Ruy LAURENTI *
Maria Ap. T. GUERRA **
Regina Ap. BASEOTTO **
Maria T. KLINCERVICIUS **
RSPSP-147
INTRODUÇÃO
LAURENTI, R. et al. — Alguns aspectos
epidemiológicos da mortalidade por Em todo o mundo, os acidentes de
acidentes de trânsito de veículo a trânsito, e em especial aqueles causados
motor na Cidade de São Paulo, Bra-
sil. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 6: por veículos a motor, vem assumindo
329-41, 1972. destaques cada vez maior como causa
RESUMO: Foram estudadas algumas de morte, sendo que, em inúmeros paí-
características dos óbitos por acidentes ses, quanto à magnitude, a mortalidade
de trânsito de veículos a motor, no mu- por essa causa figura entre as primeiras.
nicípio de São Paulo, ocorridos entre 1.° O fato de incidirem principalmente so-
de janeiro a 31 de dezembro de 1970. bre os jovens e os adultos jovens tem
Todas as características do falecido e do
acidente foram coletadas a partir dos da- sido destacado para chamar a atenção
dos registrados nos laudos de necrópsias quanto à necessidade de, contra eles,
existentes no Instituto Médico Legal. O serem tomadas medidas preventivas efi-
estudo evidenciou que a mortalidade por cazes. A primeira morte, por essa causa
acidentes de veículo a motor é alta,
maior no sexo masculino, aumenta com nos Estados Unidos, ocorreu em 1899 e
a idade, sendo que o maior coeficiente a intensidade do problema foi tal que
foi para maiores de 60 anos. A zona da em 1951 foi ali registrado o milionésimo
cidade com maior número de acidentes caso; por outro lado, sabe-se que atual-
é a zona Sul, existindo áreas (distritos
policiais) e vias públicas preferenciais mente, em todo o mundo, morrem mais
quanto a ocorrência,, em todas as 4 zo- de cem mil pessoas por acidentes de
nas do município; a maior ocorrência de veículo a motor 7.
acidentes foi aos sábados e domingos;
os pedestres compreendem a grande Já há muitos anos, em inúmeros paí-
maioria dos falecidos; proporção apre- ses, a mortalidade por acidentes de
ciável dos falecidos recebeu atendimento
hospitalar após o acidente. Foram rela- veículo a motor ultrapassou aquela con-
cionados também o número total de aci- seqüente a outras causas ou grupo de
dentes, vítimas e mortes mostrando que causas, como por exemplo, as doenças
para cada 100 acidentes ocorreram 62,50
vítimas e 5,13 mortes, e para cada 100 infecciosas. Até mesmo em áreas ou paí-
vítimas, 18, 22 mortes. ses em desenvolvimento, esses acidentes
UNITERMOS: Acidentes de trânsito *; tem sido motivo de preocupação, visto
Veículos a motor *; Mortalidade *; Epi- que os mesmos vêm aumentando pro-
demiologia. gressivamente. Na Nigéria, um estudo
715 —
* Do Departamento de Paulo,S.P.,
SãoEpidemiologia Brasil.
da Faculdade de Saúde Pública da USP — Av. Dr. Arnaldo,
** Acadêmicas de Medicina do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina
da USP - Av. Dr. Arnaldo, 455 — São Paulo,S.P., Brasil.
sobre acidente na infância9 evidenciou nia e quase tanto quanto a tuberculose
que aqueles causados por veículos a pulmonar.
motor são ali vinte vezes mais perigosos
Na cidade de São Paulo, em 1950, o
que os mesmos considerados nos Esta-
risco de morrer por acidente de veículo
dos Unidos e dez vezes mais que na In- a motor foi aproximadamente cinco ve-
glaterra. FÁVEROS 3 estudando a epidemio- zes menor do que o devido à tuberculose
logia dos acidentes de trânsito em Ri- (respectivamente 12,2 e 60,0/100.000 habi-
beirão Preto refere que os mesmos, pelo tantes) e em 1967, os acidentes mataram
número de pessoas lesadas e de óbitos cerca de 1,4 vezes mais do que a tuber-
que provocam, constituem sério proble- culose (respectivamente 24,2 e 17,3/100.000
ma de saúde. O autor, além de seus pró- habitantes). De 1950 para 1960 os níveis
prios dados, reporta-se a uma pesquisa de mortalidade causada por esse tipo de
da Repartição Sanitária Panamericana, acidente permaneceram mais ou menos
mostrando que em Ribeirão Preto, nos estacionários. A partir da década de 60,
anos de 1962 e 1963, na mortalidade de porém, a mortalidade aumentou bastan-
indivíduos entre 15 e 74 anos, os aciden- te, atingindo em 1970, valor que repre-
tes de trânsito mataram mais do que a senta quase que o dobro do verificado
diabetes mellitus, que a broncopneumo- em 1960. (Tabela 1).
