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Oque é ser
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Mar de morros

Minhas primeiras viagens, ainda na infância, feitas por alguém


que não pensava que um dia viesse a se tornar geógrafo, adqui-
riram, posteriormente, uma importância fundamental. Ao lon-
go da vida, cada impressão que tive de paisagem, de clima ou
de tempo foi por mim interpretada geograficamente mais
tarde, por mais recôndita que estivesse na memória. Aos pou-
cos, atingi a noção da organização natural do espaço em face
da (des)organização humana do território.
Foi ao findar nossa estada em São Luiz do Paraitinga, ci-
dade onde nasci, 110 interior de São Paulo, que meu pai teve a
bela idéia de apresentar para a família um trecho do mar bra-
sileiro. Ele conversou com um fazendeiro da localidade vizi-
nha de São Pedro de Catuçaba, que decidiu nos acompanhar.
Era o ano de 1930: eu tinha seis anos.
Para meu pai, a viagem tinha o sabor de triste despedida
da região de São Luiz - logo iríamos nos mudar para Caçapava.
E viajamos, meus pais, meus dois irmãos, o fazendeiro Hilde-
brando, seus filhos e algumas pessoas que podiam ajudar na
empreitada. Fizemos a cavalo o trajeto de São Luiz a Ubatuba,
no litoral, seguindo o caminho dos tropeiros, que no passado
levavam as sacas de café para o porto. Os ·adultos iam monta-
dos, e nós, os pequenos, dentro de um jacá: o jacá da direita e
o jacá da esquerda. Puseram o Luiz e o lussef em um, e eu no
outro. Como eles pesavam um pouquinho mais, puseram uma
pedra junto de mim.
Depois de um dia de viagem, paramos em uma fazenda.
Dormimos pelo chão e no dia seguinte partimos para Ubatuba.

