do autor. O texto, enquanto
exercício de linguagem, dita seus sentidos, o que não quer dizer que o tex-
to é interpretado livremente, desconsiderando que, enquanto produção
de linguagem, comunica algo ou estabelece algum tipo de interlocução
(mesmo que não seja claro). Diante de um documento escrito, com a
mediação dos elementos linguísticos do texto e da experiência de mundo
que o leitor possui (como se observa no caso de Agostinho), ambos, texto
e leitor, dinamizam, dialogicamente, os mecanismos de construção de
sentido evocados para harmonizar o processo de leitura.

108 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


Alguns textos, como os que se utilizam de estratégias metaficcio-
nais, estão incluídos entre os que promovem um diálogo produtivo desses
dois entes importantes no processo de leitura; muitos desses, inclusive,
ultrapassando certas barreiras estruturais da narrativa, alteram em muito
como ocorre o ato de ler. Os textos considerados metaficcionais fazem
parte de um tipo de ficção que, na sua diegese, além de ficcionalizar o
real em um enredo, “inclui dentro de si mesma um comentário sobre sua
própria identidade linguística e/ou narrativa”2 (HUTCHEON, 2013, p.
1). Em outras palavras, a metaficção é uma narrativa que, voltando-se
para o seu processo de ficcionalização, autorreferencia-se, criticando-se a
si mesma e analisando os seus procedimentos de criação literária; é um
tipo de texto que inclui uma crítica literária dentro do material literário.
Dessa forma, se a estrutura do texto muda, muda-se igualmente a estru-
tura da leitura e, consequentemente, essa alteração pode gerar complica-
ções para a experiência do leitor (HUTCHEON, 2013, p. 3), uma vez
que, dentro desses parâmetros narrativos, o leitor não apenas conhece a
história, mas, também, a crítica. Como se percebe, a leitura dos textos
metaficcionais pode ser transformadora, pois, o estatuto ontológico do
leitor – na medida em que o da narrativa é modificado – também recebe
novas configurações.
Não obstante a multiplicidade e a complexidade que podem resul-
tar da leitura de um texto metaficcional, na contemporaneidade, vemos
uma constante tendência de introdução de experimentos que incorporam
elementos metanarrativos em publicações da literatura infantil e juvenil.
Com vistas para o público que recebe (ou, pelos menos, para o qual são
direcionadas) essas publicações, o teor dialogante e dialético estabelecido
por textos autorreferenciais pode não ser bem sucedido. Como se sabe,
“[a] forma generalizada dos livros infantis convida o leitor a aceitar que
o autor expressou no texto uma única interpretação do mundo e que
lhe ofereceu um acesso direto a ela” (COLOMER, 2003, p. 108) e, por
isso, pode um leitor não acostumado com esse formato de leitura não se
engajar nas questões propostas pela narrativa metaficcional. Nos textos
literários não metaficcionais infantis e juvenis, “a mensagem é negociada
através de um meio aparentemente neutro e transparente, que permite a
2 Lê-se no original: “includes within itself a commentary on its own narrative and/or linguistic identity”.

NOTAS SOBRE O LEITOR E A NARRATIVA METAFICCIONAL INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA 109


identificação da intenção do autor se se lê com suficiente atenção” (CO-
LOMER, 2003, p. 108). Assim, a mensagem é unívoca e descobri-la vai
ser a única ação do leitor.
Apesar de, diante da produção dessas obras, muitos escritores
pressuporem “uma leitura inocente por parte do leitor” e esta ser “a
forma predominante do livros para crianças e jovens e, segundo muitos
críticos, a única possível” (COLOMER, 2003, p. 109), partimos de
uma percepção diferente. Do mesmo modo que há várias formas narra-
tivas, há vários tipos de leitores. Estes se engajam de forma diferente nas
narrativas e podem realizar, a partir de suas potencialidades, tanto uma
leitura inocente, no caso do leitor comum, como uma leitura crítica, no
caso de um leitor crítico. Contudo, observamos que certas narrativas,
primazmente as metaficcionais, não são passivas, isto é, não possibili-
tam uma leitura comportada, preocupada apenas em evidenciar a “in-
tenção do autor”; elas, por meio dos seus artifícios, convocam o leitor a
atingir outras camadas de interpretação, produzindo outras demandas
para o ato da leitura. Nesse sentido, podemos dizer que há narrativas
que potencializam a ação do leitor no processo de decodificação dos
seus enredos, ou seja, há narrativas infantis e juvenis que podem “fazer”
do leitor comum um leitor crítico.
Para compreendermos como são articuladas as relações possíveis
entre esse tipo de texto e o leitor, é importante recordarmos um duplo
movimento histórico de renovação que afetou tanto o leitor como a nar-
rativa, e que trouxe igualmente implicações para o questionamento das
teorias das narrativas, após os anos de 1960.

Nuances sobre o leitor


Na segunda metade do século XX, vemos florescer um conjunto
considerável de trabalhos sobre as formas de interação entre o texto e seu
receptor, que contribuíram para a teoria contemporânea do leitor. O lei-
tor como um paradigma, ou como uma demanda, da teoria literária pro-
vocou um ruptura e, simultaneamente, uma renovação da epistemologia
dos estudos da literatura, que, na generalidade dos casos, ocupava-se ape-

110 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


nas de autores e de obras (BARTHES, 2004, p. 58-59; JOUVE, 2002, p.
14). Dentre os estudiosos que se detiveram, direta ou indiretamente, so-
bre a questão do leitor estão Umberto Eco, Roland Barthes, Hans Robert
Jauss e Wolfgang Iser, para citarmos alguns de maior projeção. Se seus
trabalhos possuem alguma relação ou influência intrínseca entre si é algo
que o presente trabalho não pretende explanar; mas, não se pode negar
que, sob uma visão global, os textos desses autores se comunicaram de
sorte a formar um coro torrencial em defesa do leitor – o que buscaremos
identificar a seguir.
O italiano Umberto Eco, em 1962, trouxe à lume o livro Obra
Aberta. Abordando campos artísticos diversificados, como o cinema, a
música e a literatura, o autor (1991) discute situações de comunicação
artística em que a obra de arte revela-se como um domínio aberto para
incursões interpretativas mais variadas possíveis. De acordo com o Eco
(1991, p. 25-26, grifos do autor) essa abertura se dá por uma “ambiguida-
de fundamental da mensagem artística” que permeia “qualquer obra em
qualquer tempo”; esta é uma noção que “representa um modelo hipotético,
embora elaborado com a ajuda de numerosas análises concretas, utilíssi-
mo para indicar, numa fórmula de manuseio prático, uma direção da arte
contemporânea”. Na esteira dessa proposição, em maior ou menor grau,
toda obra é aberta para receber novas perspectivas de leitura. Esse mode-
lo possibilita novas relações entre “obra e fruidor” (ECO, 1991, p. 27),
dotando este, no caso da leitura literária, com uma liberdade que rompe
grilhões de acesso ao texto e renova a obra a cada leitura empreendida.
A aparente falta de rigidez hermenêutica não apenas influi nas for-
mas como a obra é (ou será) recepcionada pelos grupos sociais interessa-
dos, mas implica o estabelecimento de novos padrões de relacionamento
entre texto e leitor, nos quais a presença de uma flexibilidade dialogante
será contínua, pois a obra estará sempre aberta para que outras visões de
mundo passem por ela. Com o reposicionamento do leitor, de forma
automática, ocorre o deslocamento do autor da/na obra literária. Para
compreendermos as nuances das consequências do intercâmbio entre lei-
tor e texto sobre a instância do autor, passemos para as considerações de
Roland Barthes em “A morte do autor”, um texto de 1968.

NOTAS SOBRE O LEITOR E A NARRATIVA METAFICCIONAL INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA 111


Em “A morte do autor”, o ensaísta francês defende a ideia da ne-
cessidade da ausência de uma voz, a do autor – no texto literário e no
ambiente social –, que comanda o processo de construção de sentidos.
Assim, a interação entre os signos e a estrutura da linguagem ganham
autonomia para a construção de um diálogo mais direto – isto é, sem a
mediação dessa voz – com o leitor. Isto, como destaca Barthes, é colocar
a “própria língua no lugar daquele que dela era até então considerado
proprietário”, pois “é a linguagem que fala, não o autor” (BARTHES,
2004, p. 59). A figura do autor, ou a imagem abstrata daquele “proprie-
tário” que possui o poder de determinar os estados de significação, nessa
direção, é subtraída. Se o autor se ausenta, o leitor é quem permanece no
jogo pelo qual a obra, ou texto, ganha sentido.
Se (a intenção d’) o autor está presente (ou onipresente), o proce-
dimento de leitura, ou de decodificação, do texto literário restringe-se a
uma visão limitada. Porém, considerando que um texto é, na verdade,
“um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam es-
crituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de
citações, saídas dos mil focos da cultura” (BARTHES, 2004, p. 62); e,
assim, observamos que ele possui várias portas abertas para receber – na
medida da disposição de seus leitores – um conjunto indefinido (para
não dizer infinito) de leituras e interpretações. Nesse sentido, percebemos
que tanto o texto literário como o leitor ganham em autonomia, e, além
disso, essa independência possibilita uma forma de adentramento textual
que respeita a natureza pluricultural e plurissignificativa própria do texto
literário, uma vez que ele “é feito de escrituras múltiplas, oriundas de
várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia,
em contestação” (BARTHES, 2004, p. 64). Essas portas, livres dos impe-
dimentos autorais, levam a
um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor,
como se disse até o presente, é o leitor: o leitor é o espaço mesmo onde
se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é
feita uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no
seu destino, mas esse destino não pode mais ser pessoal: o leitor é um
homem sem história, sem biografia, sem psicologia; ele é apenas esse
alguém que mantém reunidos em um único campo todos os traços de
que é constituído o escrito (BARTHES, 2004, p. 64, grifo do autor).
112 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO
O sujeito-autor, que produz o texto, desaparece e ocorre uma
sobre-elevação, ou um devido reposicionamento, de um outro sujeito:
aquele que recebe o texto. Como que em um processo de substituição, de
seleção natural do processo de recepção do texto literário, “o nascimento
do leitor deve pagar-se com a morte do Autor” (BARTHES, 2004, p.64).
Assim, se antes a presença do autor era o mesmo que “fechar a escritura”
(BARTHES, 2004, p.63), isto é, provocar a unilateralidade do processo
de construção de sentidos, com a presença do leitor, a obra se abre a
outros procedimentos interpretativos e outras significações. O ensaio de
Barthes contribui para repensar, além do papel da crítica, que também é
assunto desse mesmo texto (principalmente, por ela legitimar a presença
do autor na intepretação das obras), qual o papel do leitor diante uma
obra literária.
O relevo dado ao leitor se consolida nos anos de 1970 com a Es-
cola de Constança, na Alemanha. Segundo Jouve (2002, p. 14), ela “é
a primeira grande tentativa para renovar o estudo dos textos a partir da
leitura”. A repercussão dessa Escola deu-se, principalmente, por estar vin-
culada a “dois ramos muito distintos: ‘a estética da recepção’ de Hans
Robert Jauss e a teoria do ‘leitor implícito’ de W. Iser” (JOUVE, 2002,
p. 14, grifos do autor).
A Estética da Recepção, de acordo com as formulações de A histó-
ria da literatura como provocação à teoria literária, do alemão Hans Robert
Jauss, propõe uma revisão metodológica da forma como é concebida a
história da literatura. Esta é repensada a partir do preenchimento de uma
lacuna que cabe àquele que “eterniza” a obra pelo ato leitura, o leitor. De
acordo com Jauss (1994, p. 22), as teorias de interpretação literária de
linha marxista e de linha formalista, em voga nos fins dos anos de 1960,
no alto de suas potencialidades, privavam
a literatura de uma dimensão que é componente imprescindível tanto
de seu caráter estético quando de sua função social: a dimensão de sua
recepção e de seu efeito. Leitores, ouvintes, espectadores – o fato público,
em suma, desempenha naquelas duas teorias literárias [(a formalista e a
marxista)] um papel extremamente limitado.

NOTAS SOBRE O LEITOR E A NARRATIVA METAFICCIONAL INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA 113


A proposição de Jauss busca responder a essa limitação ao apontar
que “[a] história da literatura é um processo de recepção e produção esté-
tica que se realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor”
(JAUSS, 1994, p. 25). Isso evidencia que, se, em certa época, um obra
foi recebida de uma maneira e, em outro tempo, pode ser recebida de
outra maneira, pois a leitura a atualiza, renova a forma como é acolhida
pelo público. No pensamento do alemão (1994), o processo de recepção
se dá pelo entrecruzamento de dois horizontes: aquele perspectivado pela
obra e o que o leitor (dentro dos seu limites sociais e históricos) pode
oferecer; a interpretação da obra, desse modo, é mediada por questões
sociais e históricas que conduzem a visão que o leitor tem sobre certa
obra no processo de recepção e pelo efeito que ela produz nele. Isto é, o
horizonte de expectativa do leitor, que o situa em um determinado con-
texto social e histórico, é o que torna a obra experienciável, dado que se
consegue estabelecer um diálogo entre ele e o horizonte da obra. Assim,
a obra é submetida a novas interpretações (leituras) que confirmam sua
capacidade comunicativa, pois ela não se restringe ao seu público original
(de quando foi publicada). O leitor, nessa direção, além de desvelar a
natureza descontínua da obra e a responde, visto que ela, para ter sentido,
sempre pede um complemento (a leitura), que só o leitor pode dar.
Essa perspectiva apresentada por Jauss ressignifica a presença da
autoria artística na recepção do texto literário; ressignifica a experiência
com o texto, de forma a singularizá-lo enquanto produto artístico (e ob-
jeto da história da arte); recoloca o leitor na relação entre autor e obra; e,
consequentemente, ressignifica o cânone e a história da literatura, pois as
obras passam a ganhar seu valor não pelo ditame histórico de um grupo
social ou pela sua derivação de outra obra do mesmo gênero, mas pelo
“critério de recepção, do efeito produzido pela obra e sua fama produzida
junto à posteridade” (JAUSS, 1994, p. 7-8). A leitura de uma obra faz do
leitor uma instância determinante de permanência (isto é, de canoniza-
ção) e renovação de uma obra na história literária que, até então, era for-
jada em generalizações embasadas no “esquema de ‘vida e obra’” (JAUSS,
1994, p. 7, grifos dos autor).
A tônica sobre a ação do leitor no processo comunicativo do texto

