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Carlos
Rodrigues
Brandão
2
Índice
1.
Diante de um outro cheio de perguntas
2
de um olhar ao outro
do pensar sobre o outro ao pensar com o outro
3.
Aplicada, solidária, participante, militante
4.
Vinte anos depois
5.
Andando em boa e difícil companhia
1.
Diante de um outro cheio de perguntas
O Acontecimento mais importante em uma relação de pesquisa é também o
mais secreto, o mais silenciado, o menos confessado, posto às claras. Ele é uma
espécie de acordo entre duas ou mais de duas pessoas situadas em uma ou em
outra margem do fluir de uma pesquisa. E qual é este acordo não dito, mas
rigorosamente observado de um lado e do outro? Ele pode ser enunciado do lado
de quem realiza a pesquisa (quem a pensou, quem a projetou, quem a leva a
realizar-se, quem pergunta e espera respostas, quem a partir dos seus “dados”
deverá escrever, produzir divulgar, publicar algo: um relatório, um artigo, um livro
ou o que seja) da seguinte maneira:
“você que está diante de mim e responde às perguntas que eu faço (eu um
inventário, um questionário, uma entrevista aberta ou fechada, etc.) ou que age,
atua, realiza uma performance diante de mim que o observo, registro, fotografo,
gravo, etc., você jamais conhecerá na íntegra o resultado do trabalho e pesquisa
de que participa como meu objeto de, ou mesmo sujeito de minha pesquisa. E, se
acaso, vier a ter algum acesso aos meus “resultados”, não os compreenderá, pois
tratarei de transformar o que vi, registrei, gravei em uma linguagem para ser
compreendida por meus pares e para ser incompreendida por você e os seus. E
justamente o segredo de meu trabalho será transformar algo de sua cultura e
compreensão em algo de minha cultura e compreensão, incompreensíveis por
você mesmo quando possivelmente acessados. Eu simplesmente não posso e não
devo realizar algo que, sendo uma pesquisa científica a partir de você, venha a ser
algo que você, tal como é, sabe, pensa e vive agora, possa conhecer,
compreender e interpretar”.
Do outro lado do acontecer da pesquisa, aquele que se dispôs a atuar,
representar ou simplesmente responder a perguntas estabelecerá em silêncio:
Entre meus atos e minhas falas diante de você ou para você poderei “passar”, ou
deverei transmitir apenas fragmentos do que sou, de como penso, de como ajo em
cada situação, ou, no plural, de como somos, os de meu mundo, minha
comunidade, minha cultura, como cremos, como pensamos, como agimos, como
atuamos diante desta ou daquela situação. Você me perguntará fragmentos e eu
responderei com gestos e/ou falas de fragmentos. Ou porque não alcanço a
totalidade do que você deseja, ou simplesmente porque não é nem possível, nem
junto ou razoável que eu transmita a você algum “todo de mim” ou “de nós”,
estenderei a você apenas parcelas médias, pequenas ou mínimas de nossos
5
Todo o saber que é nosso apenas passa por nós por um momento. E,
francamente, a excelência de “meu último texto” nunca deveria ser medida por
algum ilusório e passageiro lugar de destaque no mundo das produções científicas.
Ela deveria ser pensada em termos do possível bem que venha a fazer a alguém.
Em termos puramente intelectuais, criei boas ideias em um texto se elas ajudam
outras pessoas a irem além do que pensei, depois de me haverem lido. Como um
professor procuro pensar sempre que não me realizo quando escrevo as palavras
que os outros não conseguem pensar ... e às vezes compreender. Ao contrário,
devo viver as minhas aulas e criar os meus escritos para que os meus alunos e
outras pessoas aprendam comigo, por um momento, a irem entre elas além de
mim. Infeliz de quem nunca quer ser superado, pois eu sou superado quando
participei do que facultou a outras pessoas o levarem a experiência da vida
humana para um pouco mais a frente do lugar onde eu e minha geração
conseguimos chegar.
Ao nos situarmos equidistantes de todas as tantas dimensões através das
quais sentimos, pensamos e criamos algo em comum, aprendemos a ver o saber
de nossas ciências como uma fonte de conhecimentos entre outras. Nem a única
confiável e nem sequer a melhor ou a mais definitiva. A mim me espanta que entre
nós, antropólogos, possamos por anos e anos praticar as várias escolhas teóricas
e empíricas de nossas escolhas sem nunca lermos trabalhos de psicólogos
sociais. Do mesmo modo como precisei esperar quase quarenta anos depois de
formado em Psicologia para vir a saber que dentro dela existe algo chamado:
Psicologia da Libertação. Que o reconhecimento de nossos mútuos
desconhecimentos pelo menos nos ajude a compreender que o que pensamos é
indispensável, mesmo quando seja desconhecido. E também que, se tantos outros
saberes nos são desconhecidos, é porque talvez estejamos encerrados demais no
que já conhecemos.
Por outro lado, por antiquada e romântica que esta proposta possa parecer
em tempos em que valores empresariais e utilitários crescem em seu poder de
domínio sobre nossas cabeças, acho que, por isso mesmo, devemos repensar o
lugar de origem e de destino dos saberes que criamos em nossas comunidades
aprendentes e que colocamos à volta da mesa em encontros como este. Ainda
penso que devemos aprender e ensinar as matemáticas não para formar
contadores e financistas, mas como um preparo da mente para o exercício da
filosofia. E ainda creio que devemos aprender gramática não para “falar e escrever
bem” apenas, mas para aprendermos a nos maravilhar com a poesia escrita em
tantas línguas, ao longo de todos os tempos.
8
Mas, apesar de assim ser, daqui em diante tudo o que estivermos dialogando
tem a ver com o desafio de vivermos a criação de saberes confiáveis, proveitosos
e solidários através de situações de pesquisa que o tempo todo estejam
procurando o equilíbrio possível entre a experiência necessária ao avanço do
conhecimento científico e a relação indispensável a torná-lo não apenas algo útil e
confiável como um produto do saber (não raro a serviço de algum poder) mas
alguma coisa humanamente significativa e proveitosa, como uma criação do
espírito humano e de sua capacidade – sempre precária, mas sempre
aperfeiçoável - de compartir e partilhar tudo o que ele cria através da relação
generosa e gratuita entre sujeitos, em lugar de apropriar-se e privatizar o que ele
produz através de experiências em que você precisa ser tornado um meu objeto,
para que eu possa saber algo a seu respeito.
As ideias tomadas até aqui são de propósito radicais e segui-las ao pé da
letra talvez torne inviável o próprio trabalho do pesquisar. Tomei a questão do
relacionamento interativo na criação de conhecimentos e o acontecer do encontro,
entre os polos “buberianos” da relação ou da experiência entre pessoas como o
seu maior desafio. Também muito a propósito e de uma maneira que poderá a
muitos ter parecido descabida, quis começar convocando pedra e animais a que
viessem nos dizer, mas pela voz de interlocutores humanos os mais respeitáveis
no mundo das ciências, como até nas conexões entre nós e elas (pedras) e eles
(animais) questões de reciprocidades e de respeitos até pouco tempo atrás
impensáveis, hoje em dia tornam-se não só nada descabidas, como até mesmo o
anúncio do que há de vir a nós, dentro de fora do mundo das ciências de agora em
diante.
No âmbito da pesquisa humana e social vários caminhos têm sido buscados
ontem e hoje. Aquilo a que aprendi a emprestar o nome amplo e vago de pesquisa
participante é apenas um entre outros. Um entre tantos e somente válido como um
caminho que antes de chegar ao seu destino (se é que isto existe), atravessa
outros e converge com outros.
Da experiência ao encontro
.
3
Martin Buber, op. cit. página 12.
16
Tudo mais antecede ou sucede este momento único em que duas pessoas
se olham, se falam, se sentem e se pensam. E, diante uma da outra, pessoas em
relação imaginam que se entendem, intertrocando entre elas gestos do rosto, do
corpo e do espírito. E de um lado e do outro do que pode ser uma pesquisa viável
e confiável, elas reciprocamente intertrocam os seus seres, sentidos,
sensibilidades, saberes e significados, entre palavras e silêncios. Isto que à vezes
reduzimos à categoria de “dados”.
Toda a pesquisa, quando envolve de um lado uma pessoa e, do outro, não
uma pedra ou um animal, mas uma outra pessoa, enfrenta o dilema de transformar
um encontro em uma experiência, ao invés de transformar uma experiência em
encontro, e um encontro em uma relação.
Entre duas pessoas genuínas que não se querem encontrar como
personagens de cenas escritas por outros, para eles representarem um diante do
outro, o único encontro realmente humano em sua plenitude é a relação. É a
interação entre dois seres em que, nas felizes situações extremas, o Outro não
possui utilidade alguma para mim, na mesma medida em que em nada sou útil ou
proveitoso para ele, a não ser na condição de sermos, em nós mesmos e um para
o outro, apenas a pessoa que somos, e os atores do que entre nós fazemos
interagir diante de um “outro a meu lado”.
Em termos absolutos o oposto da relação em uma situação de encontro entre
pessoas, não é propriamente o domínio ou a coação, mas a experiência. Pois nela
eu deixo de me relacionar livre e intersubjetivamente com um outro, de algum
modo colocado diante de mim, quando eu o experimento, quando o experiencio.
Quando eu o testo – e a mim mesmo - para saber, segundo os meus interesses,
qual o teor de utilidade dele para comigo; logo, para mim e em meu proveito.
Mesmo que este proveito próprio seja estendido também a ele.
Não é apenas porque o domino e por um momento defino o seu destino, que
eu o transformo em um objeto-para-mim, ao invés de conviver com ele como um
sujeito-sem-si-mesmo, em uma interação intersubjetiva, com o desenho de uma
relação entre dois sujeitos livres um para o outro. Eu lido com um sujeito tornado
para mim um meu-objeto quando de algum modo estabeleço como fundamento de
nosso encontro uma utilidade dele e nele, para mim.
Toda a pesquisa envolve uma ou mais experiências, pois o que justifica a
pesquisa é o seu proveito, e é o teor demonstrável de sua utilidade. Boa parte do
que escrevemos em um projeto de pesquisa destina-se a demonstrar que partimos
de ideias plausíveis, confiáveis e, se possível, inovadoras em alguma medida.
Outra boa parte destina-se a demonstrar que não apenas partirmos de “boas
ideias”, mas estamos preparados para realizá-las como alguma forma de prática,
18
através de uma também confiável metodologia. E uma outra boa parte destina-se a
demonstrar que, além de tudo (ou no começo de tudo), o que pretendemos
realizar, construir ou descobrir é também útil. A importância crescente que os
órgãos de fomento à pesquisa e os seus avaliadores têm atribuído à
“aplicabilidade” e à “utilidade” de uma pesquisa ajuda a tornar evidente o domínio
do valor instrumental sobre qualquer outra coisa. E bem sabemos que por baixo do
pano, uma fração não desprezível de toda a investigação científica de nosso tempo
é dirigida – muitas vezes às ocultas – mais produção de agrotóxicos e armas do
que à criação de reais benefícios para pessoas, comunidades humanas e o próprio
Planeta Terra.
Assim, de um modo ou de outros toda a pesquisa aspira a ser útil, e mesmo
a “pesquisa pura” em alguma medida sonha ser também “aplicada”. Toda a
investigação científica deve servir a algo; deve ser útil. Deve tornar-se objeto de
proveito da ciência, ou de uma ciência; de uma teoria científica (com ou contra as
outras); de uma escola ou confraria de cientistas; de um par de pessoas chamado
eu-e-meu-orientador; de mim mesmo, quando através dela aumento o meu saber,
melhoro a qualidade de minhas aulas, ou sou promovido de “mestre” a “doutor”.
Em suas diferentes vocações, investigações cientificas aspiram servir a uma
fábrica de remédios, a uma empresa multinacional interessada em proliferação de
armas químicas para a agricultura; a uma multinacional fabricante de armas de
guerra; a uma organização não-governamental devotada a causas ambientalistas;
a uma comunidade de pescadores artesanais; à criação de uma nova educação; a
um movimento popular, etc. E normalmente esses e outros destinatários dos
proveitos e das utilidades das pesquisas, das tecnologias e ciências que as
abrigam e originam, ora se excluem, ora se contrapõem, ora se somam.
