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São Paulo, segunda-feira, 10 de setembro de 2001

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ENTREVISTA DA 2ª
Cientista vê "miopia" na escolha do sistema da Microsoft para
escolas públicas

Inventor do "PC popular" critica opção do


governo pelo Windows
Giovani Pereira/Agência Lumen

Micro popular de R$ 950,


projeto brasileiro mais
elogiado no Relatório de
Desenvolvimento Humano
da ONU, cujo projeto foi
coordenado pelo doutor
em ciência da computação
Sérgio Vale Campos

RENATA LO PRETE
DA REPORTAGEM LOCAL

O programa que visa conectar escolas públicas à internet transformou


em discussão política uma antiga divergência entre usuários de
computador.
Ao decidir que a maioria das máquinas carregará o sistema
operacional Windows, o governo recebeu críticas de uma série de
especialistas. Para eles, tanto os estudantes quanto os cofres públicos
sairiam ganhando se a escolha recaísse sobre o Linux.
Esse, à diferença do produto da Microsoft, é um sistema aberto (pode
ser aperfeiçoado e personalizado pelo usuário) e gratuito.
O cientista da computação Sérgio Vale Aguiar Campos, da
Universidade Federal de Minas Gerais, rejeita a tentativa de
caracterizar esse debate como uma conversa de iniciados, troca quase
religiosa de farpas entre adeptos de um sistema e de outro.
Seus argumentos em defesa do Linux são bastante concretos:
economia de recursos, fator "incrivelmente importante em um país
pobre como o nosso", e possibilidade de não apenas reproduzir mas
também gerar conhecimento a partir do sistema.
Não seria ruim, acrescenta, que os alunos utilizassem também o
Windows. O problema, acredita, é depender de um só produto e de
um só fabricante.
"O mercado oferece as duas opções. Se o país é sério, seus estudantes
têm de ter acesso a ambas." Campos não é apenas um crítico entre
tantos. Ele trabalha para o governo. Aos 36 anos, coordena a equipe
que criou o chamado computador popular.
O projeto, assim como o da conexão das escolas, está ligado ao Fust
(Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações). Em
janeiro deste ano, o governo apresentou o protótipo do então
"computador de R$ 600". Do tamanho aproximado de duas caixas de
sapatos, ele permite, em sua configuração mínima, acessar a internet,
processar textos e trabalhar com planilhas.
A máquina ganhou reportagens entusiásticas nos EUA, onde foi
batizada de "PC for the people". Nenhuma outra iniciativa brasileira
recebeu elogio tão alentado no mais recente Relatório do
Desenvolvimento Humano das Nações Unidas.
Apesar da festa oficial e do reconhecimento externo, o "PC do Povo"
hoje patina na desvalorização do real e na crise de energia. A previsão
de preço foi revista para R$ 950. Produção, na melhor das hipóteses,
só em 2002.
Sem disposição para esperar de braços cruzados, os cientistas da
UFMG conseguiram materializar dez de seus computadores,
fabricados por uma empresa de São Paulo e outra de Belo Horizonte.
Com as máquinas, montaram laboratório em uma escola na periferia
da capital mineira. Aos poucos, alunos e professores estão
incorporando o equipamento a seu trabalho cotidiano. "É interessante
observar as pessoas desmistificando algo que nunca deveria ter sido
mistificado", diz Campos. "Computador é um negócio simples: você
aperta as teclas e sai andando." Na entrevista abaixo, ele reconhece
que eventualmente se rende ao Windows. "Só para rodar joguinhos."

Folha - Por que a oposição ao uso do Windows nos computadores


que serão instalados em escolas públicas?
Sérgio Vale Aguiar Campos - Em primeiro lugar, nós, cientistas da
computação, sabemos que existe coisa melhor. Melhor porque mais
robusta e também melhor porque gratuita.
A escolha do Linux representaria uma economia muito grande, o que
é incrivelmente importante em um país pobre como o nosso, sem
condições de informatizar escolas à maneira dos EUA.
Lá, uma empresa da cidade doa milhares de dólares para colocar
computadores nas escolas da vizinhança, porque ali estudam os filhos
de seus funcionários.
Faz todo o sentido, mas no Brasil não funciona. É como criar cotas
para negros nas universidades. Você importa uma solução que não vai
funcionar. O preço é um fator muito importante.