114 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


literário, em 1976, ganhou outra abordagem com Wolfgang Iser, na sua
obra O ato da Leitura: uma teoria do efeito estético. Diferentemente de
Jauss, que prevê uma mudança em âmbito mais amplo, que é o da histó-
ria literária, Iser foca em um evento mais restrito, não menos complexo,
que é o do ato da leitura em si. Na referida obra, o autor alerta que os
textos literários constituem-se também de “lugares vazios, os quais são
lacunas que marcam enclaves no texto e demandam serem preenchidos pelo
leitor” (ISER, 1999, p. 107, grifos nossos)
Partindo dessa premissa, percebemos que Iser (1999) confirma a ne-
cessidade do leitor para o processo de significação do texto, destacando o
estado lacunar manifesto na “indeterminação” e “inconclusão” do sentido
da obra, pois esta aguarda a concretude que se dá por meio da sua interação
com o leitor, de onde procede as possíveis intepretações (concretizações)
que receberá. “A essas lacunas corresponde a assimetria básica de texto e
leitor, caracterizada pela falta de uma situação e de um padrão de referên-
cias comuns” (ISER, 1999, p. 103). Nesse sentido, ambos são, diante do
processo de leitura, dotados de contingências que demarcam e evidenciam
essas lacunas. As mobilizações que o leitor realiza em face da necessidade de
compreender o texto dissolve o desequilíbrio lacunar inicial que há entre
os dois e configura o tipo de interação possível, a partir do diálogo entre o
horizonte da dimensão textual e o horizonte da dimensão leitora.
Os sentidos resultantes dos diversos contatos que tem o leitor com
determinada obra literária desvelam a dinâmica interpretativa do texto e o
caráter estético que a ele é conferido pelo próprio leitor, posto que, na con-
cepção iseriana, “o texto literário é caracterizado por sua incompletude e a
literatura se realiza na leitura” (COMPAGNON, 2014, p. 147). Contudo,
é importante destacar que o leitor é instigado a co-operar com o texto, dado
que sua reação na interação, que complementa a obra, já estar prevista, tex-
tualmente, em um leitor implícito, como explicar Iser (1996, p. 73):
Se daí inferimos que os textos só adquirem sua realidade ao serem lidos,
isso significa que as condições de atualização do texto se inscrevem na
própria construção do texto, que permitem constituir o sentido do texto
na consciência receptiva do leitor. A concepção do leitor implícito designa,
então, uma estrutura do texto que antecipa a presença do receptor.

NOTAS SOBRE O LEITOR E A NARRATIVA METAFICCIONAL INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA 115


O leitor implícito é a prefiguração do que deve ser um leitor real (o
de carne e osso) para a concretização do sentido do que é lido, podendo este
alcançar, ou não, de acordo com suas disposições, o modelo da prefigurado
de sua interação com o texto. Nesse sentido, o leitor implícito prevê e an-
tecipa situações de interpretação que poderão ser concebidas, ou não, pelos
futuros leitores de uma dada obra. Nas palavras de Jouve (2002, p. 14) “o
leitor é o pressuposto do texto. Portanto, trata-se de mostrar, por um lado,
como uma obra organiza e dirige a leitura, e, por outro, o modo como o
indivíduo reage no plano cognitivo aos percursos impostos pelo texto”.
O leitor implícito de Iser aproxima-se muito da concepção de “Lei-
tor-Modelo” postulado por Eco, em 1979, no seu livro Lector in fabula.
Na referida obra, a partir de um enfoque estabelecido na semiótica e reto-
mando considerações feitas em Obra Aberta, Eco (2011) discute um Lei-
tor-Modelo delineado como demanda do texto; isto é, a estrutura do texto
exige e constrói um tipo de procedimento de leitura, e, consequentemente,
um tipo de leitor arquetípico, afeiçoado aos moldes dos circuitos interpre-
tativos que o próprio texto permite. Nas palavras de Eco (2011, p. 37): “um
texto postula o próprio destinatário como condição indispensável não só da
própria capacidade concreta de comunicação, mas também da própria po-
tencialidade significativa”. E isso acontece pela “atividade cooperativa que
leva o destinatário a tirar do texto aquilo que o texto não diz (mas que pres-
supõe, promete, implica e implicita)” e, ao longo da recepção, a “preencher
espaços vazios” (ECO, 2011, p. IX) presentes nesse.
Na visão do crítico italiano, uma narrativa se vale de diversas estra-
tégias textuais para a elaboração da mensagem e, simultaneamente, cons-
titui um Leitor-Modelo, que emana do texto quando a estrutura deste
indica o modo como pode adentrá-la por meio da “cooperação textual”
pela qual ele atualiza a mensagem do texto – isto é, concretiza seu sentido
–, preenchendo, assim, os “espaços brancos”.
A identidade desse tipo de leitor, por um lado, aponta para o escla-
recimento de como um leitor real não consegue apreender o texto em sua
plenitude, não consegue perceber as estratégias discursivas e, mesmo com
a obra aberta, dando margem às diversas leituras, empreende um procedi-
mento de leitura comum, que deixa muitas lacunas sem o preenchimento

116 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


que, textualmente, era previsto. Nesse sentido, o Leitor-Modelo reflete um
potencial e é um papel que podem, ou não, ser assumidos pelo leitor real.
Por outro lado, se o leitor implícito (ISER, 1996) ou modelo
(ECO, 2011) traz a configuração ideal de um leitor que consegue se ar-
ticular nos meandros da narrativa de maneira a passar pelas aberturas
que ela oferece no processo de recepção, também, podemos dizer que no
esboço de leitura engendrado e idealizado no leitor implícito está uma
representação do leitor real que conseguiria se articular na complexidade
e na plurivocidade inerente a um texto metaficcional. A metaficção, em
outras palavras, como outros textos literários, possui um modelo implíci-
to de leitor que consegue desvendar seus significados e que tem condições
de explorar os artifícios que constituem a autorreflexidade desse tipo de
texto; e a este leitor idealizado denominamos de leitor metaficcional, que,
quando assumido pelo leitor real, este dialoga com os aspectos autorrefe-
renciais da narrativa e o leitor comum passa a ser um leitor crítico.
Se a estrutura do texto demanda especificidades para o leitor, ocu-
par-nos-emos, no próximo tópico, com a discussão de alguns aspectos
estruturais da narrativa infantil e juvenil, primazmente das narrativas me-
taficcionais, no intento de, compreendendo seu funcionamento compo-
sicional, esclarecermos melhor o conceito de leitor metaficcional.

Narrativas infantis e juvenis e a metaficção


Os padrões de composição narrativa arrolam elementos que, dis-
postos e devidamente arranjados, seguindo certa lógica de ordenamento
dos fatos, possibilitam a produção de sentidos e a recepção. Esses padrões
são, na verdade, fruto de sistematizações realizadas a partir de obras lite-
rárias diferentes que apresentam conteúdos discursivos, mais ou menos,
semelhantes. A abordagem sobre um conjunto diversificado de textos fic-
cionais que permite alguma síntese teórica (alguma poética), geralmente,
utiliza-se de títulos exemplares significativos que confirmam as conven-
ções narrativas. Não queremos, com isso, dizer que, na teoria da narrati-
va, há generalizações (desproporcionais) aplicáveis a um reduzido núme-
ro de obras; também não pretendemos invalidar ou diminuir o valor de

NOTAS SOBRE O LEITOR E A NARRATIVA METAFICCIONAL INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA 117


obras como Discurso da narrativa, de Gérard Genette, ou Como funciona
a ficção, de James Wood (para citarmos apenas duas), e nem dos demais
manuais de criação ou análise literária que apresentam diversos modelos
narrativos. Intentamos, ao contrário, apontar para a realidade de que a
busca sistemática de compreensão de como a narrativa se desenvolve, de
saber quais os procedimentos que são postos em “jogo”, em um enredo,
e de identificar os elementos que são utilizados para a construção e es-
truturação da trama, é um movimento comum e que – de acordo com o
período da história – esses modelos se repetem ou servem de fundamento
para a produção (renovadora ou subversiva) de outras formas de narrar.
É a partir dessa perspectiva, de que a narrativa pode ser estudada,
analisada e criticada no que ela oferece enquanto produção, que adentra-
mos no universo da literatura infantil e juvenil brasileira. Ela, da segunda
metade do século XX à contemporaneidade, além de aumentar significa-
tivamente o conjunto de textos compromissados com esse público, tem
feito emergir, ousadamente, novos caminhos de construção narrativa. Es-
tes, por sua vez, têm transformado a criatividade dos escritores e proposto
articulações inovadoras com a linguagem.
As obras de Charles Perrault, de Jacob e Wilhelm Grimm e de
Hans Christian Andersen foram primordiais para a constituição de um
cânone e de um modelo de ficção na literatura infantil e juvenil. As nar-
rativas desses autores povoam o imaginário de muitas pessoas por meio
de personagens como: Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, Patinho
Feio, Pequeno Polegar, Sereiazinha, princesas e príncipes, fadas e bruxas.
Não obstante a isso, por meio delas também se pôde delinear (determi-
nar) a variação estrutural frequente em narrativas infantis e juvenis, como
bem sistematizou Vladimir Iakovlevitch Propp no seu Morfologia do con-
to maravilhoso. A partir do estudo de Propp (2010), podemos observar
que a trama do conto maravilhoso é constituída dentro de uma estrutura
“previsível” e é composta por elementos e fatos que são sequenciados de
maneira a se chegar a certo fim, como o “final feliz”.
Como se percebe, a estrutura, além de ser uma constatação, em
muitos casos, tornou-se um parâmetro norteador da criação e da análise
literárias; um princípio que, depois de estabilizado, possibilita a criação

118 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


de “manuais”, como se percebe na segunda parte do livro Literatura in-
fantil: teoria, análise, didática, de Nelly Novaes Coelho, intitulada “Gra-
mática da literatura infantil”. Nessa parte da obra, podemos encontrar
um panorama sintético das tendências temáticas e estruturais que po-
dem estar presentes nas mais diversas formas de expressão verbal literária.
Coelho (2000, p. 64, grifos da autora), “[s]em a intenção de fechar essa
matéria literária em normas absolutas, dogmáticas ou rígidas (o que é ab-
solutamente impossível, devido à natureza fluida de toda arte)”, organiza
“um conjunto de princípios e hipóteses teóricas (extraído da literatura em
geral e da infantil em particular)” que pode “servir aos interessados, como
uma espécie de gramática”, funcionando como uma orientação para a
prática do texto literário. Além do aspecto pragmático e ontológico, o
que igualmente chama a atenção na proposta de Coelho é a consciência
histórica de renovação que, apesar de poder agrupar as características de
obras a partir de certos “princípios”, rejeita os dogmas, o absolutismo e o
legalismo teórico relativos ao texto ficcional.
Assim, verificamos uma identidade narrativa – dentro da litera-
tura infantil – que: auxilia o leitor a prever o comportamento ficcional,
por meio dos atributos que ela recebe; estabelece, implícita ou explicita-
mente, um caminho de organização dos elementos constituintes; e, ao
mesmo tempo, permite uma abertura para o acréscimo do novo, para
a alternância, para a mudança e, até mesmo, para a ruptura total dessa
“ontologia” literária. Essa consciência de renovação é indispensável para o
prosseguimento dos estudos literários sobre a literatura infantil e para se
compreender as configurações da narrativa contemporânea.
Na contemporaneidade, as obras estão vinculadas com uma série
de condutas que desfazem alguma forma (ou possibilidade) de identidade
coletiva entre as narrativas. Elas se singularizam de sorte a se aproximarem
apenas na atitude de ultrapassar modelos, de criticar as normas de utiliza-
ção da linguagem, de subversão das convenções e de proposição da plura-
lidade de vozes e tendências. A imprevisibilidade dessas obras causa uma
instabilidade nos procedimentos narrativos e gera uma reestruturação (ou
desestruturação) do que se entende por padrões de composição narrativa.
Essas configurações avultaram-se, mais expressivamente, a partir

NOTAS SOBRE O LEITOR E A NARRATIVA METAFICCIONAL INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA 119


da segunda metade do século XX, quando ocorrem o “surto de criati-
vidade” e o boom da literatura infantil e juvenil brasileira (LAJOLO;
ZILBERMAN, 2003; COELHO, 2010). Após o boom, há uma nova
consciência dos nossos escritores, os quais empreenderam novas for-
mas de engajamento linguístico. Assim, vemos obras compromissadas
com o “[...] experimentalismo com a linguagem, com a estruturação
narrativa e com o visualismo do texto; [provocando] substituição da
literatura confiante/segura por uma literatura inquieta/questionadora”
(COELHO, 2010, p. 283, grifo da autora). Essa literatura inquieta não
se conforma, muitas vezes, às estabilidades de princípios ou ditames
de como se deve funcionar uma narrativa. Ela está, ideologicamente,
descompromissada com valores estéticos estáticos, como a previsibilida-
de linguística, com predeterminação do tema e do estilo, com posição
silenciada e despreocupada do leitor e com as convenções de produção
da alegoria literária. Ela faz parte dos frutos da revolução cultural pro-
vocada pelo modernismo e, mais especificamente, no âmbito brasileiro,
pela “fase inovadora pós-lobatiana (a partir dos anos 60/70 até o findar
de século XX)” (COELHO, 2000, p. 150).
Coelho (2000, p. 153) comenta que, devido a tal valorização da
linguagem, os novos livros tratam como tema o (próprio) fazer literário.
Desse modo, a literatura infantil e juvenil brasileira volta-se para si mesma
e, por essa razão, emprega os recursos da metaficção, ou seja, “[a] criação
narrativa que fala sobre si mesma; ou o processo de inventar histórias que
se revelam ao leitor como tal. Revelação do ato de escrever como um ‘ar-
tifício’, como um ato de criação literária ou artística” (COELHO, 2000,
p. 215, grifo da autora). Nessa direção, encontramos novas possibilidades
de utilização da palavra, de organização da narrativa e de associação entre
o real e o ficcional, que rompem a diegese tradicional ao propor questões
sobre ou comentar a si próprio enquanto artefato literário.
As formas narrativas instauradas pelo uso de estratégias metaficcio-
nais são compostas a partir de novas propostas de condução da mimesis (ou
da negação dela) e, por isso, não raro, oferecem outras possiblidades para o
pacto ficcional. As novas tessituras ultrapassam a restauração ou a renovação
da atividade retórica e estilística e inserem outros níveis de interação entre

120 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


texto e leitor. Assim, não apenas o texto recebe novas características, mas,
aquele que o recebe é também ressignificado (HUTCHEON, 2013, p.
XII). Se pensarmos que o leitor muda de atitude perante um texto com ca-
racterísticas peculiarmente distintas de outros textos convencionais – como
o texto metaficcional –, observaremos que a ficção atua como elemento
determinante daquilo que o leitor pode fazer diante do ato da leitura. Nesse
sentido, os mecanismos e habilidades do receptor na decodificação do texto
são “manipulados” e, da mesma forma, a experiência estética deste também
poderá ser moldada de acordo com a proposta da obra literária.