Sabemos que a progressiva passagem nas ciências humanas e sociais do
domínio das abordagens e estilos mais impessoais, objetivos e quantitativos, para
os mais interativos, intersubjetivos e qualitativos, tem a ver não apenas com
questões teóricas, políticas, técnicas e metodológicas.
Por debaixo de qualquer vocação de pesquisa existe uma questão que é
propriamente ética e, mais do que apenas ética, é humanamente afetiva e
afetivamente relacional. E por certo ela é a mais importante entre todas, e deveria
ser aquela em nome da qual todas as outras razões – inclusive as estratégias e as
financeiras – deveriam ser pensadas e equacionadas.
Seu ponto mais extremo em termos do que quero chamar aqui “uma
humanização personalizante da pesquisa, é o que estarei denominando de
investigação entre-nós. Uma modalidade de pesquisa vivida como um encontro
interativo, pois ela acontece entre duas pessoas; e intersubjetivo, pois ocorre
19
através de duas pessoas que se colocam uma para a outra como sujeitos de si-
mesmos, de suas vidas, de suas ideias, de e de seus destinos. E o que aqui e ali
se disfarça de ser apenas metodologicamente “qualitativa”, devolve a mim e a você
a confiança em nós. Já não são mais os instrumentos neutros e objetivos de uma
experiência mensurável, o que se interpõe entre nós, mas somos nós e os nossos
atributos de ser, de viver, de sentir e de pensar, aquilo que temos para vivermos a
busca da relação que gera uma outra qualidade de sentidos, de saberes e de
significados.
Quando pensamos porque toda a pesquisa realizada em campos como a
educação, a psicologia, a antropologia, a sociologia, a ação social, é sempre
limitada e nos oferece apenas frações precárias e parciais de conhecimento sobre
o que quer que seja (e este “qualquer” quase sempre é uma pessoa, são pessoas,
famílias, grupos sociais, sistemas de saberes e de símbolos de vidas pessoais ou
sociais), atribuímos a isto razões de novos metodológicas, teóricas, lógicas e
epistemológicas.
Elas nos ajudam a desvelar e compreender o teor de nossos próprios limites
do pensar e do saber derivados do trabalho científico. E as crescentes novas
críticas provenientes dos precursores de paradigmas emergentes no campo das
ciências e das práticas sociais, tornam evidente a consciência de que estamos
sempre às voltas com fragmentos de com compreensões e interpretações
científicas efêmeras e limitadas. E, no entanto, deveríamos estar dirigidos a buscar
e gerar interpretações científicas entre campos da realidade que cabem apenas
em sua vocação, destinadas a se abrirem e disporem ao diálogo com outras
diversas e divergentes visões.
A menos que alguém seja muito prepotente ou fundamentalista o bastante
para que apenas sejam reconhecidas como consistentes e fundamentadas as
“minhas descobertas”, ou as da confraria do saber à qual aderi por algum ou muito
tempo, todo o trabalho em busca não tanto de verdades únicas, mas de
descobertas em diálogo, tende a partir do suposto de que tudo o que realizo vale
como algo aberto a ser compreendido de várias e até divergentes maneiras.
Ora, podemos agregar a todas as explicações propriamente científicas a
respeito de nossas próprias falhas e lacunas uma outra compreensão. E por ela
ser justamente a menos científica, poderia ser mais explicativa aqui. Ela é de novo
humana e relacional. É quase ontológica, e outra vez é em Martin Buber que eu
me apoio para trazê-la a este momento de nosso diálogo. Tenho procurado
desenvolver aqui a ideia de que em tudo o que praticamos como uma investigação
científica não logramos apreender mais do que frações parcelares a respeito das
pessoas, dos grupos humanos, das comunidades ou das culturas que estudamos.
20
Vimos já que em boa parte isto se deve ao fato de que o âmbito em que elas se
movem é sempre muito mais amplo do que o círculo de compreensões de nossos
modelos e sistemas de explicação.
Nunca abarcamos mais do que alguma parte da casca que envolve a
realidade do ser, do viver, do sentir, do lembrar, do pensar e do agir de uma
pessoa, porque quase nunca conseguimos nos relacionar com ela como uma
pessoa. Aquele a quem estendemos apenas o interesse de nosso saber pelo
saber dele, e a quem, por mais respeitosos e pessoais que sejamos, sempre de
algum modo é funcionalmente objetivado por nós em nome de nossos proveitos e
interesses.
E além de ele – como sujeito individual ou coletivo – não saber por si-mesmo
tudo o que desejamos que ele saiba, para nós sabermos através dele, o que
encontramos diante de nós é um alguém de um modo ou de outro envolvido de
suas boas razões em uma posição de defesa diante de nós. Se você reluta em
abrir-se a uma pessoa que se aproxima com perguntas em nome de algum motivo
que é mais dela do que seu, imagine como deveria ser colocara a pessoa “de uma
outra cultura”, de uma outra sociedade, de uma outra classe social, etc. diante de
você.
Por motivos epistemológicos, relacionais, afetivos, culturais, aquela pessoa
que eu investigo não pode me ofertar mais do que a sua pálida e fracionada face
de “objeto”. Recordo que em antropologia costumamos dizer que um “informante”
nos oferece narrativas de narrativas de narrativas... que em nosso trabalho de
transcrição, transformamos em juma outra qualidade de narrativa entre narrativas,
como lembrei linhas acima. Mesmo que ao informe que afinal redigimos demos
nome de “artigo científico” ou de “uma tese”.
Todo o ser de uma experiência sujeito-objeto, que não alcança ser ou que se
nega a ser uma relação entre subjetividades, apenas pode revelar acontecer da
pesquisa, mais do que alguns fragmentos e exterioridades desigualmente vividos e
pensados entre quem conduziu a pesquisa e quem foi convidado ou convocado a
ser um seu interlocutor.
Pois de uma experiência em que Eu me aproprio de um Outro segundo os
moldes de meus projetos e proveitos, só posso obter uma pálida e desconfiada
imagem devolvida por um Outro a mim mesmo. Uma imagem movida entre gestos
e palavras. Um código de um consenso entre nós, que quando eu transformo,
através da alquimia de meus sistemas de pensamento, em um “saber sobre o
Outro, que os meus pares devem compreender e que o Outro diante de mim não
deverá compreender. Um relato de relatos, como fragmentos e exterioridades, em
que acabo vendo e lendo a figura de meu próprio rosto no espelho que o meu
21
“outro pesquisado” volta a mim, como a me dizer que isso é tudo o que resta de
quem não soube ver e ver-se na difícil transparência única do olhar de um Outro.
Eis o dilema: em sua dimensão mais assumidamente radical, entre Eu e um
Outro, tudo se passa em termos de tudo ou nada. E não se trata apenas de
perguntar, pragmática, política e eticamente, a quem se destina o proveito do
produto de uma pesquisa. Trata-se de perguntar, ética e afetivamente, como deve
acontecer o momento humano único em que de um lado e do outro algumas
pessoas vivem o processo de uma relação humana chamada “pesquisa”.
No entanto, apesar de assim ser, tudo o que estivermos dialogando tem a ver
com o desafio de vivermos a criação de saberes confiáveis, proveitosos e
solidários através de situações de pesquisa que o tempo todo almejam estar
procurando o equilíbrio possível entre a experiência necessária ao avanço do
conhecimento científico, e a relação indispensável a torná-lo não apenas algo útil e
confiável como um produto do saber, mas alguma coisa humanamente
significativa e proveitosa, como uma criação do espírito humano e de sua
capacidade – sempre precária, mas sempre aperfeiçoável - de compartir e partilhar
tudo o que ele cria através da relação generosa e gratuita entre sujeitos lado a
lado, mesmo quando em posições ora diferentes, ora desiguais. Uma ação de
partilha da criação de saberes, em lugar de ser um apropriar-se e privatizar o que o
Outro cria e imperfeitamente me oferta através de experiências em que alguém
precisa ser tornado um meu objeto, para que eu possa saber algo a seu respeito.
As ideias tomadas até aqui são de propósito radicais, e segui-las ao pé da
letra talvez torne inviável o próprio trabalho do pesquisar. Tomei a questão do
relacionamento interativo na criação de conhecimentos e o acontecer do encontro,
entre os polos da relação ou da experiência entre pessoas como o seu maior
desafio.
No âmbito da pesquisa humana e social vários caminhos têm sido buscados
ontem e hoje. Aquilo a que aprendi a emprestar o nome amplo e vago de pesquisa
participante é apenas um entre outros. Um entre tantos, e somente válido como um
caminho que antes de chegar ao seu destino (se é que isto existe), atravessa
outros, partilha entre outros e converge à difícil criação de saberes que entre
diálogos lado a lado deixam de ser “meus” ou “deles”, para serem “nossos”.
De uma pesquisa de que eles participam a uma pesquisa que participa com e para
eles
22
Neste sentido investigações deste tipo têm sido praticadas tanto junto a
comunidades bastante tradicionais e não “mobilizadas” segundo os nossos termos,
mas nem sempre segundo o “deles”, quanto junto a movimentos sociais populares,
frentes de lutas populares, suas organizações locais, regionais ou mesmo
nacionais (camponeses, povos da floresta, quilombolas, indígenas), enfim
instâncias de mobilização “desde as bases” de práticas contra-hegemônicas
dirigidas algum campo e/ou dimensão de emancipação social.
Fora algumas pessoas, grupos ou mesmo equipes de profissionais científico-
acadêmicos inconformado, no amplo campo “normal” das ciências-científicas o que
importa em primeiro lugar é lograr “produzir ciência confiável e competente a
respeito de nós-mesmos e/ou “deles”. Se sobre nós-mesmos (como, por exemplo:
“opções religiosas e representações da vida após morte entre estudantes pós-
graduados de medicina em Passo Fundo”) cessada a investigação e divulgados os
seus resultados, é provável que vários dos “objetos” ou “sujeitos da pesquisa”
tenham acesso a ela e diferenciadamente sejam capazes de compreender a sua
retórica.
De outra parte, cessada a interação devida a uma pesquisa de campo junto a
“eles, ou “os outros”, quase sempre cessa também a relação interativa com “eles”
e o seu mundo e o investigador retorna à plenitude dos relacionamentos “com os
meus”. Pode ser que em algum caso haja de parte da pessoa ou da equipe de uma
pesquisa junto a “eles”, alguma forma de retorno, como no levar a uma
comunidade popular exemplares do artigo escrito. No entanto, fora exceções, esta
relação quase sempre é mais cerimonial e simbólica do que efetivamente
comunicativa ou mesmo pedagógica.
Escrevo aqui alguns dilemas que vivo pessoalmente entre um pesquisador
da antropologia e um praticante da investigação-ação-participante. Supõe-se que
de um lado e do outro vivemos dilemas e perguntas que partem de
inconformidades. Partem do estranhamento, ou mesmo da consciência do absurdo
legitimado de que pesquisas centradas em uma dualidade-polaridade pré-
estabelecida não refletem um lapso, uma falta, uma inadequação, um problema
humano complexo, mais do que apenas um pequeno dilema metodológico a ser
metodologicamente reduzido ou, se possível, superado. Elas estão – por melhores
que sejam as suas intensões de origem e derivadas – de uma contradição, ou
mesmo de um absurdo de teor humano, relacional, interativo, social.
Alguns investigadores e criadores de narrativas a que damos o nome
genérico de “relatório de pesquisa” envolvem-se com perguntas que podemos
distribuir em um dilema epistemológico, que tem a ver com o conhecimento; um
dilema ético que tem a ver com valores nas relações entre pessoas; um dilema
25
estético, que tem a ver com inevitáveis reduções quando se passa de uma
linguagem a uma outra; um dilema político, que tem a ver com a dimensão de
poder que existe – e não raro se oculta – em todo o saber.
O dilema epistemológico. Assim como diante de um psicólogo cada pessoa é
criadora e senhora única de seus sentimentos, de seus saberes, de seus mistérios
e segredos, assim também, e em um plano mais amplo, diversificado e complexo,
quando atravessamos fronteiras entre culturas estamos colocados diante do fato
de que em profundidade cada cultura é um complexo próprio, complexo e
intraduzível, em sua plenitude, por outro qualquer sistema de saberes. Culturas
podem dialogar, mas sem nunca reduzirem-se a outras culturas, e sem poderem
ser, desde dentro para fora, conhecidas, compreendidas e interpretadas por outros
sistemas culturais. A “tua ciência” sabe algo de mim. No entanto mal me conhece e
em muito pouco me desvela e compreende.
