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LITERATURA
E METAFICÇÃO
2018
© 2018, Flávio Pereira Camargo, Vanessa Gomes Franca, Zênia de Faria (Organizadores)
164 p.
Inclui referências
ISBN: 978-85-93380-42-6
CDU 82.95:82.0/82.091
Ensaios sobre
LITERATURA
E METAFICÇÃO
2018
Universidade Federal de Goiás
Reitor
Edward Madureira Brasil
Vice-Reitora
Sandramara Matias Chaves
Pró-Reitora de Graduação
Flávia Aparecida de Oliveira
Pró-Reitor de Pós-Graduação
Laerte Guimarães Ferreira Júnior
Apresentação 9
9
brevemente o romance entre os diversos projetos romanescos do século
XIX, salientando o enunciado ficcional do conselheiro Aires como um
discurso crítico a esses projetos.
No capítulo seguinte, “Valha-me Deus: é preciso explicar
tudo”, Paulo Alberto da Silva Sales e Zênia de Faria tratam da dicção
metaficcional típica dos romances de Machado de Assis, sobretudo
das Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Memorial de Aires e de Esaú
e Jacó, que é retomada na narrativa Memorial do fim, de Haroldo Ma-
ranhão. Publicado em 1991, esse romance apresenta inúmeros mo-
mentos digressivos, vários comentários sobre o fazer literário, críticas
ao leitores distraídos, ironia e riso melancólico resgatado de Machado
de Assis e, agora, introjetado nele mesmo como personagem da tra-
ma, o “horror à linha reta” – expressão de José Paulo Paes ao tratar da
narrativa de Tristran Shandy – além dos comentários sobre as perso-
nagens machadianas (agora multifacetadas e que atendem por vários
nomes no enredo do Memorial do fim) transitam livremente no leito
de morte de Machado de Assis apresentado por Maranhão. Esses são
alguns dos aspectos discutidos por Sales e Faria que, também, des-
tacam aspectos da metaficção historiográfica presentes no romance,
principalmente de alguns períodos históricos do século XIX que são
resgatados e problematizados pela autorreferencialidade narrativa.
Por sua vez, Vanessa Rita de Jesus Cruz e Flávio Pereira Camargo,
em “Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas”: a metaficção
no romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, propõem um exame
dos procedimentos e das estratégias metaficcionais utilizadas por Clarice
Lispector na construção do romance A hora da estrela, procurando evi-
denciar o autoquestionamento estético e as suas implicações para a cons-
trução da narrativa e para a sua recepção por parte do leitor.
No capítulo subsequente, “A autorreflexidade na escrita da ficção
e da história”, Paulo Alberto da Silva Sales discute o problema da escri-
ta voltada sobre si mesma nos discursos da historiografia e da ficção. O
pensar no que se está escrevendo, a crítica à escrita que se está escrevendo
e a seleção do eventos na narração dos fatos se tornaram fundamentais à
escrita da história desde os Anais no início do século XX. Com a Nova
Apresentação 11
o leitor a descobrir, a construir, a descontruir e a reconstruir significados,
a preencher lacunas e a perceber comentários críticos, a partir do desnu-
damento de aspectos que compõem o texto literário, os autores destacam
O fantástico mistério de Feiurinha, do escritor paulista Pedro Bandeira.
Neste livro, o autor retoma alguns dos contos de fadas mais conheci-
dos e, por meio deles, num exercício metaficcional que exibe uma au-
toconsciência dos procedimentos da criação literária, comenta a própria
literatura, evidenciado sua constituição diacrônica desde a tradição oral
(contador, história e ouvinte) até à tradição escrita (escritor, livro e leitor).
Ante o exposto, Franca e Camargo apresentam uma análise da referida
obra tencionando evidenciar e discutir de que forma a narrativa em ques-
tão estabelece o jogo metaficcional, desvelando o seu status de artefato.
Dessa forma, este volume apresenta leituras com vieses críticos e
teóricos variados sobre as distintas configurações da metaficção ao longo
dos anos. Espera-se que o leitor encontre, nas páginas que seguem, mate-
rial de pesquisa para auxiliar as suas próprias reflexões sobre a questão da
metaficção e do personagem-escritor, além de contribuir para ampliar a
recepção crítica das obras em tela.
Flávio Pereira Camargo
Vanessa Gomes Franca
Zênia de Faria
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é o caso de Michael Boyd que faz a seguinte afirmação: “Porque eles não
procuram contar mais uma história, mas examinar o próprio processo
de contar histórias, os romances reflexivos devem ser vistos como obras
de teoria e crítica literária”1 (1983, p. 20).
Desde o último quartel do século XX, metaficção, narrativa me-
taficcional, ficção pós-moderna ou narrativa pós-moderna são os ter-
mos predominantemente utilizados para designar tais tipos de narrati-
vas. Geralmente, Dom Quixote de la Mancha2 é considerado o precursor
dos textos que seguem essa linhagem. Assim, desde o século XVII, e ao
longo dos séculos subsequentes, o aparecimento de narrativas voltadas
para si mesmas e que se autoquestionam tem sido uma constante, com
ênfase particular em alguns períodos, como ocorreu no início de século
XVII, na França, no século XVIII, sobretudo na França, Inglaterra e
Alemanha e como ocorreu num tempo bem mais próximo de nós, ao
longo do século XX, principalmente a partir dos anos 50. De fato, no
século passado, houve uma verdadeira proliferação desse tipo de texto
ficcional não só na Europa, particularmente no chamado Novo-roman-
ce francês — por volta dos anos cinquenta/sessenta — mas também
na América, particularmente nos Estados Unidos, nos anos sessenta/
setenta e, inclusive, na América Latina e no Brasil. Com relação às nar-
rativas metaficcionais publicadas a partir da segunda metade do século
XX, costuma-se falar de ficções pós-modernas, visto que a metaficcio-
nalidade, segundo alguns teóricos, seria uma das marcas de pós-mo-
dernidade em literatura. Aliás, é interessante observar que, para outros
teóricos, as narrativas voltadas sobre si mesmas e que contêm questio-
namentos sobre si mesmas no interior da própria obra são uma marca
de modernidade. Marthe Robert, por exemplo, em Roman des origines,
origines du roman (p.11), considera Dom Quixote o primeiro romance
moderno, exatamente por possuir tais c características.
No entanto, a teoria não acompanhou o desenvolvimento da prá-
tica, isto é, se, ao longo dos tempos modernos, os autores nunca deixa-
ram de produzir narrativas metaficcionais, ou de natureza semelhante, o
1 “Because they do not seek to tell another story but to examine the story-telling process itself, reflexive novels
must be seen as works of literary theory and criticism”. A tradução das citações aqui apresentadas são de nossa
autoria, salvo indicação em contrário.
2 A primeira parte desse romance foi publicada em 1605, e a segunda, em 1615.
Antirromance
De fato, ao longo dos tempos, pelo menos desde o século XVII, o
termo antirromance era utilizado para designar ficções que transgrediam
as normas artísticas ou que, por procedimentos diversos (particularmente
a paródia), criticavam a escrita romanesca no interior da própria obra fic-
cional. No entanto, o leque de transgressões dos chamados antirromances
e a multiplicidade de aspectos criticados pelas narrativas que recebiam tal
designação eram bastante variados. Sendo assim, duas obras consideradas
como antirromances podiam ser de natureza bem diferente. É por esta ra-
zão que Gérard Genette considera esse termo, “do ponto de vista teórico,
ao mesmo tempo muito restrito e muito vago” (1982, p. 168)4
No Dicionário de Termos Literários, de Joseph Shipley, de 1970,
Dom. Quixote é considerado um antirromance, porque foi escrito como
uma reação contra os romances de cavalaria. Esta obra de Cervantes é
hoje incluída entre as ficções metaficcionias mais representativas desse
gênero e, mesmo, como já dissemos, considerada como sua principal pre-
cursora. O romance Tristran Shandy, de Laurence Sterne, também é ci-
tado no dicionário de Shipley como um antirromance, por constituir um
“protesto contra as convenções das formas romanescas”. Hoje, é consenso
entre a maior parte dos teóricos e críticos, que esse romance de Sterne é
um dos exemplos mais representativos de ficção metaficcional.
Sobre a possível origem do termo antirromance, a nosso ver, não
se pode ignorar o romance Le Berger Extravagant, de Charles Sorel,
publicado, na França, em 1627. Assim como Cervantes escreveu Dom
Quixote parodiando os romances de cavalaria, Sorel escreveu Le Ber-
ger Extravagant, parodiando os romances pastorais do século XVI e
início do século XVII. Em seu livro, Sorel critica, nos romances de seu
tempo, a falta de realismo, a incapacidade de o romance representar o
real e, sobretudo, os excessos de romanesco. Esses aspectos, segundo
4 Aliás, em Palimpsestes, Genette trata do antirromance sobretudo como “prática hipertextual complexa” que
se aparenta por alguns de seus traços à paródia” (1982, p 168)
5 “le desir que j’ay de travailler pour l’utilité publique m’a fait prendre le dessein de composer un livre qui se
moquast des autres, et qui fust comme le tombeau des romans, et des absurditez de la poésie”.