O leitor e a narrativa metaficcional infantil e


juvenil
Teresa Colomer (2003, p. 111), corroborando as asseverações de
Coelho (2000) sobre essa tendência nas narrativas infantis e juvenis brasi-
leiras contemporâneas, destaca que a ruptura provocada nas configurações
das narrativas tradicionais pela metaficção reposiciona o leitor, exigindo
dele uma postura leitora mais crítica e mais reflexiva, o que “gerou polê-
mica entre os críticos da literatura infantil”. Alguns julgam as estratégias
textuais utilizadas pela metaficção “sofisticadas” para a infância, outros,
que “as crianças, precisamente, estão mais próximas das obras experimen-
tais” e que, mesmo as narrativas “mais convencionais [...] são igualmente
complexas” (COLOMER, 2003, p. 111) para o público infantil.
Boa parte da crítica desfavorável, como destaca Colomer (2003,
p. 111-112), subestima as potencialidades infantis e juvenis. Sobre isso,
como discutimos no início do presente trabalho, há autores e críticos que,
preferindo a univocidade de sentido dos textos para esse público, res-
tringem suas possibilidades interpretativas. Contudo, se considerarmos
que “a participação do leitor é uma das principais mudanças na literatu-
ra infantil no últimos anos” (COLOMER, 2003, p. 113), constatamos
os seguintes aspectos: a) as propostas metanarrativas convergem com o
grupo de textos que incorporam e consideram essa mudança, posto que
demandam do leitor uma leitura mais participativa; b) se os textos des-
respeitam a natureza plurissignificativa da obra literária (como querem

NOTAS SOBRE O LEITOR E A NARRATIVA METAFICCIONAL INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA 121


alguns críticos e autores), eles se “fecham” (retomando Eco (1991; 2011))
e possibilitam uma experiência estética menos rica e, talvez, deficitária;
c) o texto metaficcional infantil e juvenil, de acordo com a disposição
de seus elementos composicionais (recursos linguísticos, verbais, não-ver-
bais, gráficos, etc.), podem estimular o desenvolvimento de habilidades e
posturas leitoras mais críticas e reflexivas. Então, com as narrativas meta-
ficionais, o leitor ganha um realce diferente e naturalmente mais positivo,
tanto pela exigência do texto como pela resposta que ele dá.
Linda Hutcheon, sob influência das teorias de leitura de Iser, em
1980, publicou o livro Narcissistic narrative: the metafictional paradox,
como uma forma de reação a profusão e proliferação, em meados dos
anos de 1960, nos campos literários europeu e americano, de narrativas
autorreflexivas que tratavam do próprio fazer literário (p. IX-X). Buscan-
do pensar o leitor diante da narrativa metaficcional (a qual ela denomina
de narrativa narcisista), Hutcheon (2013, p. XII, grifos nossos), aponta
que as novas formas de interações entre texto e leitor estabeleceram uma
função mais ativa para o leitor, que “significou novas responsabilidades,
mas também nova liberdade para o leitor, que agora era consultado para
criar conscientemente um mundo fictício em sua imaginação enquanto ler
palavras em uma página”3. Nesse sentido, de acordo Hutcheon (2013), o
leitor não apenas interage com o texto no processo de significação, mas
igualmente na cocriação, ou seja, o texto, além de objeto de recepção, é
objeto de produção.
Isso é o que acontece no livro O outro lado da história, da escri-
tora brasileira Rosana Rios, no qual é narrada a história de um príncipe
que, desde pequeno, recebeu todos os luxos e privilégios dignos de um
descendente real. Na oportunidade do seu nascimento, um ancião “man-
dou ao Rei um medalhão dourado, dizendo que, se o Príncipe o procurasse
levando o medalhão quando crescesse, ele lhe ensinaria as ciências da sabe-
doria” (RIOS, 1992, p. 9, grifos da autora). Quando chegou à idade de
18 anos, o Príncipe, a pedido do Rei e contra a própria vontade, foi para
as montanhas, onde encontraria o ancião que lhe “ensinaria as ciências
da sabedoria”. E, assim, O outro lado da história segue com seu enredo,
3 Lê-se no original: “[…] meant new responsibilities but also new freedom for the reader, who now was seen to cons-
ciously create a fictive world in his or her imagination while reading words on a page”.

122 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


descrevendo as peripécias do Príncipe, que tenta chegar onde estava o an-
cião, perpassando por florestas, reinos, encontrando outras pessoas, como
cavaleiros, camponeses e uma princesa.
Em um primeiro momento, a história parece retomar cenários,
personagens e temas típicos de uma narrativa feérica. Mas, o leitor é
surpreendido com intervenções das partes do livro e dos personagens do
enredo, que se rebelam contra o destino do Príncipe e contra como a
história dele está sendo construída. De forma paralela à história acima,
como que em um making-of (do inglês, “a feitura de”) dos bastidores da
história contada, são encontrados depoimentos do Prefácio, do Sumário,
do Príncipe, da Rainha (sua mãe), do Camponês, da Princesa, e de tantos
outros que vão aparecendo ao longo do desenrolar da narrativa. Esses
comentários conduzem o leitor a questionar e refletir sobre a feitura da
história, a composição dos personagens, a trama, a subversão do modelo
dos contos de fadas e como se deu o processo de criação desses elementos,
como se percebe em uma das falas, em making-of, do Príncipe:
A vida toda me perguntei por que os autores das histórias só mostram
um lado de tudo o que acontece. Para mim, as coisas nem sempre são o
que parecem... Se os próprios personagens pudessem dar sua versão dos
acontecimentos, garanto que todos os livros seriam mais bem entendidos!
(RIOS, 1992, p. 10).

Os depoimentos, como esse acima, são grafados sem o itálico que


acompanha a história “oficial” (aquela que é contada pelo narrador). Es-
sas falas paralelas revelam o outro lado da história do Príncipe, relatando
os aborrecimentos, as reivindicações, as discordâncias e os pensamentos
dos personagens. A versão contada pelo narrador e a versão dos perso-
nagens contada em making-of mostram os dois lados da história e fica
a cargo do leitor decidir em quem acreditará (no narrador ou nos per-
sonagens). Nesse sentido, ao leitor é desvelado os meandros da história
e, sendo tomado como coautor e crítico de O outro lado da história, ele
“é forçado a examinar seus conceitos de arte bem como seus valores de
vida”4 (HUTCHEON, 2013, p. 139). Dessa forma, na narrativa de Rios,
o leitor adere a outra atitude, outra postura, que o conduz a sua percep-
4 Lê-se no original: “[…] is forced to scrutinize his concepts of art as well as his life values”.

NOTAS SOBRE O LEITOR E A NARRATIVA METAFICCIONAL INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA 123


ção das relações que a literatura estabelece. Na medida em que se dispõe
a coproduzir o texto, dá espaço a uma abertura que contingencia sua
experiência. Essa abertura, essa disponibilidade, incita o diálogo entre
sujeito leitor e objeto da leitura que é adaptado aos moldes da estrutura
do texto e nas possíveis respostas que o leitor conseguirá engendrar para
as provocações que são feitas.
Em O outro lado da história, verificamos os seguintes procedimen-
tos escriturais: múltiplos narradores; personagens dotados de liberdade
insurreta; parâmetro estrutural que rompe com a linearidade da diegese;
paródia associada às referências intertextuais explícitas ao conto de fadas
(mesmo que o subverta); presença do gênero textual Depoimento (ou Re-
lato Pessoal); e, como comentamos, desestabilização do pacto ficcional
entre o leitor e o texto, no qual aquele assume a coautoria da obra. Essas
ferramentas de figuração da autorreflexividade de dessa narrativa demos-
tram o caminho de preenchimento dos “espaços brancos” das estratégias
metaficcionais de um leitor metaficcinal. A recepção de textos metaficcio-
nais singulariza a experiência estética literária. Isso devido ao conjunto de
estratégias mobilizadas na autorreflexividade da ficção – algumas, antes,
restritas a críticos, escritores ou leitores especializados. Nesse sentido, dos
leitores é exigido – além da atenção e compreensão “corriqueiras” na lei-
tura do texto literário – um envolvimento diferente diante de um con-
junto de questionamentos.
A individualidade do sujeito-leitor e do horizonte de leitura que
possui, diante das circunstâncias simbólicas e expressivas do literário me-
tanarrativo, tornam única a sua experiência dentro da possibilidade mul-
tifacetada de interpretações. Porém, fica a cargo do leitor aceitar, ou não,
o papel prefigurado pelo leitor mataficcional. Eco (2011, p. 212), discu-
tindo o engajamento do leitor no ato da leitura, traz, à baila, a seguinte
reflexão: “é impossível que o leitor não perceba as reflexões metanarrati-
vas. Poderá se sentir perturbado, poderá ignorá-las (saltá-las), mas se dá
conta de que lá estão”. A postura estética pela qual ocorre o adentramento
do leitor nas “aberturas” da obra é uma escolha de leitura, visto que a
relação entre texto e leitor não se trata de um processo estático de inte-
pretação, mas, sim, de uma relação interlocutiva em que o leitor rompe

124 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


ou estabelece acordos (não previstos por ele), mas, que estavam previstos
na narrativa e na figura do leitor metaficcional.

Considerações finais
Diante do exposto, percebemos que, paralelamente às questões do
leitor, ao longo da segunda metade do século XX, sucederam eventos
acadêmicos, sociais e históricos significativos para a renovação das formas
narrativas que influíram o âmbito da produção literária infantil e juvenil.
Como se percebe, esse destaque sobre o receptor não é um evento
isolado, mas, sim, um elemento que conflui com os novos percursos da
narratividade. O texto caminha com a desenvolvimento do leitor ao
estabelecer, no ato da leitura, as formas de engajamento e ao possibi-
litar a ampliação de suas potencialidades. O leitor metaficcional, como
derivação do leitor implícito ou modelo, não se exclui desse processo,
uma vez que, como uma previsão da ação de leitor real diante de textos
autorrefexivos, por meio da cooperação textual, deixa “pegadas” para o
preenchimento dos espaços vazios propostos pela dinâmica da narrati-
va, simulando o possível na recepção determinada pelas aberturas que
uma dada obra oferece.
A partir da ideia de que a obra é aberta a múltiplas leituras e
de que ela é portadora de um horizonte de expectativa que delineia –
a partir de seus artifícios – um modelo de horizonte do seu receptor
para a apreensão mais plena de seus jogos e ideologias, na breve análise
realizada de O outro lado da história, de Rosana Rios, bem como nas
considerações teóricas sobre os elementos que estruturam as narrativas
metaficcionais, pudemos perceber as nuances da recepção de metanar-
rativas infantis e juvenis. Verificamos também que o pacto ficcional dos
textos metaficcionais é diferente dos demais, pelo fato de que a ilusão
referencial de realidade é rompida com os questionamentos sobre o fa-
zer literário da própria narrativa. Esses e outros procedimentos também
podem ser encontrados em outros textos como, por exemplo, O proble-
ma do Clóvis, de Eva Furnari, Um homem no sótão, de Ricardo Azevedo,
e também em O personagem encalhado, de Angela Lago, já analisados

NOTAS SOBRE O LEITOR E A NARRATIVA METAFICCIONAL INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA 125


em outros trabalhos (FRANCA; SOUZA; CAMARGO, 2016; SOU-
ZA; FRANCA; CAMARGO, 2017).
Por fim, ressaltamos ainda que a postura ativa que é exigida do lei-
tor, como se percebe, é dialógica e dialética. É dialógica, pois há trocas de
expectativas entre o leitor e o texto durante a interação; e é dialética, por
existir possiblidades de uma ação participativa na comunicação proposta
no texto, na qual o leitor expressa (intelectualmente) juízos, questiona-
mentos e incompreensões e, consequentemente, tem suas concepções,
sua mentalidade, transformadas, durante o ato da leitura. Contudo, no
processo interpretativo de um texto metaficcional é, praticamente, ine-
vitável uma subjetivação nos procedimentos de recepção, pois o leitor
pode, ou não, escolher tomar e ler o texto.

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FRANCA, Vanessa Gomes; SOUZA, Edilson Alves de; CAMARGO, Flávio Perei-

126 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


ra. A presença de narrativas metaficcionais na literatura infantil e juvenil
brasileira: um estudo das obras O problema do Clóvis, de Eva Furnari, e
Um homem no sótão, de Ricardo Azevedo. In: CAMARGO, Flávio Pereira;
CARDOSO, João Batista. Narrativa brasileira contemporânea: ensaios crí-
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JAUSS, Hans Robert A história da literatura como provocação à teoria literária.
Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de
Johannes Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996, v. 1.
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LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história &
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JOUVE, Vinvent. A leitura. Tradução de Brigitte Hervot. São Paulo: Unesp, 2002.
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SOUZA, Edilson Alves de; FRANCA, Vanessa Gomes; CAMARGO, Flávio Pereira.
O palimpsesto metaficccional em O personagem encalhado, de Angela
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WOOD, James. Como funciona a ficção. Tradução de Denise Bottmann. São
Paulo: Cosac Naify, 2011.