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AZIZ NACIB AB'SABER OQUE ( SER GEÓGRAFO
Da fazenda até Ubatuba, a gente saía de um espaço sern·di e. Gravei aquele nome, "tombo". Éum tipo de praia de areia
gradado e depois penetrava na selva densa. Lembro-me corn grossa, com o estreito estirâncio (faixa de areia exposta entre
se fosse hoje: era quase uma trilha, ficava embaixo do dosse~ a maré baixa e a maré alta), hoje eu sei. A gente afundava o
das árvores. pé quando andava. Era uma praia brava, não adequada para
Não víamos mais a paisagem quando entramos na mata tomar banho, muito menos para crianças. Naturalmente, isso
do setor continental da serra do Mar. Pingavam gotículas~ evoluiu muito, há a possibilidade até de realinhar algumas
coisas da praia de tombo, mas, de qualquer maneira, não é o
tempo todo, e os adultos cobriram o jacá para as crianças não
se molharem. De forma que não vi mais nada. Essa é para lugar ideal.então a uma outra praia, num outro recôncavo ao
Fomos
mim a lembrança de uma solidão muito grande de menino,
norte de Ubatuba, a praia do Perequê-Açu, se não me engano.
ali, no jacá, vendo cair uns pinguinhas... De vez em quando, Elá era praia de banho: foi a primeira vez que pus os pés na
abria uma frestinha e olhava. E era mato para cá, para lá, e água salina. Achei magnifica a pequena viagem da baia de
em cima o dossel da floresta fechada sobre nós.
Ubatuba para a outra enseada.
Pela primeira vez, vi uma certa diversidade de frutas nacio- Hoje essa região está cheia de ruas, casas, mansões esítios.
nais, nativas. Na borda da mata, cresciam algumas arvore- Voltei lá recentemente e fiquei boquiaberto com a transfor-
zinhas, como araçá. Elá em baixo, no litoral, havia um tipo de mação. Tinha a memória da criança que viu só a natureza,
tangerina que o pessoal chamava de mexerica carioca - dia havia muita vegetação nativa no entorno. Era de uma beleza
desses, reencontrei esse nome aqui em São Paulo, no merca- inusitada, porque a mata chegava até a beira da praia, não
do. São bem cheirosinhas, saborosas. Fiquei deslumbrado com tinha ainda aquela especulação, de lotear quase tudo, o que
tudo aquilo, porque não conhecia. mais tarde ocorreu ... Na época em que cheguei ali, ainda me-
Quando acabamos de fazer aquele trajeto complicado no nino, não havia muita gente. Atualmente, apesar do excesso
caminho antigo pela serra do Mar para chegar a Ubatuba, de de construções, continua a ter pouca gente morando, devido
repente me encontro em uma cidade meio morta naquele mo- à sazonalidade da população.
mento. Ubatuba já não tinha mais as funções de porto, e era Todas essas imagens ficaram na memória. Mais tarde, quis
uma cidade que, no fim da tarde, começo da noite, me deu a entender por que senti tanto frio naquela excursão, por que
impressão de mal-assombrada. gotejava tanto ... Estudando geografia, resolvi esse enigma de
Perto de um rio que desaguava na ponta da praia, vi uns infância: descobri que é porque tinha um clima que chama-
prédios antigos, que estavam relacionados com o comércio do mos "Cfa" - tropical com nevoeiro esereno, segundo Kõppen.
café que havia ali no passado. A igreja estava totalmente isola- Também concluí que aquela mata era um pouco daquilo
da no meio de uma praça sem árvores, sem vizinhança. Quando que já vira em outros lugares, com o nome de mata fria. Mui-
chegamos à praia, alguém me disse: "As praias são para a gente tos anos após essa viagem de infância, descobri, lembrando
tomar banho, mas essa não pode, porque éuma praia de tombo." lS
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dela, que o problema principal das matas tropicais aw .
OQUE t SER GEÓGRAFO
não é só o ca 1or, e• o ca 1or potencia
. 1rzado
· pela urnidaant,c,Qs
. duas vezes ou mais. do que o calor P de·"A
um idade funciona cultivar para subsistência e levam seus produtos para vender
a noite é fria nesses lugares. , orque no mercadão de São Luiz. Em troca, adquirem as coisas que
Pouco tempo depois, quando partimos para Caçapava não têm - querosene, açúcar, sal - e vão para a missa. Vão
vender mercadorias e assistir às missas, basicamente.
viagem marcou um pouco também a minha vida. Saindo d' ª
a. Na época, não tive a noção de estar saindo de um domínio
quele meandro raso de São Luiz, com a praça bonitinha, lin. morfológico de mar de morros para um domínio de morros
dos casarões, ao passar a ponte entrávamos pela borda de um mais baixos e colinas tabuliformes compartimentadas: a ba-
morro. Após um longo trecho, o caminho mudava muito, Pois cia de Taubaté, onde fica Caçapava, tem colinas mais altas
'
saíamos do alto vale para o médio vale do Paraíba. Papai dis- próximas dos morros mais baixos, de onde vêm as cabeceiras
se: "Esse aqui é o morro da Samambaia. Daqui nós já vamos de drenagem da margem direita do médio Paraíba. Ao mesmo
partir para Taubaté." tempo, há um segundo nível, que foi muito bem aproveitado
pela cidade, um patamar intermediário, e hoje sei que não é
Anos mais tarde, quando voltei a São luiz, quis ver o mor-
só a bacia de Taubaté que tem isso.
ro da Samambaia. Era o divisor de águas do alto Paraitinga/ Quando vou à avenida Paulista, estou no espigão central
Paraibuna com os rios que vão diretamente para o médio Pa- das colinas paulistanas, e quando desço para a praça da Re-
raíba, atravessando os morros mais baixos e depois as colinas pública, é como se descesse para uma planície, que não épro-
de Taubaté. Quando vi o morro, sofri uma decepção. Como priamente uma planície, porque os rios Tietê e Anhangabaú
era pequenino, tinha essa noção de que tudo era maior. De estão bem encaixados nesse nível intermediário.Amesma coisa
repente, vejo que aquilo que eu pensava ser grande demais existia nos sítios urbanos das cidades do médio ealto Paraíba:
era uma coisa até relativamente reduzida. Pindamonhangaba, Caçapava e Taubaté estavam sempre no
Na infância, o morro da Samambaia me pareceu uma des- nível intermediário. A única que não nasceu nesse nível foi
cida muito forte. Quando voltei adulto, esperava que esse São José dos Campos, que já está nas colinas mais altas e
divisor de águas fosse uma escarpa; no entanto, é quase im- planas.
perceptível: vindo de Taubaté, o carro vai subindo uma ladei- Continuei sempre com a recordação dessas viagens, reinter-
ra, e subitamente damos com a visão do que, aprendi mais pretando coisas que não podia saber, porque não era nem
tarde, é chamado de mar de morros. alfabetizado quando saí de São Luiz do Paraitinga. Tento en-
tender o que representariam esses fatos se eu tivesse consciên-
Omar de morros na região é, atualmente, muito pelado de
vegetação. Agora sei a história inteira da ocupação daquele cia geográfica.
No livro Infância, de Graciliano Ramos, há alguns fatos
solo - primeiro a mata, depois o café, o ciclo do café termi-
interessantes sobre sua saída de Buíque, no sertão de Pernam-
nando e os fazendeiros mudando para suas casas na cidade.
buco, até a zona costeira. Omenino Graciliano estava trans-
As fazendas ficaram sem recursos, os roceiros começam a
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.._
AZIZ NACIB AB'SABER