6 “Les anti-romans conservent l’apparence et les contours du roman; ce sont des ouvrages d’imagination qui
nous présentent des personnages fictifs et nous racontent leur histoire. Mais c’est pour mieux décevoir: il s’agit de
contester le roman par lui-même, de le détruire sous nos yeux dans le temps qu’on semble l’édifier, d’écrire le roman
d’un roman qui ne se fait pas [...]”.
Ironia romântica
Que seja de nosso conhecimento, a primeira abordagem teórica sig-
nificativa da questão que nos ocupa foi a noção de “ironia romântica” tal
como proposta por Friedrich Schlegel8, no âmbito do primeiro Roman-
tismo alemão, na virada do século XVIII, decorrente do questionamento
sobre “a busca de um elemento que possibilitasse à literatura dos autores
modernos atingir a objetividade que a literatura dos antigos lograra atin-
gir” (MEDEIROS, 2014b, p.39).
A partir da antiga ironia socrática, que ele reinterpretou — e dos
conceitos de reflexividade propostos por Johann Gottlieb Fichte —,
Schlegel construiu sua teoria da ironia romântica, em que desenvolve a
ideia de uma poesia transcendental9 e vê o romance como uma poesia da
poesia. Em outras palavras, para Schlegel, a ideia de poesia da poesia é a
base de sua definição de romance. Por isso, pode-se dizer que o primeiro
romantismo alemão foi o primeiro movimento a valorizar o romance
que, como se sabe, era um gênero literário considerado bastardo, até o
7 “Ces oeuvres étranges et difficilement classables ne témoignenet pas de la faiblesse du genre romanesque,
elles marquent seulement que nous vivons à une époque de réflexion et que le roman est en train de réfléchir sur
lui-même”.
8 Segundo Pierre Schoentjes (2001, p.100), a primeira ocorrência do termo “ironia romântica”, em Schelegel
dá-se em 1797.
9 “O adjetivo ‘transcendental’, que remete aos escritos de Fichte, significa que, nesse tipo de ironia, a reflexão
sobre o processo criador ocupa o lugar central, assim como o ‘eu’, na filosofia fichteana” (MEDEIROS, 2014b, p.57).
Metaficção
De acordo com nossas pesquisas, desde os estudos de Schlegel, na
virada do século XVIII, até o início dos anos 70, a discussão teórica sobre a
questão da autorreflexividade, da autorreferencialidade, da autoconsciên-
cia — enfim, sobre o que hoje se considera metaficção em literatura, foi
praticamente inexistente, com exceções esparsas, dentre as quais pode-
mos citar, por exemplo, Mark Schorer (1948), que afirmou que a crítica
moderna começa com o romance moderno, isto é, como parte constitu-
tiva das narrativas dos romances modernos, e Roland Barthes, que, em
1959, em seu artigo “Literatura e Metalinguagem” (1964, p.106) foi um
dos primeiros teóricos a apontar a dupla consciência da literatura:
A literatura não refletia jamais sobre ela mesma (às vezes sobre suas figuras,
mas jamais sobre seu ser), ela não se dividia jamais em objeto observador e
ao mesmo tempo observado; enfim, ela falava, mas não se falava. E depois,
provavelmente com os primeiros abalos da boa consciência burguesa, a
literatura se pôs a se sentir dupla: ao mesmo tempo objeto e olhar sobre
esse objeto, fala e fala dessa fala, literatura-objeto e metaliteratura.17
REFERÊNCIAS
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COULET, Henri. Le roman jusqu’à la Révolution. Paris: Armand Colin, 1967.
GASS, William. Fiction and the Figures of Life. Boston: Nonpareil Books, 1971.
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HUTCHEON, Linda. Narcissistic Narrative: The Metaficcional Paradox. New York
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McCAFFERY, Larry. The Art of Metafiction: William Gass’s Willie Master’s Lone-
some Wife. In: Critique, XVIII, n.1,1976, p. 21-34.
MEDEIROS, Constantino Luz de. A Forma do Paradoxo: Friedrich Schlegel e a
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OSMUNDSEN, Wenche. Metafictions? Carlton: Melbourne University Press,
1993.
ROBERT, Marthe. Roman des origines et origines du roman. Paris: Gallimard,
1972.
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da alegoria da história, a ficcionalização de procedimentos narrativos e
o questionamento da apreensão da realidade enquanto verdade objetiva
proposto por Machado nos permite incluir Esaú e Jacó e Memorial de
Aires na tradição de romances autorreflexivos3, linhagem iniciada na mo-
dernidade com a publicação de Dom Quixote, de Cervantes e continuada
ao longo dos séculos por Laurence Sterne e Diderot4.
Publicado em 1904, diretamente em livro, Esaú e Jacó é o roman-
ce que leva ao extremo a dialética do duplo como estrutura instável da
ficção. Além disso, mais significativa do que a instabilidade ficcional é a
proposição de um alterego ficcional, que distancia Machado de Assis da
autoria do romance e instaura a natureza enganosa da narrativa. Marthe
Robert aponta efeito semelhante em Dom Quixote, “o jogo de antíteses
se repete através de todas as personagens da narrativa, que por este mo-
tivo, está literalmente povoada de duplos” (ALTER, 1978, p.21). Sendo
a narrativa uma categoria instável, nenhuma oposição pode produzir a
resolução de uma síntese, e assim cada par de antíteses, seja incorporada
às personagens do romance ou à sua estrutura narrativa, tende à inversão
dessas antíteses. Trata-se de uma forma de ficção baseada na “natureza da
imitação” (ALTER, 1978, p.23), chamando a atenção para a artificialida-
de da narrativa e sua condição precária de representação, constantemente
oscilante entre as diversas instâncias da duplicidade que se anulam mu-
tuamente em uma espiral de valores e contra valores.
O experimento romanesco da imitação se dá principalmente no
foco narrativo, que se desloca da primeira pessoa, foco da maioria dos
romances de Machado a partir da década de 1880, salvo Quincas Borba,
para o narrador em terceira pessoa, e vice-versa, como extensão do tema
do duplo. A pluralidade de vozes antes estabiliza a estrutura narrativa do
que a dispersa, pelo fato de deixar claro tratar-se de figurações ficcionais.
século 19, consultar: GLEDSON (2003).
3 Diante da diversidade de conceitos – autorreflexivo, metaficcional, autoconsciente, narcisista, autorreferen-
cial –, que designam em linhas gerais o mesmo fenômeno, procurei adotar em minha análise o termo autorreflexivo
ou reflexivo, por serem termos abrangentes e consagrados do vocabulário da teoria literária. Quando for necessário
reportar a algum conceito específico adotarei a denominação dada pelo teórico que a cunhou.
4 A divisão da história do romance moderno em duas tradições, a realista e a autoconsciente (ou autorreflexiva),
foi proposta por Robert Alter nos anos de 1970. “Uma medida da genialidade de Cervantes é o fato de ter sido ele o
iniciador de ambas as tradições do romance: a sua justaposição das fantasias literárias extravagantes à realidade larvar
aponta o caminho aos realistas, a sua manipulação saborosamente ostentosa do artificio que ele constrói estabelece
um precedente para todos os futuros romancistas autoconscientes.” (ALTER, 1998, p. 107.)
7 “[...] a cabocla, o morro com seus populares, a senhora da alta-roda e o narrador cosmopolita compõem uma
situação cheia de complexidade real e literária, em que as imensas distâncias que separam os polos da sociedade bra-
sileira se relativizam, criando um espaço comum. As posições sociais afastadas, os interesses contrários e as crenças
incompatíveis se determinam mutuamente [...] (SCHWARZ, 2014, p. 168).
8 Comparativamente são dois projetos de romance propostos na década de 1870. O romance urbano de intriga
amorosa e ascensão social machadiano seguirá um caminho sem a adesão de outros romancistas, ao contrário de
Távora, que terá uma linha de continuidade muito mais nítida com a participação de autores em sintonia com sua
proposta. Távora acena para uma elite letrada que vai se formando ao longo da década, amparada no “bando de ideias
novas” em circulação vindas da Europa e no anseio em ver as proposições científicas e de análise da realidade em
um romance que trate desse novo país que se descortinou a partir do conflito da guerra do Paraguai. Além do projeto
romanesco de Machado e Távora, um terceiro projeto foi proposto por Aluísio Azevedo na década de 1880 e atendeu,
assim como Távora, às ansiedades intelectuais de seu momento histórico. Aluísio propõe seu projeto romanesco calca-
do no postulado naturalista, sem, no entanto, ser integralmente um autor naturalista. Sua obra forma-se na tênue linha
da militância pela profissionalização do escritor, alternando folhetins, claramente escritos como produto de cultura de
massa (ainda em formação no Brasil do oitocentos), com romances de tese, seu real interesse. Trato rapidamente des-
tes autores para ilustrar um pouco o terreno em que Machado irá circular com sua obra romanesca e sugerir que ele irá
aglutinar ficcionalmente essas “tensões” do campo literário brasileiro do século 19. O naturalismo formará escritores
como Júlio Ribeiro, Adolfo Caminha e Domingos Olímpio. Machado permanecerá em sua linha de composição roma-
nesca, solitário. Mas essa solidão também lhe dará liberdade de composição. Em crônica de 1950, Carlos Drummond
de Andrade atesta, com grande ironia, que Machado de Assis é antes ruptura do que continuidade. Diz o poeta: “Não
é recomendável que se institua um modelo dessa ordem, num país ainda novo, que deve cultivar sobretudo as suas
forças primitivas e telúricas. Ai de nós se tal exemplo frutificar! Mas, felizmente, não frutificará. Alguns dos mais belos
nomes da nova geração assim o garantem.” (ANDRADE, 2013, p. 106).
