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Georg Simmel pensou e repensou ao longo de boa parte de sua vida questões
concernentes aos fundamentos da sociologia, o que se liga à circunstância
de seu período de maturidade intelectual coincidir com o primeiro mo-
mento de institucionalização da sociologia no mundo acadêmico alemão.
Muito do que disse e escreveu sobre o tema inspirou ou interessou vários
sociólogos e filósofos sociais posteriores: de Horkheimer a Park, de Schütz
a Becker, de Elias a Goffman, de Mead a Luhmann. Dos registros do seu
pensamento sobre o tema, o que temos hoje de mais importante são quatro
textos publicados ao longo de quase três décadas, em 1890, 1894, 1908
e 1917. O primeiro, intitulado “Introdução: para uma epistemologia da
ciência da sociedade” (Simmel, 1989a, pp. 115-138), é o capítulo inicial de
seu livro sobre a diferenciação social; como notou Frisby, embora a posição
de Simmel quanto à sociologia fosse então ambígua, já podemos detectar
nesse texto as bases de seu projeto sociológico (cf. Frisby, 2002, p. 33). Se,
em 1890, a intenção era apenas indicar o rumo para tal projeto, quatro
anos depois Simmel tentaria pela primeira vez levá-lo a termo, com “O
problema da sociologia” (Simmel, 1992a). Esse breve texto serviria de guia
para o primeiro capítulo da Soziologie, sua principal obra como sociólogo, de
1908 (Simmel, 1992c, pp. 13-62). Simmel voltaria a publicar um texto do
gênero em 1917, quando seu interesse pela sociologia já não era o mesmo;
trata-se aí de outro capítulo introdutório, bem decalcado do anterior, mas
agora com o título “O domínio da sociologia” (1999, pp. 62-87; 2006, pp.
7-38). Nesse conjunto de textos, temos o que se pode chamar de programa
sociológico de Simmel.
1. Este artigo é uma reelabora-
ção da primeira seção do ter- Neste artigo, proponho discutir esse programa, visando descortinar
ceiro capítulo dessa dissertação, algumas das problemáticas que o nortearam. Para isso, pauto-me em uma
que desenvolvi como bolsista da
Fapesp.
leitura das analogias de que Simmel se serviu para formulá-lo.
2. Essa conta se baseia nos dados
O enfoque não é acidental. Como se sabe, Simmel recorria com fre-
apresentados em Bárbara (2012, quência a comparações por analogia, nas suas mais variadas formas; em
p. 535, tabela 7). A contabiliza-
ção foi feita segundo os critérios
outro trabalho, mostrei como, além da presença numérica, as analogias de
indicados nessa mesma obra. Simmel exercem uma miríade de funções distintas, centrais para o seu estilo
3. Trata-se do começo de “Re- de pensamento (cf. Bárbara, 2012, pp. 342-344)1. Além desse motivo geral,
presentações individuais e re-
presentações coletivas”. A essa
aponto como justificativa para esse enfoque uma segunda circunstância,
altura do texto, Durkheim trata ligada mais de perto ao núcleo temático deste artigo: o tratamento dado por
ambas as formas de representa-
Simmel à pergunta sobre os fundamentos da sociologia, tal como aparece em
ção como análogas, afirmando
que elas mantêm a mesma rela- seu programa sociológico, pois uma leitura atenta desse programa permite
ção com seu respectivo substra-
identificar que se trata de um conjunto de textos especialmente densos em
to – o que, longe de significar a
redução de uma à outra, implica analogias. Para ilustrar o ponto, noto que o primeiro capítulo da Soziologie,
algum grau de independência em que temos a mais nuançada e extensa versão do programa simmeliano,
dos termos análogos quanto a
suas respectivas matérias (Dur- conta com mais de sete analogias a cada dez páginas, enquanto no conjunto
kheim, 1970, p. 14). Simmel dos nove capítulos restantes do livro (em que o programa é posto em prática)
conhecia bem essa concepção de
analogia, presente em Aristóteles
essa frequência cai para menos de quatro por dez páginas2.
e mais tarde avaliada por Kant. O peso das analogias para o programa sociológico de Simmel tem a ver,
4. As “importações conceituais” sem dúvida, com seu potencial heurístico – uma característica mais geral do
a que me refiro são metáforas.