Esta é uma questão pouco importante quando uma investigação reduz à
camada superficial do que pode ser coletado e conhecido através de dados
exteriores. Mas é uma questão central quando uma pesquisa mergulha seja na
interioridade da vida cotidiana, seja em seus sistemas de ritos, de crenças, de
mitos e assim por diante. de uma questão entre a ética entre pessoas e a politica
entre grupos humanos, há ainda outros dilemas. Pelos mais diversos caminhos,
descobrimos que possivelmente as culturas são bem mais intraduzíveis do que
imaginamos.
O dilema epistemológico
Descobrimos que não devendo ser consideradas como hierarquicamente
desiguais, as culturas são e devem permanecer originalmente diferentes. E não
apenas em suas diversas superfícies. Diferentes umas das outras porque são
criadas, consagradas e partilhadas através de lógicas próprias. E justamente
porque não são nem redutíveis umas às outras, elas são dialógicas. É através do
que nelas não se transforma na “minha cultura”, na minha teoria, na minha
narrativa, em seu todo ou em suas partes, que elas podem dialogar comigo. A não
ser como resultado de uma má política que embase uma ilusória pedagogia,
culturas outras podem ser ilusória e superficialmente “convertidas”, “civilizadas”,
“transformadas”. Sequer os seus autores/atores podem ser “conscientizados” por
mim de fora para dentro, de cima para baixo (se é que isso existe) e de um centro
para uma periferia (idem). De dentro para fora e de acordo com suas estruturas,
26
lógicas, símbolos, saberes e afetos é que tanto uma pessoa quanto uma
comunidade e a sua cultura podem se compreender, se criticar e se transformar.
O dilema ético
As perguntas que a cada dia mais nós nos fazemos é esta: “que direito temos
nós de irmos aos outros, investiga-los a partir de nossos parâmetros e interesses,
apropriamo-nos de seus saberes, sensibilidades, sentidos, significados, para
antes, durante e depois traduzir o que deles nos veio em nossa linguagem,
segundo códigos de nossos saberes de ciência, e para os utilizar em nosso
proveito pessoal ou coletivo?
O que nos desafia é que tomamos consciência de que não se trata de
apenas fazer do “outro a meu lado” um parceiro de estudos e investigações, cujos
proveitos e produtos seguem sendo total ou predominantemente meus. Qual o
sentido humano em praticarmos algo que mesmo quando “participado por eles” em
alguns momentos, ainda é pensado, projetado, processado e interpretado por nós
e para nós? Na busca de respostas a este milenar dilema, eis que estamos na
fronteira de algo em que nos desafia a converter os sujeitos emissários de uma
investigação não mais “sobre” ou “para, mas “com”, também os co-destinatários de
tudo o que se projeta, processa e partilha.
E esses “eles” são pessoas, grupos humanos, comunidades, classes,
movimentos junto a quem nós nos comprometemos a partilhar ações sociais
emancipadoras, a começar pelas que envolvem modalidades de criação partilhada
de saberes. Quando saberemos criar saberes de partilha que “eles”, tanto ou
melhor do que “nós” saibam ler, conhecer, compreender, interpretar e utilizar em
seu proveito o resultado do que, juntos e através de nossas diferenças, vivemos
como uma investigação cientifica?
O dilema estético
Ele poderá a alguns olhares parecer o menos importante. E, no entanto,
como os outros, é essencial. Um dos maiores desqualificadores de algumas
pesquisas que pretendem “ir a fundo” em algo, é que ao traduzirem, aqui e ali, em
um “documento escrito”, momentos do que é vivo, expressivo, dramático, artístico
mesmo, o que fazemos é empobrecer de maneira extrema o que vimos e ouvimos.
É o que acontece – e eu vivi pessoalmente este “drama” várias vezes – quando
nos obrigamos a escrever sobre algo que diante de nós foi dramaticamente vivido
com e como poesia, canto, dança, atuações expressivamente performáticas.
Não raro, quando buscamos conhecer algo da “alma do povo”, tratamos de
criar procedimentos através dos quais um “velho sábio camponês” é obrigado a
27
traduzir-se aos nossos termos, para fazer-se compreensível para nós. Para nós,
bem mais do que para ele. E ele nos obedece e fala. E depois buscando o mais
possível “fazer-se como nós”. E então tudo o que obtemos de um sábio indígena,
de um supremo poeta camponês, de uma misteriosa e eficiente parteira de uma
comunidade quilombola, de um criador magistral de literatura de cordel, são
pálidos fragmentos empobrecidos diante para poderem virar “dados” ou “falas”
úteis como respostas a nossas perguntas.
Algumas vezes acreditamos que uma das tarefas mais importantes para
quem não apenas “pesquisa do povo”, mas pretende ser um militante envolvido em
suas causas, é a de: “dar voz ao povo”. Pode até ser. Mas em dimensões que nos
escapam quando partilhamos apenas a capa exterior de suas vidas e culturas,
entre indígenas da Amazônia e camponeses de Goiás, há por toda a parte uma
criatividade de “vozes”, entre as artes populares, as ciências populares e as ações
de resistência e de insurgência populares que apenas ainda não aprendemos a
escutar e compreender.
O dilema político
Todo o saber oculta o desvela uma dimensão de poder.
Desde um ponto de vista ético questionamos o nos apropriarmos, em nosso
proveito, de algo que nos é revelado por quem sequer conhece os termos e o
destino de algo de que participou como uma pesquisa. Para além de um dilema
ético há um outro. E ele reside no fato de que em alguma dimensão, o que
resultado uma investigação pode devolvido à sua comunidade de origem como um
saber apropriado; pode ser devolvido a ela como uma ação derivada e a seu favor;
pode ser algo neutro e distante; e pode ser usado contra ela. Praticamente todas
as investigações de vocação social de que participei ou a respeito das quais tomei
conhecimento, dividiam-se entre o desejo de um serviço direto ao repertório
legítimo de saberes de uma ciência, e uma essencial ou derivada vocação de
“serviço ao povo”, “à comunidade investigada”, “a um movimento social-popular” e
assim por diante.
Em cenários muito presentes, quando as próprias universidades latino-
americanas se vêm invadidas de uma colonização mercadológica crescente, a
escolha de “de qual lado estou” diante dos estudos que realizo, das aulas que
partilho e das pesquisas que coordeno deixa de ser uma opção derivada e adjetiva
e passa a ser, ética e politicamente, uma atitude ética e politica.
Se tomarmos de empréstimo a Boaventura de Souza Santos uma de suas
oposições mais conhecidas, estaremos diante de ações sociais de vocação política
(pesquisas cientificas entre elas) que ou se dirigem a uma regulação do sistema
28
2.
32
de um olhar ao outro
do pensar sobre o outro ao pensar com o outro
4 .
O livro foi publicado em Português, pela Editora Expressão Popular, de São Paulo. Tenho comigo um exemplar
da 2ª edição, de 2009.
33
... Bill Totts sentia-se tão bem em sua nova pele, era um operário
tão perfeito e um habitante tão autêntico do Sul da fenda, que
sentia solidariedade por sua classe, como é comum nas pessoas
de sua espécie e o ódio que dedicava aos fura-greves era até
maior do que a média do que sentiam os sindicalistas sinceros.
(página 107).
E se assim aconteceu antes, mais ainda começou a acontecer quando Bill
conheceu e começou a descobrir que primeiro admiravam muito e, depois, amava
uma líder operária e sindicalista. Sindicalista: Mary Candon.
Mas quando “ao Norte da fenda” havia Freddie, que inclusive começara a
reunir material para um livro novo: as mulheres e o trabalho. E havia Catherine Van
Vorst. Acadêmica como ele, letrada e quase bonita ela acabou por ser a noiva que
pelo menos quando ao Norte da fenda ele pensava que poderia amar. Tanto que o
casamento estava marcado para duas semanas mais a frente.
E foi quando aconteceu o que me esquivo de narrar para que quem me leia,
leia também Jack London. No entanto, antes de deixarmos Freddie e Bill, Mary e
Catherine, que eu ao menos antecipe que no entrevero de um enfrentamento entre
policiais da ordem pública e operários mobilizados, preso em seu carro e ao lado
da noiva, Freddie assistia a uma árdua luta entre policiais e operários. E, sem
34
poder mover em qualquer direção o seu automóvel, preso entre os dois lados do
conflito, até quando pode Freddie comungou com Catherine um sentimento que a
noiva-doutora expressou com uma frase curta (e, de resto, extremamente repetida
ao longo da história humana): que bando de selvagens!
Até quando de dentro de Freddie emergiu Bill. E não mais o sociólogo que
pesquisa operários, mas o operário que aprendeu a se pensar, e à sua classe,
para além do operário. Não narrada com detalhes a cena espetacular, não custa
encerrar esta metáfora revelando o seu final.
3.
40
Pouca gente que faz da pesquisa cientifica uma parte importante de sua vida
é tão solitária quanto o antropólogo. Desde as distantes fotografias de Bronislaw
Malinowski e de Francis Boas, a imagem que se tem dele é sempre a de uma
pessoa branca, sozinha dos seus e solitária entre os “primitivos” que foi investigar
em alguma ilha da Papua Melanésia ou num canto escondido da Floresta
Amazônica. Mudaram os tempos e os lugares, mudaram os temas e as cenas das
pesquisas, mas a imagem de um “pesquisador de campo”, sozinho do começo ao
fim, ainda retrata o “ofício do etnólogo”. Mesmo quando participam juntos de uma
“equipe de pesquisa” - e eu me vi entre elas várias e inesquecíveis vezes 7 - na
prática do trabalho de campo cada um vive a sua experiência. Cada um “fica na
sua”. De fato não é usual uma observação participante coletiva e nem uma
entrevista. Menos fácil ainda é praticar uma “análise estrutural da narrativa” ou
proceder a uma “descrição densa de um ritual” entre três ou quatro pessoas.
“Conviver com o outro que investigo” parece ser obrigatoriamente uma interação
dual: ele e eu. Como na casa de caboclo da música sertaneja: “um é pouco, dois é
bom, três é demais”. Nem sempre, na verdade.
Na direção oposta da solitária observação participante nada deveria ser mais
solidário e coletivo do que a pesquisa participante. Em mais de um dos capítulos
deste Saber com o Outro procurei descrever como a pesquisa participante estende
aos outros situados fora da equipe de profissionais (ou aprendizes) acadêmicos
das ciências eruditas, o poder e a vocação de partilhares a construção de
conhecimentos sobre eles mesmos, sua comunidade e o seu mundo. Falo agora
pela minha experiência e através de depoimentos de vários outros diferentes
“pesquisadores participantes” do Brasil e da América Latina. Vivemos sempre um
dilema: quando mais uma investigação tende a ser participante tanto mais ela
acaba precisando ser quantitativa. No volume seguinte de nossa série: O Meio
Grito e outros escritos sobre a pesquisa participante, estarei descrevendo com
detalhes experiências de que participei, entre Goiás e o Rio Grande do Sul, e que
foram predominantemente quantitativas. Ou que, no limite, dividiram-se entre o
rigor da quantidade estatística e a densidade da qualidade discursiva. Tudo leva a
crer que uma objetivação-quantificável permite traçar objetivos claros e operativos.
Uma entrevista é arte-ciência de uma única pessoa e mesmo construí-la de forma
.
7
O volume 4 de nossa série será uma viagem a relatos de “pesquisas de campo” bem ao estilo da Antropologia,
indo do mais absoluto pesquisador solitário ao mais investigador solidário, participante de/em equipes. Em um
momento estarei tomando uma pesquisa concreta e procurando estabelecer, passo a passo, os procedimentos
metodológicos, os problemas enfrentados, os erros cometidos, os acertos encontrados e os resultados obtidos.
Ele deverá ter como nome: Ir, conviver, voltar, escrever – a pesquisa de campo.
41
.
9
Barbier, op. Cit. Página 102. Ele cita dois pensadores judeus cujas ideias – inclusive as da/sobre a educação –
merecem ser lidas e relidas. Um deles é Martin Buber e o livro é o Eu e Tu, traduzido e publicado pela Editora
Centauro, de São Paulo. Tenho comigo a 5ª edição, sem indicação de data. A excelente introdução de Newton
Aquiles Von Zuben é datada de fevereiro de 1977. Buber tem escritos de rara importância para educadores.