pondo os aspectos de Pernambuco. Os rios estavam secas .
medida que eIecamm . hava, passava aque Iepouquinho
· de á e,;
_ . 9u~
um fiozinho, a vegetaçao começava a ser maior, mais densa
então as águas ficavam mais caudalosas, mais propriarneo~
rio. De repente, chega a lugares em que não dava mais Para
pensar nos rios do sertão; era outro mundo. Comigo, de pe.
queno, foi a mesma coisa: não sabia nada de geografia, mas
me dei conta de que estava saindo do meu mundo.

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Interpretando a paisagem

No mural, embaixo da lista dos que passaram, tinha uma no-


tinha do professor Pierre Monbeig: "A primeira aula do curso
de geografia será no dia tal, uma excursão de campo. Ve-
nham em trajes adequados." Eu nunca tinha feito excursão
de campo com um professor e fiquei entusiasmado.
Iria sair do círculo de conhecimento geográfico espacial
que tinha até então. Não conhecia mais nada depois de São
Paulo - a oeste de São Paulo, noroeste de São Paulo, sudoes-
te de São Paulo. Ea excursão seria para Sorocaba, ltu, Salto e
Campinas. Eu, é claro, não sabia, mas essa excursão iria defi-
nir a minha vida ...
O professor Monbeig, meu grande inspirador - tenho in-
clusive um trabalho sobre ele -, era muito bom observador.
Deixou os alunos à vontade dentro do ônibus, e todo mundo
ficou olhando um pouco para o lado, conversando ... Eu, não:
já que era excursão, queria ver a paisagem daquelas áreas
que não conhecia. Foi o começo da vida de geógrafo: ler e
interpretar a paisagem, ter a noção da seqüência dos cenários
de um determinado espaço, passou a ser uma constante em
toda a minha vida.
As aulas de Monbeig me pareciam atraentes, extraordiná-
rias, mas eu tinha uma certa observação crítica em relação às
dos outros professores. Eles estavam ainda em início de pre-
paração do conhecimento e tentavam fazer sínteses rápidas
de alguns assuntos de livros importantes. Depois das aulas, eu
procurava na biblioteca e via que o que estavam dizendo era
muito pouco ...