9 Sobre o tema, consultar: SANTOS (2010).
REFERÊNCIAS
ALENCAR, Mário de. Jornal do Commércio, 24/07/1908.
ALTER, Robert. Em espelho crítico. São Paulo: Editora Perspectiva, 1998.
_____. Partial magic. The novel as a self-conscious genre. Califórnia: Universi-
ty of Califórnia Press, 1975.
ANDRADE, Carlos Drummond. Passeios na ilha. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
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sileira/MEC, 1977a.
_____. Memorial de Aires. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1977b.
_____. O primo Basílio. In: Obra Completa, vol. III. Rio de Janeiro: Aguilar, 1975.
BOYD, Michael. The reflexive novel: fiction as critique. London: Associated Uni-
versity Press, 1983.
GLEDSON, John. Machado de Assis: Ficção e História. São Paulo: Paz e Terra,
2003.
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: O romance ma-
chadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Edusp/Nankin
Editorial, 2004.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária.
Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Editora Ática, 1994.
MEYER, Augusto. O romance machadiano. In: Textos críticos. São Paulo: Pers-
pectiva, 1986, p. 327-337.
PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: Estudo crítico e biográfico. Belo Ho-
rizonte: Editora Itatiaia; EDUSP, 1988.
_____. Prosa de ficção (de 1870 a 1920). Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.
12 Sobre a recepção crítica aos romances de Machado de Assis, consulte: GUIMARÃES (2004).
Introdução
No presente ensaio, apresentamos uma leitura da narrativa Memo-
rial do Fim: a morte de Machado de Assis, do escritor paraense Haroldo
Maranhão (1927 – 2004), publicada em 1991, caracterizando-se por um
forte teor de autorreferencialidade. Esse romance dialoga com obras de
Machado de Assis, além de explorar traços biográficos deste autor, enfo-
cando, ao longo da narrativa, os últimos dias do Bruxo do Cosme Velho.
Nossa leitura se detém, particularmente, em dois aspectos dessa obra. Na
primeira parte, destacamos os aspectos metaficcionais, característicos das
* Trata-se uma frase dita pela personagem Brás Cubas, que encerra o capítulo CXXXVIII das Memórias Póstumas.
Nesse momento do enredo machadiano, essa personagem faz uma menção “a um crítico” e discorre sobre o que havia
escrito anteriormente. Logo em seguida, no capítulo CXXXIX, Brás Cubas convida o leitor a imaginar como Brás Cubas
seria o ministro de estado, fato, esse, que não aconteceu. Esse capítulo é feito somente de pontos finais e espaços em
branco. Nesses e outros tantos comentários dessa personagem salientam o aspecto crítico dentro da ficção, tornando-
-a metaficcional. Haroldo Maranhão, por sua vez, tomou emprestada a já citada frase de Brás Cubas do capítulo CXXX-
VIII e, por meio dela, iniciou o último capítulo de Memorial do Fim, que seria o capítulo LIV, intitulando-o Post-Scriptum.
Nesse Post-Scriptum, a voz narrativa cede lugar ao próprio Haroldo Maranhão, autor, que explica a suposta origem das
citações machadianas. O problema é que, por se tratar de uma ficção, portanto, inventada, as justificativas apresen-
tadas por Maranhão são ludibriosas e alimentam o caráter hermético de seu jogo textual. Isso é confirmado quando
vamos às fontes citadas por Maranhão e não as encontramos, já que elas não conferem com as indicações originais.
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narrativas de Machado de Assis, que são desenvolvidos com maior com-
plexidade na escrita romanesca de Maranhão, uma vez que este roman-
cista nortista joga com elementos da realidade e da ficção, mesclando-as.
Na segunda parte, além da metaficcionalidade, refletimos sobre como a
historiografia é questionada a partir das vozes metaficcionais presentes
em Memorial do fim. Esse questionamento é feito a partir da presença de
personalidades históricas da época, tanto dos imortais da Academia Bra-
sileira de Letras e outros amigos de Machado de Assis – que iam visitá-lo
no seu leito de morte –, quanto de personalidades políticas, tais como
o Barão do Rio Branco, e mesmo o diplomata Joaquim Nabuco2. Co-
meçaremos, então, nossa reflexão a partir das estratégias metaficcionais
presente no romance de Maranhão.
“VALHA-ME DEUS: É PRECISO EXPLICAR TUDO!”: A VOZ METAFICCIONAL MACHADIANA EM MEMORIAL DO FIM, DE 47
HAROLDO MARANHÃO
textuais com a ficção do Bruxo do Cosme velho, desde o título até a pri-
meira frase do primeiro parágrafo: “Nunca me há de esquecer este dia”,
que remete diretamente ao conto “Missa do galo”. A partir de então, os
limites entre realidade e ficção começam a se esvanecer, e a digressão e os
comentários metafictícios demonstram essas instabilidades. No capítulo
seguinte, capítulo II, intitulado “O bom e o mal uso das portas”, a voz
narrativa usa do artifício digressivo para explicar a transposição de perso-
nagens machadianas para o universo ficcional de Maranhão. A metáfora
das transposições das portas explicita essa questão, como podemos obser-
var no trecho abaixo:
Ninguém transpõe portas pela razão de que ocasionalmente se mantenham
abertas. Quem as inventou teve o propósito de interpor um fácil, leve muro,
menos pétreo e quase imaginário, que estipulasse mera separação entre
exterior e interior, do que estivesse fora do posto adentro. O arbítrio seria do
dono da porta, ou do violador dela; este, indivíduo de maltas, a adjudicar-se
o poder de abri-la com rudeza maior ou menor, dependente da qualidade
da madeira e do humor do bruto. Cuidemos portanto que D. Marcela
Valongo não ultrapassou por ultrapassar a porta do Cosme Velho, apenas
porque surpreendesse franqueada a meia folha. Impante caminhou, impante
sim, com a familiaridade chancelada (parece claro) pelo Conselheiro, que
empregou o próprio sinete na papa do lacre. Terá procedido a bela estranha,
mais bela que estranha, em hora equivocada, por estouvamento ou distração?
Ora! Seria uma verdade sem pernas, que não se aguentaria em pé, porque na
privação de fundamento nada se sustenta. (MARANHÃO, 2004, p. 15 – 16,
grifos nossos)
“VALHA-ME DEUS: É PRECISO EXPLICAR TUDO!”: A VOZ METAFICCIONAL MACHADIANA EM MEMORIAL DO FIM, DE 49
HAROLDO MARANHÃO
Jovita é uma personagem muito presente na narrativa que se camufla com
a feição de Leonora do Memorial de Aires.
Outras personagens femininas também são embaralhadas no
jogo metafictício de Maranhão. As personagens que mais aparecem no
jogo de Maranhão são D. Carmo (referência à D. Carolina, esposa de
Machado), Fidélia, a viúva Noronha, da narrativa Memorial de Aires,
Marcela Valongo, a meretriz do romance Memórias Póstumas de Brás
Cubas, dentre outras. Nestes amálgamas, o leitor vê-se confuso diante
dessas personagens que atendem por nomes diferentes em vários mo-
mentos do enredo. Não obstante, o astuto narrador, de forma irônica,
ainda faz questão de torná-las menos identificáveis: “Marcela, foi o que
entendeste? Escutaste mal. Falei Fidélia. “Aguiar sem Carmo é nada?”.
Vejamos, vejamos. Desatemos laços, se pudermos. FidéLIA lia o mar a
MARcela”. (MARANHÃO, 2004, p. 21)
Além das misturas nas representações das personagens femininas,
a autorreferencialidade aparece em vários capítulos da narrativa de Ma-
ranhão. Em alguns deles, até mesmo no título, percebe-se que a voz nar-
rativa leva o leitor a refletir sobre questões voltadas para eventualidades
cotidianas que tiram o foco da narração da morte de Machado e acabam
remetendo à criação ficcional. Nos capítulos “O bom e o mau uso das
portas”; “Capítulo da toalha”; “Embaraçosos contos”; “Entre parenthe-
sis”; “Saltemos por cima de tudo”; “Vírgula”; “Pulo pequeno e velhusco”;
“In extremis”; “Pinga-se ponto final”; “Não se pinga o ponto final” e “Post
scriptum”, detectamos a mimese do processo3 problematizada em um
grau mais elevado, do que dos romances de Machado.