Três deles foram publicados pela Editora Perspectiva, de São Paulo. Do diálogo e do dialógico, de 1982, Sobre
a comunidade, de 1987, com um importante artigo: a educação para a comunidade, e Socialismo utópico,
com a segunda edição em 1986. Alguns livros de Emmanuel Lévinas estão em Português e merecem ser lidos.
Ver: Totalidade e infinito, da Edições 70, de Lisboa, com data de 1988, Entre nós, da VOZES, de Petrópolis,
em 1997, e O humanismo do outro homem, também da VOZES, em 1993.
43
5°. Sempre foi, mas de agora em diante será mais e mais ainda,
um empobrecimento muito grande e indevido a recusa em pensar a
ciência e a pesquisa como um alargamento crescente do olhar e da
compreensão. Uma abertura a novas e inevitáveis integrações
transdisciplinares entre ciências e campos diversos de uma mesma
ciência. Uma abertura a antigas e novas interações entre o
conhecimento científico e os saberes dos outros sistemas de sentido
mencionados no item acima. Uma abertura novas indeterminações, a
partir da compreensão de que não há mais uma matemática, mas
matemáticas; de que não há uma “física definitiva”, mas diferentes
olhares dialógicos e transitórios entre diferentes compreensões “físicas”
do universo, quantos mais teorias sociológicas, psicológicas e
pedagógicas. Daqui a diante o valor de uma ciência não está na
quantidade de saber exclusivo que ela produz e acumula, mas na
qualidade dialógica dos saberes relativos que ela cria em confronta com
outros saberes relativos. Se algo é bem e definitivamente conhecido,
então não é uma boa forma de conhecimento.
6°. Métodos são pontes, não são formas. São caminhos de dupla
mão que convergem a uma mesma múltipla praça simbólica de
convergências, diferenças e divergências. Não há teorias únicas e
sequer “melhores”, muito embora haja provisoriamente uma teoria
através da qual pessoas e equipes de pessoas possam ver e pensar
melhor. Métodos e técnicas “quantitativos” ou “qualitativos” podem ser
mais bem compreendidos através das palavras que tenho preferido usar
aqui: estilos, estratégias, alternativas, vocações, escolhas. É o complexo
conjunto das perguntas que vão do “o quê” ao “para que fins” o que
determina (sempre de maneira relativa, pois outros podem pensar e
46
para falar a respeito “deles” num sempre fechado e excludente circuito de “entre-
nós”. Mesas redondas em que quando um líder de comunidade camponesa,
quilombola ou indígena é convocado, a ele se destinava a “ponta da mesa” e a
última fala. Após os intérpretes credenciados de uma “realidade” a ser pensada
para constituir-se como a base de uma ação a ser destinada, ao “outro”, costuma-
se dar a palavra para que um camponês, um líder sindical, um xamã indígena, uma
mulher quilombola nos ofereça um depoimento de vidas cuja recepção entusiástica
de parte de quem depois de pé aplaudia, na maior parte das vezes apenas
ocultava a diferença entre o que ao final do “evento” iria para os anais de reflexões
e depoimentos, e quem seria lembrado como a face “popular e pitoresca” do que
se viveu “ali”.
Vemos que agora não deve e nem pode ser assim. Tanto em reuniões “no
mundo deles” quanto naquelas em que os trazemos para “os nossos mundos”,
cada vez mais aprendemos a passar de reuniões entre-nós-sobre-eles, para
reuniões-entre-nós-e-eles, quando elas profeticamente não chegam a ser
reuniões-entre-eles-e-nós, tendentes a serem reuniões-entre-eles-conosco. Vivi e
tenho vivido, sobretudo em regiões do Nordeste, do Centro-Oeste e da Amazônia,
no Brasil dos últimos anos, pequenas reuniões e imensos simpósios com uma
clara presença ativa e progressivamente igualitária “deles” e “entre-eles-e-nós”.
Encontros crescentemente paritários em que representantes dos movimentos
populares e das comunidade tradicionais; aquelas sem deixarem de ser étnica,
vocacional e culturalmente “tradicionais”, se assumem agora como comunidades-
em-movimento. Os documentos finais ou são a partilha de saberes e projetos
entre-nós-e-eles, ou são manifestos deles, com o nosso aval solidário e
comprometido.
A esse esperançoso horizonte devemos adicionar o fato de que, de maneira
também local, regional, nacional e universal, reconhecemos cada vez mais que
“eles”, individual e coletivamente “chegaram para ficar”. Na antropologia praticada
no Sul, no Leste, no “mundo periférico”, assim como nas comunidades de índios,
camponeses, sertanejos, quilombolas, operários e artesãos, chegam até centros
insurgentes de estudo e universidades homens e mulheres que até a pouco
construíam os seus prédios e se iam embora quando eles ficavam prontos.
Chegam primeiro aos poucos e com a timidez de quem foi convidado a uma ceia
“em casa alheia”. Chegam depois aos bandos, ocupam lugares que dividem
conosco a vida e os saberes de uma academia cujos saberes o crescimento de
suas presenças haverá de transformar. E nos ensinam quando assumem serem
diante de nós os senhores de seus saberes, a partir do que aprendem com os
nossos saberes.
48
4.
Vinte anos depois
de outros continentes, nós nos reuníamos para pensarmos juntos algo de que não
nos sentíamos apenas participantes, mas co-criadores: a educação popular e a
pesquisa-ação-participativa.
Entre meio e final dos anos 60, eu aprendia e depois ensinava outras
pessoas a passarem dos inocentes “diagnósticos de comunidades”, - as pesquisas
prévias de projetos de Desenvolvimento e Organização de Comunidades, aos
“Estudos de Área”, do Movimento de Educação de Base, do Brasil. Um esquecido
precursor do que anos mais tarde começamos a chamar de: autodiagnostico,
pesquisa participantes, pesquisa-ação-participativa.
Entre finais dos nos 70 e começos dos anos 80 participei da edição de livros
coletivos e dos esforços coletivos para formar pessoas mais jovens do que nós
para aprenderem a lidar com os embriões daquilo que hoje, tantos anos depois,
nos reúne aqui.
Além de Paulo Freire e Orlando Fals-Borda, quero lembrar aqui pessoas
como Marcela Gajardo, Ricardo Cetrulo, Ivandro da Costa Sales, Guy le Botterf,
Pedro Demo, Victor Bonilla, Felix Cadena, Adriana Puigrós, Tom de Wit, Pablo
Latapi, Fancisco Vio Grossi, Budd Hall, Marcos Arruda, João Francisco de Souza,
Osmar Fávero, Oscar Jara, Michel Tiollent, Danilo Streck, Vera Giannoten.
Citando-os, desejo trazer aqui a lembrança de tantas outras pessoas “daqueles
primeiros anos” e também os que vieram anos mais tarde somar conosco as linhas
de frente de nossas esperanças, lutas, ações e horizontes.
Alguns anos mais tarde fomos felizes em acolher educadores-militantes bem
mais jovens e que viriam aportar – como se verá bem nesta conferência – novas
palavras, ideais e esperanças ao que começamos a desenhar há uns cinquenta
anos atrás. Creio que dentre todos os “jovens” três estarão presentes aqui.
Lembrando os seus nomes quero recordar todos os outros: Lola Cendales, Alfonso
Torres Carillo e Marco Raúl Mejia. Éramos então e somos até hoje uma pequena
comunidade latino-americana de praticantes da educação popular e de iniciantes
do que veio a ser a pesquisa-ação-participativa.
Devo chamar a atenção para o fato de que, na maioria dos casos, em muito
pouco dialogávamos com tradições europeias e norte-americanas dedicadas de
algum modo à investigação-ação-participativa. Chama a atenção que na mesma
época em que cientistas sociais acadêmicos estreitavam laços, entre o diálogo e a
subserviência com seus pares do “Norte do Mundo”, a partir do próprio exemplo de
Orlando Fals-Borda, nós, educadores populares e praticantes da IAP emergíamos
juntas e juntos, nos descobríamos, nos ouvíamos e nos líamos. E começamos
então uma nova e fecunda experiência de “descoberta (aí sim!) da América.
52
ocorre, pelo menos de uma maneira tão próxima e dialógica, com respeito à
investigação-ação-participativa.
Desde os primeiros anos até agora, uma vertente originalmente europeia
quase não dialoga com a vertente –americana. E em alguns escritos relevantes
sequer é reconhecida uma IAP latino-americana. Lembro aqui de passagem esta
estranha omissão de parte a parte, porque acredito haver entre um lado e outro do
Oceano Atlântico um “desconhecimento do outro” justamente ali onde o “outro”
deveria ser toda a razão do meu saber, de minha ciência e de minha pesquisa.
Que me seja permitido, neste breve exercício de estranhamento retomar a
alguns escritos essenciais de anos passados para recordar fatos que nos deveriam
levar a pensar se uma postura francamente dialógica e acolhedora do outro não
está ausente entre nós e os nossos “outros próximos”.
Quando Marcela Gajardo escreveu o seu Pesquisa participante na América
Latina, editado em 1986, entre os trinta e nove títulos citados na bibliografia
apenas dois estão em francês (Suíça e Canadá) e dois em Inglês, sendo um deles
escrito originalmente em Português por Paulo Freire. Outros autores de origem
europeia ou norte-americana citados pertencem à tradição latino-americana, ou
estão em constante contato com ela.
Há um número bastante maior de citações bibliográficas em Refletindo a
Pesquisa participante, de Maria Ozanira da Silva e Silva, editado o Brasil em
1991. Ora, entre as suas cento e sete citações de livros e artigos, apenas duas
delas aparecem, uma em inglês, e uma outra em francês. Outros autores da Índia,
da Europa ou da América do Norte comparecem com textos em Espanhol ou em
Português, apresentados em simpósios e congressos latino-americanos.
Do outro lado do oceano Atlântico, lembro que a bibliografia dos doze artigos
de Participatory Research and Evaluation - experiences in research as a process
of liberation, coordenado por Walter Fernandes e Rajesh Tandon, e publicado em
Nova Delhi em 1981, consta de cinquenta e um títulos. Todos eles estão em
Inglês, inclusive os de Paulo Freire e Orlando Fals Borda. Embora seja a
publicação de um também país de Terceiro Mundo, e o seu subtítulo junto com a
abordagem da maioria dos autores sugira a convergência com um ponto de vista
bastante familiar à tradição latino-americana, um diálogo entre ela e a Índia parece
realizado ainda apenas em uma pequena parte. À exceção de Orlando Fals-Borda
e Paulo Freire, somente Francisco Vio Grossi comparece, representando a
tradição latino-americana, entre todos os artigos do livro.
Entre livros mais recentes e traduzidos para o Português e, imagino, o
Espanhol, ressalto A pesquisa-ação de René Barbier, que foi editado no Brasil em
55
criar alternativas populares de transformação das estruturas sociais que tornam tal
“vida” exigente de ser sempre “melhorada”.
A IAP não existe em-mesma como uma prática social isolada. Ela se realiza
como um momento de processos de ações de vocação insurgente,
transformadora e popular. Assim, o seu acontecer, entre projetos, processos
e produtos, destina-se a produzir conhecimentos dirigidos a tais ações
emancipadoras18.
.
17
Esta interpretação não é apenas minha. Em mais de um documentos Orlando Fals-Borda critica a teoria e a
prática de Kurt Lewin, socialmente aceitáveis, mas politicamente ineficazes. Assim, em um momento de seu
artigo já mencionado aqui: Aspectos teóricos da pesquisa participante, ele afirma: “O que se entende por
pesquisa participante? Antes de tudo, não se trata do tipo conservador de pesquisa planejado por Kurt Lewin,
ou as propostas respeitadas de reforma social e a campanha contra a pobreza nos anos 60. Refere-se a uma
“pesquisa da ação voltadas para as necessidades básicas do indivíduo” (Huynh, 1979). Está na página 43 do
livro Pesquisa Participante”. Os grifos são de Fals-Borda.
.
18
Entre décadas e pessoas, quero lembrar que sempre que falar em “emancipação” estarei recordando tanto a
tradição que nos vem de Orlando Fals-Borda, Paulo Freire e outros e outras educadoras vindas dos anos 60 e
da tradição original da educação popular, quanto a oposição crítica e fecunda que Boaventura de Souza Santos
estabelece entre ações de “regulação do sistema” e ações de “emancipação frente ao sistema”.