Este não é o espaço para esqua-
raciocínio analógico, que não se limita ao caso desse autor. Em linhas gerais,
drinhar a relação entre metáfora pode-se dizer que essa característica faz da analogia um meio de orientação
e analogia, mas, ainda assim, é
especialmente adequado para formular problemas em grande parte ainda não
importante tratar rapidamen-
te do assunto por meio de um formulados, como era o caso de vários dos problemas básicos da sociologia
exemplo. Quando Durkheim, na época de Simmel. Não por acaso, autores de resto muito diferentes dele
portanto, importa o conceito
de patologia da medicina para a recorreram ao mesmo expediente diante de situação semelhante. Um deles
sociologia, construindo a metá- foi Durkheim, que não só comentou a utilidade da analogia para a sociologia,
fora da patologia social, a inteli-
gibilidade dessa importação de-
prescrevendo certas regras para seu uso adequado (cf. Durkheim, 1970, p.
pende de que se estabeleça uma 13)3, como ainda recorreu a importações conceituais similares à analogia
comparação analógica entre o
sentido desse termo no contexto
na “sua batalha para obter o reconhecimento do estatuto de ciência para a
semântico de origem do termo sociologia” (Lukes, 1984, p. 37)4.
(podemos pensar aqui na medi-
cina) e o seu sentido no contexto
Na Alemanha, Simmel se engajava na mesma batalha. Porém, se tanto
de chegada (a sociologia). ele como Durkheim recorreram a meios semelhantes para alcançar um fim
lógico de Simmel, exprime uma analogia mais fundamental entre visão e que define método como “um
recurso da pesquisa para se
cognição, em torno da qual orbitam várias de suas analogias mais específicas. chegar por um novo caminho
Para ele, fazer sociologia é fazer-ver a cultura humana do ponto de vista das aos fenômenos” culturais ou
históricos, como a religião, a
interações de suas partes; é produzir uma imagem distintamente sociológica economia e o direito – logo após
do mundo “do espírito”5. referir-se à sociologia como uma
novo modo de observação a que se
Esse é, sem dúvida, um conceito vago de método, orientado a incre- chegaria “nas assim chamadas
mentar o conhecimento da realidade social, a fazer-ver o que ainda não se ciências do espírito”.
viu, mas sem delimitar ou predefinir um método mais substantivo6, mais 6. Durkheim faz uma crítica
similar à demarcação da socio-
à mão para ser aplicado pelo futuro sociólogo. Entretanto, por si só, essa logia proposta por Simmel (cf.
observação não permite chegar ao cerne da questão. Mais revelador é que Durkheim, 2004, p. 84).
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As formas da sociedade
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fora desse nexo, a analogia com a geometria já não faz sentido11. fez isso no primeiro dos dois pa-
rágrafos dedicados a expor a sua
Consideremos um dos momentos em que Simmel formula sua analogia sociologia “pura”, cujo objetivo
com a geometria: seria investigar o que é exclu-
sivamente social na sociedade,
numa clara oposição ao que ele
O conceito de sociedade abrange dois significados que devem ser mantidos, para aí chama de sociologia geral (cf.
Simmel, 1999, pp. 82-84; 2006,
a discussão científica, fortemente demarcados um do outro. De um lado, ela é [...] pp. 32-35). Ainda voltarei a isso;
o material humano socialmente formado, tal como constituído pela realidade his- neste ponto, interessa que, nove
anos após a Soziologie, o contex-
tórica como um todo. Mas, de outro, “sociedade” é também a soma das formas de
to argumentativo da analogia
relação que possibilitam que se faça, a partir de indivíduos, a sociedade na primeira geométrica é o mesmo.
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com a geometria fazer tanto sentido para Simmel: ela parece fornecer uma
saída imanente para o problema do lugar da sociologia entre as ciências,
concebido “kantianamente”, afinal.
Como vimos, a solução para esse problema implicaria demonstrar que a
sociologia é capaz de sondar um espectro da realidade que não poderia ser
sondado de outro modo, o que, para Simmel, depende da identificação do
que, na sociedade, seria “pura” sociedade. A isto ele deu o nome de formas
de socialização, que são como as formas puras da geometria segundo Kant.