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11111--- -
AZIZ NACIB AB'SABER OQUE t SER GEÓGRAFO
Na excursão de campo, o professor Monbeig esperavache. para sair do Tatuapé ou do Belenzinho e pegar o ônibus para
gar num lugar e dizia: "Vamos a~é- aqu_ele pon~o observar o ir até a faculdade, na praça da República ... Foi aí que comecei
conjunto." Um dos pontos essenc1a1s to, o seguinte: atraves. a me dedicar mais à geografia.
samos O que hoje chamamos de serranias de São Roque-Jun. Por causa da primeira excursão de campo, senti que podia
díaí, que separa a região de São Paulo da depressão Periférica ler a paisagem, e todos os sábados e domingos em que estava
Paulista - uma área de rebaixamento das margens da bacia mais livre, ficava "viajando" pela cidade de São Paulo. Naque-
do Paraná -, continuando bem no cantata das duas paisa- le tempo, ainda havia bondes elétricos; eu pegava uma linha
de bonde e, após os seus terminais, andava pelos arredores a
gens, em direção a Sorocaba.
pé, procurando entender a região metropolitana daquela épo-
Ele subiu no alto de um morro e fez uma apreciação sobre
ca, e depois voltava pelo mesmo itinerário. No início, para a
os diferentes setores do relevo do estado de São Paulo: o lito-
pensão da alameda Glete; depois, minha mãe fez meu pai ven-
rale a serra do Mar, depois o planalto Atlântico e, mais adian•
der tudo em Caçapava e vieram morar no Tatuapé, onde abri-
te, a depressão Periférica. O pouco que falou me incentivou a
pensar que havia coisas muito mais extensas nos planaltos ram uma quitanda.
Eu fazia o serviço militar e o primeiro ano de faculdade na
interiores de São Paulo. Mais tarde passaria a pesquisar essa
mesma época, mas fiquei muito adoentado e quase fui repro-
depressão, desde ltu, Campinas e Sorocaba até a base da es- vado em ambos, porque tive que largar tudo por dois ou três
carpa de Botucatu. meses. Meu pai teve que ir lá explicar, e eles entenderam.
Mas ainda não tinha me decidido só pela geografia. As Quando saí, voltei para a faculdade e para o serviço militar.
aulas de história me impressionavam muito pelo conhecimento Foi engraçadíssimo no quartel. Como era aluno de história
e pela metodologia. Recebíamos, às vezes, durante os exames
e geografia, escrevia bem os trabalhos que pediam. Na se-
escritos, uma cronologia dos fatos históricos a serem trata- gunda semana depois da volta, ainda pálido da doença, oca-
dos. Não precisávamos mais decorar toda a matéria, como no pitão disse: "Soldado 11 o, passe para o batalhão dos cabos!"
ginásio: havia a data e o evento histórico, e a gente tinha que Fui promovido por ter escrito alguma coisa. Depois, quando o
comentar a trajetória dos eventos, e não um evento para a tema do trabalho foi a Guerra do Paraguai, escrevi alguma
gente precisar a data. Achei isso ótimo, e acabei sendo um coisa melhor e: "110, passe para o pelotão dos sargentos!"
aluno razoável de história.
Acabei saindo do Exército como sargento de terceira catego-
. Só
• que um d'1ª f ui· convidado
· pelo professor Eurípedes
Simoes de Paula par ª con hecer sua b1bl1oteca
. . no apartamen- ria por causa da escrita.
No período em que comecei a me restabelecer, passei a
~~b~·mtque morava, no largo de Santa Cecília. Quando olhei a
, 'º
· eca. do
. professor' magn,'f'ica, repleta de todas as histó-
fazer poesias sobre São Luiz. Uma começava assim: "Lá nos
rias poss1ve1s senti que nã 0 .. morros de calota arredondada, encastoada nas vertentes dos
tória porque.não P d . rna ser um bom professor de his- 37
0
, erra ter tantos livros. Mal tinha dinheiro
monos, dmme a minha pobre c'.dadez_inha ...• Eno final:'A
~onte ~elha marca~a ofim da mmha cidade e o corneço d
. sa b'ta que do outro lad o~
mo11os edas roças. Mas eu nao
~onte mora~am os fantasmas. Eeu também não sabia oda
a~ue\a'Je\ha ponte separava d01s. mundos..." que

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Aantropologia com Florestan

No início da faculdade, as aulas eram muito diversificadas,


com uma linguagem que não era muito fácil para todos os
alunos. Em compensação, os mestres franceses - Pierre Mon-
beig, Roger Dion, Louis Papi - me impressionaram muito pelo
conhecimento. O Papi deixou um trabalho muito bonito so-
bre a zona costeira de São Paulo: "Au marge de l'empire du
café." Até dos títulos eu gostava: "À margem do império do
café."
Ao mesmo tempo, lia tudo o que podia ler complementar-
mente nesse período. la à biblioteca aos sábados e domingos.
Meu lazer era esse: ou viajava pelos arredores ou ia à Biblio-
teca Municipal. Convivi bastante com Florestan Fernandes (so-
ciólogo) nesse período. Sempre nos víamos na biblioteca, e eu
sentava a seu lado nas aulas de antropologia cultural.
Florestan estava muitíssimo mais adiantado do que eu.
Ciências sociais sempre foi um curso muito bom, desde oco-
meço da USP. Eele ainda tinha a vantagem de fazer ao mes-
mo tempo a Escola de Sociologia e Política, no largo de São
Francisco. Florestan foi decisivo na minha reorientação; aler-
tava para fatos sociais e antropológicos importantes, porque
algumas aulas eram complicadas para mim.
Eu gostava muito do mestre Emílio Willems, o professor
de antropologia, mas ele dava aulas acima do nosso nível.
Não dava para falar com Willems: éramos bobinhos e ele
nos "embrulhava" com o alto nível dos seus conhecimen-
tos ... Florestan "traduzia" para mim coisas difíceis de serem
entendidas, porque, para quem estava fazendo geografia e