NOTAS SOBRE O LEITOR E A NARRATIVA METAFICCIONAL INFANTIL E JUVENIL BRASILEIRA 127


ASPECTOS METAFICCIONAIS
EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE
FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA:
QUESTÕES SOBRE O PERSONAGEM-ESCRITOR, A
TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA*1

Vanessa Gomes Franca, Flávio Pereira Camargo

A literatura pós-moderna desconstrói convenções, regras, pro-


tótipos, revelando diversas tendências para as “novas” produções lite-
rárias. Estas, muitas vezes, estão repletas de “citações, colagens (fotos,
gráficos, anúncios) e referências à própria literatura. Isto é, a literatura
pós-moderna é metaficcional, intertextual; para lê-la, é preciso conhe-
cer outros textos” (SANTOS, 2004, p. 41). Logo, o leitor também é
desconstruído. Ele não é somente aquele que contempla a obra literária.
Sua participação mais ativa é exigida, para a construção, desconstrução
e reconstrução do texto. Para Sueli de Souza Cagneti (2013, p. 12), os
livros da literatura infantil e juvenil contemporânea requerem do leitor
uma postura de preenchimento, “associação, recriação e redimensiona-
mento, a partir dos próprios pontos de vista, das leituras e dos conhe-
cimentos anteriores, das buscas particulares e do preenchimento dos
vazios propositais que dependerão das novas leituras que cada um será
capaz de encontrar e fazer”.
*
Este artigo é resultado parcial do projeto de pesquisa de Pós-doutorado intitulado: O personagem escritor e
a questão da narrativa metaficcional na Literatura Infantil e Juvenil brasileira, desenvolvido pela profa. Dra. Vanessa
Gomes Franca, com Bolsa PNPD/CAPES, realizado no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFG,
supervisionado pelo Prof. Dr. Flávio Pereira Camargo. Contribui para os projetos de pesquisa A presença de narrativas
metaficcionais na Literatura Infantil e Juvenil brasileira, desenvolvido na UEG, Câmpus Pires do Rio, com o apoio da
PrP, coordenado pela professora Dra. Vanessa Gomes Franca, e O personagem-escritor e a questão da narrativa meta-
ficcional, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq nº 444438/2014-9)
e vinculado ao grupo de pesquisa “Estudos sobre a narrativa brasileira contemporânea”, coordenado pelo prof. Dr.
Flávio Pereira Camargo.

129
A literatura infantil e juvenil brasileira – principalmente após o
surto de criatividade e o boom, ocorridos em 1970 e 1980, respectiva-
mente –, “vai trabalhar em consonância com tais tendências de escri-
ta, abrindo-se para novas possiblidades de expressão, bem como, atuar
de maneira paradigmática frente aos novos contextos de produção”
(FRANCA; SOUZA; CAMARGO, 2016, p. 83). Assim, vemos nas
obras direcionadas aos públicos infantil e juvenil textos que desvelam
sua própria natureza ficcional.
As obras pós-modernas, jogando com a própria literatura, utilizam
os recursos da metaficção, que consiste na “[...] ficção sobre a ficção – isto
é, a ficção que inclui em si mesma um comentário sobre sua própria iden-
tidade narrativa e/ou linguística” (HUTCHEON, 1984, p. 1, tradução
nossa).2 Em outras palavras, a metaficção “é uma ficção que não esconde
que o é, mantendo o leitor consciente de estar lendo um relato ficcional,
e não um relato da própria verdade” (BERNARDO, 2010, p. 42). Assu-
mindo-se como uma obra que não manifesta o real, as narrativas metafic-
cionais quebram a ilusão da realidade, sustentada, principalmente, pelos
romancistas realistas. Desse modo, revela-se ao leitor como um artifício,
um objeto criado consoante determinadas convenções.
Para revelar-se ao leitor como um constructo, a narrativa metafic-
cional apresenta, explícita ou implicitamente, estratégias autorreflexivas.
Segundo Gustavo Bernardo (2010, p. 43), a “conhecida intertextualida-
de – através da paródia, do pastiche, do eco, da alusão, da citação direita
ou do paralelismo estrutural – integra os processos metaficcionais”. A
paródia é uma maneira de apontar para o artifício da obra literária (HU-
TCHEON, 1984), tendo em vista que, ao apresentar uma perspectiva
crítica, “tem a vantagem de ser simultaneamente uma reacriação e uma
criação, fazendo da crítica uma espécie de exploração activa da forma”
(HUTCHEON, 1985, p. 70).
Como um dos principais modos da narrativa narcisista, Linda
Hutcheon (1984) aponta a mise en abyme. Esta é “todo espelho interno
em que se reflete o conjunto da narrativa por reduplicação simples,

2 [...] fiction about fiction – that is, fiction that includes within itself a commentary on its own narrative and/or
linguistic identity.

130 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


repetida ou especiosa” (DÄLLENBACH, 1977, p. 52)3. Além da mise
en abyme, outra estratégia autorreflexiva é a presença de um narrador
autoconsciente. Lepaludier (2002, p. 31, grifos do autor), ao discorrer
sobre os procedimentos metatextuais, aborda a questão de “[u]m per-
sonagem ou um narrador pode[r] ser considerado como figura do es-
critor e provocar uma reflexão sobre a escrita, sua produção, sua estética
ou o estatuto do escritor”4.
Na literatura infantil e juvenil pós-moderna, a estratégia metafic-
cional de desnudar os elementos da criação “[...] literária, o oferecimento
ao leitor de umas folhas em branco que se vão criando de modo simul-
tâneo à sua leitura, esse não permitir a leitura inocente do ‘Era uma vez’
como se se pudesse crer que a história tivesse acontecido prolifera por
meio de todo o tipo de artifícios” (COLOMER, 2017, p. 221, grifo da
autora). Dentre os textos da Literatura Infantil e Juvenil brasileira que
utilizam estratégias autorreflexivas, levando o leitor a descobrir, a cons-
truir, a descontruir e a reconstruir significados, a preencher lacunas e a
perceber comentários críticos, a partir do desnudamento de aspectos que
compõem o texto literário, destacamos O fantástico mistério de Feiurinha,
do escritor paulista Pedro Bandeira.
Pedro Bandeira de Luna Filho nasceu em 9 de março de 1942,
na cidade de Santos, litoral de São Paulo. Iniciou sua carreira literária
em 1983, época do boom da Literatura Infantil e Juvenil brasileira, com
a publicação do livro O dinossauro que fazia au-au. Nesse mesmo ano,
lançou É proibido miar, que tem como personagem principal Bingo, um
cachorro que por ser “diferente” enfrentará “o preconceito, a exclusão,
a discriminação e as injúrias feitas por seus pares no decorrer da trama
ficcional” (CRUZ; CAMARGO, 2014, p. 196).
Em 1984, o escritor publica A droga da obediência, um de seus
livros de maior sucesso. Tal obra, em que um grupo de jovens estu-
dantes, intitulado os Karas, investiga o sumiço de colegas de vários
colégios, é “uma novela policialesca, que mescla mistérios e suspense;
e gira em torno de um problema crucial para os homens e a sociedade:
3 Lê-se no original: [...] tout miroir interne réfléchissant l’ensemble du récit par réduplication simple, répétée ou
spécieuse.
4 Lê-se no original: Un personnage ou um narrateur peut être consideré comme figure de l’écrivain et provoquer
une réflexion sur l’écriture, sa production, son esthétique ou le statut de l’écrivain.

ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 131
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
o dilema entre liberdade individual e justiça (ou equilíbrio) social”
(COELHO, 2006, p. 692). Os Karas aparecerão em outras narrativas
do autor, compondo uma série: Pântano de sangue (1987), Anjo da
morte (1988), A droga do amor (1994), Droga de americana (1999), A
droga da amizade (2014).
De acordo com Nelly Novaes Coelho (2006, p. 697), Pedro Ban-
deira é “[p]resença de destaque entre os escritores best-sellers de literatura
infantil/juvenil brasileira [tendo construído] um universo que, neste li-
miar do século XXI, chega a uma centena de títulos” publicados e a mais
de vinte e dois milhões de livros vendidos. Autor reconhecido, Bandeira
já foi diversas vezes laureado. Recebeu o prêmio Jabuti, na categoria Me-
lhor Livro Infantil – 1986, da Câmara Brasileira do Livro, pela obra O
fantástico mistério de Feiurinha.
Neste livro, temos três histórias entrecruzadas. A primeira narra-
tiva é a do narrador-personagem-escritor, que está sem inspiração para
escrever, quando recebe uma visita que mudaria sua história. Assim,
no “Capítulo Zero”, ele expõe as dificuldades que tem para começar a
escrever aquela narrativa, o que leva o leitor a compreender que o texto
é um constructo:
Naturalmente você sabe que os escritores, quando estão sem inspiração,
sentem inadiável necessidade de apontar lápis, limpar os tipos da máquina,
verificar se há papel suficiente na gaveta e ver se a empregada deixou sobrar
alguma coisa na geladeira, não é?
Então, como eu ia dizendo, estava extremamente ocupado com minha
literatura (BANDEIRA, 2009, p. 8-9, grifo nosso).

Além de expor as dificuldades de escrita da história, já que está sem


inspiração, o narrador-personagem-escritor relata como ocorre o proces-
so de criação de seus livros: “Naquela época, eu era um autor iniciante, com
muitas ideias na cabeça e poucas no papel. Observava as pessoas, os bichos
e a mim mesmo, tentando entender tudo e a tudo transformar em histórias
que tivessem verdade, que tivessem calor, que tivessem graça” (BANDEIRA,
2009, p. 6, grifo nosso). Ao expor e discutir a respeito do seu próprio
processo de criação, a obra de Bandeira é metaficcional.
Como vimos anteriormente, uma estratégia autorreflexiva das

132 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


narrativas metaficcionais é a presença de um personagem ou de um
narrador que, ao desempenhar o papel de escritor, suscita a reflexão
sobre o processo de escrita. No que concerne à presença de um per-
sonagem-escritor nas narrativas metaficcionais, Zênia de Faria (2008,
p. 3), ressalta que tal elemento é aquele que evidencia a mimesis do
processo, uma vez que possibilita ao leitor “[...] observar o persona-
gem-escritor diante de suas dúvidas, de seus impasses, de seu ques-
tionamento de como levar a termo o projeto de escrita que se pro-
pôs a realizar”. Desse modo, a obra de Bandeira mostra “como textos
destinados a crianças podem incorporar a reflexão sobre o processo
de criação, conferindo a suas narrativas o teor metalinguístico que,
contemporaneamente, se atribui à poética chamada pós-moderna”
(ZILBERMAN, 2014, p. 174).
No “Capítulo Zero”, o narrador-personagem-escritor tenta ex-
plicar como é que ele havia se metido naquela história: “O engraçado
é que me meti no meio da confusão, mas não no meio de história ne-
nhuma. Eu me meti no fim de todas as histórias” (BANDEIRA, 2009,
p. 6, grifo do autor). Em seguida, dialoga com o leitor: “Você se lem-
bra, não é?! Quase todas as histórias antigas que você leu terminavam
dizendo que a heroína casava-se com o príncipe encantado e pronto.
Iam viver felizes para sempre e estava acabado” (BANDEIRA, 2009, p.
6, grifo nosso). Ao comentar que as histórias antigas terminavam com
o “felizes para sempre”, questiona o que isso consistiria: “Significa casar,
ter filhos, engordar e reunir a família no domingo para comer macarro-
nada?” (BANDEIRA, 2009, p. 6). Indaga igualmente: “Quer dizer que
a felicidade é não viver mais nenhuma aventura? [...] Não é possível
que heróis e heroínas tão sensacionais tenham passado o resto da vida
assistindo ao tempo passar feito novela de televisão. É preciso saber o
que acontece depois do fim” (BANDEIRA, 2009, p. 6). Consoante ve-
rificamos, o narrador-personagem-escritor revela-se insatisfeito com os
finais dos contos de fadas tradicionais, desejando saber o que ocorreria
após o fim. Tal insatisfação instiga o leitor a refletir a respeito dos “finais
felizes” das narrativas feéricas e, consequentemente, de sua estrutura.
Além de discutir sobre o final dos contos tradicionais, o narra-

ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 133
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
dor-personagem-escritor aborda a questão da indeterminação, da atem-
poralidade de tais narrativas que, geralmente, iniciam-se com a frase:
“Era uma vez, há muitos e muitos anos...”, considerada como uma es-
pécie de chave de abertura ou senha de entrada:

Quando aconteceram as histórias de fadas e princesas? Olha, eu acho que


todas começaram ao mesmo tempo, porque, todas começam assim:
Era uma vez, há muitos e muitos anos...
Está vendo? Nem um muito a mais, nem um muito a menos. Assim, fica
provado que todas as histórias começaram ao mesmo tempo. E se todas
começaram ao mesmo tempo, todas terminaram também mais ou menos
ao mesmo tempo, não é?!
Pois foi justamente alguns anos depois de há muitos e muitos anos que
esta história começou, ou que todas as outras histórias recomeçaram.
Comigo no meio... (BANDEIRA, 2009, p. 8, grifo do autor).

O leitor presencia a discussão do narrador-personagem-escritor


sobre a atemporalidade das narrativas feéricas e a ele são direcionadas
perguntas: “Está vendo?” / “não é?”. Dessa maneira, a atuação mais ativa
do leitor na construção da história é requerida. Outrossim, os questio-
namentos levantados pelo narrador-personagem-escritor sobre os finais
felizes e sobre a atemporalidade dos contos de fadas mostram a posição
inquieta que ele assume diante da estrutura narrativa. Se o texto se (auto)
questiona, se ele se autorreflete, reposicionando o leitor, fazendo com
que este também questione o que está lendo, vemos caracterizada a mi-
mesis do processo, por meio da qual “são explicitados ao leitor, dentro do
texto literário, os procedimentos de criação, desvelando o inacabamento
da obra e intimando o leitor à coautoria dessa obra em um processo de
colaboração por meio de uma leitura crítica” (FRANCA; SOUZA; CA-
MARGO, 2016, p. 89).
No final do “Capítulo Zero”, o personagem-escritor narra o mo-
mento em que conheceu Caio, o lacaio, que o encarregou de uma “es-
tranha missão”. Sem esclarecer o que seria tal missão, informa: “[...]
Estou, portanto, preparado para começar a escrever a história da Feiuri-
nha. / Antes, porém, preciso contar a você como é que eu me meti
nessa enroscada e como é que eu reconstruí a história da Feiurinha

134 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


(BANDEIRA, 2009, p. 9).
Na sequência dos capítulos “Zero e Meio” e “Zero e três quartos”,
temos o início da segunda história, que consiste na narrativa do que acon-
teceu com as princesas dos contos de fadas, após o “viveram felizes para
sempre”. O capítulo “Zero e Meio” começa descrevendo a personagem
Branca de Neve, após vinte e cinco anos do “final” do seu conto:
Era uma vez, há muitos e muitos anos, mais vinte e cinco anos, uma
senhora de cabelos negros como o ébano, onde já começavam a aparecer
alguns fios brancos como a neve, bem da cor da pele dela, que também era
branca como a neve.
O nome da tal senhora era Branca Encantado. Nos tempos de solteira,
o sobrenome dela era “De Neve”, mas, depois que se casou com o
Príncipe Encantado, dona Branca passou a usar o sobrenome do marido
(BANDEIRA, 2009, p. 11, grifo do autor).