Ou seja, embora não tenhamos nenhuma experiência particular de uma
esfera pura, somos capazes de intuir a “esfericidade” de uma esfera real, de
estudar suas propriedades, de entender como suas partes se inter-relacio-
nam – enfim, de fazer geometria. Grosso modo, a geometria é possível, para
Kant, porque toma como objeto isso que ele chama de intuições puras do
espaço, nas quais as “formas” do espaço em geral são pensadas de maneira
independente de toda “matéria” ou “conteúdo” particular. Para Simmel, a
sociologia deve, analogamente, buscar separar as formas de socialização dos
conteúdos particulares da vida humana.
Essa separação é, por sua vez, o que lhe permite identificar a sociologia
como ciência. Este é o ponto: a analogia com a geometria serve para fazer-
-ver o que confere cientificidade à sociologia; nesse sentido, ela faz parte da
estratégia mobilizada por Simmel para incorporar a sociologia ao conjunto
das ciências. Simmel (1992c, pp. 27-28) foi claro ao tratá-la como simples
meio para tal fim. Ao restringir desse modo o sentido de sua analogia, ele
já prepara o terreno para identificar as limitações desta, mas não antes de
desdobrá-la mais um pouco:
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A vida da sociedade
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Talvez se possa ver a fronteira do ser propriamente social lá onde a interação das
pessoas umas com as outras não só se constitui num estado subjetivo ou na ação
dessas pessoas, mas também onde traz à tona uma estrutura objetiva, que tem certa
independência diante das personalidades singulares que nela tomam parte. [...] É aí
que está a sociedade, é aí que a interação se concretizou em um corpo – um corpo
que identifica aquela interação como algo social, distinguindo-a da que desaparece
com os sujeitos diretamente em jogo e com seu comportamento momentâneo
(Idem, pp. 133-134).
16. Apesar desse núcleo, a ana- como uma espécie de microscopia social, sendo esse o núcleo de sua refor-
logia de método com a biologia
ainda toca em outros pontos. A mulação da analogia biológica16. O microscópio permitiu “a percepção de
certa altura, por exemplo, Sim- novos segmentos do real” (Waizbort, 2000, p. 96), o que, se não bastou
mel fala em “aplicar o princípio
dos efeitos infinitamente múlti-
para eliminar a contingência e a crueza inevitáveis do nosso conhecimento
plos e infinitamente pequenos sobre o interior do corpo humano, permitiu um incremento sem igual do
justamente ao caráter sincrônico
da sociedade, tal como se mos-
conhecimento sobre ele. Simmel, claro, apropria-se do microscópio por ana-
trou eficaz nas ciências diacrô- logia17: sugere que devemos observar as formas mais voláteis de socialização
nicas da geologia, da teoria bio-
lógica da evolução e da história”
buscando detectar como elas permitiriam a existência da sociedade empírica,
(1992c, pp. 33-34). Na teoria como contribuiriam para que as formas de vida surgissem, permanecessem,
da evolução de Darwin – uma
transformassem-se ou eventualmente desaparecessem.
das ciências diacrônicas a que
se refere – esse princípio implica A analogia de método com a biologia (aliás, mantida na versão de 1917
que as transformações das for- de seu programa sociológico, ao contrário da analogia com a geometria,
mas de vida devem ser tratadas
como produto de um acúmulo que então retornaria ao segundo plano) é o que, ao lado do excurso do pri-
de pequenas mudanças ao longo meiro capítulo do livro, permite enquadrar no plano da explicitação teórica
de grandes períodos de tempo.
Ainda nesse caso, não “vemos”
vários dos capítulos e excursos que compõem a Soziologie, como o capítulo
tais mudanças acontecerem pois sobre o segredo e o excurso sobre a sociologia dos sentidos. Como sugeri,
as consideramos muito parcial-
mente: o tempo de nossa vida é
Simmel emprega essa analogia para comunicar sua resposta ao problema
muito pequeno se comparado ao da complexidade da vida social, concebido já desde 1890 na chave de uma
tempo da evolução das espécies.
analogia entre a sociedade e a vida.