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AZIZ NACIB AB'SABER
OQUE ESER GEÓGRAFO
·isto' ria a antropologia parecia ser secunda·
um pouco de h , ·
. No en tanto , este curso ' apesar das dificuldades, se mos· Oprofessor Emílio Willems, que depois foi lecionar nos Esta-
na.
dos Unidos, era de Santa Catarina. Seguia aantropologia de-
traria decisivo em minha vida, devido ao conhecimento que
fendida pela Escola Sociológica de Chicago, que estudava 0
passei ater sobre cantatas cu_lturais e_ét~icos e a metodologia
mundo urbano de um modo particularmente metódico.
de trabalho dos discípulos diretos e indiretos do antropólo-
Foi decisivo para mim entender aestrutura social efuncio-
go Franz Boas. nal da cidade, por meio de estudos fotográficos, e, em nível
Daquele notável leque de ciências humanas e fisiográficas sociológico, pela posição das diferentes classes sociais, em
veio meu gosto pela interdisciplinaridade. Tempo, espaço e bairros diferentes eem áreas diferentes. Ou seja, do Pacaembu
cultura estavam contemplados em quase todas as aborda- e do Morumbi às periferias extremas etambém até as favelas.
gens, o que era um incentivo permanente. Tínhamos que en- Uma das muitas coisas que fiz sob inspiração antropológi-
frentar conhecimentos paralelos, para nós impensadas, nas ca foi discutir o problema da favela em termos da estrutura
aulas de grandes mestres, como Willems, Plínio Ayrosa eRoger urbana global: o favelado não pode ficar muito distante do
Bastide. centro, porque depende do centro em termos de aproveita-
EFlorestan me incentivou a pensar politicamente em cer· mento de descarte do consumismo. Os puxadores de carri-
tos fatos, a partir das diferenças socioeconôm icas já existen· nhos com papelão, por exemplo, têm que morar mais ou menos
tes em São Paulo e no Brasil. Asociedade herdada do ciclo do perto do centro. As favelas se mantêm dependentes das coi-
sas que acontecem nas regiões centrais ou subcentrais.
café já tinha diferenças muito grandes: havia os banqueiros e
0
~ e_x~fazendeiros enriquecidos, que fizeram mansões extraor·
di~a~ias na avenida Paulista e em Higienópolis, e uma classe
media f 'd O ·
so ri ª· Rio de Janeiro já possuía favelas, mas ª
5·0
Pa_ulo, entre 1940 e 1950, ainda não - quando muito, alguns
bairros carentes.
Florestan fazia um .. - · per·
.
sonal1dades que a
ª certa critica social em relaçao as
. ter
_ gente conhecia. Ele me influenciou ª
uma percepçao maior d . . cul·
tura1s· fantast1cas
. . as diferenças socioeconôm1cas e .
que . ac1·
dd d exi 5tem no Brasil. Em particular, n
a e o passado, que depois e a cidade
do presente. Até ho· u pude acompanhar n
Je trabalho nisso. ,
Talvez a antropologia ten . . . funda
mente a minha v·d d ha influenciado mais pro . rar
1 a oque h' d1an
em história o tanto que eu a i~tória. Não pude me aologia• 45
queria, mas sim em antr 0 P
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No planalto Central

Ruellan veio para a USP dar uma conferência na rua Maria


Antônia, onde já estávamos. A trajetória do Departamento de
Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências foi: pri-
meiro, a Escola Normal Caetano de Campos; segundo, a sede
da rua Maria Antônia; terceiro, uma mansão numa esquina
da avenida Angélica, perto da rua Veridiana, e, antes de se
transferir para o campus do Butantã, ficou um pequeno perío-
do na alameda Glete. Depois veio para um excelente prédio
no campus, que abrigou a história e a geografia entre 1964 e
1968.
Paralelamente a esses conhecimentos novos que Ruellan
trouxe, passei a conhecer diferentes domínios de natureza no
Brasil. Durante a pós-graduação, eu, o colega Miguel Costa
Junior e o professor Pasquale Petrone fizemos uma viagem
pioneira e sofrida para fora dos nossos domínios espaciais
conhecidos: o vale do Paraíba e certas regiões de transição
para a depressão periférica. Percorremos o que pudemos, com
muito poucos recursos.
Pasquale Petrone foi o maior geógrafo que saiu do Depar-
tamento de Geografia - dedicava-se à geografia humana e à
geografia histórica. O Miguelzinho, filho do general Miguel
Costa, já con hecia em grande parte o Brasil Central, tinha es-
tado em Campo Grande, região dos garimpas, e era um com-
panheiro admirável.
Um dia, por volta de 1947, ele chegou até nós e disse:
"Nós vamos para Aragarças (MT). Tenho meios de conseguir
com a Fundação Brasil Centra l para a gente voltar de avião.