Branca Encantado é visitada por sua amiga Chapeuzinho, que


era solteira, uma vez que sua história “tinha terminado dizendo que ela
ia viver feliz para sempre ao lado da Vovozinha, mas não falava em ne-
nhum príncipe encantado” (BANDEIRA, 2009, p. 12). Chapeuzinho
conta a Branca Encantado a respeito do desaparecimento da princesa
Feiurinha. Preocupada com aquela situação, Branca Encantado, por
meio de seu lacaio, Caio – que aparece na primeira história, convoca
para uma reunião as princesas: Cinderela Encantado, Rapunzel Encan-
tado, Bela Adormecida Encantado, Rosaflor Della Moura Torta Encan-
tado, Bela-Fera Encantado.
O narrador explica o fato de todas as princesas terem o mesmo
sobrenome: “A família Encantado tinha fornecido muitos príncipes para
casar com as heroínas dos contos de fada. Por isso, quase todas as prince-
sas tinham o mesmo sobrenome e eram cunhadas entre si. É claro que isso
trazia uma certa confusão” (BANDEIRA, 2009, p. 14). Dessa maneira,
em algumas passagens da narrativa, as princesas se confundem quando é
mencionado o nome “Príncipe”:
– O Príncipe está no castelo?
– O Príncipe? Que Príncipe?
– O Príncipe Encantado. Seu marido.

ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 135
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
– Ah, não está não. Foi à caça.
– Pois, então, vamos ao assunto. Eu falei com a Rapunzel Encantado e ela
me disse que o Príncipe...
– Príncipe? Que Príncipe?
– O Príncipe Encantado. Marido da Rapunzel.
– Ah...
– Pois é. O marido da Rapunzel encontrou-se com o Príncipe...
– Príncipe? Que Príncipe?
– O Príncipe Encantado. Marido da Cinderela.
– Ah... (BANDEIRA, 2009, p. 14).

Por meio dos sobrenomes das princesas e da confusão que se


instaura quando se cita o nome “Príncipe”, verificamos que é discu-
tido o fato de as personagens dos contos de fadas raramente serem
nomeadas ou serem caracterizadas por suas posições sociais ou sua
função: o rei, a duquesa, a camponesa, o caçador, o sapateiro, o pai,
a mãe, a madrasta, o filho, a enteada, a bruxa. Também podem ser
denominados “por uma particularidade da roupa [...] Pele de Urso,
Chapeuzinho Vermelho” (PULLMAN, 2014, s.p.). Segundo Vera
Maria Tietzmann Silva (2006, p. 243), quando as personagens são
designadas, “o nome pouco individualiza, já que costuma tratar-se de
um apelido ou de um nome muito recorrente”.
Além de vermos evidenciada a questão da nomeação das perso-
nagens, o texto ainda chama a atenção para a função desempenhada
por elas. De acordo com Propp (2001, p. 16, grifo do autor), nos
contos maravilhosos há “grandezas constantes e grandezas variáveis.
O que muda são os nomes (e, com eles, os atributos) dos personagens;
o que não muda são suas ações, ou funções”. No que diz respeito
aos príncipes, estes “desempenham papéis ativos, heróicos e transgres-
sores, servindo, muitas vezes, como intermediários, num resgate. As
princesas são caracterizadas pelos atributos femininos que marcam a
passividade e a sua função social como objeto do prazer e da organiza-
ção familiar” (KHÉDE, 1990, p. 22). Na obra de Bandeira, os papéis
são invertidos. Os príncipes não são os heróis da história, sendo des-
critos por Branca Encantado como passivos: “Os Príncipes não adian-
ta chamar. Estão todos gordos e passam a vida caçando. Ademais,

136 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


príncipe de história de fada não serve para nada. A gente tem de se
virar sozinha a história inteira, passar por mil perigos, enquanto eles
só aparecem no fim para o casamento” (BANDEIRA, 2009, p. 15,
grifo nosso). As princesas, como coloca Branca Encantado, seriam as
verdadeiras heroínas, que passam por diversas provações sozinhas. Por
meio da fala de Branca, vemos uma personagem criticando o papel de
outra personagem na história, o que leva a uma reflexão metaficcional
a respeito da constituição das personagens dos contos de fadas. Além
disso, tal crítica faz com que o leitor também pense sobre os papéis
masculino e feminino nessas narrativas.
Ainda em relação às personagens, estas têm consciência que fazem
parte de histórias e dos elementos que as compõem. Tal consciência é
mostrada ao leitor, por exemplo, quando Chapeuzinho Vermelho e Bran-
ca Encantado disputam qual das suas histórias é a mais bonita:
[...] É que eu estou sempre pensando na minha história. Ela é tão linda,
com o Lobo Mau, tão terrível, e o Caçador, tão valente...
- Até que sua história é passável, Chapéu – comentou dona Branca,
meia despeitada. – Linda mesmo é a minha, que tem espelho mágico,
maça envenenada, bruxa malvada, anõezinhos e até caçador generoso...
(BANDEIRA, 2009, p. 12, grifos nossos).

Por meio das vozes das personagens, como vimos, o autor desnuda
os elementos que compõem as histórias de fadas. Esse desnudamento
caracteriza O fantástico mistério de Feiurinha como uma obra narcisista,
uma vez que se volta para si mesmo, realizando comentários sobre sua
condição de artifício. Assim, é evidenciado ao leitor que, na verdade, o
que está lendo é uma ficção.
No capítulo “Zero e três quartos”, comparecem ao castelo de Bran-
ca Encantado: Cinderela Encantado, Rapunzel Encantado, Bela Ador-
mecida Encantado, Rosaflor Della Moura Torta Encantado, Bela-Fera
Encantado, que haviam se casado e estavam grávidas. No início do ca-
pítulo, ao justificar a rapidez com que as princesas chegam ao palácio, o
narrador expõe, mais uma vez, a temporalidade nas narrativas feéricas:
“Em histórias de fada, esse negócio de tempo não tem a mínima impor-
tância. Por isso, em um minuto as princesas já estavam chegando ao cas-

ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 137
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
telo de dona Branca Encantado” (BANDEIRA, 2009, p. 16, grifo nosso).
Em outra passagem do mesmo capítulo, uma discussão entre Cinderela e
Branca Encantado, igualmente, alude ao tempo nos contos:
– Tem muito mau gosto! –cortou dona Cinderela. – Onde já se viu ficar
morta anos e anos ao relento! Aí vem o Príncipe Encantado dar um beijo
numa defunta que está morta e esticada há anos e anos! E depois, se muitos
e muitos anos se passaram, o teu príncipe já devia estar velho como uma
múmia. Até que combinaria, não é? Uma múmia beijando a outra... Que
mau gosto!
[...]
– Mau gosto? – Dona Branca ficou furiosa. – Ora, você não sabe que,
nos contos de fadas, anos e anos passam em um minuto? Que é só virar a
página? (BANDEIRA, 2009, p. 19, grifos nossos)

Nas duas citações, é ressaltado que o tempo não é tão signi-


ficativo em uma narrativa feérica, o que desvela uma reflexão meta-
ficcional sobre tal elemento. No que diz respeito ao estudo do conto
maravilhoso, Vladimir Propp (2001, p. 16, grifos do autor) salienta
que o importante “é saber o que fazem os personagens. Quem faz algo
e como isso é feito, já são perguntas para um estudo complementar”.
Desse modo, para o pesquisador, o fundamental nesse tipo de história
são as funções das personagens.
Branca Encantado conta para as demais princesas que Feiurinha
havia desaparecido. Outrossim, argumenta que o sumiço da princesa
representava uma complicação para todas elas, posto que suas histó-
rias terminavam com a promessa do final feliz para sempre: “Se algum
mal aconteceu com Feiurinha, isso significa que a felicidade eterna de
qualquer uma de nós pode ser destruída de uma hora para outra! Se o
encanto foi quebrado para uma, pode ter sido quebrado também para
todas nós” (BANDEIRA, 2009, p. 24-25).
No capítulo “Zero, três quartos e mais um pouquinho”, voltamos para
a primeira história e nos encontramos com o escritor e com Caio, o lacaio.
Este relata que, devido ao sumiço de Feiurinha, as princesas encarregaram os
lacaios de procurá-la, mas ninguém a havia achado. O narrador-personagem-
-escritor, que não acredita em Caio, considerando-o como um “louco”, um

138 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


“biruta”, pensa em, posteriormente, escrever o que lhe estava sendo narrado:
“Depois que ele estiver novamente trancafiado na cela forte de onde deve ter
fugido, vou dar um jeito de fazer-lhe uma visitinha. Talvez até possa transfor-
mar alguma de suas ideias fantásticas em um livro daqueles em que ninguém
acredita, mas todos gostam” (BANDEIRA, 2009, p. 26).
Consoante apresentado, nos capítulos “Zero” e “Zero, três quartos
e mais um pouquinho”, vemos a história de um escritor que apresenta
dificuldades para escrever, quando aparece em sua casa Caio, o lacaio de
Branca Encantado. Nos capítulos “Zero e Meio” e “Zero e três quartos”,
temos a história das princesas dos contos de fadas, transcorridos vinte e
cinco anos após o “felizes para sempre”. Segundo Coelho (2006, p. 694,
grifo da autora), ao

registrar ao mesmo tempo a sua presença como escritor e as hipotéticas


‘vidas vividas’ pelas princesas ou famosas heroínas das histórias antigas, o
autor diverte o leitor, enfatiza a natureza ficcional da literatura e também
o poder de criação literária para construir ou destruir verdades tidas
como eternas.

Ao enfatizar a “natureza ficcional da literatura”, assumindo uma


postura autoconsciente e autorreflexiva, o texto se revela ao leitor como
um constructo, um produto em construção. Ademais, convoca-o a par-
ticipar como coautor da história, “pois cabe a ele preencher os espaços
em branco e unir as partes fragmentadas do texto, contribuindo para a
construção do texto que lê” (CAMARGO, 2009, p. 16). Ao retomar os
contos de fadas tradicionais, (re)construindo a história das princesas, o
livro de Bandeira estabelece uma relação de intertextualidade paródica
com aqueles – conforme aludido anteriormente, uma das características
dos textos metaficcionais.
Na literatura pós-moderna, como vimos, os textos são inter-
textuais. Dentre aqueles que são retomados, destacam-se os clássicos.
Na literatura infantil e juvenil tal movimento ocorre, principalmente,
com a reescritura dos contos de fadas. No entanto, esse movimento
de reconto não é atual. Da época de Perrault até hoje, temos diversos
textos que atualizam e imortalizam as narrativas feéricas. “São lobos,
princesas, príncipes e todo um arsenal de seres lúdicos que ressurgem
ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 139
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
nos fazendo buscar, em algum lugar da memória, aquilo que foi cria-
do e nos apresentado um dia” (CAGNETI, 2013, p. 71).
Esse processo de retomada dos contos de fadas na literatura in-
fantil e juvenil não se faz por “semelhança”, mas por “diferença”, paro-
dicamente. De acordo com Hutcheon (1985, p. 17), “a paródia é [...]
repetição com distância crítica, que marca a diferença em vez da seme-
lhança”. Desse modo, ao retomarem os textos antigos, os “novos” contos
subvertem aqueles dando-lhes uma roupagem diferente. Tania Franco
Carvalhal (2006, p. 53-54, grifo nosso), ao discorrer sobre imitação e
invenção, pondera que
a repetição (de um texto por outro, de um fragmento em um texto,
etc.) nunca é inocente. Nem a colagem nem a alusão e, muitos menos,
a paródia. Toda repetição está carregada de uma intencionalidade certa:
quer dar continuidade ou quer modificar, quer subverter, enfim, quer
atuar com relação ao texto antecessor. A verdade é que a repetição, quando
acontece, sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o e (por que
não dizê-lo?) o reinventa.

Ao retomar os contos de fadas, vemos na obra de Bandeira, como


pontuou Coelho (2006, p. 694, grifo nosso), “o poder de criação literá-
ria par construir ou destruir verdades tidas como eternas”. Já no primeiro
capítulo, o narrador-personagem-escritor contesta os finais dos contos
de fadas tradicionais, querendo saber o que aconteceria após o “fim”.
Assim, ele nos apresenta as princesas dos contos tradicionais vinte e
cinco anos passados do “fim” de suas narrativas. Como o narrador-per-
sonagem-escritor, as princesas também questionam suas histórias, os
elementos que as constituem.
No capítulo “Zero, três quartos e outro pouquinho”, as princesas
comentam a respeito do perigo de o encanto da felicidade eterna ser
quebrado. Para encontrarem alguma pista sobre o desaparecimento de
Feiurinha, Rapunzel sugere que as personagens secundárias da história
daquela sejam interrogadas. Para tanto, as princesas tentam lembrar a
história de Feiurinha, mas nenhuma consegue. Rosaflor Della Moura
Torta Encantado sugere uma maneira:

140 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


Pense só: como é que as pessoas ficam conhecendo nossas histórias?
Aquela pergunta não exigia raciocínio de nenhuma delas. Era fácil.
– Nos livros de histórias, é claro – respondeu dona Branca.
– Entendi! – dona Cinderela deu um salto. – Vamos procurar o livro onde
está narrada a história da Feiurinha! (BANDEIRA, 2009, p. 29).