65
A dimensão política da IAP está em que entre todas as direções possível ela
opta por um clara vocação: é uma ação popular, insurgente, anti-
colonizadora e transformadora. Ela não se dirige a ser um instrumento mais
no processo cultural de aprimorar pessoas, grupos e comunidades populares
para as ajustarem melhor aos mundos sociais em que elas e nós vivemos,
sob a colonização hegemônica do capital. Em direção oposta a IAP aspira
transformar pessoas que aprendam a transformar o mundo em que vivem.
Neste sentido acredito que a IAP parte do suposto de que eu não dialogo
com uma outra pessoa quando nós entramos e saímos de nosso diálogo com
os mesmos saberes e as mesmas ideias de antes. Dialogamos quando
criamos juntos novos saberes que, sendo “nossos” como uma partilha, não
são nem “meus” e nem “deles”, como uma posse.
19 .
Nesta direção, recomendo com ênfase a leitura atenta do livro de Alfonso Torres Carrillo, Hacer história desde
Abajo y desde el Sur. O livro foi publicado pela Ediciones Desde Abajo, de Bogotá, em 2014. Sob a aparência
de um “manual de uso”, o livro de Alfonso Torres é um excelente estudo sobre a tradição da história popular no
mundo e, de maneira especial, da América Latina, acompanhado de fecundas proposições metodológicas de
uma Reconstrução coletiva da história.
67
20 .
Está nas páginas 21 e 22 do livro Investigación Participativa, no curso da entrevista concedida por Fals-Borda
a Ricardo Cetrulo, em Buenos Aires, em julho de 1985.
70
5.
Educação popular e pesquisa participante
Trago memórias do eu vivi e logrei realizar, ora a sós, ora com alguns, ora
com muito. Elas me vêm das duas faces, ou duas vocações de minhas vivências
nestes longos últimos anos. Um destas faces é a da academia. Ela envolve a
minha vida como professor e como pesquisador de universidades aqui no Brasil,
desde um agosto de 1967. A outra face vem de vivências até mesmo anteriores a
1967, e recorda algumas práticas de acompanhamento direto ou indireto de ações
entre a cultura e a educação, realizadas por diferentes tipos de movimentos
sociais. Há tempos na vida de quem escreve, leciona e participa de ações sociais,
em que se fala sobre os outros através de um eu, ou de um nós. Mas vem a seguir
um tempo em que se escreve também sobre um eu, ou um nós, através dos
outros. Que uma direção não conspire contra a outra.
Assim sendo, meu depoimento pendula entre o antropólogo do mundo
universitário e o educador popular que até agora não encontrou outro nome para o
que pratica e sobre o que escreve, desde pelo menos o começo dos anos
sessenta. Devo lembrar que em meu caso, o envolvimento com a militância
estudantil e social através do “movimento estudantil”, através de meu
72
depois, de escrita solitária, foi bastante mais longa e trabalhosa. Depois de meses
de trabalho envolvendo inúmeras pessoas das “equipes de pastoral” da Diocese de
Goiás, alguns assessores “de fora” (José de Souza Martins foi um deles, eu, um
outro) e um grande número de lideranças camponesas de Goiás, coube a mim a
redação dos oito “cadernos” ao longo dos quais dividimos todos os dados da longa
e trabalhosa pesquisa participante. O resultado, distribuído entre as comunidades
da Diocese, entre movimentos camponeses da região, e entre agentes de pastoral
da Diocese de Goiás, jamais foi publicado em algum livro de perfil mais acadêmico.
Devo dizer que faz anos que convivo, entre a solidão dos estudos, os
diálogos de sala de aulas, e alguns momentos de trabalho com agentes diretos ou
indiretos de ações sociais de vocação popular e minhas próprias experiências de
pesquisas de campo, com três modalidades do que, na que na falta de um nome
mais adequado estarei chamando aqui de: investigação social. Penso hoje que ao
longo de minha vida de pesquisas, essas três vertentes saídas de uma mesma
estrada, dialogaram bastante entre elas. E mais em cenários fora da academia do
que entre os de dentro dela. Cada uma em seu momento, cada uma com sua
vocação e cada uma para a sua finalidade, elas ora apenas se tocam, sem
conflitos graves, ora até se complementam fecundando umas às outras.
Devo chamar – talvez mais metafórica do que cientificamente - a primeira
variante de: pesquisa solitária. Seu praticante não único, mas por certo o mais
visível hoje em dia, é entre nós, o antropólogo. Quem leia o primeiro capítulo do
célebre Os argonautas do Pacífico Ocidental, de Bronislaw Malinowski, haverá de
encontrar ali uma de suas mais pioneiras e completas descrições.
A solidão de pesquisa de que falo aqui em nada se confunde com aquela do
filósofo, que em seus momentos estar a sós, longe de “todo o mundo”, pensa o
Mundo. Como um pesquisador de campo, as minhas pesquisas solitárias – como
as de praticamente gerações de antropólogos - foram vividas como longos ou
breves períodos de convivência com as pessoas das comunidades populares,
quase sempre rurais, ou das pequenas confrarias de rituais religiosos, cujos
passos e preces acompanhei pelo menos desde 1972. Os Deuses do povo, A
partilha da vida e O trabalho de saber, são três livros que bem traduzem esta
solitária vocação. (Não os citarei na bibliografia ao final, reservada apenas aos
livros que de fato prestaram algum serviço a este texto).
A segunda modalidade de pesquisas em que me vejo envolvido desde muitos
anos, eu a vejo também sendo praticada por inúmeros outros investigadores desde
a universidade. Na verdade, me alegra saber que em tempos de um crescendo
colonizador de um individualismo produtivista em nossas universidades, por toda a
74
pelo menos os representados pelo Brasil – mais nos inviabilizam. Eles seriam: a
educação popular, a teologia da libertação, a pesquisa participante e, numa
dimensão mais ativa, popular e mobilizada, o repertório de iniciativas de ações e
frentes de luta dos movimentos populares, entre as comunidades eclesiais de base
e o MST.
De fato, creio que nenhum educador latino-americano foi mais traduzido para
além do Espanhol do que Paulo Freire. Provavelmente nenhum teólogo mais do
que Gustavo Gutierrez e Leonardo Boff. E, mesmo chegando à Europa por alguma
porta dos fundos, talvez tenha sido preciso esperar os primeiros escritos e as
primeiras experiências de campo ligadas à pesquisa participante, para que a
questão da investigação social e de seus usos não apenas acadêmicos e
assumidamente colocados a serviço de causas populares, tenha provocado
aproximações, diálogos, traduções, encontros e fóruns internacionais como este
que nos reúne aqui em Porto Alegre.
Posso trazer aqui de novo um exemplo pessoal que bem testemunha o que
afirmo. Em 1989 fui convidado pelo Latin American Studies Centre da
Universidade de Cambridge como “visiting scholar” por dois meses (de inverno,
infelizmente). Na mesma ocasião o teólogo Gustavo Gutierrez foi convidado pela
mesma universidade, como “visiting professor”. Ele foi convidado por quatro meses
para responder por todo um curso sobre a teologia da libertação, enquanto coube
a mim uma apenas modesta apresentação de um “paper” em uma quinta-feira
dedicada a seminários. Mais do que isto, enquanto o meu único seminário foi
realizado diante de uma quinzena de estudantes inscritos pra esta atividade
escolar, e mais o professor coordenador, os seminários de Gustavo ocupavam
uma das grandes salas especiais de uma das mais importantes unidades de
Cambridge, e mesmo sem contar imagino que eram semanalmente assistidas por
mais de cento e cinquenta pessoas das mais variadas áreas acadêmicas. O
convite feito a Gustavo Gutierrez representou vários dois graus acadêmicos acima
do meu, tendo eu sido convidado como antropólogo da religião e, ele, como um
representante da teologia da libertação. O único momento em que o antropólogo
estudioso-de e o teólogo envolvido-com nos encontramos em pé de igualdade, foi
a noite em que ambos fomos, em uma capela medieval e diante de um corpo
docente solenemente becados, incorporados ao corpo do “Fellows of Saint
Edmund’s College”. Isto após havermos proferido um juramento igualmente solene
de fidelidade à ciência, a deus e à rainha da Inglaterra.
Deixemos aqui a parte por agora a teologia da libertação - sem esquecer
suas derivadas, como a filosofia da libertação de Enrique Dussel e também a
psicologia da libertação, pouco divulgada no Brasil, mas forte e fecunda em outros
80
não devemos repeti-lo e, menos ainda, não nos cabe recuar dos avanços que
vivemos juntos a partir também de suas ideias pioneiras.
Relembro que tanto a educação popular quanto a pesquisa participante (que
sempre entendi como um dos momentos e recursos da educação que sonhamos
praticar) mobilizam ainda e continuamente uma polissemia e uma quantidade
grande encontros como este. Por conta própria ou associadas a outras e novas
modalidades de empoderamento popular, cinquenta anos depois a educação
popular e a pesquisa participante seguem desafiando a criação de novas ideias e
de outras práticas, assim como a produção de novos artigos e livros, entre um
fecundo diálogo teórico e a narrativa de diferentes experiências.
Se, em tempos de “modernidade líquida” e de um crescendo vertiginoso do
poder colonizador da hegemonia social e simbólica do capital, um certo teor de
radicalidade popularmente mobilizadora, politicamente empoderadora e
socialmente transformadora pareça haver arrefecido entre nós, presenciamos um
inevitável e desejável alargamento de ideias e ações delas e delas derivadas, em
diferentes direções. Um olhar atento a outros contextos de teorias, propostas e
ações, pensadas e praticadas desde pelo menos os anos setenta-oitenta, tal como
a educação para a paz, a educação e direitos humanos, a educação ambiental, a
economia solidária, as diferentes ações ambientalistas , e, no seu mais fecundo
extremo, as ações diretas de antigos e de novos movimentos sociais populares,
haverá de revelar que em quase todos os seus círculos de pensadores e
praticantes é bastante raro o pensar e propor ideias e ações sem que de um modo
ou de outro elas retomem assinatura ou a herança do que foi e segue sendo
alguma das variantes da educação popular.
Este reconhecimento de neo-modalidades de ação social de tradição e
vocação “libertadora” - para retornarmos a uma palavra cara a Paulo Freire -
desdobra-se em uma ou em algumas das alternativas seguintes): a) elas se
reconhecem como uma modalidade atual de educação popular; b) elas incorporam
algo da essência e do proceder herdado da tradição da educação popular; c) elas
se veem em “situação de fronteira direta” com a educação popular, na mesma
medida em que se colocam em posição contrária a tudo aquilo que há muitos anos
Paulo Freire escolheu denominar “educação bancária” e tudo aquilo a que ela
serve, ou que dela deriva, d) elas incorporam alguma alternativa de pesquisa
participante como seu procedimento de pesquisa de uma realidade social .
Ao longo destas duas últimas décadas, sou testemunha de que essas e
outras modalidades de ação social humanizadora e ambientalista, via de regra são
assumidas e praticadas em uma fecunda vizinhança com a educação popular. Ou
então, em seus protocolos de ação elas se assumem em uma interação estreita e
82
certeza que “não estamos sozinhos”. Segundo, e mais relevante, para que se
reforce a tese de que a verdadeira oposição que nos separa não é entre o
“científico-acadêmico consagrado” e o indevidamente marginal, mas entre o que
um (bastante acadêmico) antropólogo sul-africano, de formação inglesa, Victor
Turner, chamou em alguns de seus livros, de uma oposição entre a estrutura e a
communitas. E observem que ele reservou para quem somos um solene e sonoro
nome em Latim.
Entre algumas linhas e parágrafos, viajemos do Brasil e da América Latina
para a Inglaterra e a Europa. Retornaremos de com algo que talvez nos ajude a
universalizar algo que estenda no espaço, mas não no tempo, algo que a um olhar
centrado sobre nos mesmos poderá parecer mais um “vício latino-americano”.
Sim, porque agora nos convido a que nos desloquemos no espaço, entre um
continente e outro. Mas não no tempo. Porque aportaremos na Inglaterra
justamente nos mesmos anos setenta, em que boa parte de nossa longa história
recomeça. Falo dos estudos culturais originados na Inglaterra de antes e de ontem.