A mortalidade pela causa aqui consi- blema em São Paulo foi o motivo deste
derada atingiu, nos últimos anos para estudo, do ponto de vista de sua epide-
os quais se dispõe de dados, os mesmos miologia. Inicialmente, pensou-se em
níveis observados em países desenvolvi- uma análise mais ampla a respeito do
dos. Assim, por exemplo, em anos pró- mesmo, a partir dos "Boletins de Ocor-
ximos a 1968 ela foi de 26,4/100.000 habi- rência" feitos pelas autoridades policiais.
tantes no Canadá, 22,4 na Dinamarca, Como se sabe, entre nós, praticamente
21,4 na Itália, 22,2 na Holanda, 31,6 no todos os acidentes de veículo a motor, e
Luxemburgo e 24,5 na Suissa1. principalmente aqueles que ocasionam
A gravidade que vem assumindo o pro- lesões em pedestres ou ocupantes dos
veículos, tem sua ocorrência registrada causas violentas ou acidentes são
pela autoridade policial da circunscrição submetidos à necrópsia no Instituto
(distrito policial) em que aconteceu o Médico Legal e esse órgão não utiliza o
acidente. Esse registro é feito no chama- modelo internacional do atestado de
do "Boletim de Ocorrência", o qual con- óbito. Desconhece-se, portanto, a causa
tem dados extremamente valiosos para básica, ou seja, no caso, as circunstân-
um estudo epidemiológico bem detalha- cias do acidente. Os atestados de óbito
do, pois são anotadas informações co- fornecidos pelo Instituto Médico Legal
mo: local e tipo de acidente, tipo de só apresentam a causa externa da lesão,
veículo, número e características das ví- o que torna impossível um estudo como
timas, além de outras tais como tipo de o proposto. Levando-se em conta o fato
infração, licença para dirigir, residência de que todos os óbitos por acidente são
das pessoas envolvidas, procedência do necropsiados, mesmo aqueles em que as
veículo (se de São Paulo ou de fora). vítimas tenham falecido em hospitais
aos quais foram encaminhadas após a
Um estudo desse tipo justificava-se ocorrência, uma boa maneira de estudar
plenamente, pois poderiam ser obtidas o problema seria através dos laudos de
informações várias tendo-se em vista necrópsias. Deve ser acrescentado que as
uma programação que visasse à preven- mesmas são solicitadas pelas autorida-
ção dos acidentes. O que se objetivava era des policiais e que na requisição cons-
analisar os acidentes, as vítimas (pes- tam vários itens de importância para a
soas lesadas) e as mortes, segundo vá- caracterização das vítimas e do aci-
rias características. Assim, por exemplo, dente.
alguns dados oficiais divulgados pelas
autoridades responsáveis pelo trânsito, in- Sendo então possível o estudo deste
material, juntamente com algumas in-
formam, entre outros, índices e coefi-
formações coletadas no Departamento
cientes de feridos e mortos por habitan-
Estadual de Trânsito (DETRAN), foi
tes e o mesmo por veículos; sabe-se, po-
proposta esta análise epidemiológica des-
rém, que muitas pessoas feridas ou mor-
critiva dos óbitos causados por aciden-
tas não são residentes em São Paulo, e tes de veículos a motor na cidade de
como não é feita a correção necessária, São Paulo.
o risco de morrer da população fica
superestimado, da mesma forma que a MATERIAL E MÉTODOS
morbidade e a letalidade não são medi-
das corretamente. Isso não tem apenas
Para acidentes de trânsito de veículo
valor epidemiológico descritivo teórico,
a motor foi adotado o conceito da Clas-
mas do ponto de vista prático poderia
sificação Internacional de Doenças (8.a
dar uma contribuição importante visan- Revisão — 1965), segundo a qual é "qual-
do a medidas preventivas, desde que as quer acidente com veículo a motor ocor-
características dos acidentes e das víti- rido na via pública. É considerado como
mas fossem analisadas com mais rigor. ocorrido na via pública se houver suce-
Dadas algumas dificuldades surgidas dido inteiramente, originado ou termi-
para a tabulação e análise dos "Boletins nado nela ou se houver atingido um
de Ocorrência", o estudo limitou-se ape- veículo situado parcialmente na via pú-
nas às mortes. A maneira mais simples blica. O acidente é considerado de via
seria a análise dos atestados de óbito pública se não for especificado outro
lugar".