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uanto a gente tem?" Cada um arranjou u
Vamos ver q . . . rn Pou uma hora descemos bruscamente por uma escarpa designada
. he·i ro dava para chegar, e so. V1aJamos de tr ·
co de din ' . . em a~ Caia pó, que possui seu front voltado para oeste. A nossa es-
• d'a e lá soubemos que havia um cam1nhoneiro t
Uber 1an 1 • • • • • rans. carpa arenítico-basáltica de Botucatu é voltada para leste.
éneros al1ment1c1os que 1a ate Aragarça
portador de g . s, n0 Essa excursão teve muito mais influência na minha vida
confluência dos rios Aragua1a e Garças. do que os livros, porque os livros falavam da França, da Ingla-
No cam inhão, fomos em cima dos sacos de sal, açúcar, terra, dos Estados Unidos. Havia um desenho da bacia de Pa-
feijão que eram levados para serem vendidos naquela regiào ris num livrinho didático em alemão, de Erwin Scheu, muito
Cada qual pagou um pequeno percentual, já avaliando oai- simples, traduzido para o espanhol, da coleção Labor, que eu
nheiro que ia sobrar, e assim fomos até Ara garças, divisa 01 tinha comprado naquele sistema de pagar aos poucos. E a
Goiás e Mato Grosso. Eu, que era proveniente de uma região bacia de Paris tem aspectos parecidos com os da bacia do
de mar de morros fio restados que havia tido o ciclo do café, Paraná.
na viagem ao sudeste de Goiás passei a conhecer o planalto Só que a nossa é gigantesca e as escarpas são muito de-
Central com os cerrados, cerradões e florestas, e galeria1 clivosas e altas: Botucatu, Maracaju, Caiapó. Resultado: olhei
campestres. aquele desenho sobre a bacia de Paris e imaginei o que eu
Para nós foi uma viagem extraordinária, fantástica, possi· estava percebendo na bacia do Paraná. Eu havia lido, num
bilitando comparar o domínio dos morros com o domíniodOI livro hoje pouco conhecido, que as cuestas concêntricas de
chapadões ce ntrais. Valeu definitivamente na minha vida. íl frente externa tinham sido elaboradas por processos de "cir-
primeiro lugar em que paramos foi uma cidadezinha bem no cundesnudação" (De Martonne), ou uma desnudação circu-
lar. Dediquei-me a isso após essa viagem.
fu nd0 do vale do Paranaiba, e a partir da[ fomos subi nd oa
Essa possibilidade de generalizar o conhecimento tornou-
larga rampa do planalto e observando o relevo, a flora ea
geografia huma · • . · ca se freqüente na minha vida. A partir daí, tive maior interesse
na rust1ca dos sertões regionais da epo ·
Em São Pa ulo em ir para o Nordeste, ver os compartimentos de relevo loca-
' ª partir· da bacia sedimentar loca 1·12ªda'a lizados entre chapadas e maciços antigos em pleno domínio
gente passa por t naltO
Ati" . errenos cristalinos do cham ado PIa
ant1co, que tem . . . serra das caatingas. Já conhecia os morros florestados do Brasil
da M . . varias compartimentos e acidentes. o~ie~tal, os chapadões centrais com os cerrados; e agora o
ant1que1ra ba . altO
vale do Pa 'b ' eia de Taubaté bacia de São Pau 1o, rust1co d · ·
om1nio das caatingas caracterizadas por largas ex-
ra1 a, Bocai . ' . - Roque"
Jundiaí, entrando ~a, e depois as serranias de Sao. ue tensões de co 1inas
· .
rebaixadas - de cli-
cobertas por vegetaçao .
e. a parte de d Por fim na de pressao • pen'f.erica
. pau lista, q, mas quentes semi-áridos.
. tar u0
esnudaç·
Paraná em t · . . ªº
erntorio Pau1·
marginal da bacia Sed1men Foi em 1952 que consegui. m1n
Nardeste o
. ha primeira
. . viagem
. para o
Do outro lad 0 ista. , ·o: h .
e · s con ec,mentos eram aperfeiçoados na medida
do vai trarl
passamos a sub· e do Paranaíba fizemos o con , ue m que podia ir diretamente às regiões de meu interesse
ir Pelos pi . . , te q
analtos interiores de Go1a 5 a
.
S8
s
AZIZ NACIB AB'SABER