Estarei fazendo aqui referência um livro não de ingleses, mas de dois autores
franceses que justamente buscam tornar conhecida na França (que ainda quase a
ignora) a fecunda experiência inglesa e popular dos estudos culturais. Seus
autores são Armand Mattelart e Érik Neveu. E o livro tem este nome: Introdução
aos estudos culturais. Deixo de lado a fascinante história das origens deste
“movimento”, ainda no século XIX, e me retenho em tempos que fazem parte
também de nossas histórias de vida. Do passado mais remoto retenho apenas
parte do parágrafo que inicia o livro.
está escrita na página 27, no título de um livro de autor inglês, mas sobre a França:
The Popular Education of France, resultante de uma viagem realizada em 1859,
quando éramos ainda um império escravagista, prestes a ser re-colonizado
justamente pela Inglaterra.
Ora, já em anos bem próximos aos do advento dos movimentos de cultura
popular no Brasil, e quando já o eu viriam a ser programas de educação popular
entre operários ingleses e a experiência – entre a academia e a militância – dos
estudos culturais, uma mesma oposição que está na origem de nossa educação
popular, é vida, em uma outra língua e em outros contextos “do lado de lá”. Já
então militantes culturais educadores populares, estão ao mesmo tempo no interior
e nas áreas entre a fronteira legítima e a margem liminar do mundo acadêmico. Tal
como nós, alguns se alternam entre educadores populares e professores-
investigadores de carreira. E se dividem.
desse questionamento, mas na trilha de Morris, optam de modo decisivo por uma
abordagem via classes populares (2006: 40).
Um livro mais tarde traduzido tardiamente em Portugal para nossa língua, e
escrito doze anos antes de Pedagogia do Oprimido, tornou-se algo equivalente ao
livro de Paulo Freire, entre militantes ingleses dos estudos culturais e de seus
desdobramentos em ações sociais de teor educativo. Em Português ele tomou
este nome: As utilizações da cultura – aspectos da vida cultural da classe
trabalhadora e até hoje é bem mais lido por antropólogos dedicados a pesquisas
de culturas e modos de vida populares do que por militantes da educação popular.
A história inglesa dos estudos culturais prossegue e, como a nossa (mas sem
uma ditadura militar a enfrentar) ela é fecunda e fascinante. Já bem nos anos
sessenta e como herança da anterior “década que não acabou” a “dos anos
sessenta”, os estudos culturais interagem entre adesões e conflitos com a New
Left. Recomendo a leitura do pequeno livro que aqui nos acompanha e mais
outros, a começar pelo de Hoggart, e me atenho agora ao que importa à trilha de
pensamento que seguimos aqui. De forma bastante semelhante àquelas que nos
“enquadraram” e seguem sendo um dilema para “outros-e-nós” desde os “anos de
fogo pós-64” e até hoje, a relação entre uma vocação acadêmica no trato do
popular versus uma vocação popular no trato do acadêmico, existiu também por lá.
Retomo nosso livro.
Esta e outras passagens do livro que nos acompanha são mais do que
eloquentes em demonstrar, com dados e fatos, que uma posição sempre liminar e
pauperizada dos projetos de ação social desde e através da academia foram, e
provavelmente seguem sendo em quase todos os cenários das mais diferentes
nações, mais a regra do que a exceção. E quando chegam a ser a regra, quase
sempre algo ela se estabelece de maneira efervescente e efêmera. Que a difícil
contratação de ninguém menos do que Stuart Hall (hoje leitura essencial entre
antropólogos e educadores multiculturais) nos recorde um outro ingresso
problemático, desta vez aqui entre nós. E com esta outra lembrança convoco de
novo Paulo Freire. Quando em 1980 ele retorna com a família ao Brasil, de
imediato é proposta a sua contratação como “professor titular” da Faculdade de
Educação da UNICAMP. Uma então “universidade-ilha em plena ditadura, e que
antes de Paulo já havia contratado vários “intelectuais de esquerda”, inclusive
alguns retornados de exílio. Ora, em um primeiro momento o seu ingresso é
colocado em questão por um parecer do Conselho Universitário. Afinal, na
UNICAMP o “doutor” estava naqueles tempos situado no nível MS-3, o exato meio
da carreira acadêmica. E Paulo estava sendo proposto para o nível MS-6, o nível
acadêmico do “professor titular”, situado acima do “professor adjunto” e do
“professor livre-docente”. Um novo parecer é solicitado ao professor (MS-6)
Rubem Alves. Baseado no repetido fato de que outros docentes foram contratados
no último patamar da hierarquia docente da UNICAMP, desde que atestado o seu
“notório saber”, Rubem Alves redige um notável parecer. Ele corajosamente
defende que não cabe à UNICAMP avaliar se o “professor Paulo Freire” (um “não-
doutor acadêmico”, não esquecer) deve ou não ingressar em seus quadros como
“professor titular”. Caberia a Paulo Freire avaliar se a Universidade Estadual de
Campinas seria digna de receber em seu quadro de docentes uma pessoa como
ele. Sua contratação foi aprovada por unanimidade em uma reunião seguinte do
mesmo Conselho Universitário.
Ora, de toda esta longa viagem, desejo me aproximar de uma opinião que
para alguns poderá parecer “coisa do passado”. Entretanto, a meu ver não é e
estamos longe disto. Justamente porque agora, mais do que antes, tanto a
educação popular quando a pesquisa participante vivem, em-e-entre as suas
diferentes alternativas de realização, talvez o momento de maiores dilemas de
identidade e vocação. Vivas e ativas em toda a América Latina, estas invenções
inovadoras e mesmo revolucionárias de trabalho “junto ao povo” – com ele, a seu
serviço e não mais para ele a para servir-se dele, imagino – correm a meu ver dois
perigo imediatos e graves.
92
5.
Andando em boa e difícil companhia
Paulo Freire
Anotação liminar
Paulo e Boaventura foram pessoas com quem convivi. Paulo por quase uma
década, Boaventura, até agora por menos de uma semana.
Antes de conhecê-lo e tê-lo como amigo e companheiro, fui um leitor dos
primeiros trabalhos de Paulo Freire. Eu era então um jovem estudante de
psicologia e já uma pessoa envolvida com os movimentos sociais e a educação
popular. De volta de seu exílio Paulo Freire foi trabalhar na Faculdade de
Educação da Universidade Estadual de Campinas. Nos encontramos, partilhamos
aulas, encontros e viagens. Convivemos fecundos anos, e mais do que o educador
95
criador de ideias que permanecem vivas e ativas entre nós, tantos anos depois,
guardo de Paulo a imagem e a memória de uma cuja vida de todos os dias
traduzia bem o melhor de suas ideias ditas ou escritas.
Li muito do que Boaventura de Souza Santos escreveu. Nós nos cruzamos
entre a pressa dos dias e as multidões de dois Fóruns Sociais Mundiais em Porto
Alegre. Mas somente anos depois viemos a compartir momentos de trabalho e
instante de fraterna e inesperada amizade. Foi durante os inesquecíveis dias de
uma “Conferência ARNA, em Cartagena de Índias, na Colômbia. Durante uma
semana nos reunimos, pessoas vindas desde a Índia à Argentina, para pensarmos
a ação social e o lugar do que chamamos de pesquisa-ação-participativa nela.
Comparti com Boaventura uma solene mesa redonda e mais alguns
momentos em que, como bem menos pessoas diante de nós e mais pessoas ao
redor de um círculo, pudemos compartir tanto ideias quanto esperanças.
Este escrito é posterior a quando Paulo nos havia deixado, e é muito anterior
a quando Boaventura e eu pensávamos juntos como o mundo deverá ser,
caminhando pelas ruas tortuosas e encantadoras de Cartagena de Índias, na
frente do Mar Caribe.
conhecida, no seu todo (“as condições sociais da vida cotidiana aqui”) ou em uma
parte delimitada (“a situação atual de saúde e alimentação das crianças daqui”).
Uma nova e inovadora interação na construção social do conhecimento
humano sobre a realidade da vida é estabelecida. De um lado está um nós de
sujeito ampliado: eles e nós, pessoas de conhecimento em busca de novos
saberes através da prática da pesquisa. De outro lado está a realidade social,
objeto da ser conhecido por nós que a compartimos e que diferencialmente a
vivemos, cada um a seu tempo, cada um a seu modo. E é esta diferença de
modos pessoais e culturais de ser, de viver, de sentir e de pensar, onde antes a
ciência “neutra” constituía uma desigualdade, o que torna possível o diálogo
científico. Um diálogo não mais à procura da verdade e, menos ainda, de uma
verdade absoluta. Um diálogo frágil e confiável, múltiplo e, portanto, capaz de
chegar a alguma unidade. Uma interlocução contínua, se possível (e temos que
descobrir como fazê-la possível) em busca de sentidos e de significados
partilháveis. Novos e confiáveis significados na interpretação solidária de uma
realidade de vida social. Significados que justamente por não serem, de um modo
definitivo, cientificamente objetivos, podem ser objetivamente compartidos e
levados a um trabalho pedagógico cuja proposta não é a de apenas descrever,
compreender e contemplar um uma fração da realidade da vida, mas é a de
interpreta-la para aprender a saber como transforma-la.
Mesmo antes de uma decisão política de uma “perspectiva libertadora”, paira
uma questão humana. Não somos todas e todos, “de um lado ou do outro”, seres
humanos dotados de capacidades diferenciais, mas não necessariamente
desiguais de sentir, de pensar, de fazer perguntas e de buscar inteligentemente as
respostas? Não são “eles”, o “nós” pessoal e coletivo das mulheres e dos homens
que “são daqui”, que “vieram para aqui”, “que vivem aqui” e que a seu modo e
segundo os seus estilos de vida, sentem, pensam e criam sistemas culturais de
sentimento-pensamento sobre “como se vive aqui”? Então em nome de que
princípio epistemológico (sempre pretensamente neutro, sempre socialmente
motivado) ou de que decisão de poder científico, em um momento de produção de
conhecimento sobre “como se vive aqui e o que determina a maneira como aqui se
vive assim”, os que “são de fora” se constituem como sujeitos, na mesma medida
em que pré-estabelecem como objetos da pesquisa e do conhecimento, os que
“são daqui e vivem aqui”?
Tem mais. Não é através “deles” – da percepção que possuem e que nos
comunicam na interação da pesquisa – que uma realidade comunitária vai ser
conhecida através de uma pesquisa? Não são eles os detentores primários e
primeiros do saber e do sentir através dos quais um conhecimento-sobre-a-
97
.
22
Entre 1992 e 1994 participei da coordenação e de projetos de pesquisas de uma ampla proposta de estudos
teóricos e “de campo” através do Aldebarã – observatório a olho nu e do meu Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da UNICAMP. Durante três anos estudantes, professores e equipes de estudantes e professores
investigaram temas ligados ao que chamamos uma “lógica da natureza” e uma “ética do ambiente” junto a
comunidades de pescadores do litoral e a comunidades de lavradores do interior do Estado de São Paulo. O
projeto homem, saber e natureza foi generosamente aprovado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado
de São Paulo e resultou em cerca de 24 relatórios finais de diferentes estilos de trabalho de pesquisa, em
maioria centrados em modelos qualitativos da antropologia e da sociologia. Ao longo de um inesquecível
tempo de pesquisas e de diálogos, algumas (uns) participantes passaram de graduandos a mestrandos, de
mestrando a mestres e de doutorandos a doutores. Alguns trabalhos foram publicados ou se converteram em
dissertações ou teses acadêmicas. De minha parte convivi com duas estudantes de antropologia dias de
pesquisa de campo na Serra da Mantiqueira. Iara e Lílian trabalharam visões de mulheres a respeito da vida
cotidiana e das relações sociedade-ambiente. Ingressaram ambas em estrados e são hoje professoras e
mestres, uma em antropologia e a outra em sociologia. De minha pesquisa resultou um livro publicado pela
Editora da UNICAMP em 1999 e que veio a ter o nome de o afeto da terra. Os acontecimentos interativos e
metodológicos de nossa pesquisa deverão compor o volume três desta série de livros.