Nessas problematizações, não só dos atos da escrita em si, mas,
também, das referencialidades externas ao texto literário e da própria
intertextualidade que o romance estabelece com a ficção e com a bio-
grafia machadiana, a metaficção em Maranhão questiona a própria
teoria romanesca como um gênero mimético. Para Linda Hutcheon,
(1984, p. 6), a autorreflexividade questiona os engenhos internos das
estruturas linguísticas e discursivas do que está sendo narrado com o
crivo avaliativo e julgador dos leitores. Já em Dom Quixote, consta-
3 Linda Hutcheon (1984), em Narcissistic narrative, trabalha com a noção de mimesis do processo que consiste
em inserir, no enredo da narrativa ficcional, comentários sobre o próprio fazer literário.
4 No original, em inglês, Hutcheon (1984, p. xv – xvi): “In today’s metafiction, the artist reappears, not as a Go-
d-like Romantic creator, but as the inscribed maker of a social product that has the potencial to participate in social
change through the reader”.
“VALHA-ME DEUS: É PRECISO EXPLICAR TUDO!”: A VOZ METAFICCIONAL MACHADIANA EM MEMORIAL DO FIM, DE 51
HAROLDO MARANHÃO
a representar coisa alguma. A dúvida e a oscilação sobre os fatos narrados
e para onde esses fatos se encaminharão, como bem apontou o crítico
Hélio Guimarães (2012), são matérias recorrentes na ficção machadiana
e em especial neste romance publicado em 1904, ano da morte de Dona
Carolina. Em Esaú e Jacó, há a ideia de que nada se conclui e nada acon-
tece. A voz narrativa conduz o leitor, nesse romance, aos bastidores da
ficção, ao passo que levanta questões sobre os métodos que desnudam os
procedimentos da escrita. Nas palavras do próprio crítico,
o romance multiplica assim as possíveis chaves interpretativas para o
ódio figadal e inexplicável que une os dois irmãos gêmeos protagonistas,
convocando a mitologia clássica, o Antigo Testamento, o Novo Testamento,
a história das relações coloniais entre Brasil e Portugal, a história do
Brasil e por aí vai... [...] Estamos diante de um romance em abismo, com
vários planos de sentido correntes, o que torna difícil determinar se há
e qual seria o nível alegórico principal. [...] O deslocamento crescente
da responsabilidade interpretativa para o leitor é marca do romance
machadiano. De Ressurreição ao Memorial de Aires, as narrativas se tornam
cada vez mais exigentes conosco, leitores, que acostumamos chegar à
última linha com muito mais dúvidas e perguntas do que tínhamos ao
abrir o livro. Em Esaú e Jacó, a participação decisiva do leitor no processo
ficcional é discutida na própria narrativa, que o representa como figura-
chave do jogo ficcional. (GUIMARÃES, 2013, p. 15 – 16)
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que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem?
Mal comparando, é como a arraia-miuda, que se acolhia à sombra do castelo
feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a
comparação não presta. (MACHADO DE ASSIS, 2008, p. 47)
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A romancista não se vexa de maçar a paciência alheia pedinchando prefácios!
É costume que se instalou no Império, e que prospera na República. Pede-
se, a uma figura em voga, endosso para letras cujo desconto o próprio
emitente não fia. Já se imaginou Os Lusíadas – de prefácio? Hoje, não
se saberia mais quem fosse o autor do prefácio, conquanto pudesse haver
enxergado até com os olhos ambos, enquanto o apadrinhado, de olho
escoteiro, mais amplamente esquadrinhou os assuntos da poesia, das
batalhas e de Goa. (MARANHÃO, 2004, p. 84)
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A história questionada na metaficção de
Maranhão
Ao descrever o estado quase fúnebre de Machado de Assis, Mara-
nhão convoca para o jogo textual as personagens/atores José Veríssimo,
Mário de Alencar, Rio Branco, Euclydes da Cunha, Raimundo Correia,
Astrogildo Pereira, Joaquim Nabuco, Dr. Miguel Couto, Albuquerque,
Lobo Neves, Graça Aranha, Dráuzio Barreto, Dr. Lúcio de Mendonça,
e o próprio Machado de Assis, que responde por Conselheiro Ayres e
Aguiar. Isto, porque, os personagens/atores citados, na verdade, em sua
maioria, pessoas da vida real, contemporâneos de Machado – escritores,
médicos, diplomatas – comparecem ao leito de morte de Machado para
visitá-lo e mesmo para perturbá-lo.
No capítulo III, intitulado “Uma carta”, identificamos essas
presenças desarticuladoras de personalidades reais na ficção de Mara-
nhão. Aqui, José Veríssimo escreve a Medeiros informando-lhe a real
situação de Machado:
Rio, 25-09-908.
Meu querido Medeiros.
Deixei o nosso mestre indisputado nem pior nem melhor. A doença não
estagnou, e nem vejo como possa estagnar. Deus? Medeiros: Deus existe?
Qual de nós acredita? O Mário? O Graça? O Lúcio? O Rodrigo? O Nabuco
acredita, mas está em Washington, e além do mais Deus não fala inglês.
A doença avança devagar; mas sempre avança, e quem saberá se mais
devagar realmente? Que sabemos dos organismos vivos e esfaimados que
nos roem internamente? A medicina foi além do impossível. [...] Em dados
momentos, acredito que desfaleça. Será a ausência, agravando-lhe o fim?,
doença sobre doença, o mal maior sobre o mal menor; e nem se saberá qual
o menor e qual o maior, que um, enfim, humilha mas não mata.
(MARANHÃO, 2004, p. 19 – 20)
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para expelir um mau. Morrem, sempre mais um passo, dos murmúrios
exasperantes e da expectação agourenta.” (MARANHÃO, 1991, p. 107)
Assim, Memorial do fim como algumas das narrativas pós-moder-
nistas, tenta manter a autorreflexão associada ao contexto histórico, abri-
gando personalidades históricas desprovidas de versões unívocas, ao mes-
mo tempo que convivem com entidades ficcionais. Nesses limites quase
invisíveis, essas personagens são recriadas por Maranhão e, ao mesmo
tempo, convivem com personagens ficcionais, o que alimenta o caráter
metaficcional do romance. Há de se destacar, também, que a diegese,
ao abarcar personalidades históricas brasileiras, desestrutura os alicerces
dos discursos oficiais através da perspectiva das escritas da Nova Histó-
ria (BURKE, 1992) no universo literário, dos mecanismos da metafic-
ção historiográfica (HUTCHEON, 1991) e do novo romance histórico
(AÍNSA, 1991). Nesse sentido, a revisão da história é feita através da
retomada de um período histórico longínquo, a saber, do início do século
XX, e de períodos históricos que, de alguma maneira, se ligam a ele.
Essa tendência de a literatura pós-modernista recuperar fatos his-
tóricos e os reescrevê-los, é entendida por Fredric Jameson (2007) no seu
estudo “O romance histórico ainda é possível?” como o ponto culmi-
nante na diferenciação do que ele reconhece como romances históricos
no modernismo e no pós-modernismo. Para Jameson (2007, p. 187) o
romance histórico resultou em tentativa sem sucesso no modernismo,
porque seria muito difícil distinguir tais romances de outras obras não-
-históricas, visto que o modernismo pregava a ruptura com o passado e
a criação de algo original e inconfundível que pudesse marcar a época.
Eis como o pós-modernismo, na visão de Jameson (2007, p. 187) repen-
sa essa condição. É com seu fundamental desafio à estética modernista,
às formas e aos procedimentos linguísticos caracteristicamente moder-
nistas, que o movimento pós-modernista volta a abrir um campo em
que o romance histórico pode renascer, mas mediante uma abordagem
nova e original do problema da referência histórica. Na impossibilidade
da criação de um romance histórico no modernismo, embora o teórico
norte-americano deixe em aberto as especulações, admita-se o pressupos-
to pós-modernista de que “hoje em dia a verdade histórica é abordada
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anos são foscos ou rutilantes, ditosos ou macambúzios, ou são um pouco de
umas e outras cousas. O ano de 1876 deixou a memória de uma cidade bufa,
ao se permitirem bengalas a fedelhos tibéricos, ensandecidos pelo junco de
malinar e de dar gozos ao diabo. Mais tarde se inventariam novas modas.