Diante da ideia de Rosaflor Della Moura Torta Encantado, Ra-


punzel pergunta quem seria o escritor da história da Feiurinha. Ao serem
inquiridas, as princesas citam nomes de diversos autores:
– Da Feiurinha eu não sei – respondeu dona Chapeuzinho Vermelho. –
Mas a minha eu sei que foi Charles Perrault. Um francês ma-ra-vi-lho-so
que só esqueceu de botar um Príncipe Encantado no final.
– Acho que não foi ele – disse dona Branca. – Vai ver foram Wilhelm
e Jacob, os irmãos Grimm, aqueles dois alemãezinhos adoráveis que
contaram minhas aventuras de modo tão sensacional...
– Os Grimm? Não, não foram eles – intrometeu-se dona Bela-Fera. – Não
terá sido Andersen?
– Hans Christian Andersen, o sapateiro? Não, vai ser foi Esopo.
– Muito antigo. Na certa, foi La Fontaine.
– Talvez tenha sido Lobato...
- O do Sítio do Picapau Amarelo? Já estive lá. Não foi ele, não (BANDEIRA,
2009, p. 31).

Como ninguém sabia ao certo quem havia escrito a história


de Feiurinha, Branca Encantado afirma: “– Descobrir onde foi parar
a Feiurinha não é tarefa para nós, meninas – resolveu ela, tocando a
campainha de chamar lacaio. – Isso é trabalho para quem nos inventa.
É trabalho para um Autor” (BANDEIRA, 2009, p. 31, grifo nosso). É
assim que Caio, o lacaio, procura por um autor de contos de fadas. Ao
não localizar Perrault, nem os Irmãos Grimm, acaba no apartamento
do narrador- personagem-escritor.
Consoante podemos verificar, as princesas e Chapeuzinho sa-
bem que são personagens, que os leitores ficam conhecendo suas
histórias por meio dos livros, quem são os autores de contos de
fadas. Dessa maneira, são personagens autoconscientes por meio
das quais são levantadas reflexões acerca da composição literária.
Através de suas falas, colocam a nu seu status mimético, isto é, elas

ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 141
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
se expõem como representações fictícias de pessoas, de personali-
dades e tipos sociais e que fazem parte de um conjunto de artifí-
cios que corroboram a construção de um enredo. A fala de Branca
Encantado: “– Isso é trabalho para quem nos inventa. É trabalho
para um Autor” (BANDEIRA, 2009, p. 31), revela ao leitor que ele
está diante de uma história inventada, de personagens fictícias, que-
brando o quadro de ilusão referencial. Neste sentido, “na narrativa
metaficcional há uma visão lúcida do caráter fictício da narração e
uma ruptura com as formas tradicionais da narrativa realista, pois a
noção de ficcionalidade é questionada no corpo da própria narrati-
va” (CAMARGO, 2012, p. 59).
No início do capítulo “Zero e cinco sextos”, o comentário do
narrador-personagem escritor: “E lá estava eu com um grande proble-
ma nas mãos. Para um autor, criar uma personagem faz parte do ofício,
mas descobrir uma heroína desaparecida dos reinos encantados era um
desafio que eu não sabia como enfrentar” (BANDEIRA, 2009, p. 32,
grifo nosso), provoca uma reflexão sobre o estatuto do escritor e a re-
presentação ficcional, uma vez que evidencia a atividade ficcional, in-
ventiva, que o autor empreende para criar/compor uma personagem e,
consequentemente, a narrativa. De acordo com Flávio Pereira Camargo
(2012, p. 49), uma das funções do narrador na narrativa metaficcional é
desnudar as engrenagens do processo de construção da obra ficcional e
de seus elementos constitutivos, explicitando ao leitor que se trata, na
verdade, de uma encenação, de uma representação ficcional, de modo
que a consciência da escritura como artesanato, como processo ficcional é
desvelada em um jogo de espelhamento.

Ao saber a intenção de Caio, o narrador-personagem-escritor


revela que não conhecia a história de Feiurinha: “Só que eu não me
lembrava da história de Feiurinha. Não me lembrava nem de ter ou-
vido falar nessa princesa antes de receber a visita vermelha e amarela
de Caio, o lacaio. E olhe que eu pensava já ter lido todos os contos
de fada, fora os que me contava minha falecida avó” (BANDEIRA,
2009, p. 32). Por essa razão, empreende uma busca por notícias de
Feiurinha. Ao pesquisar a respeito desta princesa em livros de bi-

142 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


bliotecas e de coleções particulares, o narrador-personagem escritor
nada encontra. Assim, escreve para escritores, conhecidos e desco-
nhecidos, para folcloristas, bibliotecários e historiadores de todo o
mundo, a fim de descobrir algo sobre a história de Feiurinha. No
entanto, a resposta de todos é a mesma:
– Uglylili? Never hear about...
– Feíta? Jamás oí hablar...
– Laidette? Je n’ai jamais entendu parler de ça.
– Brutezzina? Non ne ho mai sentito parlare...
– Feiurinha? Nunca ouvi falar... (BANDEIRA, 2009, p. 33).

O narrador-personagem-escritor e Caio ainda não tinham en-


contrado nada a respeito da história de Feiurinha, quando Branca, não
aguentando esperar uma resposta, aparece no apartamento do Autor.
Este, que até então considerava Caio um louco, surpreende-se e se en-
canta ao ver a princesa: “Meu queixo caiu [...] aquela só poderia ser,
sem sombra de dúvida, a verdadeira Branca de Neve, só que um pou-
quinho mais velha e mais grávida” (BANDEIRA, 2009, p. 33). A prin-
cesa pergunta ao narrador-personagem-escritor se ele encontrra Feiuri-
nha e se enfurece quando este diz não ter nenhuma pista. Quando estão
conversando, entram pela sala do Autor as princesas e Chapeuzinho:
“Todas elas! Todas as heroínas da minha infância, em carne e osso! Eu
as reconheci imediatamente” (BANDEIRA, 2009, p. 35).
No capítulo “Zero, cinco sextos e tanto”, as princesas e Chapeu-
zinho se instalam no apartamento do narrador-personagem-escritor,
que diz para Jerusa, sua emprega, que elas eram suas primas do inte-
rior. Para tentar resolver o “problema” daquelas personagens, o narra-
dor-personagem-escritor continua buscando por pistas de Feiurinha,
procurando vovós contadoras de histórias e pesquisando em arquivos.
Um dia, chega um telegrama de um “eminente especialista de Ber-
lim”, que afirma não conhecer nada a respeito de Feiurinha. Diante
de mais uma resposta negativa, Branca Encantado começa a chorar.
O Autor tenta consolá-la, dizendo que encontraria Feiurinha. A prin-
cesa, que está inconsolável, declara que também desaparecerá. O nar-
rador-personagem-escritor diz:

ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 143
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
– Nada disso, Branca de Neve! Você jamais desaparecerá. Você é eterna como
o Sol, como a Luz! Sua história foi escrita e reescrita pelos maiores artistas da
humanidade e é lida todos os dias por milhões de crianças no mundo todo, o
tempo todo. Você está viva nas risadas das crianças, nas narrativas das vovós, na
memória de adultos como eu, que jamais negaremos a beleza da sua história!
(BANDEIRA, 2009, p. 40, grifo nosso).

Após a fala do narrador-personagem-escritor, Branca Encantado


olha para ele e eles compreendem o enigma. As princesas e Chapeu-
zinho não desapareceriam, pois suas histórias haviam sido contadas e
recontadas por escritores de diversas partes do mundo e eram lidas por
diversas crianças. Assim, estava “[...] desvendado o mistério. Feiurinha
desaparecera porque ninguém havia escrito sua história, porque suas
aventuras não se eternizavam através dos séculos nas risadas e nas emo-
ções das crianças” (BANDEIRA, 2009, p. 41).
Tendo descoberto o enigma, eles precisavam escrever a história
de Feiurinha. Mas, como escrevê-la se ninguém a conhecia? Quando
o Autor está com as princesas, pulando e dançando de felicidade, gri-
ta perguntando: “Onde está você, Feiurinha? Quem é você Princesa?”
(BANDEIRA, 2009, p. 41). Nesse momento, Jerusa entra na sala e diz:
– Feiurinha? O senhor também conhece a Feiurinha?
A estranha dança parou na mesma hora e nove pares de olhos voltaram-se
para Jerusa.
– Eh, que história boa, não é? – continuou ela, a sorrir. – Sempre foi
a minha preferida quando a minha avó reunia todo mundo pra contar
histórias ao pé do fogo... (BANDEIRA, 2009, p. 41, grifo nosso).

No capítulo “Zero, quase um”, ao descobrirem que Jerusa conhe-


ce a história de Feiurinha, todos esperam que aquela senhora de seten-
ta anos a conte. Como Jerusa se mostra, inicialmente, envergonhada,
Branca Encantado se põe a seus pés, pega as suas mãos e as beija (Figura
1), pedindo-lhe: “– Jerusa, por favor, conte pra nós. Só você pode tra-
zer Feiurinha de volta” (BANDEIRA, 2009, p. 42). A partir daquele
pedido, Jerusa entende que “Branca de Neve, Feiurinha e tantas outras
faziam parte de si mesma como seu próprio sangue. Eram seu passado,
sua cultura. Compreendeu que elas também faziam parte do sangue de

144 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


todos, ricos e pobres, negros e brancos, nascidos e por nascer” (BAN-
DEIRA, 2009, p. 42). Assim, Jerusa começa a contar: – A história de
Feiurinha é dos antigos. Quem me contou, há mais de sessenta anos,
foi a minha avó, que também ouviu da avó dela. Era a minha história
preferida, com perdão das princesas (BANDEIRA, 2009, p. 42).

Figura 1 – Jerusa, as princesas e


Chapeuzinho Vermelho

Fonte: BANDEIRA, Pedro. O


fantástico mistério de Feiurinha. 3. ed.
São Paulo:Moderna, 2009. p. 43.

No capítulo “Zero, mais que quase um”, temos a terceira his-


tória, que consiste no conto de Feiurinha: “Era uma vez, há muitos e
muitos anos, uma menina muito linda que acabara de nascer numa
casa muito pobre, mas cheia de amor e felicidade” (BANDEIRA,
2009, p. 44). Seus pais ainda estavam escolhendo qual nome dar à
criança, quando bateram à porta. O pai pensou que eram visitas para
a recém-nascida. Quando abriu a porta, viu “três mulheres muito feias
e muito malvestidas que pediram para entrar e conhecer a menina”
(BANDEIRA, 2009, p. 44). O pai deixou as mulheres entrarem e
elas, que eram as bruxam Ruim, Malvada e Piorainda, depois de pa-
ralisarem, com uma praga de bruxaria, os pais da menina a raptaram.
As bruxas levaram Feiurinha para morar com elas e com sua so-
brinha Belezinha, “que era o bebê mais feio do mundo” (BANDEIRA,

ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 145
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
2009, p. 46). Assim que Feiurinha cresceu, as bruxas além de deixarem o
trabalho da velha casa para ela a atormentavam dizendo que ela era feia.
As bruxas falavam de seus dentes, de seus cabelos louros, de seu nariz:
“– É isso: você é mesmo um horror! / – Uma vergonha! Uma feiura! / –
Feiurinha! Feiurinha! (BANDEIRA, 2009, p. 48). Feiurinha vivia infeliz,
principalmente, pois não tinha nenhuma verruga como as quatro bruxas:
“Ah, a verruga! Era a razão maior do complexo de feiura de Feiurinha. A
bruxinha e as três bruxas madrastas tinham enormes verrugas cabeludas
na ponta do nariz e até no queixo, enquanto ela... Coitadinha! Não tinha
uma só pinta na pele!” (BANDEIRA, 2009, p. 48).
Feiurinha somente tinha momentos de paz, quando as quatro bru-
xas saíam e ela ficava com o bode, que era seu único amigo. Um dia,
após as quatro saírem, Feiurinha foi buscar água no rio. Ao ver refletida a
sua imagem, a moça ficou triste, por não ter nenhuma verruga. Por essa
razão, começou a tirar a roupa e a procurar em todas as partes do corpo.
Quando ficou completamente nua, a maldição do bode foi desfeita e ele
se transformou em um príncipe “horroroso”. Ao tentar fugir do rapaz,
ele a agarrou pela cintura e lhe disse que a sua beleza o havia libertado.
Feiurinha, inicialmente, não acreditou, pois pensava que era horrorosa.
O príncipe, então, explicou que as bruxas a haviam feito pensar o con-
trário, ou seja, que o feio era bonito e que o bonito era feiro. Ele também
lhe disse que iria até seu reino retomar sua fortuna e que voltaria para que
eles se casassem e vivessem felizes para sempre.
Naquela noite, quando serviu o jantar para as buxas, Feiurinha não se
preocupou com as provocações. Por causa disso, Ruim, Malvada, Piorainda
e Belezinha desconfiaram. Quando constataram que o bode havia sumido,
perceberam o que havia acontecido. Desse modo, disseram à Feiurinha que
sabiam que ela o havia desencantado, que era isso que elas queriam e que
elas eram fadas. Iludida, Feiurinha lhes contou que iria se casar com o prín-
cipe. As bruxas lhe deram de presente de casamento uma pele de urso. Ao
colocá-la, Feiurinha se transformou em uma bruxa horrorosa.
Quase no mesmo instante, o príncipe retornou, procurando por
Feiurinha. Quando a menina transformada em bruxa se apresentou como
Feiurinha, as outras bruxas também o fizeram. Colérico, o príncipe disse

146 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


que cortaria a cabeça daquelas que estavam mentindo. Naquele momen-
to, Feiurinha pediu ao amado que poupasse a vida das bruxas, que eram
malvadas, mas que a tinham criado. O Príncipe Encantado reconheceu
Feiurinha e a livrou do feitiço, cortando a pele de urso com sua espada de
prata. Após cortar a pele, estourou nos céus um trovão, o qual foi seguido
por um relâmpago. Este soltou quatro raios sobre as bruxas, que foram
transformadas em quatro cogumelos venenosos.
Feiurinha, ao ser levada para o Reino Encantado, encontrou-se
com seus pais, que já estavam de idade, mas que ainda acreditavam que
encontrariam a filha.
Quanto à Feiurinha e ao Príncipe, eles se casaram e viveram...
– Felizes para sempre! – gritei feliz. – Que maravilha! Agora já posso escrever
a história da Feiurinha. Agora, quem sabe, poderei fazê-la reaparecer. Quantas
histórias lindas, inventadas e contadas ao pé do fogo em noites de inverno por
vovós cheias de imaginação, perderam-se, foram esquecidas, por falta de alguém
que as escrevesse. E, mesmo escritas, por falta de alguém que as lesse! Será que,
se eu escrever a história da Feiurinha, alguém vai ler? E será que muitos outros
vão continuar lendo para sempre, para que Feiurinha não desapareça nunca
mais? Preciso caprichar... (BANDEIRA, 2009, p. 59, grifo nosso).