De outra parte, estou agora participando de um projeto solidário-acadêmico semelhante. Somos no presente
momento uma equipe de professores e estudantes de graduação e pós-graduação reunidos no Laboratório de
educação e políticas ambientais, do Departamento de Ciências Florestais da Escola Superior de Agricultura
“Luiz de Queiroz”, da Universidade de São Paulo. Estamos elaborando um amplo projeto de educação
ambiental envolvendo atividades interligadas e interativas (esperamos) de: pesquisa teórica, pesquisa
documental, pesquisa de campo, cursos de especialização, cursos comunitários, oficinas de aprendizagem de
práticas ambientais, elaboração de material didático para escolas da rede pública de São Paulo. Haverá
momentos de pesquisa “pura”, de pesquisa “aplicada”, de pesquisa “participante”. Há uma preocupação muito
grande de que a proposta seja, no seu todo, um campo de diálogo por pelo menos quatro anos. Um diálogo
igualitário não apenas entre nós, educandos e de educadores da universidade, mas entre nós e as diferentes
categorias de atores sociais comunitários em nome de quem a própria proposta está sendo elaborada. O fato
de que nosso projeto venha a ser um entre outros de um imenso e rigoroso programa de pesquisas envolvendo
mais de 500 investigadores, sobretudo das áreas das ciências da vida (entre a biologia e a ecologia) não
invalida uma abordagem mais aberta, mais assumidamente difusa e, portanto, mais imprevisível. O grande
projeto que nos abriga tem por nome: BIOTA – Programa de Pesquisas sobre a Biodiversidade no Estado de
São Paulo.
101
compõem o tema dos capítulos seguintes, seja junto a algum tipo de movimento
popular. Transito da pesquisa acadêmica à pesquisa participante sem receios de
ser confiável e sem medo de ser feliz. Sei muito bem quais os limites, quais os
propósitos e quais os alcances de cada uma das experiências de investigação de
que participo. Em geral isto é dito com clareza na introdução de um relatório de
investigação e, assim, o leitor atento fica sabendo quando lê um tipo de texto ou
um outro.
De igual maneira transito há anos de momentos quantitativos a momentos
qualitativos em pesquisas sequentes ou dentro de uma mesma pesquisa. Sejam
elas “participantes” ou não, há vezes em que tudo o que se pretende saber e
compreender pode vir de vivências diretas (observação participante), do
depoimento dito face-a-face por um tipo de alguém, como as mulheres mães de
alunos da escola do bairro (entrevista aberta ou fechada, história de vida) ou de
um censo necessário (a quantificação de dados básicos a respeito de condições
de vida ou mesmo da opinião que pessoas têm sobre isto ou aquilo).
Há situações em que uma investigação lida com a “qualidade do que se vive
e fala”. Há momentos em que ela lida com a “quantidade de quem vive e diz”. Há
momentos em que a primeira alternativa se completa com os recursos da segunda.
Há momentos em que a relação é oposta, e o foco sobre a primeira alternativa se
complementa da contribuição da segunda. Assim é que na prática, mais além da
oposição “quantitativo” versus “qualitativo”, podemos lidar também com diferentes
estilos “quali-quanti”. Pierre Bourdieu, o notável etnólogo-sociólogo francês que
acaba de nos deixar, deixou antes importantes trabalhos em que associa as duas
abordagens para produzir a “sua leitura de uma realidade”. Recomendo a leitura
atenta de seus trabalhos de pesquisa de campo ou de pesquisa documental,
alguns deles publicados em português.
Em minha experiência lidei com pelos menos as quatro seguintes alternativas
de trabalho científico: a) pesquisas quanti/quanti – aquelas em que todo o
procedimento metodológico está fundado sobre modelos experimentais ou de
observação sistemática de uma dimensão do real, através de procedimentos
quantitativos e de processamentos estatísticos (descritivos e/ou inferenciais) dos
dados; b) pesquisa quanti/quali – aquelas em que os procedimentos quantitativos e
os dados derivados são constitutivos das análises feitas, sendo complementados
com dados de teor qualitativo; d) pesquisas quali-quanti – aquelas em que, ao
contrário, os procedimentos e os dados essenciais são francamente qualitativos e
se complementam (não raro em anexos ao texto) de dados quantitativos; d)
102
Posso dar um bom exemplo, e como ele recobre uma das experiências mais
difíceis e mais complexas de pesquisa participante, dentre as que conheço e as
que vivi, ele pode ter um duplo valor. Falo do que vivi junto a agentes de pastoral
e agentes de base da Diocese de Goiás. Do final dos anos sessenta até bem
entrados os oitenta, ela foi um dos cenários de vida e de militância cristã onde
então se vivia uma das resistências mais bem realizadas aos exercícios de
controle do Governo Militar. A Diocese de Goiás fazia parte de um círculo de
frentes cristãs de compromisso com causas populares desde onde nasceram as
comunidades eclesiais de base e a própria teologia da libertação. Pois bem, antes
mesmo de se falar em orçamento participativo e em pesquisa participante, era
prática constante ali a realização de assembleias anuais, onde todas e todos juntos
debatiam as questões sociais, pensavam juntos formas de ação pastoral e
decretavam os rumos da “Diocese”. Participei de várias delas e aprendi ali, nas
manhãs e tardes quentes da Cidade de Goiás, na beira do rio Vermelho (onde
muito anos antes o bandeirante Anhanguera enganou os indígenas Goya em
busca de ouro) mais do que em quase os livros sobre cidadania e participação.
Uma das práticas comuns então era a da realização de pequenas e grandes
pesquisas, ora bem locais, ora envolvendo todo o território da Diocese, cerca de
treze municípios goianos. Pois bem, em 1984 resolvemos realizar uma ampla
investigação sobre “as condições de vida do povo de Goiás” 24. Entre assessores
.
23
Uma das pesquisas de campo de que tenho melhores recordações observou desde os primeiros momentos
até a elaboração final dos relatórios, que desaguaram em dois livros, a articulação entre procedimentos
quantitativos (leitura e cópia de censos de IBGE e outras instituições, aplicação de questionários) e qualitativos
(observação participante direta, entrevistas individuais ou grupais, registros de situações de trabalho ou rituais).
Em ambos os casos eu acredito que trabalho com uma escolha de tipo quali-quanti. Em a partilha da vida
(Editora Cabral, Taubaté, 1995) os dados censitários e outros dados de coleta quantitativa são tão pouco
relevantes que acabaram ocupando apenas algumas notas de rodapé. Todo o procedimento do olhar, do
desejo, do pensamento e da metodologia é abertamente qualitativo. E eu procedo, a partir deles, a uma
interpretação de modos de ser, de viver e de sentir-e-pensar bem dentro dos estilos costumeiros de
antropologia social. Mas já em o trabalho de saber – cultura camponesa e escola rural (Editora Sulina, Porto
Alegre, 1999 – edição revisitada) os enfoques e os dados de análise e de interpretação se equivalem. Ao lado
do recurso a censos estatístico, uma equipe de moças do lugar (então estudantes de magistério e todas elas
professoras hoje em dia) aplicou questionários cujos dados foram, em alguns momentos, tão importantes
quanto os de minhas entrevistas e observações antropológicas diretas.
24 .
Diz assim o segundo parágrafo do caderno 1 da série de oito cadernos populares que tomaram o nome de:
condições de vida e situação de trabalho do Povo de Goiás, publicados como relatório de nossa investigação
participativa: Já em 1983, durante a nossa Avaliação Diocesana, constatávamos a necessidade de conhecer
melhor a realidade socioeconômica, política e cultural-religiosa da nossa Diocesana Já aí se falou na
possibilidade de uma nova “Pesquisa Diocesana”, como havíamos feito em 1970 . (página 3). De fato, já em
1970 uma pesquisa semi-participante, pioneira, havia sido realizada. Vivi a ventura de haver participado na
103
assessoria de ambas. O livro dois desta série de estudos sobre experiências diversas da pesquisa deverá
descrever cm detalhes e apresentar longas passagens de pesquisas participantes em Goiás. Uma delas, a
mais ampla e relevante, é justamente esta de que falo agora.
104
são citados com frequência entre nós, seria um bom porta-voz desta tendência. A
palavra transdisciplinar possui na fronteira entre a ciência e a educação, aqui, uma
força especial25.
Reconheço a seguir talvez a tendência mais divulgada e mais discutida. Ela
tem um pé na tradição inovadora das ciências da natureza e, o outro, no deságio
da interação entre a ciência ocidental e as tradições de ciência, filosofia e
espiritualidade orientais. De maneira algo diversa do que acontece no caso da
primeira tendência, existe aqui o reconhecimento de que não é apenas de dentro
da longa crise dos sistemas ocidentais de pensamento científico, e dos desafios de
integração entre campos de ciências, ao lado de uma reconstrução epistemológica
radical - onde uma certa subjetivação das relações teóricas e operativas da
investigação possui um lugar de importância – que o surto inovador dos novos
paradigmas deve ser buscado. Ele estaria também em uma inevitável abertura dos
modelos oficiais-ocidentais ao diálogo com sistemas de imaginário e de
pensamento das tradições orientais e, no limite, dos povos indígenas. Fritjov Capra
é o difusor mais reconhecido desta tendência. Mais próximo dos estudos sobre a
pessoa humana, a vertente californiana da Psicologia Transpessoal deve ser
lembrada26.
Uma terceira tendência é a que nos toca de mais perto aqui. Paulo Freire
estaria situado nela. Edgar Morin seria um seu representante mais moderado e
Boaventura de Souza Santos um representante mais crítico. Ela se deferência das
duas antecedentes por estar mais associada a uma compreensão totalizante do
mundo, da vida, da pessoa, da sociedade e, nela, da educação, a partir das
ciências sociais. Veremos logo adiante Boaventura de Souza Santos invertendo o
eixo clássico das relações, e defendendo a ideia de que no adventos dos
paradigmas emergentes são as ciências da natureza que toma das sociais os
fundamento de sua lógica e de suas futuras orientações de pesquisa. De outra
parte, sobretudo em A crítica da razão indolente – contra o desperdício da
experiência e em Pela mão de Alice – o social e o político na pós-modernidade,
.
25
Aqui no Brasil um dos maiores difusores do pensamento desta tendência é o matemático e educador Ubiratan
D’Ambrósio. Ele tem vários artigos em diferentes livros e revistas, e um livro de autor: Transdisciplinaridade,
publicado em 1997 pela Palas Atena, de São Paulo.
.
26
Alguns dos seus livros, inclusive com artigos de Capra estão traduzidos para o Português. Assim, recomendo a
leitura de duas coletâneas organizadas por Roger Walsh e Fraces Vaughan, ambas editadas pela Cultrix, de
São Paulo. Um dos livros é: Caminhos além do Ego – dimensões transpessoais em Psicologia , de 1997. O
outro é: Caminhos além do Ego – uma visão transpessoal , de 1999. Um dos mais conhecidos interlocutores
desta linha é Stanislav Grof. Ele tem em Português o livro: O Jogo Cósmico –explorações das fronteiras da
consciência humana, publicado pela Editora Atheneu, de São Paulo, em 1999. Existe também uma “linha
francesa”, ou “franco-brasileira” (os termos são meus) representada no Brasil pelo pessoal reunido na UNIPAZ
– Universidade da Paz, de Brasília, coo Pierre Weil e Roberto Crema.
106
Por toda a parte, para onde quer que nos virássemos, eu e meus
companheiros nos vimos de um momento para o outro cercados de palavras e de
brados de alerta a respeito do esgotamento dos padrões de pensamentos e de
criação científica através da pesquisa, segundos os modelos
cientificistas/quantitativistas que nos haviam acompanhado até então. Desde o
começo dos anos sessenta aprendemos com pessoas aqui do Brasil, da América
Latina e de outros quadrantes do mundo, a realizar uma severa crítica a respeito
dos fundamentos de teoria e empiria dos estilos dominantes de criação de
conhecimentos por meio da investigação científica. Não queríamos mais nos
enganar. Sabíamos bem da boa inocência ou da má consciência contidas nos
princípios de neutralidade-objetividade de ciências afinal orientandas segundo
interesses e para utilidades econômicas, políticas e de outros círculos sociais bem
distantes de um valor humano que tomávamos como o sentido de todo o nosso
trabalho.
Em Ilya Prigogine e em outros severos críticos da ciência moderna,
encontramos uma análise que nos ajudou a rever o nosso próprio olhar e a partir
em busca de uma outra orientação para nossos estudos e nossas pesquisas. Mas
em vários destes autores faltava uma espécie de crítica da crítica da ciência. Isto
é, toda a avaliação do esgotamento de modelos consagrados, vigentes e
hegemônicos de nossas ciências, limitava-se a uma crítica epistemológica.