Já então se consentiria o uso do especial ornato às mulheres. Mulheres! De
bengalas! Adeus, pobre mundo! (MARANHÃO, 2004, p. 60 – 61)
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o pus. Desço a uma tabacaria. Narizes clamam cuidados mais extensos e
intensos que romances. Romances interrompem-se. Sei de autor que
escreveu dous capítulos e deixou o resto para depois. O depois não houve,
porque, enquanto andava o depois, o romancista bateu o pacau. O rapé não
sabe fazer-se esperar. Até hoje, não apurei qual o mais importante à vida, se
o ar, ou se o rapé. (MARANHÃO, 2004, p. 183)
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STERNE, Laurence. Vida e opiniões do cavaleiro Tristram Shandy. Tradução
José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
67
Metaficção é um termo dado à escrita ficcional que auto-conscientemente
e sistematicamente chama a atenção para seu status como um artefato, a fim
de colocar questões sobre a relação entre ficção e realidade. No fornecimento
de uma crítica de seus próprios métodos de construção, tais escritos não
só examinam as estruturas fundamentais da ficção narrativa, eles também
exploram a possível ficcionalidade do mundo fora do texto literário
ficcional3 (WAUGH, 1984, p. 02).
5 No original: “Nevertheless, such a change, whatever its cause, would allow, in literary terms, for the transfor-
mation of form into content: the subject matter would change again from the novelist to his writing. Novels then begin
to reflect and to reflect upon their own genesis and growth. The mirroring involved begins to undermine traditional
realism in favour of a more introverted literary level of mimesis”.
12 No original: “Metafiction, then, does not abandon ‘the real world’ for the narcissistic pleasures of the imagi-
nation. What it does is to re-examine the conventions of realism in order to discover – through its own self-reflection
– a fictional form that is culturally relevant and comprehensible to contemporary readers. In showing us how lirerary
fiction creates its imaginary worlds, metafiction helps us to understand how the reality we live day by day is similarly
constructed, similarly ‘written’”.
Considerações finais
Portanto, o que percebemos na narrativa de Clarice Lispector é o uso
de uma linguagem que pressupõe uma escrita crítica e interpretativa, anali-
sando as estruturas literárias, temáticas e formais que compõem a obra literá-
ria. Por meio da linguagem, o personagem-escritor traz para a ficção mundos
de sua imaginação e os reconstrói com a ajuda do leitor. Como é possível
perceber, a escrita metaficcional não é isenta de ideologia, a própria ação de
narrar é ideológica, porque o rompimento, o “novo” traz em si os discursos
ao qual se opõe. Por isso, Wladimir Krysinski diz que a metaficção deve ser
compreendida em um contexto, não apenas literário, mas também ideoló-
13 No original: “What has always been a truism of fiction, though rarely made conscious, is brought to the fore in
modern texts: the making of fictive worlds and the constructive, creative functioning of language itself are now self-cons-
ciously shared by author and reader. The latter is no longer asked merely to recognize that fictional objects are “like life”;
he is asked to participate in the creation of worlds and of meaning, through language. He cannot avoid this call to action
for he is caught in that paradoxical position of being forced by the text to acknowledge the fictionality of the world he too
is creating, yet his very participation involves him intellectually, creatively, and perhaps even affectively in a human act
that is very real, that is, in fact, a kind of metaphor of his daily efforts to “make sense” of experience”.
REFERÊNCIAS
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Pontes Editores, 2006, p. 143-157.
In both the covert and overt forms of metafictional narcissism, this focus
does not shift, so much as broaden, to include a parallel process of equal
importance to the text’s actualization – that of the reading. The reader is
explicitly or implicitly forced to face his responsibility toward the text,
that is, toward the novelist world he is creating through the accumulated
fictive referents of literary language.
Linda Hutcheon
Introdução
As epígrafes acima elucidam as questões com as quais nos detere-
mos neste ensaio: o problema da autorreflexividade na escrita de narra-
tivas ficcionais e históricas da pós-modernidade. Há, nessas narrativas,
segundo os estudiosos Linda Hutcheon (1984) e Hayden White (2008),
o questionamento dos processos de construção e estruturação de suas
estórias que se tornam parte da matéria do enredo narrado. Além disso,
é decisiva, nesses mesmos enredos, a participação ativa do leitor na cons-
trução e na contextualização dos sentidos do texto, aspecto, este, que o
faz compactuar como um coautor dessas mesmas narrativas. Mas, como
a autorreflexividade se materializa nos tecidos da ficção e da história? E o
leitor: porque a presença dele é substancial na construção dessas narrati-
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vas? Na ficção, estas questões são recentes? Vejamos.
Na narrativa ficcional, o problema da autorreflexividade se encontra
presente em narrativas isoladas dos séculos XVII, XVIII e XIX. Como exem-
plo dessa questão, podemos citar os romancistas Charles de Sorel, Miguel de
Cervantes, Laurence Sterne, Denis Diderot e Machado de Assis. Contudo,
será na pós-modernidade, mais especificamente partir da década de 1960 do
século XX, que as narrativas ficcionais autorreflevixas se intensificarão.
Já nas narrativas históricas, a autorreflexividade se tornou presen-
te, com mais ênfase, a partir dos manifestos da École des Annales, que
culminaria na Nouvelle Histoire e, mais tarde, na Meta-History1. Mo-
tivada pelas estratégias da narrativa ficcional, a narrativa histórica co-
meçou a questionar a forma de se fazer história e de como tratar o fato
histórico. Esse questionamento também contribuiu para o alargamento
da noção de “arquivos” históricos. Logo, as ficções e mesmo inúmeras
estratégias da narrativa ficcional seriam utilizadas pelos “novos historia-
dores” na recriação do fato histórico.
Ao transpor as fronteiras entre os saberes, as escritas da ficção e da
história começaram compartilharam seus objetos de estudo. Transpostos os
limites que separavam a historiografia da literatura, várias narrativas ficcio-
nais latino-americanas e europeias começaram a questionar os fatos histó-
ricos por meio de uma autorreflexividade unida a estratégias hipertextuais,
tais como a paródia e o pastiche. São essas questões que se imbricam, mais
particularmente, entre as escritas autorreflexivas da ficção que examinare-
mos aqui. Iniciaremos com a discussão da autorreflexividade na ficção e,
em seguida, na história e na ficção metaficcional de cunho histórico.
2 “mimetic literature has always created illusions, not literal truths; it has always utilized conventions, no matter
what it might choose to imitate – that is, to create. The familiar image of the mimetic mirror suggests too passive a
proves; the use of micro-macro allegorical mirroring and mise in abyme in metafiction contests that very image of
passivity, making the mirror productive as the genetic core of the work”.
4 “se trata de despojar a la história anterior de su jerarquia distante y absoluta para atraerla hasta un presente que,
sólo esclareciéndola e ingrándola, podrá abrirse paso hacia el futuro”.
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_____. O romance histórico brasileiro contemporâneo. São Paulo: Editora
107
tórica e já filósofo Agostinho de Hipona, segundo seus próprios rela-
tos, viu-se profundamente compungido: “Quando, por uma análise
profunda, arranquei do mais íntimo toda a minha miséria e a reuni
perante a vista do meu coração, levantou-se enorme tempestade que
arrastou consigo uma chuva torrencial de lágrimas” (Confissões, VIII,
12, 28). Diante do incontrolável choro que lhe tomava, Agostinho
isolou-se, saindo do local em que estava e sentando-se sob uma figuei-
ra. Aí, conflitado com a própria vida que levou, desfazia-se aos pran-
tos “oprimido pela mais amarga dor do coração” até que: “Eis que, de
súbito, ouço uma voz vinda da casa próxima. Não sei se era de meni-
no, se de menina. Cantava e repetia freqüentes vezes: ‘Toma e lê; toma
e lê’” (Confissões, VIII, 12, 29, grifos do autor). Pensando ser um sinal
divino, volta diligentemente para dentro da casa onde se encontrava,
abre e lê uma passagem bíblica (Romanos 13, 13) que lhe convenceu
e converteu a alma: “Não quis ler mais, nem era necessário. Apenas
acabei de ler estas frases, penetrou-me no coração uma espécie de luz
serena, e todas as trevas da dúvida fugiram” (Confissões, VIII, 12, 29).
Toda experiência transformadora de leitura parece ser um feixe de luz
que ilumina o entendimento que habita a escuridão. Por isso, é tão
marcante; por isso, muda as mentalidades.
Este é um episódio curioso e representativo do que ocorre em mui-
tas experiências de leitura e do que pode ocorrer com as diversas formas
de contato que os próprios textos permitem, em si, a partir de suas es-
truturas: a mudança de postura e de perspectiva. Observamos que, junto
com a recepção, é preciso considerar o “projeto” (o intento) da produção
– e, nesse caso, não se trata da intenção do autor. O texto, enquanto
exercício de linguagem, dita seus sentidos, o que não quer dizer que o tex-
to é interpretado livremente, desconsiderando que, enquanto produção
de linguagem, comunica algo ou estabelece algum tipo de interlocução
(mesmo que não seja claro). Diante de um documento escrito, com a
mediação dos elementos linguísticos do texto e da experiência de mundo
que o leitor possui (como se observa no caso de Agostinho), ambos, texto
e leitor, dinamizam, dialogicamente, os mecanismos de construção de
sentido evocados para harmonizar o processo de leitura.