geomorfológico efitogeográfico regional. Finalmente n


.f. , oano
seguinte, fui à Amazorna para ven 1car o grandioso d . .
A •

. orn1n1
das terras baixas florestadas percorridas pela mais exten 0
volumosa e relativamente homogênea bacia hidrográfica~:
planeta Terra.

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Geografia humana e urbana

Em 1950 começa um período em que meus trabalhos já eram


mais aceitas, sem aquele receio de que algu ém criticasse um
jovem pesquisador com excesso de idéias esdrúxulas. Eu te-
nho o nome de Aziz Nacib Ab'Saber, e quando os primeiros
trabalhos foram criticados erradamente, eles diziam que eu
tinha muita imaginação ... Mas não era por causa do "Saber"
no meu nome que meus trabalhos eram diferentes; pelo con-
trário, eles eram resultado de muito estudo e boa criatividade.
Foi então que publiquei um trabalho de comentário sobre
uma série de fotografias aéreas de Paulo Florenzano, que pe~-
tencia ao grupo da antiga revista Pau/istânia. Ele estava se
interessa ndo profundamente por fotografar paisagens, e fez
uma série de fotos da serra do Mar, com a mata atlântica que
a recobria. Fiz comentários mais técnicos do que literários,
mu itas linhas a respeito de cada foto.
Aos poucos, fu i me firmando como pesquisador e sendo
mais aceito. O primeiro trabalho de comentário sobre um li-
vro feito por um grande geógrafo do exterior aparece em se-
gu ida. Ele havia escrito sobre o livro do professor Aroldo de
Azevedo, Geografia humana do Brasil, feito para o terceiro
coleg ial - eu nem sabia que era difícil para um aluno rese-
nhar a obra de um professor, mas fiz. E me atrevi a fazer um
comentário sobre o livro do autor que um dia seria funda-
mental na minha vida : Le Relief de côtes, de Jean Trica rt.
Nesse tempo, pa ra ganhar a vida eu também dava aulas
na Faculdade de Filosofia Sedes Sapientiae, que estava sur-
gindo. Andava ch eio de problemas, ganhava mu ito pouco,