17. Isso porque as inovações
Eis o problema, agora formulado fora dessa chave: as formas efêmeras de
técnicas de que depende o incre-
mento do conhecimento do real socialização parecem impor dificuldades especiais para serem compreendidas,
podem se dar quer na forma da como se nossos dedos não fossem delicados o bastante para desembaraçar
confecção de novos artefatos cul-
turais, como o microscópio, quer os fios mais finos do real. Elas são, em uma palavra, complexas, e em geral
na forma de construções e esque- só dizemos que algo é complexo ou complicado quando já não somos mais
mas conceituais (ver exemplo na
nota anterior), o que sugere uma
capazes de defini-lo de maneira inequívoca. Simmel não fugiu a essa regra:
analogia, hoje bastante popular, considerava esse tipo de complicação característica da sociedade empírica,
entre a teoria de Darwin e a epis-
temologia, que Simmel formula
constituída na prática como um emaranhado de formas dinâmicas de
explicitamente em um ensaio de socialização – que já não são formas puras, como as estudadas pela geometria,
1895 (cf. Simmel, 1992c, pp.
62-74), cujo conteúdo seria mais
mas sim cruas e imperfeitas, como aqueles círculos desenhados com giz, cujos
tarde incorporado a Filosofia do “defeitos” ou modulações o sociólogo, ao contrário do matemático, não pode
dinheiro.
ignorar (cf. Cohn, 1998).
Assim concebidas, as analogias com a geometria e com a microscopia
18. Evidentemente, ligado ao
problema bem menos transcen-
funcionam como duas estratégias complementares mobilizadas para educar o
dental da inserção da sociologia olhar sociológico. Elas funcionam, para resumir, como formas de exposição
como atividade institucionaliza-
da no mundo acadêmico alemão.
para as soluções provisórias de dois dos problemas básicos com que Simmel
Esse ponto já está bem assentado teve de lidar na tentativa de fundamentar a sociologia: de um lado, o pro-
na literatura sobre Simmel; ver,
por exemplo, Waizbort (2000,
blema “kantiano” do seu devido lugar na confederação das ciências18; de
pp. 509-534). outro, o problema “darwiniano” da complicação e da contingência próprias
ao universo social19. Simmel, ao atuar como sociólogo, comunica a solução 19. Em minha dissertação, explo-
ro com mais detalhes a recepção
desses problemas por meio de sua analogia de método com a biologia. simmeliana de Darwin, que é
Mas, como se sabe, o papel de sociólogo não foi o único que ele desem- mais intrincada e profunda do
que pude aqui reconstruir (cf.
penhou ao longo da vida. Bárbara, 2012, pp. 44-68 e
221-227).
Referências Bibliográficas
______. (1999), Georg Simmel Gesamtausgabe. Vol. 16: Der Krieg und die geistigen
Entscheidungen; Grunfragen der Soziologie; Vom Wesen des historischen Verstehens;
Der Konflikt der modernen Kultur; Lebensanchauung. Frankfurt, Suhrkamp.
______. (2006), Questões fundamentais da sociologia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
______. (2013), “Excurso sobre o problema: como é possível a sociedade?”. Sociologia
& Antropologia, 6 (3): 653-658.
Waizbort, Leopoldo (2000), As aventuras de Georg Simmel. São Paulo, Editora 34.
Weber, Max. (1991), “Simmel als Soziologe und Theoretiker der Geldwirtschaft”.
Simmel Newsletter, 1 (1): 9-13.
______. (2006), A “objetividade” do conhecimento nas ciências sociais. São Paulo, Ática.
Resumo
Abstract
In this paper, I seek to grasp and analyze the sociological program of the german thinker
Georg Simmel (1858-1918), deemed as one of the founders of german sociology. The
analysis will be guided by a close reading of the main methodical analogies that Simmel
resorted to in his attempt to give a foundation to sociology as a scientific endeavor. The
purpose of this paper is to expose some of the main questions that shaped Simmel’s
sociological program, in order to identify the distinctive mark of the answers he gave
to such questions.
Keywords: Georg Simmel; Analogy; Foundations of sociology; German thought.
Texto enviado em 30/1/2014 e
aprovado em 27/2/2014.