Traduzo: uma crítica severa dos fundamentos lógicos do pensamento científico em
si-mesmo, tal como vimos em momentos do capítulo anterior.
No entanto, o surgimento de novos modelos de “educação do olhar” e de
elaboração de compreensões a respeito da realidade não deve obrigar quem
investiga a um descompromisso com a seriedade de sua ações e com o rigor de
suas estratégias de pensamento científico. Veremos o tempo aqui e em outros
momentos deste livro, que justamente ao descobrirmos da presença inevitável de
sujeitos e de intersubjetividades de um lado e do outro do trabalho de construção
de novos saberes através do trabalho de alguma ciência, ou de uma conexão entre
várias, nos veremos também obrigados a estabelecer critérios de confiabilidade em
31
. Está na página 41 do livro: A nova aliança – metamorfose da ciência, publicado em 1984 pela Editora da
Universidade de Brasília.
109
32.
Está na página 308 do livro: Conhecimento Objetivo, publicado em 1975, Itatiaia/EDUSP, de São Paulo.
110
33 .
Boaventura de Souza Santos, Um discurso sobre a ciência, 2001 (12ª edição) Edições Afrontamento, Porto,
página 28.
111
E uma nova ordem mundial, dizíamos nós “naqueles tempos”, ou seja, tudo o
que, aqui, pode ser pensando como entre os anos sessenta e os oitenta. E essas
são duas outras razões irmãs-gêmeas – pois acreditamos que não se pode pensar
de outra maneira sem se conceber também um viver em um outro mundo, aqui e
em algum tempo, não tão distante, se possível. Que desde os primeiros parágrafos
.
34
Devo esta lembrança a uma de minhas alunas de um curso de “leituras da Natureza, no Mestrado em
Antropologia Social” no segundo semestre de 2001. Foi Maria Claudia Nogueira quem lembrou a citação de
Capra.
.
35
Boaventura de Souza Santos, op. Cit. Pg. 43.
112
Não virá longe o dia em que a física das partículas nos fale do jogo
entre as partículas, ou a biologia nos fale do teatro molecular ou a
astrofísica do texto celestial, ou ainda a química da biografia das
reacções químicas. Cada uma destas analogias desvela uma ponta do
mundo. A nudez total, que será sempre a de quem se vê no que vê,
resultará das configurações de analogias que soubermos imaginar:
afinal, o jogo pressupõe um palco, um palco exercita-se como um
texto e o texto é a autobiografia do seu autor. Jogo, palco, texto ou
biografia, o mundo é comunicação e por isso a lógica existencial da
ciência pós-moderna é promover a “situação comunicativa”, tal como
Habermas a concebe36.
Pelo menos por agora podemos deixar na espera estas ideias tão certeiras e
tão surpreendentes. Confesso que até ler Boaventura e outros de seu tempo, não
havia ousado pensar por aí. Não sei ainda se estou de acordo com todas as
conclusões a que ele chega, mas quero, antes de finalmente trazer ao nosso
diálogo a reflexão mais próxima da pesquisa participante, deixar aqui por escrito a
síntese delas.
Bem a contramão dos que preferem dar ao paradigma emergente nomes
mais pós-modernos e mais complexos, entre “holísticos” e “transdisciplinares” –
nomes d cujas faces sérias e atuais não devemos desconfiar de modo algum -
Boaventura de Souza Santos escolhe: paradigma de um conhecimento prudente
par uma vida decente37. O longo nome quer traduzir as duas dimensões de
qualquer vocação do saber científico originado de qualquer modalidade de
investigação sobre qualquer dimensão do real. Que ele seja uma forma de
conhecimento que atribua um verdadeiro sentido humano à revolução científica
.
36
Boaventura dos Santos, op. Cit. Pg. 45
37 .
Está na página 37 de um discurso sobre as ciências. As minhas reflexões seguintes tomam as de
Boaventura entre as páginas 37 e 58.
114
que bate às nossas portas. Pois ele será o conhecimento de uma transformação
de modelos e sistemas de pensamento bem diferente da que ocorreu no século
XVI e, com as ciências sociais, no século XIX. Pois ele acontece dentro de uma
sociedade universal já revolucionada pelos diferentes saberes da própria ciência.
Assim sendo, não se trata mais de uma “revolução científica” mas de uma escala
de revolução também social através do que se transforma no universo das
ciências.
A responsabilidade social de teor político do paradigma emergente faz com
que um conhecimento prudente e reconstruído, passo a passo, dentro e ao longo
de novos sistemas de integração solidária entre ciências situadas nos mais
diversos campos do saber; de interação entre as ciências e outros campos
humanos do conhecimento, inclusive os das tradições orientais, as dos povos
tribais e as do senso comum, e de uma abertura à indeterminação e ao
reconhecimento da fragilidade e do efêmero de qualquer construção de sistemas
também científicos de compreensão do real, deságue em ele se reconhecer como
responsável pela qualidade da vida social, por uma vida decente entre todas as
pessoas e todos os povos.
Daí que.
Uma temerária hipótese, sem a menor dúvida. Mas não outra coisa o que
Paulo Freire e quantas e quantos de nós acreditamos pela vida afora. Ela em nada
tem a ver com uma “folclorização” do conhecimento humano, a começar pelo
científico. Em uma direção, não se trata de desqualificar o saber acadêmico e suas
variantes em nome de uma espécie de poli-saber-do-povo, erigido como um
conhecimento original, um saber de raízes, logo, o mais legítimo. Este seria o
caminho de se sair de um fundamentalismo – o da ciência culta que se erige como
o único confiável – para um outro: o de um populismo epistemológico cujos maus
frutos são bastante conhecidos. Em uma outra direção, não se trata de uma
estratégia de banalização do conhecimento científico para que ele venha a ser “de
todos” no seu processo de construção e nos seus produtos de realização.
O caminho é outro.
Ele começa na convicção de que tal como o ar, a terra e a água, se o
conhecimento é, mais do que uma conquista de poucos, um bem de todos e para
todos, então ele deve ser objeto de toda a partilha possível. Toda a posse
privilegiada do dom do saber através da pesquisa destinada à realização da vida e
da pessoa humana, é em si mesma arbitrária, injusta e reforçadora da
desigualdade entre pessoas, entre grupos humanos e entre povos da Terra. Tão
importante quanto saber como criar conhecimentos oportunos e humanizadores, é
saber como ampliar o círculo dos seus criadores, dos seus participantes e dos
seus beneficiários diretos. Da mesma maneira como tantas e tantos companheiros
de destino têm pensado a questão da partilha dos bens da terra através de uma
economia solidária tão divergente quanto possível do modelo globalizado e vigente
de produção, posse e circulação dos bens da Terra e dos poderes entre os povos,
assim também precisamos criar de todas as formas possíveis verdadeiras
experiências de ciência solidária, de pedagogia solidária - de que a Pedagogia do
Oprimido freireana pode ser um excelente fundamento, ainda hoje - associada a
outras práticas sociais solidárias da vida cotidiana e da história humana.
119
.
41
Boaventura de Souza Santos, obra citada, página 55.
120
Sempre se fala de algum lugar social. Nunca se fala de um local situado fora
do mundo da vida cotidiana. Pelo menos nesta vida. Estamos todas e todos em um
mesmo mundo e nos falamos, entre nós e outros, dele e de algum lugar situado
nele. Este lugar pode ser Porto Alegre, Passo Fundo, São José dos Ausentes,
Nova York, Havana ou Jerusalém. Mas pode ser também o lugar sociocultural do
mercado de bens, o lugar sociocultural do poder de estado (ou de um estado de
poder) ou o lugar sociocultural da comunidade. E quando este falar-desde-um-
lugar-social é um dizer de dentro de um “órgão público”, a escolha do sentido do
lugar de origem (de que ponto de vista em falo quando pesquiso ou educo como
um profissional da “rede pública de educação de Caxias do Sul”) e a escolha do
.
42
Op. cit. páginas 55 e 56.
121
ele elas devem ser educadas. O destino social do ser humano na sociedade
globalizada não é outro senão o mercado.
Nota: acredito que as pessoas cuja opção é: trabalho para mim mesmo, para
ganhar a vida e nada mais, para subir na vida, para meu próprio benefício, e assim
por diante, realizam de maneira individualizada e extrema a opção do lugar social
do mercado de bens e de serviços. Esta opção de um modo ou de outro realiza a
dimensão mais individualizada da lógica do mundo dos negócios.
.
43
Como um bom exercício de pesquisa sugiro a leitura atenta das reportagens que estão sendo publicadas nas
revistas nacionais de ampla divulgação (VEJA, Isto É, Exame, Carta Capital, Caros Amigos) tendo a crise da
universidade pública e o avanço geométrico das instituições e empresas de educação de nível superior no
Brasil. No final de 2001 Carta Capital publicou uma matéria extremamente crítica sobre o assunto, sob o título:
diplomados em ganhar dinheiro. Em direção oposta, a Exame de 3 de abril de 2002 publicou como matéria de
capa a reportagem: nota alta, cuja manchete diz na página 35: a educação já movimenta 90 bilhões de reais
por ano no Brasil e deve ser o setor que mais crescerá no mundo nas próximas duas décadas. Na sociedade
do conhecimento, o ensinar e o aprender abrirão uma fronteira de negócios de dimensões inimagináveis. Mas
no número de 5 de junho de 2002 Carta Capital retorna com a matéria: mais desigualdade nas universidades,
cuja manchete da página 16 anuncia: o aumento de vagas nas instituições particulares agravou a elitização.
Enquanto isso, as públicas dividem-se em núcleos privilegiados e bolsões de pobreza.
123
populares + poder de estado. A sutil diferença entre elas está em que na primeira
alternativa a destinação do trabalho de educação e pesquisa à comunidade serve
a aproxima-las da submissão política (vocação perversa) ou da participação
cidadã na partilha do poder de estado, como lugar social de realização da vocação
democrática de presença na vida social. Enquanto na segunda o lugar social de
uma permanente vocação cidadã é a comunidade e cabe ao poder de estado uma
função meramente representativa de um poder que não lhe é próprio em nenhuma
dimensão. Mas, convenhamos, este é um assunto político demais para merecer
mais espaço do que este em um diálogo sobre alternativas de trabalho de
pesquisa social na/através da educação.
Aquilo a que dei até aqui o nome de lugar social de origem de um trabalho
qualquer, de uma prática social (como a educação), científica (como a pesquisa
associada à educação), filosófica, artística, religiosa, de uma outra dimensão
cultural, ou resultante da interação entre as lembradas aqui, divide-se em
Boaventura de Souza Santos em três princípios de regulação da vida social: o do
mercado, o do estado e o da comunidade. Os dois primeiros são hegemônicos no
Mundo Moderno e ora se alternam, ora se enfrentam, ora se aliam como princípios
dominantes e colonizadores da vida cotidiana realizada na esfera da comunidade.
E é este último princípio de regulação, o da comunidade, aquele que pode, bem
mais do que o princípio do mercado ou o princípio do estado, vir a ser
emancipador.
Em meu entender, as representações que a modernidade deixou
até agora mais inacabadas e abertas são, no domínio da
regulação, o princípio da comunidade e, no domínio da
emancipação, a racionalidade estético-expressiva. Dos três
princípios de regulação (mercado, Estado e comunidade), o
princípio da comunidade foi, nos últimos duzentos anos, o mais
negligenciado. E tanto assim foi que acabou por ser quase
totalmente absorvido pelos princípios do Estado e do mercado.
Mas, também por isso, é o princípio menos obstruído por
determinações e, portanto, o mais bem colocado para instaurar
uma dialética positiva com o pilar da emancipação 44
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.
46
Boaventura de Souza Santos, op. cit. pg. 95.
127
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Cópia em xerox sem maiores indicações
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O socialismo utópico
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Lévinas, Emmanuel
Entre nós, ensaios sobre a alteridade
1997, VOZES, Petrópolis
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Como anda o debate sobre metodologias quantitativas e qualitativas na pesquisa
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O falso conflito entre tendências metodológicas
1988, Cadernos de Pesquisa do CEDES, v. 66, Campinas
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Grande Sertão, Veredas – o romance transformado: semiótica da construção do roteiro televisivo
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LIVRO LIVRE