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AZIZNACIB AB'SABER
. OQUE t SER GEÓGRJ
repartia com a minha mãe, e em 1950 havia acontecidorn
Acabei fazendo dois trabalhos sobre as pesquisas realizadas
primeiro casamento; já tinha família. Foi muito importan:
lá: "Paisagens e problemas rurais da região de Santa Isabel· -
para mim a indicação de meu nome para as aulas no Sed
incluindo geomorfologia e observações sobre a agricultura
iniciativa do meu mestre e amigo Aroldo de Azevedo. es,
itinerante - e "A cidade de Santa lsabet.
Só que foi mais importante ainda porque era uma insti- Era um sonho meu conhecer a Bahia, e no Congresso da
tuição só de moças, e eu gostava de viver entre as jovem AGB (Associação dos Geógrafos Brasileiros), em Uberlândia,
paulistanas das mais diversas áreas. Caprichava para ensina- estavam dois professores de geografia, um de Minas Gerais e
las - isso não atrapalhou meu casamento, não podia haver outro baiano. Um muito simpático e o outro muito falante,
ciúmes porque era puramente cultural, e estético. Estava des- ambos advogados de formação. Ofalante não conseguiu nada
lumbrado por trabalhar na Faculdade de Filosofia pela ~- porque só dizia bobagem, e o outro era ninguém menos que
meira vez, porque todas as outras aulas eram em colégios ~ Milton Santos, na época fixado totalmente na discussão de
segundo grau. E tomei a iniciativa de publicar no anuárioda possibilismo e determinismo em geografia humana.
faculdade o trabalho "Sucessão de quadros paleogeográfiet'! Milton só falava disso. Alguém estava fazendo uma pales-
tra sobre um assunto qualquer e ele dizia: "O importante é o
no Brasil, do Triássico ao Quaternário".
possibilismo e o determinismo." O pessoal dava risada, mas
Os professores mais velhos do que eu lá no Sedes tinha~
el~ era tão simpático que o pessoal logo esqueceu essa sua
o. d.10 dos trabalhos sobre geologia, e criticavam : "E. so. rochal ..
pre-análise, e a partir daí ele começou a nos convidar para ir
pe dra, rocha e pedra." Então, espertamente, pus no ~ - ª Salvador dar aulas esporádicas na Faculdade Católica onde
. eografG se tornou eh f d O '
seguinte o trabalho "Notas sobre o povoamento eª g
e e o epartamento de Geografia. A moçada
urbana do sudoeste de Goiás" com todas as ci'd ªdes' • gostava muito dele.
' . doa11 Fui à Bahia a c ·t d M' .
ltumbiara a Jataí, Rio Verde, descendo Caiapônia e in lho onv, e e 1/ton, fiz muitas fotos e o traba-
Aragarças. ·oM que escrevi "A ·d '
das ' c, ade de Salvador", ficou bonito por causa
D · · · Nesse penura
1
egendas mas t
epois vieram dois trabalhos muito tristes. sabia n d ' eve um pequeno defeito, porque ninguém
de t b lh . ãodaPe1 exempl . dº
ª a e eu interprete,· as coisas por minha conta. Por
ra a o estafante, tive uma violenta inflamaÇ . •dado: o. 1sse que 0 f
e o 'd•1 t va 1iqu1 rnar na b . orte de São Marcelo estava dentro do
•pedi
s me cos achavam que a partir dali eu es ª
·1 f I'
n e izmente, o senhor vai virar tuberculoso.
• Resolvi
rrien~
ª'ª
que eles am 1.
de Tod 5 - . .
os os antas, e nao e. Havia uma ilhota lá
piaram para fa •
um I'
ª icença no Departamento de Geografia para tratadarafll un, histor,·ador reg · zer O ,orte, e eu não sabia · Depois
de saúde f · recornen d0o Minha b iona 1me puxou a orelha.
e ui para uma cidadezinha que me Eto f a ordagem d .d
Santa lsab (S ) .. ha e tal. . d unções urban ª e, ade era de geografia humana e
e1 P, numa região muito bon1tin ape P d s aS, e um po b
tempo e dando e alvador t· uco so reescarpas. Sobre a escarpa
' m vez de ficar me curando, ficava an , ive a sorte d
todo o município... e trabalhar melhor, porque tinham
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Alll NACIB AB'SABER

descoberto petróleo em. Lobato,


- e quis ver Onde era .1
. SSo.,,L
era perto da escarpa. e isso nao era dito pa ra n1ngué
cei a estudar esse tipo
. de escarpa e chegu e,. a. conrn. ~-
que era uma fault/me scarp; nunca falei mu1to . berncluSào~
.1 1
mas uso toda nomenclatura . boa para aprende r melho ng ~
pois traduzo: "escarpa de linha de falha." red~.
Isso significa o seguinte: havia uma escarpa antig .a
depois foi recoberta por sedimentos na formação·' 0 coniunto . q~
se levantou e houve uma desnudação a partir do contatoen.
tre as rochas duras e as rochas sedimentares mais fraca~o
mar sofreu oscilações glácio-eustáticas, descendo para até
menos 95 metros abaixo do nível atual, entre 23 mil e12 mil
anos, aproximadamente. Por fim, subiu novamente einvadiu
o sistema hidrográfico anteriormente formado, criando abala
tal como a conhecemos hoje, com a Cidade Alta eaCidade
Baixa, deixando sempre a saliência da escarpa. (Convém lem-
brar que a primeira descoberta de petróleo no Brasil foi feita
em Lobato, no conta to entre as escarpas rochosas eas cama·
das sedimentares da bacia cretácica do Recôncavo: um caso
de oi/ seepage.)
Passei a conhecer outros domínios, e vem o artigo "O pia·
nalto da Borborema na Paraíba". Alguém ofereceu uma vol'.a
em um aviãozinho monomotor, e fui fotografando comª mi·
O
nha câmera Leica. Foi o primeiro trabalho que fiz sobre Nor·
deS!e. Acho que nessa época alguém deve ter dito: "O professor
Aroldo ab · ha algU·
. re as portas para o Az.iz", porque sempre tin
ma co,sa mi nha no Boletim Paulista de Geografia· ...

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