Considerações finais
Diante do exposto, percebemos que, paralelamente às questões do
leitor, ao longo da segunda metade do século XX, sucederam eventos
acadêmicos, sociais e históricos significativos para a renovação das formas
narrativas que influíram o âmbito da produção literária infantil e juvenil.
Como se percebe, esse destaque sobre o receptor não é um evento
isolado, mas, sim, um elemento que conflui com os novos percursos da
narratividade. O texto caminha com a desenvolvimento do leitor ao
estabelecer, no ato da leitura, as formas de engajamento e ao possibi-
litar a ampliação de suas potencialidades. O leitor metaficcional, como
derivação do leitor implícito ou modelo, não se exclui desse processo,
uma vez que, como uma previsão da ação de leitor real diante de textos
autorrefexivos, por meio da cooperação textual, deixa “pegadas” para o
preenchimento dos espaços vazios propostos pela dinâmica da narrati-
va, simulando o possível na recepção determinada pelas aberturas que
uma dada obra oferece.
A partir da ideia de que a obra é aberta a múltiplas leituras e
de que ela é portadora de um horizonte de expectativa que delineia –
a partir de seus artifícios – um modelo de horizonte do seu receptor
para a apreensão mais plena de seus jogos e ideologias, na breve análise
realizada de O outro lado da história, de Rosana Rios, bem como nas
considerações teóricas sobre os elementos que estruturam as narrativas
metaficcionais, pudemos perceber as nuances da recepção de metanar-
rativas infantis e juvenis. Verificamos também que o pacto ficcional dos
textos metaficcionais é diferente dos demais, pelo fato de que a ilusão
referencial de realidade é rompida com os questionamentos sobre o fa-
zer literário da própria narrativa. Esses e outros procedimentos também
podem ser encontrados em outros textos como, por exemplo, O proble-
ma do Clóvis, de Eva Furnari, Um homem no sótão, de Ricardo Azevedo,
e também em O personagem encalhado, de Angela Lago, já analisados
REFERÊNCIAS
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207-228.
FRANCA, Vanessa Gomes; SOUZA, Edilson Alves de; CAMARGO, Flávio Perei-
129
A literatura infantil e juvenil brasileira – principalmente após o
surto de criatividade e o boom, ocorridos em 1970 e 1980, respectiva-
mente –, “vai trabalhar em consonância com tais tendências de escri-
ta, abrindo-se para novas possiblidades de expressão, bem como, atuar
de maneira paradigmática frente aos novos contextos de produção”
(FRANCA; SOUZA; CAMARGO, 2016, p. 83). Assim, vemos nas
obras direcionadas aos públicos infantil e juvenil textos que desvelam
sua própria natureza ficcional.
As obras pós-modernas, jogando com a própria literatura, utilizam
os recursos da metaficção, que consiste na “[...] ficção sobre a ficção – isto
é, a ficção que inclui em si mesma um comentário sobre sua própria iden-
tidade narrativa e/ou linguística” (HUTCHEON, 1984, p. 1, tradução
nossa).2 Em outras palavras, a metaficção “é uma ficção que não esconde
que o é, mantendo o leitor consciente de estar lendo um relato ficcional,
e não um relato da própria verdade” (BERNARDO, 2010, p. 42). Assu-
mindo-se como uma obra que não manifesta o real, as narrativas metafic-
cionais quebram a ilusão da realidade, sustentada, principalmente, pelos
romancistas realistas. Desse modo, revela-se ao leitor como um artifício,
um objeto criado consoante determinadas convenções.
Para revelar-se ao leitor como um constructo, a narrativa metafic-
cional apresenta, explícita ou implicitamente, estratégias autorreflexivas.
Segundo Gustavo Bernardo (2010, p. 43), a “conhecida intertextualida-
de – através da paródia, do pastiche, do eco, da alusão, da citação direita
ou do paralelismo estrutural – integra os processos metaficcionais”. A
paródia é uma maneira de apontar para o artifício da obra literária (HU-
TCHEON, 1984), tendo em vista que, ao apresentar uma perspectiva
crítica, “tem a vantagem de ser simultaneamente uma reacriação e uma
criação, fazendo da crítica uma espécie de exploração activa da forma”
(HUTCHEON, 1985, p. 70).
Como um dos principais modos da narrativa narcisista, Linda
Hutcheon (1984) aponta a mise en abyme. Esta é “todo espelho interno
em que se reflete o conjunto da narrativa por reduplicação simples,
2 [...] fiction about fiction – that is, fiction that includes within itself a commentary on its own narrative and/or
linguistic identity.
ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 131
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
o dilema entre liberdade individual e justiça (ou equilíbrio) social”
(COELHO, 2006, p. 692). Os Karas aparecerão em outras narrativas
do autor, compondo uma série: Pântano de sangue (1987), Anjo da
morte (1988), A droga do amor (1994), Droga de americana (1999), A
droga da amizade (2014).
De acordo com Nelly Novaes Coelho (2006, p. 697), Pedro Ban-
deira é “[p]resença de destaque entre os escritores best-sellers de literatura
infantil/juvenil brasileira [tendo construído] um universo que, neste li-
miar do século XXI, chega a uma centena de títulos” publicados e a mais
de vinte e dois milhões de livros vendidos. Autor reconhecido, Bandeira
já foi diversas vezes laureado. Recebeu o prêmio Jabuti, na categoria Me-
lhor Livro Infantil – 1986, da Câmara Brasileira do Livro, pela obra O
fantástico mistério de Feiurinha.
Neste livro, temos três histórias entrecruzadas. A primeira narra-
tiva é a do narrador-personagem-escritor, que está sem inspiração para
escrever, quando recebe uma visita que mudaria sua história. Assim,
no “Capítulo Zero”, ele expõe as dificuldades que tem para começar a
escrever aquela narrativa, o que leva o leitor a compreender que o texto
é um constructo:
Naturalmente você sabe que os escritores, quando estão sem inspiração,
sentem inadiável necessidade de apontar lápis, limpar os tipos da máquina,
verificar se há papel suficiente na gaveta e ver se a empregada deixou sobrar
alguma coisa na geladeira, não é?
Então, como eu ia dizendo, estava extremamente ocupado com minha
literatura (BANDEIRA, 2009, p. 8-9, grifo nosso).
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PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
dor-personagem-escritor aborda a questão da indeterminação, da atem-
poralidade de tais narrativas que, geralmente, iniciam-se com a frase:
“Era uma vez, há muitos e muitos anos...”, considerada como uma es-
pécie de chave de abertura ou senha de entrada:
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PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
– Ah, não está não. Foi à caça.
– Pois, então, vamos ao assunto. Eu falei com a Rapunzel Encantado e ela
me disse que o Príncipe...
– Príncipe? Que Príncipe?
– O Príncipe Encantado. Marido da Rapunzel.
– Ah...
– Pois é. O marido da Rapunzel encontrou-se com o Príncipe...
– Príncipe? Que Príncipe?
– O Príncipe Encantado. Marido da Cinderela.
– Ah... (BANDEIRA, 2009, p. 14).
Por meio das vozes das personagens, como vimos, o autor desnuda
os elementos que compõem as histórias de fadas. Esse desnudamento
caracteriza O fantástico mistério de Feiurinha como uma obra narcisista,
uma vez que se volta para si mesmo, realizando comentários sobre sua
condição de artifício. Assim, é evidenciado ao leitor que, na verdade, o
que está lendo é uma ficção.
No capítulo “Zero e três quartos”, comparecem ao castelo de Bran-
ca Encantado: Cinderela Encantado, Rapunzel Encantado, Bela Ador-
mecida Encantado, Rosaflor Della Moura Torta Encantado, Bela-Fera
Encantado, que haviam se casado e estavam grávidas. No início do ca-
pítulo, ao justificar a rapidez com que as princesas chegam ao palácio, o
narrador expõe, mais uma vez, a temporalidade nas narrativas feéricas:
“Em histórias de fada, esse negócio de tempo não tem a mínima impor-
tância. Por isso, em um minuto as princesas já estavam chegando ao cas-
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PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
telo de dona Branca Encantado” (BANDEIRA, 2009, p. 16, grifo nosso).
Em outra passagem do mesmo capítulo, uma discussão entre Cinderela e
Branca Encantado, igualmente, alude ao tempo nos contos:
– Tem muito mau gosto! –cortou dona Cinderela. – Onde já se viu ficar
morta anos e anos ao relento! Aí vem o Príncipe Encantado dar um beijo
numa defunta que está morta e esticada há anos e anos! E depois, se muitos
e muitos anos se passaram, o teu príncipe já devia estar velho como uma
múmia. Até que combinaria, não é? Uma múmia beijando a outra... Que
mau gosto!
[...]