O narrador-personagem-escritor não deixa Jerusa terminar a his-


tória, ele a completa, uma vez que conhece o seu fim: “E viveram felizes
para sempre...” É assim que muitas histórias finalizam. É assim que as
histórias das princesas e de Chapeuzinho terminam. É exatamente esse
assunto levantado pelo Autor, como vimos, no capítulo “Zero”, em que
ao discutir os finais felizes, discute a própria Literatura. Nas três narrati-
vas que se entrecruzam para formar a obra que estamos lendo, é desvelada
a constituição e institucionalização sistêmica da literatura. Desse modo,
temos a constituição diacrônica do literário, que remonta transformações
historicamente estabelecidas pelas quais passou a expressão artística da
literatura, em que, saindo de um plano oral, adquire materialidade na
escrita e produz outras possibilidades expressivas além do texto falado.
Ademais, é retomado o esquema de comunicação literário instituciona-
lizado e formado pelo sistema autor, obra e público, ou, considerando a
oralidade, contador, história e ouvinte, reforçando a ideia da necessidade

ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 147
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
das três instâncias para a efetivação da mensagem literária e para a legiti-
mação ou permanência da circulação do texto ao longo dos tempos.
Após ouvir a narrativa de Jerusa, o narrador-personagem-escritor
se alegra, pois tem o material coletado para escrever e publicar a história
de Feiurinha e fazê-la reaparecer. Como os recolhedores de contos de
fadas mencionados na obra de Bandeira – Charles Perrault, Jacob e Wi-
lhelm Grimm, Hans Christian Andersen –, para (re)escrever seu conto, o
narrador-personagem-escritor coleta material da tradição oral. De acordo
com Carlos Aldemir Farias (2011, p. 19), “[f ]oi graças à tradição oral que
muitas histórias se perpetuaram, sendo transmitidas de uma geração para
outra”. Neste sentido, Jerusa simboliza a tradição oral e, ao (re)contar a
história de Feiurinha, perpetua a narrativa desta.
Na narrativa de Bandeira, Jerusa é uma senhora de setenta anos,
que tinha ouvido histórias contadas por sua avó, que também ouvira da
avó dela, o que garante a preservação da narrativa de Feiurinha e, con-
sequentemente, da memória da sociedade da qual faz parte. Os anciãos,
em algumas comunidades da África, por exemplo, são os responsáveis
por propagar os saberes e os ensinamentos do seu povo. Por causa disso,
Amadou Hampâté Bâ (2003) salienta que: “[n]a África, cada ancião que
morre é uma biblioteca que se queima”. Esta frase do escritor malinês
evidencia a importância da tradição oral.
Jerusa representa, igualmente, os contadores de histórias, responsá-
veis por guardar a memória do seu povo. Nesse caso, ela guarda, mantém
viva, a narrativa de Feiurinha. Por esse motivo, Branca Encantado se põe
aos pés de Jerusa e lhe pede que conte: “– Jerusa, por favor, conte pra nós.
Só você pode trazer Feiurinha de volta” (BANDEIRA, 2009, p. 42). De
acordo com Carla de Lima e Souza Campos e Vanessa Gomes Franca
(2017, p. 50): “Contar histórias é fundamental para a permanência da
humanidade. Contadores são o acervo vivo de um povo, carregando em
si lendas, causos, acontecimentos, canções, êxitos e fracassos [...]”. Quan-
do o contador não conta suas histórias, muitas delas se perdem, como
quase aconteceu com a de Feiurinha.
Através do ato de contar, Jerusa retrata as mulheres contadoras de
histórias. As mulheres sempre contaram. “Por meio de suas vozes e de

148 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


suas memórias, contando e recontado século após século, mães, avós,
cuidadoras, escravas, professoras foram capazes de manter viva a me-
mória coletiva de diversos povos” (CARVALHO; SOUZA; FRANCA,
2018, p. 11). Vemos essa relação da mulher com a contação de histórias
no frontispício do livro Histórias ou narrativas do tempo passado com mo-
ralidades, de Charles Perrault, publicado em 1697, também conhecido
como Contos da Mamãe Gansa, em que há uma contadora de histórias
que está rodeada por crianças. Para a escritora Marina Colasanti (2004,
p. 234, grifo nosso), os
[...] grandes contadores de contos de fadas sempre foram mulheres.
Mulheres contaram as histórias que os irmãos Grimm registraram.
Mulheres foram também as grandes transmissoras dos contos italianos,
como reconheceu Ítalo Calvino ao fazer a coletânea desse folclore. Uma
mulher, que sabia de cor 11 mil versos do Kalevala, poema nacional da
Finlândia, contou-os a Sibelius, que neles se inspirou. Mulheres foram
as pacientes do pai de Oscar Wilde, médico em Dublin, que costumava
pedir-lhes a narração de uma história, como forma de pagamento. E
uma mulher, sua esposa Speranza, as redigiu. Mulheres narram enquanto
correm com os lobos. Minha mãe me contou histórias, e eu contei histórias
para minhas filhas. A bisavó contou à avó, que contou à mãe, que contou
à filha, dessa maneira Agatuzza Messina alimentou, com as histórias que
havia recebido, o grande folclorista siciliano Giuseppe Pitré. E assim a
perder de vista, ao redor de tantas fogueiras, em tantas noites de estábulos
e cozinhas, ao pé de tantas camas de meninos e de adultos, vozes femininas
repetiram os antigos contos.

No conto “Com sua voz de mulher”, Marina Colasanti também


fala a respeito da primordialidade da contação feminina. No texto co-
lasantiano, temos a história de um deus que era responsável pela felici-
dade dos habitantes de uma cidade. Assim, ele cuidava para que nada
lhes faltasse. Apesar disso, o povo estava infeliz. Por esse motivo, o deus
resolveu ir até lá. Para descer e estar entre os moradores da cidade, o
deus selecionou a pele “mais lisa e macia, fechou-se bem dentro dela,
cobriu-se com uma túnica. E desceu” (COLASANTI, 2015, p. 230).
A pele escolhida pelo deus era de mulher, o que fez com que ninguém
acreditasse nele: “Fosse deus, teria vindo como guerreiro, herói, ou ho-

ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 149
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
mem poderoso. Fosse deus, apareceria como leão, touro bravio ou águia
lançando-se das nuvens. Até o crocodilo e a serpente poderiam abrigar
deus em seu corpo” (COLASANTI, 2015, p. 230-231).
Devido a descrença em sua identidade, o deus-mulher procura
por um emprego, conseguindo um trabalho para auxiliar nas atividades
domésticas de uma casa. Ali, a esposa, o marido e filhos cumpriam suas
“tarefas”. À noite, a família se reunia no estábulo, para aproveitar o ca-
lor dos animais e desenvolver algumas atividades. No entanto, entre eles
“ninguém falava”. À vista daquela situação:
Até mesmo o deus, de fuso na mão, se entediava. E uma noite, não
suportando a mesmice dos gestos e do silêncio, abriu a boca e começou a
contar.
Contou uma história que se havia passado no seu mundo, aquele mundo
onde tudo era possível e onde viver não obedecia regras pequenas como
as dos homens. Era uma longa história, uma história como ninguém
nunca havia contado naquela cidade onde não se contavam histórias. E as
mulheres ouviram de olhos bem abertos, enquanto o fio saía fino e delicado
entre seus dedos. E os homens ouviram esquecidos de suas ferramentas. E
o menino que chorava adormeceu no colo da mãe. E as outras crianças
vieram sentar-se aos pés do deus. E ninguém falou nada enquanto ele
contava, embora em seus corações todos estivessem contando com ele.
A noite foi curta aquela noite. [...]. (COLASANTI, 2015, p. 232, grifo nosso).

Durante várias noites, o deus-mulher narrou histórias para aque-


la família e para outras que, quando souberam da contação, apareceram
para ouvir. As histórias deram ânimo aos habitantes daquela cidade.
Desse modo, um dia, uma moradora começou a repetir as histórias
que havia escutado. “Repetir exatamente, não. Aqui e ali acrescentava
coisas, tirava outras e cada história, sendo a mesma, era outra. Mais que
contar, recontava” (COLASANTI, 2015, p. 233, grifo nosso). Também
um rapaz começou a contar e a recontar as histórias. Com o tempo,
ninguém mais sabia quem havia contado primeiro. Quanto ao deus-
-mulher, ele havia partido com suas histórias.
Ao comentar o conto colasantiano, Edilson Alves de Souza (2015,
p. 3310, grifo do autor), salienta que a “palavra trouxe uma nova dimen-
são de vivência [...] para aquela sociedade [...] A palavra funciona como

150 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


fonte de renovação. As esperanças foram renovadas pela ação da palavra
(‘literária’)”. Como a palavra revivifica, a história de Feiurinha é renovada
quando Jerusa a (re)conta.
A narrativa contada por Jerusa possui a estrutura dos contos
tradicionais. Inicia-se com a frase de abertura: “Era uma vez...” e fi-
naliza com “[..] eles se casaram e viveram...”. Em relação às persona-
gens dos contos feéricos, como vimos, geralmente, os príncipes atuam
como heróis, que resgatam suas princesas. Estas, são caracterizadas
pela beleza, bondade e, muitas vezes, pela passividade. No conto de
Feiurinha, o Príncipe Encantado é retratado como um rapaz “[a]lto,
forte, musculoso, cheio de dentes brancos na boca, de olhos verdes e
penetrantes como a luz do amanhecer” (BANDEIRA, 2009, p. 51).
Além disso, ele é um herói destemido que quebra o feitiço e resgata a
princesa do poder das bruxas. Feiurinha é descrita como linda, pos-
suindo os cabelos longos e louros, a pele rosada e olhos azuis; ingênua,
pois acreditava no que as bruxas lhe falavam; generosa, visto que pe-
diu ao príncipe que poupasse a vida das bruxas.
Outro elemento das narrativas tradicionais que é retomado no
conto de Feiurinha é a metamorfose. Segundo Coelho (2000, p. 177,
grifo da autora), “[p]ríncipes ou princesas, pobres ou plebeus podem
ser encantados por algum ente maléfico, transformando-se, geralmen-
te, em animais (leão, rã, corvo, cisne, pássaro, pomba...)”. No conto,
o Príncipe Encantado foi metamorfoseado em bode pelas bruxas. O
feitiço foi quebrado pela beleza de Feiurinha, quando está ficou nua
na frente do príncipe. Esse evento está em consonância com os contos
tradicionais, tendo em vista que em tais histórias, também conhecidas
como ciclo do noivo-animal, “[...] comumente, é o homem quem se
encontra em estado animalesco ou indomado. Em consequência disso,
são as mulheres que conseguem por fim ao encantamento que é quebra-
do” (FRANCA; SOUZA; DIAS; FARIAS, 2009, p. 99). No decorrer
da narrativa, Feiurinha é metamorfoseada e o feitiço é quebrado pelo
príncipe. Eles então se casam e vivem felizes para sempre.
Para que uma narrativa seja imortalizada é preciso, igualmente,
de um receptor, um ouvinte. As “[...] narrativas ouvidas, repetidas,

ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 151
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
contadas e cantadas, imortalizam-se no interior de cada ouvinte inde-
pendente da época” (MORIKI; FRANCA, 2017, p. 175). Para narrar,
todo contador precisou ouvir histórias de seus avós, pais, tios, profes-
sores, conhecidos e desconhecidos. Desse modo, “[...] ao ouvinte é
facultado o poder de ‘guardião das histórias’. É do ouvinte o mérito
da perpetuação das histórias ao longo da História. Caso se perdesse
o público ouvinte, perder-se-iam também as narrativas, já que não
seriam guardadas nem tampouco transmitidas” (CAMPOS, 2015, p.
29-30, grifo da autora).
Além de tratar a respeito da tradição oral, a obra de Bandeira
aborda a tradição escrita, evidenciando a importância do escritor, do
livro e do leitor e, consequentemente, da leitura, para a Literatura. As-
sim, salienta a necessidade da escrita das histórias, para que elas não se
percam. O narrador-personagem-escritor, após Jerusa contar a narrativa
de Feiurinha, comenta sobre as diversas histórias que foram contadas
e recontadas, mas, por não terem sido escritas e, consequentemente,
lidas, acabaram caindo no esquecimento: “Quantas histórias lindas, in-
ventadas e contadas [...] por vovós cheias de imaginação, perderam-se,
foram esquecidas, por falta de alguém que as escrevesse. E, mesmo es-
critas, por falta de alguém que as lesse! Será que, se eu escrever a história
da Feiurinha, alguém vai ler?” (BANDEIRA, 2009, p. 59).
Desse modo, as histórias precisam ser escritas, lidas e relidas, para
serem conservadas, tal como ocorreu com as narrativas de Branca de
Neve, Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Rapunzel, A Bela Adormeci-
da, A Moura Torta e A Bela e a Fera. Estes contos são contados e recon-
tados até hoje, como Pedro Bandeira faz, pois Charles Perrault, Jean-
ne-Marie Leprince de Beaumont, os irmãos Grimm, Hans Christian
Andersen, e diversos outros escritores, coletaram histórias que faziam
parte da tradição oral e as publicaram em livro. Neste sentido,
a oralidade funda a necessidade da escrita, do código impresso. Seja na
areia, no barro ou em placas de argila cozida, os relatos orais transmitidos
de pessoa para pessoa, de geração para geração e de povo para povo,
ganham outra dimensão e sentido quando “eternizadas” no registro da
escrita (CAVALCANTI, 2004, p. 28, grifo da autora)

152 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


A obra Histórias ou narrativas do tempo passado com moralidades,
do escritor francês Charles Perrault, após ser publicada, em 1697, ori-
ginou o “primeiro surto de literatura infantil” e promoveu “[...] uma
preferência inaudita pelo conto de fadas, literarizando uma produção
até aquele momento de natureza popular e circulação oral, adotada do-
ravante como principal leitura infantil” (LAJOLO; ZILBERMAN,
2007, p. 15, grifo nosso). Foi a partir da publicação de Perrault, e das
reescrituras de outros autores, que os contos “A Bela Adormecida”,
“Chapeuzinho Vermelho”, “Barba Azul”, “O Pequeno Polegar”, “As
fadas”, “Riquet o Topetudo” e “O Mestre Gato ou O Gato de Botas”
chegaram até nós como literatura. Para tanto, eles precisaram ser es-
critos, impressos e lidos.
De acordo com Marisa Lajolo (1996, p. 16): “A obra literá-
ria é um objeto social. Para que ela exista, é preciso que alguém a
escreva e que outro alguém a leia. Ela só existe enquanto obra neste
intercâmbio social”. É justamente essa relação entre escritor, livro e
leitores que Bandeira enfatiza: “Será que, se eu escrever a história da
Feiurinha, alguém vai ler? E será que muitos outros vão continuar
lendo para sempre, para que Feiurinha não desapareça nunca mais?”
(BANDEIRA, 2009, p. 59). Assim, essas três instâncias (escritor, livro
e leitores) são substanciais para que as histórias não desapareçam, para
que a literatura exista.
Todavia, não basta que um livro seja publicado, para que ele se
eternize. Segundo André Lefevere (1985), o valor intrínseco de um tex-
to literário, muitas vezes, não garante sua sobrevivência. Para que isso
aconteça, são necessárias as reescrituras, tais como: traduções, adap-
tações cinematográficas e teatrais, histórias literárias, antologias e en-
saios críticos. O texto de Bandeira, como vimos, é uma reescritura dos
contos tradicionais. Ele reinventa, renova os contos das princesas e de
Chapeuzinho, por isso contribui para a existência e permanência deles.
No capítulo “Zero, quase caindo no um”, o narrador-persona-
gem-escritor, retomando a primeira história, informa que Caio e as
heroínas já haviam partido, estando seguros de que seria capaz de fa-
zer Feiurinha reaparecer, e que tinham lhe deixado um presente: “[...]

ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 153
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
como não tinham uma pena de ganso, como as que os escritores antigos
usavam para escrever suas histórias, deram-se a pena de um velho cisne,
que outrora foi o Patinho Feio” (BANDEIRA, 2009, p. 60). Como um
autor moderno, o narrador comenta que guardará o presente e utilizará
a máquina para escrever a história de Feiurinha.
Na página 62 do livro de Bandeira (Figura 2), vemos uma parede
com dez quadros. São retratos/pinturas das personagens da história de
Bandeira: Branca Encantado, Chapeuzinho Vermelho, Cinderela En-
cantado, Rapunzel Encantado, Bela Adormecida Encantado, Rosaflor
Della Moura Torta Encantado, Bela-Fera Encantado, Feiurinha, Caio e
Jerusa. Em frente aos quadros, uma mesa com uma máquina de escre-
ver. Nesta, uma folha branca com alguns escritos. Na parte superior te-
mos: “Capítulo Um”. Logo abaixo há o texto: “Era uma vez, há muitos
e muitos anos, uma linda menina que foi raptada ainda no berço por
três bruxas malvadíssimas...” (BANDEIRA, 2009, p. 62).

Figura 2 – Página do livro O


fantástico mistério de Feiurinha.

Fonte: BANDEIRA,
Pedro. O fantástico
mistério de Feiurinha. 3.
ed. São Paulo:Moderna,
2009. p. 62.

O narrador-personagem-escritor está escrevendo a história de


Feiurinha. Desse modo, a imagem da página em que há o início do
primeiro capítulo configura a mimesis do produto. Nesta, “[...] eviden-

154 ENSAIOS SOBRE LITERATURA E METAFICÇÃO


cia-se o resultado da atividade mimética representado na narrativa. O
leitor contempla a invenção ficcional pronta sem, necessariamente, o
deslinde do texto como artefato literário em construção” (FRANCA;
SOUZA; CAMARGO, 2016, p. 89). Ao lermos o texto datilografa-
do pelo escritor, notamos algumas diferenças entre a “sua” narrativa
e aquela que fora contada por Jerusa, que se inicia com: “Era uma
vez, há muitos e muitos anos, uma menina muito linda que acabara
de nascer numa casa muito pobre, mas cheia de amor e felicidade”
(BANDEIRA, 2009, p. 44). O escritor elimina a parte do nascimento
da menina e já menciona o seu rapto. As alterações realizadas pelo
narrador-personagem-escritor podem representar os processos que os
recolhedores dos contos tradicionais empreenderam para transpor a
narrativa da tradição oral para a escrita. Desse modo, mais uma vez,
são desnudados ao leitor os procedimentos de construção ficcional.
Na página 62, o narrador-personagem-escritor diz: “Bom, os
lápis já estão apontados, os tipos da máquina estão limpos e há papel
de sobra na gaveta. Vou dar um pulinho até a cozinha [...] volto já,
já, pra continuar a história de Feiurinha” (BANDEIRA, 2009, p. 62).
Há, assim, uma volta ao início da narrativa, ao primeiro capítulo,
quando o narrador-personagem-escritor estava sem inspiração e foi
visitado por Caio, o lacaio de Branca Encantado. Ele afirma que logo
estará de volta para continuar o conto de Feiurinha. Todavia, como
sabemos, a história desta princesa já foi contada/escrita.

Considerações finais
Ao iniciar sua obra com o capítulo “Zero” e continuar com os
capítulos “Zero e Meio”, “Zero e três quartos”, “Zero, três quartos
e mais um pouquinho”, “Zero, três quartos e outro pouquinho”,
“Zero e cinco sextos”, “Zero, cinco sextos e tanto”, “Zero, quase
um”, “Zero, mais que quase um”, “Zero, quase caindo no um”, até
chegar ao “Capítulo Um”, Pedro Bandeira desvela ao leitor que,
antes do primeiro capítulo de um livro, antes de se publicar uma
história, são necessários alguns elementos, como, por exemplo, o

ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 155
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
próprio escritor. É por essa razão que Caio, o lacaio de Branca En-
cantado, aparece na casa do narrador-personagem-escritor, para que
ele escreva a história de Feiurinha, que havia desaparecido. O seu
desaparecimento significava que o encanto da felicidade eterna das
outras heroínas dos contos tradicionais também seria quebrado e
que, consequentemente, elas poderiam sumir.
Como o narrador-personagem-escritor não conhecia a narrativa de
Feiurinha, inicia-se uma busca por alguém (folcloristas, bibliotecários e
historiadores) que a soubesse. Descobre-se, então, que Jerusa, sua empre-
gada, sabia a história de Feiurinha por tê-la ouvida de sua avó, que ouviu
da avó dela, o que retrata a tradição oral dos contos clássicos.
Após a coleta do conto da tradição oral, o narrador-personagem-
-escritor escreve a história de Feiurinha. Mesmo assim, sua existência
não está assegurada, uma vez que, se sua narrativa não for lida, ela não
existirá. Ademais, é preciso que ela seja contada, para que não caia no
esquecimento. De acordo com Zilberman (2014, p. 58):
Na companhia das personagens tradicionais dos contos de fadas, como
Branca de Neve ou Chapeuzinho Vermelho, Feiurinha representa
a memória do passado que, mesmo filtrado pela desmitificação e
atualização, igualmente presentes na narrativa de Bandeira, precisa ser
mantido, porque constitui a tradição e a história a que pertence o leitor.

Assim, como vimos, Pedro Bandeira, em seu O fantástico mistério


de Feiurinha, retoma alguns dos contos de fadas mais conhecidos e, por
meio deles, num exercício metaficcional que exibe uma autoconsciên-
cia dos procedimentos da criação literária, comenta a própria literatura,
evidenciado sua constituição diacrônica desde a tradição oral (contador,
história e ouvinte) até à tradição escrita (escritor, livro e leitor).

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PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
SOBRE OS AUTORES

Edilson Alves de Souza


Doutorando e Mestre em Letras e Linguística (Estudos Literários)
pela Universidade Federal de Goiás. Atualmente, é docente no Curso
de Letras, da Universidade Estadual de Goiás (Câmpus Campos Belos).
É membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Literaturas de Língua
Portuguesa/GEPELLP (UEG) e do Grupo de Pesquisa “Estudos sobre
a narrativa brasileira contemporânea” (CNPq/UFG). Em seus estudos
acadêmicos, tem atuado na área de Literatura e Teoria Literária, dando
ênfase nos seguintes temas: Bestiário Medieval; Literatura Infantil e Juve-
nil; Narrativas feéricas e Mitologia; e Metaficção.
E-mail: edilson.paceros@hotmail.com

Flávio Pereira Camargo


Professor Adjunto de Literatura Brasileira da Faculdade de Le-
tras, da Universidade Federal de Goiás, com atuação na Graduação e
no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Suas pesquisas
se concentram em estudos sobre a narrativa brasileira contemporânea,
atuando principalmente nos seguintes temas: narrativa metaficcional, li-
teratura e homoerotismo, literatura e experiência urbana, representação
e autorrepresentação de grupos marginalizados na literatura. Organizou
vários livros sobre literatura brasileira contemporânea, e sobre literatura
e homoerotismo, além de ter inúmeros artigos publicados em periódicos
brasileiros e internacionais. É líder do Grupo de Pesquisa “Estudos sobre
a narrativa brasileira contemporânea” (CNPq/UFG) e membro do GT
Homocultura e Linguagens, vinculado à ANPOLL.
E-mail: camargolitera@gmail.com

161
Paulo Alberto da Silva Sales
Doutor em Letras e Linguística – Estudos Literários – pela Univer-
sidade Federal de Goiás. Professor do Instituto Federal Goiano, Câmpus
Hidrolândia. Atualmente desenvolve pesquisa de Pós-doutoramento em
Literatura Comparada em Língua Portuguesa sob supervisão da Profa.
Dra. Zênia de Faria.
E-mail: paulo.alberto@ifgoiano.edu.br

Rogério Fernandes dos Santos


É professor visitante na Universidade Federal Rural de Pernambu-
co, Unidade Acadêmica de Serra Talhada, UFRPE/UAST, onde leciona
Literatura Brasileira e Literaturas em expressão portuguesa. É Doutor e
Mestre em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma-
nas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), com dissertação e tese
sobre o romance machadiano. É Pós-doutor em Letras e Linguística (Es-
tudos Literários) pela Universidade Federal de Goiás, onde desenvolveu a
pesquisa “Esáu e Jacó e Memorial de Aires. Uma abordagem autorreflexi-
va”, sob supervisão do Prof. Flávio Pereira Camargo. É autor de diversos
ensaios e artigos sobre a autorreflexividade na prosa de Machado de Assis
e do volume de poemas Incensário (Pátua, 2011).
Email: r_fernandes_santos@yahoo.com.br

Vanessa Gomes Franca


Doutora e Mestre em Letras e Linguística (Estudos Literários),
pela UFG. Pós-doutoranda pela Faculdade de Letras da UFG, sob su-
pervisão do prof. Dr. Flávio Pereira Camargo. É professora de Literatu-
ra Infantil e Juvenil, Literatura Brasileira e Estágio Supervisionado em
Língua Portuguesa e Literaturas no Curso de Letras da UEG (Câmpus
Pires do Rio). Desenvolve pesquisas, principalmente, nos seguintes te-
mas: Literatura Infantil e Juvenil brasileira; Metaficção; Bestiário me-
dieval; Cronística dos séculos XVI e XVII; Narrativa brasileira moderna
e contemporânea; Tradução. É membro do Grupo de Pesquisa “Estu-

162
dos sobre a narrativa brasileira contemporânea” (CNPq/UFG).
E-mail: Francavg@hotmail.com

Vanessa Rita de Jesus Cruz


Doutoranda e Mestre em Letras: Ensino de Língua e Literatura
pela Universidade Federal do Tocantins/Câmpus Araguaína. É professora
efetiva de língua portuguesa e literatura da rede estadual de ensino do
Estado do Tocantins.
E-mail: vanessalinguagens@hotmail.com

Zênia de Faria
Professora Titular de Literatura Francesa da Universidade Federal
de Goiás (aposentada), onde ainda leciona Literatura Comparada e Teo-
ria Literária como membro efetivo do Programa de Pós-Graduação em
Letras e Linguística. Mestre em Letras Modernas/ Francês (U. de Limo-
ges/França). Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP).
Pós-doutorado no Centre d’Études et de Recherches Comparatistes, do
Instituto de Literatura Comparada da Universidade de Paris III — Sor-
bonne Nouvelle, onde também foi Professora Convidada, no Instituto
de Estudos Portugueses e Brasileiros. Entre suas publicações destacam-
-se traduções; ensaios, em particular, sobre intertextualidade, metaficção,
tradução, Mallarmé, João Cabral de Melo Neto e Osman Lins. É pesqui-
sadora do CNPq/FAPEG. Projetos em andamento: Interdisciplinaridade
e Ensino da Literatura; Metaficção e noções correlatas. É membro do GT
de “Literatura Comparada” da ANPOLL. Recebeu – do Governo Fran-
cês – a Comenda de Chevalier des Lettres et des Arts.
E-mail: zefirff@gmail.com

163
Título: Ensaios Sobre Literatura e Metaficção
Direção-Geral: Antón Corbacho Quintela
Assessoria Editorial e Gráfica: Igor Kopcak
José Vanderley Gouveia
Revalino Antonio de Freitas
Sigeo Kitatani Júnior
Divisão Administrativa: José Luiz Rocha
Divisão de Revisão: Maria Lucia Kons
Divisão de Editoração: Alberto Gabriel da Silva
Divisão Gráfica: Alberto Gabriel da Silva
Divisão de Impressão e Acabamento: Daniel Ancelmo da Silva

SOBRE O LIVRO
Tipologia: Adobe Garamond Pro, Aller, Brother 1816
Papel: Pólen 80 g/m² (miolo)
Supremo 250 g/m² (capa)
Número da públicação: 33
Tiragem: 300
Impressão e acabamento: Cegraf UFG

Câmpus Samambaia, Goiânia,


Goiás, Brasil - 74690-900
Fone: (62) 3521 - 1107
direcaocegrafufg@yahoo.com
www.cegraf.ufg.br

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