que, por si mesmos, poderiam dar infor-
mações importantes. Ocorre, porém, que Serão analisados nesta apresentação
todos os casos de óbitos decorrentes de somente os acidentes causados por veí-
culo a motor tipo automóvel, ônibus ou Tabela 2 que a maior proporção de aci-
caminhão, não sendo incluídas motoci- dentes ocorreu na zona sul (32,86%),
cletas e bicicletas motorizadas. Assim, vindo a seguir a zona leste (22,49%).
quando na apresentação dos resultados Quanto às áreas correspondentes aos
for referido "motociclista" ou "ciclista", distritos policiais, o maior número de
deverá o fato ser entendido como aci- mortes foi verificado na Cidade Ademar,
dente de automóvel, caminhão ou ôni- vindo a seguir São Miguel Paulista, Vi-
bus com uma motocicleta ou bicicleta la Mangalot, Santo Amaro e Lapa, dis-
motorizada ou não. tritos nos quais se verificaram 25,58%
de todas as mortes. Na Tabela 2, os ca-
Para o estudo proposto foram revis- sos que constam como ignorados são
tos todos os laudos de necrópsia do Insti- aqueles nos quais a informação não cons-
tuto Médico Legal referentes a mortes tava no livro de registro do Instituto
por acidentes ocorridos de 1.° de janeiro Médico Legal.
a 31 de dezembro de 1970; aqueles re-
ferentes a acidentes de veículos a motor Quanto à distribuição dos óbitos se-
foram separados, não se incluindo na gundo os meses do ano, foi observada
análise aqueles cujo local de ocorrência uma média de 145 por mês, sendo que o
tivesse sido fora da cidade de São Paulo. maior número foi verificado em julho e
(O Instituto realiza necrópsias de mor- o menor em fevereiro. Além de julho,
tes violentas ocorridas em alguns muni- os meses de maio, junho, agosto, no-
cípios vizinhos, que não dispõem de ser- vembro e dezembro ultrapassaram a mé-
viço médico legal). Para aqueles casos dia mensal. (Tabela 3).
em que o acidente ocorreu no municí-
pio de São Paulo foram anotados: dia Os acidentes (fatais ou não), por sua
da semana, mês, zona da cidade e dis- vez, foram mais freqüentes em agos-
trito policial da ocorrência, se a vítima to (10,09%) e, excluindo-se fevereiro
recebeu atenção médica (isto é, se hou- (6,22%), que é o mês mais curto, obser-
ve hospitalização), qualidade da vítima vou-se que julho foi o que teve menor
(pedestre, motorista, passageiro, etc.), número de acidentes. Comparando-se
e o fato de ser ou não residente em com o observado para o número de mor-
São Paulo. tes, vemos que julho, com menos aci-
dentes, produziu o maior número de
As informações sobre o total de aci- mortes. Na Tabela 3, onde estão expos-
dentes de veículo a motor ocorridos na tos esses dados, estão calculados tam-
cidade, e não só aqueles que causaram bém os riscos de um acidente produzir
mortes, assim como alguns outros da- vítimas (pessoas lesadas), de ocasionar
dos pertinentes, foram coletados no mortes e também o risco de uma vítima
DETRAN. de acidente vir a falecer. Como se pode
observar, verifica-se que em 1970, na
RESULTADOS cidade de São Paulo, em média, cada 100
acidentes provocaram 62,5 pessoas feri-
Foram realizadas 1883 necrópsias refe- das e 5,13 mortes. Por outro lado, para
rentes a mortes causadas por veículos a cada 100 pessoas feridas, em média,
motor, das quais 1746 ocorreram no ocorreram 8,22 mortes.
município de São Paulo. A análise re-
fere-se a estes 1746 casos. Em relação aos dias da semana veri-
ficou-se que, em média, ocorrem 138
Quanto ao local dos acidentes, segun- mortes por dia da semana no curso do
do as zonas da cidade e os respectivos ano, sendo aos sábados e domingos,
distritos policiais, pode-se observar na observados o maior número (32,43%
dos óbitos). Por outro lado, 4.a feira é No tocante à qualidade do falecido,
o dia que, em média, verifica-se o me- evidenciou-se grande proporção de pe-
nor número, vindo a seguir a 3.a feira destres, que corresponde a 86,00% de to-
(Tabela 4). das as mortes; a seguir aparecem os
motoristas de carros porém em propor-
ção apreciavelmente menor, pois para
cada morte de um destes, morreram
aproximadamente 20 pedestres. Não se
constatou nenhuma morte de motorista
de ônibus.