– Mau gosto? – Dona Branca ficou furiosa. – Ora, você não sabe que,
nos contos de fadas, anos e anos passam em um minuto? Que é só virar a
página? (BANDEIRA, 2009, p. 19, grifos nossos)
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PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
se expõem como representações fictícias de pessoas, de personali-
dades e tipos sociais e que fazem parte de um conjunto de artifí-
cios que corroboram a construção de um enredo. A fala de Branca
Encantado: “– Isso é trabalho para quem nos inventa. É trabalho
para um Autor” (BANDEIRA, 2009, p. 31), revela ao leitor que ele
está diante de uma história inventada, de personagens fictícias, que-
brando o quadro de ilusão referencial. Neste sentido, “na narrativa
metaficcional há uma visão lúcida do caráter fictício da narração e
uma ruptura com as formas tradicionais da narrativa realista, pois a
noção de ficcionalidade é questionada no corpo da própria narrati-
va” (CAMARGO, 2012, p. 59).
No início do capítulo “Zero e cinco sextos”, o comentário do
narrador-personagem escritor: “E lá estava eu com um grande proble-
ma nas mãos. Para um autor, criar uma personagem faz parte do ofício,
mas descobrir uma heroína desaparecida dos reinos encantados era um
desafio que eu não sabia como enfrentar” (BANDEIRA, 2009, p. 32,
grifo nosso), provoca uma reflexão sobre o estatuto do escritor e a re-
presentação ficcional, uma vez que evidencia a atividade ficcional, in-
ventiva, que o autor empreende para criar/compor uma personagem e,
consequentemente, a narrativa. De acordo com Flávio Pereira Camargo
(2012, p. 49), uma das funções do narrador na narrativa metaficcional é
desnudar as engrenagens do processo de construção da obra ficcional e
de seus elementos constitutivos, explicitando ao leitor que se trata, na
verdade, de uma encenação, de uma representação ficcional, de modo
que a consciência da escritura como artesanato, como processo ficcional é
desvelada em um jogo de espelhamento.
ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 143
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
– Nada disso, Branca de Neve! Você jamais desaparecerá. Você é eterna como
o Sol, como a Luz! Sua história foi escrita e reescrita pelos maiores artistas da
humanidade e é lida todos os dias por milhões de crianças no mundo todo, o
tempo todo. Você está viva nas risadas das crianças, nas narrativas das vovós, na
memória de adultos como eu, que jamais negaremos a beleza da sua história!
(BANDEIRA, 2009, p. 40, grifo nosso).
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PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
2009, p. 46). Assim que Feiurinha cresceu, as bruxas além de deixarem o
trabalho da velha casa para ela a atormentavam dizendo que ela era feia.
As bruxas falavam de seus dentes, de seus cabelos louros, de seu nariz:
“– É isso: você é mesmo um horror! / – Uma vergonha! Uma feiura! / –
Feiurinha! Feiurinha! (BANDEIRA, 2009, p. 48). Feiurinha vivia infeliz,
principalmente, pois não tinha nenhuma verruga como as quatro bruxas:
“Ah, a verruga! Era a razão maior do complexo de feiura de Feiurinha. A
bruxinha e as três bruxas madrastas tinham enormes verrugas cabeludas
na ponta do nariz e até no queixo, enquanto ela... Coitadinha! Não tinha
uma só pinta na pele!” (BANDEIRA, 2009, p. 48).
Feiurinha somente tinha momentos de paz, quando as quatro bru-
xas saíam e ela ficava com o bode, que era seu único amigo. Um dia,
após as quatro saírem, Feiurinha foi buscar água no rio. Ao ver refletida a
sua imagem, a moça ficou triste, por não ter nenhuma verruga. Por essa
razão, começou a tirar a roupa e a procurar em todas as partes do corpo.
Quando ficou completamente nua, a maldição do bode foi desfeita e ele
se transformou em um príncipe “horroroso”. Ao tentar fugir do rapaz,
ele a agarrou pela cintura e lhe disse que a sua beleza o havia libertado.
Feiurinha, inicialmente, não acreditou, pois pensava que era horrorosa.
O príncipe, então, explicou que as bruxas a haviam feito pensar o con-
trário, ou seja, que o feio era bonito e que o bonito era feiro. Ele também
lhe disse que iria até seu reino retomar sua fortuna e que voltaria para que
eles se casassem e vivessem felizes para sempre.
Naquela noite, quando serviu o jantar para as buxas, Feiurinha não se
preocupou com as provocações. Por causa disso, Ruim, Malvada, Piorainda
e Belezinha desconfiaram. Quando constataram que o bode havia sumido,
perceberam o que havia acontecido. Desse modo, disseram à Feiurinha que
sabiam que ela o havia desencantado, que era isso que elas queriam e que
elas eram fadas. Iludida, Feiurinha lhes contou que iria se casar com o prín-
cipe. As bruxas lhe deram de presente de casamento uma pele de urso. Ao
colocá-la, Feiurinha se transformou em uma bruxa horrorosa.
Quase no mesmo instante, o príncipe retornou, procurando por
Feiurinha. Quando a menina transformada em bruxa se apresentou como
Feiurinha, as outras bruxas também o fizeram. Colérico, o príncipe disse
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PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
das três instâncias para a efetivação da mensagem literária e para a legiti-
mação ou permanência da circulação do texto ao longo dos tempos.
Após ouvir a narrativa de Jerusa, o narrador-personagem-escritor
se alegra, pois tem o material coletado para escrever e publicar a história
de Feiurinha e fazê-la reaparecer. Como os recolhedores de contos de
fadas mencionados na obra de Bandeira – Charles Perrault, Jacob e Wi-
lhelm Grimm, Hans Christian Andersen –, para (re)escrever seu conto, o
narrador-personagem-escritor coleta material da tradição oral. De acordo
com Carlos Aldemir Farias (2011, p. 19), “[f ]oi graças à tradição oral que
muitas histórias se perpetuaram, sendo transmitidas de uma geração para
outra”. Neste sentido, Jerusa simboliza a tradição oral e, ao (re)contar a
história de Feiurinha, perpetua a narrativa desta.
Na narrativa de Bandeira, Jerusa é uma senhora de setenta anos,
que tinha ouvido histórias contadas por sua avó, que também ouvira da
avó dela, o que garante a preservação da narrativa de Feiurinha e, con-
sequentemente, da memória da sociedade da qual faz parte. Os anciãos,
em algumas comunidades da África, por exemplo, são os responsáveis
por propagar os saberes e os ensinamentos do seu povo. Por causa disso,
Amadou Hampâté Bâ (2003) salienta que: “[n]a África, cada ancião que
morre é uma biblioteca que se queima”. Esta frase do escritor malinês
evidencia a importância da tradição oral.
Jerusa representa, igualmente, os contadores de histórias, responsá-
veis por guardar a memória do seu povo. Nesse caso, ela guarda, mantém
viva, a narrativa de Feiurinha. Por esse motivo, Branca Encantado se põe
aos pés de Jerusa e lhe pede que conte: “– Jerusa, por favor, conte pra nós.
Só você pode trazer Feiurinha de volta” (BANDEIRA, 2009, p. 42). De
acordo com Carla de Lima e Souza Campos e Vanessa Gomes Franca
(2017, p. 50): “Contar histórias é fundamental para a permanência da
humanidade. Contadores são o acervo vivo de um povo, carregando em
si lendas, causos, acontecimentos, canções, êxitos e fracassos [...]”. Quan-
do o contador não conta suas histórias, muitas delas se perdem, como
quase aconteceu com a de Feiurinha.
Através do ato de contar, Jerusa retrata as mulheres contadoras de
histórias. As mulheres sempre contaram. “Por meio de suas vozes e de
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PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
mem poderoso. Fosse deus, apareceria como leão, touro bravio ou águia
lançando-se das nuvens. Até o crocodilo e a serpente poderiam abrigar
deus em seu corpo” (COLASANTI, 2015, p. 230-231).
Devido a descrença em sua identidade, o deus-mulher procura
por um emprego, conseguindo um trabalho para auxiliar nas atividades
domésticas de uma casa. Ali, a esposa, o marido e filhos cumpriam suas
“tarefas”. À noite, a família se reunia no estábulo, para aproveitar o ca-
lor dos animais e desenvolver algumas atividades. No entanto, entre eles
“ninguém falava”. À vista daquela situação:
Até mesmo o deus, de fuso na mão, se entediava. E uma noite, não
suportando a mesmice dos gestos e do silêncio, abriu a boca e começou a
contar.
Contou uma história que se havia passado no seu mundo, aquele mundo
onde tudo era possível e onde viver não obedecia regras pequenas como
as dos homens. Era uma longa história, uma história como ninguém
nunca havia contado naquela cidade onde não se contavam histórias. E as
mulheres ouviram de olhos bem abertos, enquanto o fio saía fino e delicado
entre seus dedos. E os homens ouviram esquecidos de suas ferramentas. E
o menino que chorava adormeceu no colo da mãe. E as outras crianças
vieram sentar-se aos pés do deus. E ninguém falou nada enquanto ele
contava, embora em seus corações todos estivessem contando com ele.