Folha - Há outros?
Campos - Ter 7 milhões de alunos aprendendo a usar apenas o
Windows é criar uma camisa-de-força. Embora, por razões técnicas,
eu prefira o Linux, entendo que é preciso estudar também o sistema
da Microsoft.
Agora, é absurdo que o país faça uma opção quando há outra de
melhor qualidade, a preço mais baixo, solenemente ignorada por uma
questão de colonialismo.
Nunca sabemos qual será o conteúdo da próxima versão do Windows,
mas sabemos que a memória do computador terá de ser dobrada para
poder rodá-lo.
O Brasil não pode perpetuar essa dependência. Não dá para trocar a
memória do computador, ou as máquinas, a cada dois anos.

Folha - O governo argumenta que os secretários estaduais da


Educação foram consultados e que a maioria preferiu o Windows
por ser o sistema mais utilizado, com o qual os alunos terão mais
contato no futuro.
Campos - Não é bem assim. Levantamento recente entre sites
brasileiros mostra que, dos governamentais, 65% operam com o
sistema da Microsoft. Na área de entretenimento, são 50%. Entre os
sites de instituições de ensino, 30%. Ou seja, existe uma penetração
do Linux e de suas variações.
O Windows dá o peixe; o Linux ensina a pescar. O mercado trabalha
com as duas opções.
Se o país é sério, seus estudantes têm de ter acesso a ambas. É uma
postura míope, até mesmo irresponsável, a de simplesmente seguir o
que outros estão fazendo.

Folha - Defensores do Windows costumam lembrar que diversos


softwares necessários em escolas rodam apenas nesse sistema.
Campos - Todos os softwares importantes funcionam na web, ou seja,
dentro do navegador, independentemente do sistema operacional. E os
que não são assim estão se movendo rapidamente para a web, por ser
um sistema muito mais eficiente.

Folha - O governo também argumenta que a manutenção da


Microsoft está ao alcance de todo professor, enquanto o Linux
carece de assistência técnica nacional.
Campos - Isso não faz o menor sentido. Tal idéia existe porque as
pessoas estão acostumadas com o Windows, que trava, eventualmente
não funciona, dá trabalho para manter. O Linux, uma vez instalado,
não dá problema.
No laboratório que montamos em Belo Horizonte, você conecta o
computador à internet e altera o que quiser dentro dele. Não precisa
chamar ninguém para fazê-lo.
Uma das premissas do nosso projeto é tornar o computador popular o
mais "limpo" possível. Os dados não estão dentro dele, mas no
servidor. A manutenção não tem de ser feita em 20, 40 máquinas, mas
apenas em uma.

Folha - Por falar no laboratório, a opção do governo pelo Windows


se estenderá ao projeto do computador popular?
Campos - De jeito nenhum.

Folha - No início do ano, o governo fez festa para anunciar o PC de


R$ 600. Na semana passada, a previsão de preço subiu para R$ 950,
e a estimativa de início da produção foi transferida para um ponto
indeterminado do primeiro semestre de 2002. O que deu errado?
Campos - Quanto a isso só posso especular, como qualquer cidadão.
Acho que a desvalorização do real e a crise de energia foram os
principais empecilhos.
Folha - O projeto do computador popular está abrigado no
Ministério das Comunicações. No entanto a primeira iniciativa para
tirá-lo do papel veio de uma parceria entre os cientistas da UFMG e
a Prefeitura de Belo Horizonte. Por quê?
Campos - Todo mundo disse que ia ajudar, dar máquinas, mas nós
não estávamos a fim de esperar. Saímos fazendo e nos entendemos
com a prefeitura. É uma escola de segundo grau. Fica na periferia. A
experiência tem sido muito interessante. Agora planejamos criar o
primeiro supercomputador popular. Durante o dia, os alunos usarão os
computadores do laboratório para estudar.
À noite, as máquinas automaticamente se configurarão para trabalhar
em conjunto e resolver problemas de supercomputação.

Folha - Os cientistas vão à escola ou monitoram à distância?


Campos - Nós temos ido à escola. É algo muito importante, que até
agora o governo não fez. Apenas colocar computador na escola não
vai resolver nada. É como dar um carro a quem não sabe dirigir. Nós
estamos acompanhando, ensinando e aprendendo junto com alunos e
professores, para passar a experiência adiante.

Folha - O que o sr. tem percebido nessas visitas?


Campos - É interessante observar as pessoas desmistificando algo que
nunca deveria ter sido mistificado. Computador é um negócio
simples: você aperta as teclas e sai andando. Pode fazer besteira, mas
isso é normal. É como bater o carro enquanto se aprende a dirigir. O
nível de conhecimento de computador de quem usa o laboratório
varia muito. Alguns alunos estavam familiarizados com o Windows,
outros não, mas nenhum está enfrentando problemas por atuar em
outro sistema.

Folha - O sr. não usa Windows para nada?


Campos - Só para rodar joguinhos.

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