A noite foi curta aquela noite. [...]. (COLASANTI, 2015, p. 232, grifo nosso).
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PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
contadas e cantadas, imortalizam-se no interior de cada ouvinte inde-
pendente da época” (MORIKI; FRANCA, 2017, p. 175). Para narrar,
todo contador precisou ouvir histórias de seus avós, pais, tios, profes-
sores, conhecidos e desconhecidos. Desse modo, “[...] ao ouvinte é
facultado o poder de ‘guardião das histórias’. É do ouvinte o mérito
da perpetuação das histórias ao longo da História. Caso se perdesse
o público ouvinte, perder-se-iam também as narrativas, já que não
seriam guardadas nem tampouco transmitidas” (CAMPOS, 2015, p.
29-30, grifo da autora).
Além de tratar a respeito da tradição oral, a obra de Bandeira
aborda a tradição escrita, evidenciando a importância do escritor, do
livro e do leitor e, consequentemente, da leitura, para a Literatura. As-
sim, salienta a necessidade da escrita das histórias, para que elas não se
percam. O narrador-personagem-escritor, após Jerusa contar a narrativa
de Feiurinha, comenta sobre as diversas histórias que foram contadas
e recontadas, mas, por não terem sido escritas e, consequentemente,
lidas, acabaram caindo no esquecimento: “Quantas histórias lindas, in-
ventadas e contadas [...] por vovós cheias de imaginação, perderam-se,
foram esquecidas, por falta de alguém que as escrevesse. E, mesmo es-
critas, por falta de alguém que as lesse! Será que, se eu escrever a história
da Feiurinha, alguém vai ler?” (BANDEIRA, 2009, p. 59).
Desse modo, as histórias precisam ser escritas, lidas e relidas, para
serem conservadas, tal como ocorreu com as narrativas de Branca de
Neve, Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Rapunzel, A Bela Adormeci-
da, A Moura Torta e A Bela e a Fera. Estes contos são contados e recon-
tados até hoje, como Pedro Bandeira faz, pois Charles Perrault, Jean-
ne-Marie Leprince de Beaumont, os irmãos Grimm, Hans Christian
Andersen, e diversos outros escritores, coletaram histórias que faziam
parte da tradição oral e as publicaram em livro. Neste sentido,
a oralidade funda a necessidade da escrita, do código impresso. Seja na
areia, no barro ou em placas de argila cozida, os relatos orais transmitidos
de pessoa para pessoa, de geração para geração e de povo para povo,
ganham outra dimensão e sentido quando “eternizadas” no registro da
escrita (CAVALCANTI, 2004, p. 28, grifo da autora)
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PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
como não tinham uma pena de ganso, como as que os escritores antigos
usavam para escrever suas histórias, deram-se a pena de um velho cisne,
que outrora foi o Patinho Feio” (BANDEIRA, 2009, p. 60). Como um
autor moderno, o narrador comenta que guardará o presente e utilizará
a máquina para escrever a história de Feiurinha.
Na página 62 do livro de Bandeira (Figura 2), vemos uma parede
com dez quadros. São retratos/pinturas das personagens da história de
Bandeira: Branca Encantado, Chapeuzinho Vermelho, Cinderela En-
cantado, Rapunzel Encantado, Bela Adormecida Encantado, Rosaflor
Della Moura Torta Encantado, Bela-Fera Encantado, Feiurinha, Caio e
Jerusa. Em frente aos quadros, uma mesa com uma máquina de escre-
ver. Nesta, uma folha branca com alguns escritos. Na parte superior te-
mos: “Capítulo Um”. Logo abaixo há o texto: “Era uma vez, há muitos
e muitos anos, uma linda menina que foi raptada ainda no berço por
três bruxas malvadíssimas...” (BANDEIRA, 2009, p. 62).
Fonte: BANDEIRA,
Pedro. O fantástico
mistério de Feiurinha. 3.
ed. São Paulo:Moderna,
2009. p. 62.
Considerações finais
Ao iniciar sua obra com o capítulo “Zero” e continuar com os
capítulos “Zero e Meio”, “Zero e três quartos”, “Zero, três quartos
e mais um pouquinho”, “Zero, três quartos e outro pouquinho”,
“Zero e cinco sextos”, “Zero, cinco sextos e tanto”, “Zero, quase
um”, “Zero, mais que quase um”, “Zero, quase caindo no um”, até
chegar ao “Capítulo Um”, Pedro Bandeira desvela ao leitor que,
antes do primeiro capítulo de um livro, antes de se publicar uma
história, são necessários alguns elementos, como, por exemplo, o
ASPECTOS METAFICCIONAIS EM O FANTÁSTICO MISTÉRIO DE FEIURINHA, DE PEDRO BANDEIRA: QUESTÕES SOBRE O 155
PERSONGEM-ESCRITOR, A TRADIÇÃO ORAL E A TRADIÇÃO ESCRITA
próprio escritor. É por essa razão que Caio, o lacaio de Branca En-
cantado, aparece na casa do narrador-personagem-escritor, para que
ele escreva a história de Feiurinha, que havia desaparecido. O seu
desaparecimento significava que o encanto da felicidade eterna das
outras heroínas dos contos tradicionais também seria quebrado e
que, consequentemente, elas poderiam sumir.
Como o narrador-personagem-escritor não conhecia a narrativa de
Feiurinha, inicia-se uma busca por alguém (folcloristas, bibliotecários e
historiadores) que a soubesse. Descobre-se, então, que Jerusa, sua empre-
gada, sabia a história de Feiurinha por tê-la ouvida de sua avó, que ouviu
da avó dela, o que retrata a tradição oral dos contos clássicos.
Após a coleta do conto da tradição oral, o narrador-personagem-
-escritor escreve a história de Feiurinha. Mesmo assim, sua existência
não está assegurada, uma vez que, se sua narrativa não for lida, ela não
existirá. Ademais, é preciso que ela seja contada, para que não caia no
esquecimento. De acordo com Zilberman (2014, p. 58):
Na companhia das personagens tradicionais dos contos de fadas, como
Branca de Neve ou Chapeuzinho Vermelho, Feiurinha representa
a memória do passado que, mesmo filtrado pela desmitificação e
atualização, igualmente presentes na narrativa de Bandeira, precisa ser
mantido, porque constitui a tradição e a história a que pertence o leitor.
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SOBRE OS AUTORES
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Paulo Alberto da Silva Sales
Doutor em Letras e Linguística – Estudos Literários – pela Univer-
sidade Federal de Goiás. Professor do Instituto Federal Goiano, Câmpus
Hidrolândia. Atualmente desenvolve pesquisa de Pós-doutoramento em
Literatura Comparada em Língua Portuguesa sob supervisão da Profa.
Dra. Zênia de Faria.
E-mail: paulo.alberto@ifgoiano.edu.br
162
dos sobre a narrativa brasileira contemporânea” (CNPq/UFG).
E-mail: Francavg@hotmail.com
Zênia de Faria
Professora Titular de Literatura Francesa da Universidade Federal
de Goiás (aposentada), onde ainda leciona Literatura Comparada e Teo-
ria Literária como membro efetivo do Programa de Pós-Graduação em
Letras e Linguística. Mestre em Letras Modernas/ Francês (U. de Limo-
ges/França). Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP).
Pós-doutorado no Centre d’Études et de Recherches Comparatistes, do
Instituto de Literatura Comparada da Universidade de Paris III — Sor-
bonne Nouvelle, onde também foi Professora Convidada, no Instituto
de Estudos Portugueses e Brasileiros. Entre suas publicações destacam-
-se traduções; ensaios, em particular, sobre intertextualidade, metaficção,
tradução, Mallarmé, João Cabral de Melo Neto e Osman Lins. É pesqui-
sadora do CNPq/FAPEG. Projetos em andamento: Interdisciplinaridade
e Ensino da Literatura; Metaficção e noções correlatas. É membro do GT
de “Literatura Comparada” da ANPOLL. Recebeu – do Governo Fran-
cês – a Comenda de Chevalier des Lettres et des Arts.
E-mail: zefirff@gmail.com
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Título: Ensaios Sobre Literatura e Metaficção
Direção-Geral: Antón Corbacho Quintela
Assessoria Editorial e Gráfica: Igor Kopcak
José Vanderley Gouveia
Revalino Antonio de Freitas
Sigeo Kitatani Júnior
Divisão Administrativa: José Luiz Rocha
Divisão de Revisão: Maria Lucia Kons
Divisão de Editoração: Alberto Gabriel da Silva
Divisão Gráfica: Alberto Gabriel da Silva
Divisão de Impressão e Acabamento: Daniel Ancelmo da Silva
SOBRE O LIVRO
Tipologia: Adobe Garamond Pro, Aller, Brother 1816
Papel: Pólen 80 g/m² (miolo)
Supremo 250 g/m² (capa)
Número da públicação: 33
Tiragem: 300
Impressão e acabamento: Cegraf UFG